I – MACHADO DE ASSIS CONTISTA:
A produção do contista Machado de Assis se inicia em 1858 e estende-se aos inícios do século XX, com a produção de quase 300 contos, publicados nos jornais e revistas da época. Embora o conto literário já viesse se firmando no Brasil a partir de meados do século XIX, com Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, é com Machado de Assis que essa forma ficcional revela todas as suas possibilidades.
Reconhecido como o maior prosador da literatura brasileira, a produção de seus romances é marcada pela habilidade de construir textos mesclados da ironia nascida da observação da sociedade em que vivia.
Nos contos machadianos, revela-se uma sociedade habitada por seres solitários capazes de alcançar tão somente uma felicidade mesquinha. A vida desenrola-se como alguma coisa que escapa ao controle das personagens, alheia a suas vontades.
O contador de casos, que se distancia, numa postura literária de observador, e revela uma visão abrangente da sociedade do Segundo Império e da Primeira República, faz do leitor uma presença constante em suas narrativas.
Machado de Assis mostra extrema habilidade na elaboração de seus contos de observação e psicológicos, em que o ponto de vista da personagem narrador e suas motivações tornam-se exclusivas. A ironia vai-se expandindo não só na análise dos hábitos sócio-culturais da sociedade do Rio de Janeiro, mas na observação da própria natureza humana, apresentada em seus vícios e limitações permanentes.
Senso de observação, pessimismo, ironia, sensualidade e um inegável senso de humor com que equilibra o pessimismo são aspectos enfeixados em sua arte combinatória capazes de fazer de seus contos o que Alfredo Bosi chama de "um dos caminhos permanentes da prosa brasileira na direção da profundidade e da universalidade".
Neste conto, “Pai contra mãe”, avulta um Machado quase desconhecido: o ficcionista social, capaz de interrogar, na ação concreta dos homens, o que nelas é reflexo brutal da ordem vigente. Tudo isso sem panfletarismo, sem populismo, sem concessões demagógicas..
II – CONTO NA ÍNTEGRA:
PAI CONTRA MÃE (1906)
“A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a cerco ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também, à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
Há meio século, os escravos fugiam com freqüência. Eram muitos, e nem todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando apenas comprado no Valongo, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro apenas ladinos, pediam ao senhor que lhes marcassem aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha a promessa: "gratificar-se-á generosamente", – ou "receberá uma boa gratificação". Muita vez o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Cândido Neves, – em família, Candinho, – é a pessoa a quem se liga a história de uma fuga, cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos. Tinha um defeito grave esse homem, não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava caiporismo. Começou por querer aprender tipografia, mas viu cedo que era preciso algum tempo para compor bem, e ainda assim talvez não ganhasse o bastante; foi o que ele disse a si mesmo. O comércio chamou-lhe a atenção, era carreira boa. Com algum esforço entrou de caixeiro para um armarinho. A obrigação, porém, de atender e servir a todos feria-o na corda do orgulho, e ao cabo de cinco ou seis semanas estava na rua por sua vontade, fiel de cartório, contínuo de uma repartição anexa ao ministério do império, carteiro e outros empregos foram deixados pouco depois de obtidos.
Quando veio a paixão da moça Clara, não tinha ele mais que dívidas, ainda que poucas, porque morava com um primo, entalhador de ofício. Depois de várias tentativas para obter emprego, resolveu adotar o ofício do primo, de que aliás já tomara algumas lições. Não lhe custou apanhar outras, mas, querendo aprender depressa, aprendeu mal. Não fazia obras finas nem complicadas, apenas garras para sofás e relevos comuns para cadeiras. Queria ter em que trabalhar quando casasse, e o casamento não se demorou muito.
