quinta-feira, 15 de junho de 2017

“O OVO APUNHALADO", CAIO FERNANDO ABREU - CONTO: GRAVATA



A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de que havia sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la. Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque. Disfarçado, observou o preço e, em seguida, retomou o caminho. Cara demais, pensou, e enquanto pensava decidiu não pensar mais no assunto.
Quase conseguiu — até o dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia.
Pelo vidro da janela analisou sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras. Em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar — mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão, surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la.
Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais. Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume. Na manhã seguinte, tomou a decisão: dentro de um mês, ela seria sua. Passou na loja, mandou reservá-la, quase envergonhado por fazê-la esperar tanto. Que ela, sabia, também ansiava por ele.
Trinta dias depois ela estava em suas mãos. Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela — o trivial não seria suficientemente expressivo, nem mesmo o meramente correto seria capaz de atingi-la: metafísicas, budismos, antropologias.
Permaneceu deitado durante muito tempo, a observá-la sobre a colcha azul. Dos mais variados ângulos, ela continuava a mesma, terrivelmente bela, vaga e inatingível — mesmo ali, sobre a cama dele, mesmo com a nota de compra e o talão de cheques um pouco mais magro ao lado. Olhava os sapatos, as meias, a calça, a camisa — e não conseguia evitar uma espécie de sentimento de inferioridade: nada era digno dela. Um pouco mais tarde abriu o guarda-roupa e então deixou que um soluço comprimisse subitamente seu peito de coração ardente, como duas mãos que apertassem para depois libertá-lo em algumas lágrimas desiludidas. Não era possível. Não podia obrigá-la, tão nobre, a servir de companhia àqueles ternos, sapatos e camisas antigos, gastos, vulgares, cinzentos. Foi depois de olhar perdido para o assoalho que teve como um repente de lucidez. Então encarou agressivo a impassibilidade da gravata e disse:
– Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la à hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma. Você...
Não conseguiu ir adiante. A voz dele estremeceu e falhou bem no meio de uma palavra dura, exatamente como se estivesse blasfemando e Deus o houvesse castigado.
Um Deus de plástico, talvez de acrílico ou néon. Olhou desamparado para o sábado acontecendo por trás das janelas entreabertas e, sem cessar, para a colcha azul sobre a cama, logo abaixo da janela e, mais uma vez, para a gravata exposta em seu suporte de veludo pesado, vermelho.
Ele enxugou os olhos, encaminhou-se para a estante. Abriu um dicionário. Leu em voz alta:

Gravata S. f: lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço. Golpe no pescoço, em algumas lutas esportivas. Golpe sufocante, aplicado com o braço no pescoço da vítima, enquanto um comparsa lhe saqueia as algibeiras.

Suspirou, tranquilizado. Não havia mistério. Colocou o dicionário de volta na estante e voltou-se para encará-la novamente. E tremeu. Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se chocassem de repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:
– Você não passa de um substantivo feminino — disse, e quase sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.
Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada. Admitia que não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não conseguisse controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo daquela zona que alguns haviam convencionado chamar loucura. E essa era a primeira vez que se descobria assim, tão perto dessas coisas incompreensíveis que sempre julgara acontecerem aos outros — àqueles outros distanciados, melancólicos e enigmáticos, que costumava chamar de os-sensíveis — jamais a ele. Pois se sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas.
Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes de fazê-lo já se sabia temendo, já se sabia perdendo-se dentro dele — finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela.
Todo enleado nesse pensamento, tomou-a entre os dedos de pontas arredondadas e colocou-a em volta do pescoço. Os dez dedos esmeraram-se em laçadas: segurou as duas pontas com extremo cuidado, cruzou a ponta esquerda com a direita, passou a direita por cima e introduziu a ponta entre um lado esquerdo e um lado direito. Abriu a porta do guarda-roupa, onde havia o espelho grande, olhou-se de corpo inteiro, as duas mãos atarefadas em meio às pontas de pano. Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou viver uma madrugada de domingo — disse para dentro, num sussurro. — Basta apertar. Mas antes de apertar uma coisa qualquer começou a acontecer independente de seus movimentos. Sentiu o pescoço sendo lentamente esmagado, introduziu os dedos entre os dois pedaços de pano de cor vagamente indefinível, entremeado por pequenas formas coloridas, mas eles queimavam feito fogo.
Levou os dedos à boca, lambeu-os devagar, mas seu ritmo lento opunha-se ao ritmo acelerado da gravata, apertando cada vez mais. Ainda tentou desvencilhar-se duas, três, quatro vezes, dizendo-se baixinho do impossível de tudo aquilo, o pescoço queimava e inchava, os olhos inundados de sangue, quase saltando das órbitas. Quando tentou gritar é que ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, boca aberta revelando algumas obturações e falhas nos dentes, inúmeras rugas na testa, escassos cabelos despenteados, duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito, uma das mãos cerradas com força e a outra estendida em direção ao espelho — como se pedisse socorro a qualquer coisa muito próxima, mas inteiramente desconhecida.