Contava trinta anos, Clara vinte e dois. Ela era órfã, morava com uma tia, Mônica, e cosia com ela. Não cosia tanto que não namorasse o seu pouco, mas os namorados apenas queriam matar o tempo; não tinham outro empenho. Passavam às tardes, olhavam muito para ela, ela para eles, até que a noite a fazia recolher para a costura. O que ela notava é que nenhum deles lhe deixava saudades nem lhe acendia desejos. Talvez nem soubesse o nome de muitos. Queria casar, naturalmente. Era, como lhe dizia a tia, um pescar de caniço, a ver se o peixe pegava, mas o peixe passava de longe; algum que parasse, era só para andar à roda da isca, mirá-la, cheirá-la, deixá-la e ir a outras.
O amor traz sobrescritos. Quando a moça viu Cândido Neves, sentiu que era este o possível marido, o marido verdadeiro e único. O encontro deu-se em um baile; tal foi – para lembrar o primeiro ofício do namorado, – tal foi a página inicial daquele livro, que tinha de sair mal composto e pior brochado. O casamento fez-se onze meses depois, e foi a mais bela festa das relações dos noivos. Amigas de Clara, menos por amizade que por inveja, tentaram arredá-la do passo que ia dar. Não negavam a gentileza do noivo, nem o amor que lhe tinha, nem ainda algumas virtudes; diziam que era dado cm demasia a patuscadas.
– Pois ainda bem, replicava a noiva; ao menos, não caso com defunto.
– Não, defunto não; mas é que...
Não diziam o que era. Tia Mônica, depois do casamento, na casa pobre onde eles se foram abrigar, falou-lhes uma vez nos filhos possíveis. Eles queriam um, um só, embora viesse agravar a necessidade.
– Vocês, se tiverem um filho, morrem de fome, disse a tia à sobrinha.
– Nossa Senhora nos dará de comer, acudiu Clara.
Tia Mônica devia ter-lhes feito a advertência, ou ameaça, quando ele lhe foi pedir a mão da moça; mas também ela era amiga de patuscadas, e o casamento seria uma festa, como foi.
A alegria era comum aos três. O casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço. Ela cosia agora mais, ele saía a empreitadas de uma coisa e outra; não tinha emprego certo.
Nem por isso abriam mão do filho. O filho é que, não sabendo daquele desejo específico, deixava-se estar escondido na eternidade. Um dia, porém, deu sinal de si a criança; varão ou fêmea, era o fruto abençoado que viria trazer ao casal a suspirada ventura. Tia Mônica ficou desorientada, Cândido e Clara riram dos seus sustos.
– Deus nos há de ajudar, titia, insistia a futura mãe.
A notícia correu de vizinha a vizinha. Não houve mais que espreitar a aurora do dia grande. A esposa trabalhava agora com mais vontade, e assim era preciso, uma vez que, além das costuras pagas, tinha de ir fazendo com retalhos o enxoval da criança. À força de pensar nela, vivia já com ela, media-lhe fraldas, cosia-lhe camisas. A porção era escassa os intervalos longos. Tia Mônica ajudava, é certo, ainda que de má vontade.
– Vocês verão a triste vida, suspirava ela.
– Mas as outras crianças não nascem também? perguntou Clara.
– Nascem, e acham sempre alguma coisa certa que comer, ainda que pouco...
– Certa como?
– Cerca, um emprego, um ofício, uma ocupação, mas em que é que o pai dessa infeliz criatura que aí vem, gasta o tempo?
Cândido Neves, logo que soube daquela advertência, foi ter com a tia, não áspero, mas muito menos manso que de costume, e lhe perguntou se já algum dia deixara de comer.
– A senhora ainda não jejuou senão pela semana santa, e isso mesmo quando não quer jantar comigo. Nunca deixamos de ter o nosso bacalhau...
– Bem sei, mas somos três.
– Seremos quatro.
– Não é a mesma coisa.
– Que quer então que eu faça, além do que faço?
– Alguma coisa mais certa. Veja o marceneiro da esquina, o homem do armarinho, o tipógrafo que casou sábado, todos têm um emprego certo... Não fique zangado; não digo que você seja vadio, mas a ocupação que escolheu, é vaga. Você passa semanas sem vintém.
– Sim, mas lá vem uma noite que compensa tudo, até de sobra. Deus não me abandona, e preto fugido sabe que comigo não brinca; quase nenhum resiste, muitos entregam-se logo.
Tinha glória nisto, falava da esperança como de capital seguro. Daí a pouco ria, e fazia rir à tia, que era naturalmente alegre, e previa uma patuscada no batizado.
Cândido Neves perdera já o ofício de entalhador, como abrira mão de outros muitos, melhores ou piores. Pegar escravos fugidos trouxe-lhe um encanto novo. Não obrigava a estar longas horas sentado. Só exigia força, olho vivo, paciência, coragem e um pedaço de corda. Cândido Neves lia os anúncios, copiava-os, metia-os no bolso e saía às pesquisas. Tinha boa memória. Fixados os sinais e os costumes de um escravo fugido, gastava pouco tempo em achá-lo, segurá-lo, amarrá-lo e levá-lo. A força era muita, a agilidade também. Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. Não o apanhava logo, espreitava lugar azado, e de um salto tinha a gratificação nas mãos. Nem sempre safa sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor arranhão.
Um dia os lucros entraram a escassear. Os escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves. Havia mãos novas e hábeis. Como o negócio crescesse, mais de um desempregado pegou em si e numa corda, foi aos jornais, copiou anúncios e deitou-se à caçada. No próprio bairro havia mais de um competidor. Quer dizer que as dívidas de Cândido Neves começaram de subir, sem aqueles pagamentos prontos ou quase prontos dos primeiros tempos. A vida fez-se difícil e dura. Comia-se fiado e mal; comia-se tarde. O senhorio mandava pelos aluguéis.
Clara não tinha sequer tempo de remendar a roupa do marido, tanta era a necessidade de coser para fora. Tia Mônica ajudava a sobrinha, naturalmente. Quando ele chegava à tarde via-se-lhe pela cara que não trazia vintém. Jantava e saía outra vez, à cata de algum fugido. Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os parentes do homem.
– É o que lhe faltava! exclamou a tia Mônica, ao vê-lo entrar, e depois de ouvir narrar o equívoco e suas conseqüências. Deixe-se disso, Candinho; procure outra vida, outro emprego.
Cândido quisera efetivamente fazer outra coisa, não pela razão do conselho, mas por simples gosto de trocar de ofício; seria um modo de mudar de pele ou de pessoa. O pior é que não achava à mão negócio que aprendesse depressa.
A natureza ia andando, o feto crescia, até fazer-se pesado à mãe, antes de nascer. Chegou o oitavo mês, mês de angústias e necessidades, menos ainda que o nono, cuja narração dispenso também. Melhor é dizer somente os seus efeitos. Não podiam ser mais amargos.
– Não, tia Mônica! bradou Candinho, recusando um conselho que me custa escrever, quanto mais ao pai ouvi-lo. Isso nunca!
Foi na última semana do derradeiro mês que a tia Mônica deu ao casal o conselho de levar a criança que nascesse à Roda dos enjeitados. Em verdade, não podia haver palavra mais dura de tolerar a dois jovens pais que espreitavam a criança, para beijá-la, guardá-la, vê-la rir, crescer, engordar, pular... Enjeitar quê? enjeitar como? Candinho arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa, que era velha e desconjuntada, esteve quase a se desfazer inteiramente. Clara interveio:
– Titia não fala por mal, Candinho.
– Por mal? replicou tia Mônica. Por mal ou por bem, seja o que for, digo que é o melhor que vocês podem fazer. Vocês devem tudo; a carne e o feijão vão faltando. Se não aparecer algum dinheiro, como é que a família há de aumentar? E depois, há tempo; mais tarde, quando o senhor tiver a vida mais segura, os filhos que vierem serão recebidos com o mesmo cuidado que este ou maior. Este será bem criado, sem lhe faltar nada. Pois então a Roda é alguma praia ou monturo? Lá não se mata ninguém, ninguém morre à toa, enquanto que aqui é certo morrer, se viver à míngua. Enfim...