ANÁLISE LITERÁRIA:

“[...] podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela”.
Caio Fernando Abreu

No conto “Gravata”, de Caio Fernando Abreu, há uma clara referência ao fator econômico na construção do enredo e na estruturação das personagens, em um contexto marcado por intensas transformações políticas e sociais.
O texto de Abreu apresenta uma metáfora do indivíduo que é dominado e sufocado pela sociedade, como uma crítica ao mercado, ao consumo excessivo que impera na sociedade capitalista. A solidão do sujeito e a busca do amor em um objeto retratam uma sociedade pautada na lógica do mercado.
Este sufocamento se dá a partir da submissão da identidade individual do sujeito aos padrões de consumo estimulados pelo sistema capitalista.
No conto, a subjetividade do protagonista eleva-se em oposição à objetividade do mercado consumidor, reproduzindo os dilemas mais íntimos dos sujeitos que viviam no ambiente urbano e integravam a força produtiva da época.

O conto “Gravata” apresenta um narrador onisciente que nos expõe a conturbada relação entre um homem e um objeto (a gravata).

Desde seu início, este conto revela-se como uma reflexão acerca da repressão imposta pelo brutalismo característico da sociedade brasileira da década de 1970, entusiasmada com uma promessa de progresso e cada vez mais desumana.
Como afirma Ana Paula Ohe (2009):

O “milagre econômico” brasileiro proporcionou ao país um crescimento da economia em ritmo acelerado. O ingresso maciço de capitais e empresas estrangeiras possibilitara a ampliação do mercado interno e externo. É nesse período, que pela primeira vez, a produção brasileira encontrara um mercado consumidor significativo em outros países, fazendo com que a transitoriedade dos modismos rompesse os limites territoriais para inscrever-se num âmbito global, tornando visível as mudanças nos padrões tanto de produção como de consumo. (OHE, 2009, p. 7)

Este contexto, regido pela lógica do consumo, é refletido no conto a partir da busca do personagem por se sentir incluído socialmente, através da aquisição de um bem material capaz de diferenciá-lo dos demais:

“No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia” (ABREU, 2008, p. 24).

A percepção de que a vida de algumas pessoas em sociedade se tornou efêmera e corriqueira pode ser relacionada com o consumismo, com o acúmulo de bens materiais e, consequentemente, de trabalho e de informação.

Assim, o indivíduo busca sentir-se melhor por meio da aderência a modismos, no caso do conto em análise, através da compra de uma gravata, que além de ser capaz de destacá-lo entre seus iguais – outros homens com o mesmo padrão de vestimenta e, que assim como ele, utilizam transporte coletivo –, também, por si só se constitui em um símbolo de marcação de status.

Pouco sabemos sobre o protagonista: trata-se de uma alegoria do homem comum. Desconhecemos seu nome, somos informados sobre algumas de suas características físicas (apresenta obturações e falhas nos dentes, rugas na testa e escassos cabelos) somente no último parágrafo, até então o destaque era dado apenas à gravata) e sobre parte de sua rotina de trabalho repetido por ele diariamente (trajeto de casa de ônibus para ir ao trabalho, vive sozinho, prepara o próprio jantar, fuma) e a cada saída para o trabalho ele passa pelos mesmos lugares.
A construção desta personagem oferece pistas substanciais para reflexão do distanciamento nas relações pessoais, do sentimento de solidão e perda de identidade que o homem experimenta nas situações características da vida urbana, que aglomera os seres, mas não os aproxima.
A racionalidade predomina em suas ações e torna suas posturas mecânicas, repetitivas.
A personagem está conectada com o mundo através dos meios de comunicação de massa, o que o torna presa fácil de campanhas publicitárias e ideológicas, que como ainda hoje, empurram os indivíduos para um consumo desenfreado e inconsequente, como pode ser constatado em trechos:

Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume” (Id. p. 25) e “em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar – mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão [...]” (Id., p. 24).
Não há no texto referência aos sujeitos que o protagonista possa conhecer ou encontrar ao repetir diariamente o mesmo trajeto. Quando o narrador menciona os demais homens que viajam no mesmo ônibus, estes surgem sem rostos, sem traços físicos, sendo identificados apenas pelas roupas que portam. As roupas, assim, são o elemento que equipara todos os homens, enquanto que, suas características físicas e psicológicas não são levadas em consideração.
As marcas urbanas, como as ruas, os ônibus, o asfalto e as lojas, são sobrepostas aos aspectos humanos no texto.