Tia Mônica terminou a frase com um gesto de ombros, deu as costas e foi meter-se na alcova. Tinha já insinuado aquela solução, mas era a primeira vez que o fazia com tal franqueza e calor, – crueldade, se preferes. Clara estendeu a mão ao marido, como a amparar-lhe o ânimo; Cândido Neves fez uma careta, e chamou maluca à tia, em voz baixa. A ternura dos dois foi interrompida por alguém que batia à porta da rua.
– Quem é? perguntou o marido.
– Sou eu.
Era o dono da casa, credor de três meses de aluguel, que vinha em pessoa ameaçar o inquilino. Este quis que ele entrasse.
– Não é preciso...
– Faça favor.
O credor entrou e recusou sentar-se; deitou os olhos à mobília para ver se daria algo à penhora; achou que pouco. Vinha receber os aluguéis vencidos, não podia esperar mais; se dentro de cinco dias não fosse pago, pô-lo-ia na rua. Não havia trabalhado para regalo dos outros. Ao vê-lo, ninguém diria que era proprietário; mas a palavra supria o que faltava ao gesto, e o pobre Cândido Neves preferiu calar a retorquir. Fez uma inclinação de promessa e súplica ao mesmo tempo. O dono da casa não cedeu mais.
– Cinco dias ou rua! repetiu, metendo a mão no ferrolho da porta e saindo.
Candinho saiu por outro lado. Nesses lances não chegava nunca ao desespero, contava com algum empréstimo, não sabia como nem onde, mas contava. Demais, recorreu aos anúncios. Achou vários, alguns já velhos, mas em vão os buscava desde muito. Gastou algumas horas sem proveito, e tornou para casa. Ao fim de quatro dias, não achou recursos; lançou mão de empenhos, foi a pessoas amigas do proprietário, não alcançando mais que a ordem de mudança.
A situação era aguda. Não achavam casa, nem contavam com pessoa que lhes emprestasse alguma; era ir para a rua. Não contavam com a tia. Tia Mônica teve arte de alcançar aposento para os três em casa de uma senhora velha e rica, que lhe prometeu emprestar os quartos baixos da casa, ao fundo da cocheira, para os lados de um pátio. Teve ainda a arte maior de não dizer nada aos dois, para que Cândido Neves, no desespero da crise, começasse por enjeitar o filho e acabasse alcançando algum meio seguro e regular de obter dinheiro; emendar a vida, em suma. Ouvia as queixas de Clara, sem as repetir, é certo, mas sem as consolar. No dia em que fossem obrigados a deixar a casa, fá-los-ia espantar com a notícia do obséquio e iriam dormir melhor do que cuidassem.
Assim sucedeu. Postos fora da casa, passaram ao aposento de favor, e dois dias depois nasceu a criança. A alegria do pai foi enorme, e a tristeza também. Tia Mônica insistiu em dar a criança à Roda. “Se você não quer levar, deixe isso comigo; eu vou à rua dos Barbonos.” Cândido Neves pediu que não, que esperasse, que ele mesmo a levaria. Notai que era um menino, e que ambos os pais desejavam justamente este sexo. Mal lhe deram algum leite; mas, como chovesse à noite, assentou o pai levá-lo à Roda na noite seguinte.
Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela rua e largo da Carioca, rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o anúncio. Não achou; apenas um farmacêutico da rua da Ajuda se lembrava de ter vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu cortesmente a noticia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou barata.
Voltou para a triste casa que lhe haviam emprestado. Tia Mônica arranjara de si mesma a dieta para a recente mãe, e tinha já o menino para ser levado à Roda. O pai, não obstante o acordo feito, mal pôde esconder a dor do espetáculo. Não quis comer o que tia Mônica lhe guardara; não tinha fome, disse, e era verdade. Cogitou mil modos de ficar com o filho; nenhum prestava. Não podia esquecer o próprio albergue em que vivia. Consultou a mulher, que se mostrou resignada. Tia Mônica pintara-lhe a criação do menino; seria a maior miséria, podendo suceder que o filho achasse a morte sem recurso. Cândido Neves foi obrigado a cumprir a promessa; pediu à mulher que desse ao filho o resto do leite que ele beberia da mãe. Assim se fez; o pequeno adormeceu, o pai pegou dele, e saiu na direção da rua dos Barbonos.
Que pensasse mais de uma vez em voltar para casa com ele, é certo; não menos certo é que o agasalhava muito, que o beijava, que lhe cobria o rosto preservá-lo do sereno. Ao entrar na rua da Guarda Velha, Cândido Neves começou a afrouxar o passo.
– Hei de entregá-lo o mais tarde que puder, murmurou ele.
Mas não sendo a rua infinita ou sequer longa, viria a acabá-la; foi então que lhe ocorreu entrar por um dos becos que ligavam aquela à rua da Ajuda. Chegou ao fim do beco e, indo a dobrar à direita, na direção do largo da Ajuda, viu do lado oposto um vulto de mulher: era a mulata fugida. Não dou aqui a comoção de Cândido Neves por não podê-lo fazer com a intensidade real. Um adjetivo basta; digamos enorme. Descendo a mulher, desceu ele também; a poucos passos estava a farmácia onde obtivera a informação, que referi acima. Entrou, achou o farmacêutico, pediu-lhe a fineza de guardar a criança por um instante; viria buscá-la sem falta.
– Mas...
Cândido Neves não lhe deu tempo de dizer nada; saiu rápido, atravessou a rua, até o ponto em que pudesse pegar a mulher sem dar alarma. No extremo da rua, quando ela ia a descer a de S. José, Cândido Neves aproximou-se dela. Era a mesma, era a mulata fujona.
– Arminda! Bradou, conforme a nomeava o anúncio.
Arminda voltou-se sem cuidar malícia. Foi só quando ele, tendo tirado o pedaço de corda da algibeira, pegou dos braços da escrava, que ela compreendeu e quis fugir. Era já impossível. Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus.
– Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum o filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei sua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!
– Siga! repetiu Cândido Neves.
– Me solte!
– Não quero demoras; siga!
Houve aqui luta, porque a escrava, gemendo, arrastava-se a si e ao filho. Quem passava ou estava à porca de uma loja, compreendia o que era e naturalmente não acudia. Arminda ia alegando que o senhor era muito mau, e provavelmente a castigaria com açoites, – coisa que, no estado em que ela estava, seria pior de sentir. Com certeza, ele lhe mandaria dar açoites.
– Você é que tem culpa. Quem lhe manda fazer filhos e fugir depois? perguntou Cândido Neves.
Não estava em maré de riso, por causa do filho que lá ficara na farmácia, à espera dele. Também é certo que não costumava dizer grandes coisas. Foi arrastando a escrava pela rua dos Ourives, em direção à Alfândega, onde residia o senhor. Na esquina desta a luta cresceu; a escrava pôs os pés à parede, recuou com grande esforço, inutilmente. O que alcançou foi, apesar de ser a casa próxima, gastar mais tempo em lá chegar do que devera. Chegou, enfim, arrastada, desesperada, arquejando. Ainda ali ajoelhou-se, mas em vão. O senhor estava em casa, acudiu ao chamado e ao rumor.
– Aqui está a fujona, disse Cândido Neves.
– É ela mesma.
– Meu senhor!
– Anda, entra...
Arminda caiu no corredor. Ali mesmo o senhor da escrava abriu a carteira e tirou os cem mil-réis de gratificação. Cândido Neves guardou as duas notas de cinqüenta mil-réis, enquanto o senhor novamente dizia à escrava que entrasse. No chão, onde jazia, levada do medo e da dor, e após algum tempo de luta a escrava abortou.