No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia. Pelo vidro da janela analisou a sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras” (ABREU, 2001, p. 26).

Sua rotina de trabalho estabelece certa “objetividade” em sua vida. Essa objetividade, no entanto, é abalada pelo encantamento que ele passa a sentir em relação a um objeto (uma gravata). Almejar um objeto novo, supostamente superior ao que possuía, converte o protagonista em apenas mais um dos tantos sujeitos que vivem na urbe, que fazem parte do sistema capitalista que nela impera.

Após ver a gravata pela primeira vez em uma vitrine, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus, delineia-se uma relação sentimental entre o homem e o objeto que se torna alvo de seu desejo e tem certeza de que ela havia sido feita apenas para ele e que não poderia mais esquecê-la, então, passou a organizar sua vida objetivando adquiri-la.

“No dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela” (ABREU, 2001, p. 26).

O que surge como diferencial no texto é o fato do protagonista devotar um sentimento tão forte para a gravata (denominado por ele de “amor”), dando ao objeto um status único, equiparando-o a uma pessoa numa espécie de amor platônico:

“No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la” (ABREU, 2008, p. 24).

“[...] voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. [...] surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais (ABREU, 2008, p. 24-25).

Nesse momento, a gravata ganha vida no texto, assume superioridade como pode constatar no título do conto. Ocupa o espaço dos demais indivíduos nas relações pessoais (objeto humanizado de um lado e sujeito coisificado de outro). Enquanto a ausência de uma precisão na caracterização do protagonista remete a uma equiparação entre todos os “homens”, entre todos os indivíduos que possuem rotinas de trabalho, que tomam ônibus e vivem sozinhos, convertendo-o em apenas mais um sujeito no meio da multidão, a impossibilidade de descrever com precisão a gravata devido à complexidade com que se apresenta para o personagem dá ao objeto um lugar de maior destaque do que o que é conferido ao sujeito. O desejo, a necessidade pelo objeto se apodera do indivíduo de tal forma, que este se vê absolutamente seduzido pela imagem da mesma:

“Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque” (ABREU, 2001, p. 24), tanto é, que mesmo após concluir que não dispunha de meios para pagá-la, não conseguiu desistir de comprá-la.

Recorrendo ao conceito apresentado no próprio conto, uma gravata é um “lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço” (ABREU, 2008, p. 26), ou seja, algo inapropriado, ou ainda, improvável para um sujeito que em seu trabalho realize atividades que envolvam esforço físico – as quais são desvalorizadas e até vistas com preconceito pela sociedade.

A gravata é usada, comumente, em conjunto com um terno e com sapatos, sendo associada a um traje mais formal e pertencente a ambientes de trabalho que requerem o emprego da razão em oposição à força física. Vinculada ao ambiente urbano, a gravata erige-se como uma marca da rotina de trabalho do protagonista na urbe.
Quando, enfim, consegue adquiri-la, o protagonista se vê em meio a sentimentos opostos: ao mesmo tempo em que busca racionalizar o que sente na tentativa de perceber a gravata como um objeto e, então, fazer uso dela, ele percebe a impossibilidade de controlar suas emoções: o protagonista debate-se entre o objetivo (a lógica do mercado) e o subjetivo (seus sentimentos).

“A cama pareceu menos vazia que de costume” (ABREU, 2001, p. 27), fazendo as vezes de um par romântico:

“Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela” (ABREU, 2001, p. 27).

Mas, seus sentimentos não podem ser facilmente racionalizados. O sujeito do conto de Abreu vê-se perdido, atordoado, pois o fato da gravata ser um objeto não impede que ele a ame. No texto, o narrador nos mostra a gravata com traços humanos, atribuindo-lhe também sentimentos:

“Que ela, sabia, também ansiava por ele” (ABREU, 2001, p. 27).

Ao tentar racionalizar o que sente, busca na falta de humanidade da gravata uma justificativa para a impossibilidade de amá-la:

“Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la a hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma“ (ABREU, 2001, p. 28).

E essa relação intensifica-se: “eu te amo tanto, tanto” (ABREU, 2001, p. 29).

O ato de vivenciar algo desconhecido, algo que ele não consegue racionalizar “por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento” (ABREU, 2001, p. 29) coloca-o em conflito existencial, surge a loucura em oposição à razão.

“Pois sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas” (ABREU, 2001, p. 29).

Quando o protagonista assume seu medo, ele consegue ir além da objetividade que o mantinha atrelado a sua rotina, que o fazia medir suas ações, que o limitava: “sim, podia fazer qualquer coisa” (ABREU, 2001, p. 29).

A personagem ao reconquistar seu equilíbrio, restabelecer sua totalidade e sair do estado de alienação, no qual estava imersa, tenta lidar com o objeto. Há um respeito e uma veneração do sujeito para com o objeto, mas aquele rompe a barreira que os separava e assume o objeto como seu.

“Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo” (ABREU, 2001, p. 30).

Nesse momento, o objeto (gravata) que havia catalisado essa tomada de consciência assume vida e sufoca o protagonista: a vida presente na gravata tira a vida do protagonista.

“Ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, [...] duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito [...]” (ABREU, 2008, p. 28).

O final do conto parece conduzir para uma visão fatalista, retratando a impossibilidade do indivíduo de desvencilhar-se do contexto, do mercado, do capitalismo, acabando por ser aniquilado. Entretanto, em seu sentido menos aparente, encontramos um texto que alerta para as relações impessoais e superficiais estabelecidas pela sociedade capitalista.

A desintegração progressiva das ligações sociais, a crescente atomização da sociedade, a intensificação do isolamento dos indivíduos, uns em relação aos outros, e a solidão, necessariamente inerente a essas tendências, torna o sujeito o próprio produto da alienação.

Abreu faz uma crítica a esse modo de vida, no qual as identidades individuais entram em conflito diante dos padrões e papéis sociais que necessitam exercer. Dessa forma, a gravata, metáfora de “mercado”, impede que o indivíduo recobre sua humanidade, sua totalidade, anulando sua existência.

O conto, assim, mergulha na subjetividade do protagonista para mostrar-nos o debate entre o objetivo e o subjetivo e a necessidade de conciliá-los. O sujeito fragmentado, incompleto, surge alienado, como o reflexo do mercado. Sua ambição está no consumo do melhor produto, na aparência. Porém, o consumo continua mantendo-o incompleto.

Abreu nos apresenta uma sociedade automatizada nas relações de produção e consumo e mesmo nas relações sociais. Essa mudança teve como resultado sujeitos alienados que perderam a noção de totalidade (de dominantes passaram a dominados). Na sociedade capitalista moderna, o elemento subjetivo da realidade social surge separado do elemento objetivo, como se fossem duas substâncias independentes: subjetividade vazia de um lado e objetividade coisificada de outro; de um lado o automatismo da situação dada e de outro a psicologização e a passividade do sujeito.

A única forma de romper com essa automatização é através da reflexão de que o homem é o portador verdadeiro do movimento social, tanto no processo produtor e reprodutor de sua vida. 

quarta-feira, 26 de abril de 2017

UNS BRAÇOS, MACHADO DE ASSIS


                                     "Mulher com chapéu" (1940), de Di Cavalcanti

Publicado em 1885 na Gazeta de Notícias (depois no livro “VÁRIAS HISTÓRIAS”, em 1896) e mais amplamente inscrito em um período de intensa criação de Machado de Assis em contos, “UNS BRAÇOS” é um texto recorrente nas diversas coletâneas didáticas, críticas e de divulgação do autor, que revela a expressividade fortemente unívoca dos aspectos contextuais, temáticos e estilísticos da escrita machadiana.

A ação está restrita à brevidade temporal e quase somente ao ambiente doméstico, urbano, mais precisamente na Rua da Lapa, em 1870, pouco tempo depois do término do Romantismo. É possível observar que algumas características do Realismo vão surgindo, mesmo que suavemente, já que Machado está à frente do seu tempo e anuncia a tendência que está por vir.                                                                                                                                

O foco narrativo é de terceira pessoa que conduz quer contar em paralelo os sucessivos pensamentos das personagens, reforçando uma composição de múltiplos pontos de vista sobre a realidade, bastante relativizada, assim como é uma voz que omite ou desconhece algumas causas da ação, demonstrando ser a realidade também escorregadia e ilusória, com o efeito último de problematizar o paradigma da representação realista. Indo além, a colocação dos eventos mais importantes da narrativa na esfera íntima das relações amorosas complica ainda a percepção romântica do real, trazendo o amor para o mesmo jogo de incertezas.