O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo, entre os gemidos da mãe e os gestos de desespero do dono. Cândido Neves viu todo esse espetáculo. Não sabia que horas eram. Quaisquer que fossem, urgia correr à rua da Ajuda, e foi o que ele fez sem querer conhecer as consequências do desastre.
Quando lá chegou, viu o farmacêutico sozinho, sem o filho que lhe entregara. Quis esganá-lo. Felizmente, o farmacêutico explicou tudo a tempo; o menino estava lá dentro com a família, e ambos entraram. O pai recebeu o filho com a mesma fúria com que pegara a escrava fujona de há pouco, fúria diversa, naturalmente, fúria de amor.
Agradeceu depressa e mal, e saiu às carreiras, não para a Roda dos enjeitados, mas para a casa de empréstimo, com o filho e os cem mil-réis de gratificação. Tia Mônica, ouvida a explicação, perdoou a volta do pequeno, uma vez que trazia os cem mil-réis. Disse, é verdade, algumas palavras duras contra a escrava, por causa do aborto, além da fuga. Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto.
– Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração.”
II – ESTILO LITERÁRIO:
O conto “Pai contra Mãe”, de Machado de Assis, publicado em 1906, no livro “Relíquias da Casa Velha”, insere-se na fase “madura” do autor, de características marcadamente Realistas.
III - FOCO NARRATIVO:
Narrado em 3ª pessoa, é um dos contos atípicos do autor, pois apresenta nos primeiros parágrafos grande descrição aos maus tratos que os escravos recebiam no século XIX, aproximando o leitor do tempo e do espaço através de relatos históricos.
IV – ESPAÇO E TEMPO:
A narrativa ambienta-se no Rio de Janeiro do século XIX, nos tempos do Império, antes da abolição da escravatura. Machado de Assis dando um caráter documental aos fatos cita nomes reais das ruas, becos estreitos, apresentando um painel sócio econômico da época contrapondo a miséria com a riqueza dos grandes proprietários de escravos, com destaque para a “coisificação do ser humano reduzindo os menos favorecidos a objetos.
V- CARACTERÍSTICAS:
- A intertextualidade:
O nome Cândido, protagonista de “Pai contra mãe” vem do latim e significa “alvo”, “puro”, “imaculado”, remete a personagem homônima, da obra de Voltaire, já que ambos são responsáveis por ironizar uma ideia vigente ou um sistema: Cândido, de Voltaire, o otimismo desenfreado; e outro, o sistema da escravidão em que negros são tratados como objetos e não como seres humanos. Porém, há uma contradição irônica, pois a personagem machadiana não apresenta nenhuma candura, e, sim, revela-se insensível no final do conto.
- A ironia:
Extremamente irônico Machado constrói um Cândido que tem uma aversão ao trabalho, para ele todo oficio é custoso, além disso, muitas vezes, quem trabalha não recebe o que merece. Assim seus “empregos foram deixados pouco depois de obtidos". Então lhe restou o oficio de pegar escravos fugidos, já que este estava destinado aos inaptos para outros trabalhos, como era o seu caso. Ele, porém, tinha necessidade de estabilidade, e considerava isso má sorte ou infelicidade constante, ao contrário do Cândido de Voltaire, sempre otimista. Este, todavia, no fim da obra, aceita que é mais importante a ação sobre a reflexão filosófica. Melhor que ficar pensando nos dramas existenciais é colocar-se a trabalhar, pois só o trabalho pode ser o remédio para muitos males, o que não pensa o Candinho de Machado.
É conveniente também citar a ironia presente na construção de duas personagens do conto. Clara, cujo nome do latim significa “brilhante”, “luzente”, “ilustre”, além da tonalidade, seu nome é ligado ao brilho (de distinção). Distinção essa não revelada por sua personalidade que mesmo em meio à perda de seu filho, não esboça nenhuma reação e é sempre submissa aos desmandos da tia. Mônica, a tia, significa só, sozinha, viúva, o que não acontece no texto, pois está, geralmente, perto do casal, abrigando-os, participando de suas decisões, opinando, não fica sozinha, vive em companhia dos dois.