Primeiramente, pode-se tentar reconstruir as identidades das TRÊS PERSONAGENS que compõem a cena de abertura da história, que são conhecidas aos poucos, para entender o diagrama de suas forças idiossincráticas e sociais.

É a história de INÁCIO, jovem de 15 anos que foi retirado do seio de uma família modesta, composta pela mãe, pelas irmãs e pelo pai barbeiro, cujo espírito de grandeza (principalmente financeira) ao vislumbrar o futuro do filho fizera com que ele confiasse Inácio ao solicitador (funcionário do Judiciário, algo entre procurador e advogado) BORGES, para ser aprendiz na profissão burocrática da procuradoria judiciária.

A mudança na vida de Inácio foi drástica, pois ele precisou ir morar no quarto dos fundos da casa do patrão, não desfrutando da usual intimidade familiar, sendo obrigado ao desgosto de um trabalho que exercia sem vontade nem habilidade, e vivendo sob a proteção de um homem que parecia estar longe de um ideal de figura paterna, ou mesmo de patrão.

Essa dependência durava cinco semanas quando o conto se inicia (note que nesse conto Machado mostra o dom que possui para narrativas memorialistas. Veja também o seu início abrupto, sendo o leitor jogado de chofre no meio da história, técnica chamada de in media res) com Inácio sendo acusado de algo que o fazia sofrer os grosseiros impropérios de Borges, “a preguiça do corpo”, o “sono pesado e contínuo” (p. 377), o “devanear à larga” (p. 378).
Seu novo estilo de vida, dentro do quadro social brasileiro da época de Machado, hierarquizado entre os extremos da ordem senhorial dos proprietários e da ordem dos escravos, libertos ou não, correspondia à rubrica de dependente, já que agora dependia dos favores (moradia, alimentação e educação profissional) de alguém pertencente a uma classe superior. Pouco superior, nesse caso, porque o pai de Inácio também era um trabalhador assalariado como Borges, que, inclusive, para manter sua condição, “trabalhava como um negro” (p. 380).

Outro aceno importante presente na cena do jantar é a interpretação metafórica dos signos não-verbais da realidade, como o corpo, seus gestos e movimentos, em signos verbais, em linguagem ou língua escrita. Tem-se, de início, apenas a figura de um Borges ruminante, que “abarrotava-se de alface e vaca” (p. 378) ruidosamente, como se assim fizesse seu discurso agressivo contra Inácio ressoar ainda nos pobres ouvidos do empregado, até suspendê-lo com “vírgulas” de vinho.

Mas surgirão posteriormente desdobramentos dessa concepção das coisas como recursos discursivos, gramaticais, simbólicos, ou seja, como mediações das palavras, e não como coisas em si. Além disso, a mastigação de Borges é narrada de um ângulo menos distante e idealizado do que poderia ser aquele do pai de Inácio, a quem o solicitador parecia uma figura respeitável, de certa importância, o que já começa a demonstrar a relatividade das percepções.

O segundo membro da célula familiar de que Inácio se aproximara é D. SEVERINA, A MULHER DOS BRAÇOS COBIÇADOS, única razão de seu admirador não fugir daquela casa, que vivia com Borges “maritalmente, há anos” (p. 377), o que institui a figura da esposa não consagrada pelo matrimônio.
Deve-se lembrar que na época em que se passa a história, 1870, não era comum uma mulher exibir tal parte do corpo. Mas, antes que se pense que ela era despudorada, deve-se lembrar que só o fazia por passar por certas dificuldades que tornava o seu vestuário falto de peças mais adequadas.

Ainda assim, os breves momentos em que via a mulher e principalmente os braços dela eram, para Inácio, o grande alívio diante de um cotidiano tão massacrante.
BORGES repreende INÁCIO por andar tão distraído, confundindo papéis e errando casas. Logo em seguida, o narrador faz a seguinte observação acerca de Inácio:

Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Durante as refeições, Inácio procura ao máximo prolongar sua permanência na mesa para poder continuar na presença de D. Severina:

Inácio demorou o café o mais que pode. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa.