- O pessimismo:
Machado de Assis apresenta um pessimismo, cuja fonte está em Schopenhauer, pensador alemão, que afirmava que a essência do universo é a vontade ou o querer, entidade da qual emana a parte verdadeira dos indivíduos. Mas a vontade, tanto em estado cósmico quanto individual, é má, pois provoca a agitação, o egoísmo, o ciúme. Por isso a personagem principal age como age, coloca a sua vontade de continuar com o filho acima de qualquer outra coisa, por isso é levado a agir com egoísmo, luta corpo a corpo com a escrava para poder entregá-la a seu senhor, e receber o dinheiro da recompensa, sem ao menos pensar que poderia agir de outra forma para não maltratá-la, já que estava grávida.
- As classes sociais:
Machado, através de "Pai contra mãe", mostra como o negro livre e o trabalhador branco e pobre, estão em situação muito semelhante ao negro escravo. Ganha a liberdade, ou mesmo já a possuindo por uma questão de origem, o trabalhador livre possuía pouca perspectiva num país em que a bipolaridade social e econômica era, ainda, a principal característica. Ou seja, de um lado o senhor branco, rico, nesse momento não mais escravagista, e do outro o negro livre e o branco em estado pleno de miséria, vivendo numa sociedade em que as possibilidades de mudança são remotas. É esta a situação que Machado anuncia dentro de "Pai contra mãe". A figura central do conto é de um trabalhador miserável que forma uma família também miserável.
VI – ANÁLISE DO CONTO:
Em “Pai contra mãe”, Machado de Assis desmascara o psicológico das personagens e revela a hipocrisia humana, ironizando-a através de seus comportamentos ora de dominados ora de dominadores, remetendo a filosofia do Humanitismo, a lei do mais forte que configura a sobrevivência humana ao próprio canibalismo do sistema social. A narrativa analisa a capacidade que alguns homens têm de persuadir (como a Tia Mônica) o próximo, humilhar e matar (como o fez Candinho com Arminda) para se dar bem na vida, para sobreviver numa sociedade desigual e excludente. Afinal, ao vendedor as batatas!
Os acontecimentos e o cenário só têm relevância quando provocam reações psicológicas e do conhecimento da vida social. O autor inicia a narração do conto apresentando a descrição dos instrumentos de tortura em uso contra o escravo e os ofícios decorrentes dessa situação social. Utilizando-se do pretérito perfeito - "levou", retrata um tempo passado, além de reconhecer a escravidão como uma instituição social. Será justamente a escravidão como instituição social que dará ocupação ao protagonista: capturar escravos fugidos.
Em seguida apresenta a personagem principal, Candinho, o qual não se adaptando a ofício algum, acaba tornando-se caçador de escravos fugidos no perímetro urbano do Rio de Janeiro.
Para os escravos fugidos no meio urbano, a melhor coisa a fazer era misturar-se à população negra, livre, alforriada ou escrava para embaralhar as pistas. Aliás, os anúncios dos jornais da época, fonte documentária extraordinária para os historiadores, descrevem todo tipo de subterfúgio usado por escravos fugidos que buscavam confundir-se com o meio urbano. Havia anúncios do gênero: "Um tal escravo, de tal tamanho, fugiu, mas ele faz semblante de ser livre e é habituado de tal parte da cidade".
Os senhores e as autoridades, é claro, faziam questão de cercar de perto a população escrava e decretavam normas proibindo todo escravo de usar sapatos. Logo, todo negro ou mulato calçado era considerado a princípio como sendo livre ou alforriado. Nessas condições, os escravos fugidos que circulavam na cidade podiam facilmente obter sapatos para evitarem ser interpelados. Isso aumentava a confusão social fazendo recair a suspeita sobre todos os negros livres.
Cândido Neves ou Candinho não fixava em nenhum emprego, assim, encontrou no ofício de pegar escravos fugidos uma alternativa para seu sustento. Pela manhã, após ter lido os anúncios e ter tomado as anotações das características dos escravos fugidos, saía a sua caça e com auxílio de uma corda atacava a pessoa que julgava corresponder a um anúncio determinado.
Seu casamento com Clara, uma órfã que morava com uma tia, Mônica; a gravidez da esposa em meio à crescente pobreza; a escassez de oportunidades nesse ofício, devido ao aumento da concorrência coloca Candinho em total desespero e numa luta interior.
Sem recursos financeiros para criar seu filho, após muito hesitar, Candinho não vê outra saída a não ser acatar a proposta da tia Monica - entregar a criança à Roda dos Enjeitados.
Antes, porém, ele decidiu tentar, ainda uma vez, obter dinheiro para evitar a infelicidade de perder o filho. Retomou os jornais e suas fichas sobre os escravos fugidos. Selecionou então um anúncio que prometia uma grande recompensa por uma mulata fugida na cidade. O texto descrevia a aparência da escrava, os bairros que ela costumava frequentar e seu nome: Arminda. Com o dinheiro da recompensa, Cândido podia pagar suas dívidas e ter um descanso. Sobretudo, isso permitiria ao casal ficar com o filho.
No caminho que o levava em direção à Roda, por ironia do destino, ele se depara com Arminda, a mulata fujona e logo a reconhece. Deixa seu filho com um farmacêutico para tentar alcançar a mulata e a captura. Nesse momento, a escrava Arminda, implorando que a libertasse, afirma que está grávida.
Cândido recusou e arrastou-a até a casa de seu senhor que morava em um bairro próximo. Na medida em que eles se aproximavam da casa do senhor, Arminda reagiu ainda mais, ela se debatia e terminou por abortar na entrada da casa. O proprietário de Arminda chegou e deu a recompensa a Cândido. Esse voltou com o dinheiro e, após um pequeno suspense, recuperou seu nenê.
Na volta a sua casa, viu a tia de sua mulher e contou-lhe o que se passou. É interessante porque aqui a mãe não está presente, é um diálogo em que a mãe não intervém mais, somente a tia. Ele conta-lhe a história de Arminda e de seu aborto.
O conto é finalizado com um discurso direto: “- Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”, só que esse discurso é emitido sem que nenhuma das personagens (sua esposa, sua tia) pedisse-lhe contas do aborto que a escrava fujona, pega por Cândido Neves, sofrera.
O discurso de Cândido vem de sua consciência, uma maneira de justificar sua tirania e sua crueldade. Dessa forma, sobrevivem apenas os que, mesmo em situação econômica difícil, contam com a proteção social. Candinho, mesmo próximo à miséria, era um homem livre e branco, estava ao lado dos fortes, enquanto a escrava, nem mesmo sendo considerada humana, não possuía chances.
Machado de Assis mostra a miséria humana, através dos dramas paralelos de um pai contra mãe, lutando por duas vidas, onde o indivíduo é capaz de aplacar sua consciência, mesmo tendo cometido o maior dos crimes, justificando a troca de uma vida pela outra.
O fato da escrava Arminda, implorar por sua liberdade porque estava grávida e não queria ter um filho escravo, faz com que Candinho se lembre de seu filho recém nascido que se ele não ganhar dinheiro urgentemente terá que perdê-lo, deixá-lo à Roda dos Enjeitados para não morrer de fome. Portanto, Candinho obstinamente, agarra a escrava e entrega ao seu dono, sem se importar com sua gravidez.
Tanto Arminda quando Cândido vê nos seus filhos a possibilidade de mudança, de retomada de alguns valores afetivos que antes não haviam gozado. Ter o filho em segurança era projetar um futuro distinto do que eles tinham até então.
Machado de Assis ao retratar a luta do pai branco, contra uma mãe, negra e escrava, traçou um paralelo nas condições de miséria e pobreza existentes durante a escravidão e que permaneceriam após o seu fim.
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