Severina, por sua vez, trazia sempre os braços nus à mesa, podendo-se tratar de uma provocação, ainda que inconsciente, mesmo se já gastara todos os vestidos de manga comprida que possuía.

Até que um dia D. Severina percebe o interesse que desperta no moço. Demora a aceitar, pois considera-o apenas uma criança. Mas, quando vê o homem já na forma do menino, entra num sentimento conflitante, misto de vaidade e pudor. Por isso oscila entre tratar mal o rapaz e mostrar preocupação com o seu bem-estar.

Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

Era um “amor adolescente e virgem” (p. 381), puro em razão da inexperiência e sofreguidão emocional do moço, mas era impuro por escolher uma mulher proibida.
O sentimento de Inácio era “confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor”. Nesta passagem, Machado descreve exatamente o sentimento da paixão, que é por si só algo contraditório, dúbio e perturbador.

Trata-se, aqui, do despertar sexual do rapaz que implica diversas impossibilidades: ao apontar a diferença de idade entre Severina e Inácio, Machado é elegante e delicado; prefere a sugestão em vez da obviedade. Primeiro anuncia a idade do menino: “Tinha quinze anos feitos e bem feitos”, para mais a frente deixar-nos à par da idade da senhora: “Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos”.

Severina não só é mais velha (quase o dobro da de Inácio), ela vinha de uma classe superior e era casada, e ambos estão inseridos na sociedade oitocentista, impregnada de valores morais e sociais muito rígidos.

Inácio, porém, não é o único a ter comportamentos contraditórios. Severina adota uma postura essencialmente ambígua, contraditória e misteriosa.

D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa.

Rejeitou a ideia logo, uma criança! [...] Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada.

D. Severina, primeiro, recusa a ideia de que o rapaz estivesse mesmo demonstrando interesse, para logo depois descartar essa rejeição, afinal, ela não podia ser amada ou desejada? Depois, passa a imaginar Inácio de forma sexualizada, em seus traços físicos da puberdade, para, enfim, procurar justificativas para a atitude do rapaz, por querer, justamente, se sentir mais viva, e consequentemente, menos submissa, assim, passa também a devanear e a assumir um comportamento semelhante ao do rapaz: “há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam” (p. 379).
Trata-se de um quadro de adultério pintado com suaves tintas por Machado de Assis, cuidadoso que é na estruturação de suas histórias, nunca ferindo as vistas dos leitores.

A profundidade do caráter de Severina é perceptível até mesmo por sua descrição física:

Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Ao descrever seus anos como floridos e sólidos, o autor contrasta o viço de sua beleza com a sua situação social e sua postura diante do casamento.  Logo vemos a sexualidade reprimida diante dos fatores sociais. Esse conflito vai achar refúgio nos sonhos e insinuações inocentes de Inácio, que não consegue esconder as distrações à mesa, os olhares indiscretos e o fascínio por seus braços. Dona Severina apaixona-se antes por sua própria beleza, ao descobrir-se desejada e dá vazão aos seus sentimentos, talvez porque seu marido não demonstrasse afeto ou ela achasse impossível ser notada por um jovem de apenas quinze anos.

Na passagem seguinte, a atitude do solicitador pode ser uma simples repressão, mas pode ser também que estivesse desconfiando de algum interesse por parte de sua mulher e de seu escrevente. Trata-se de um vazio que o texto cria e que o leitor deve resolver sozinho, porque a narrativa machadiana não se compromete em resolver os conflitos que ela mesma cria:

- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

D. Severina pega de surpresa dissimulou seus pensamentos, entabulando uma conversa sobre sua comadre para fugir à ameaça “de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos”, proferida pelo marido que, mais uma vez, esteve “fuzilando ameaças” sem cumpri-las e provou ser “antes grosseiro que mau” (p. 380). Pouco depois, estando convencida de que descobrira uma verdade moralmente reprovável, “chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho” (p. 380).

D. Severina, no entanto, “aqui estacou: realmente não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão”. Será que agora tinha dado a inventar coisas?  “Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de estar enganada” (p. 380).

D. SEVERINA dividida entre o sim e do não, dentro do labirinto em que o narrador fecha também o próprio leitor, a despeito de este conhecer as intenções de Inácio, D. Severina decidiu interromper suas conjeturas e se voltar à objetividade da observação minuciosa do mundo exterior: “refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas” (p. 380).

A sujeição feminina encontra-se também manifesta na passagem em que Severina teme acariciar seu próprio marido por medo de irritá-lo ainda mais: “fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais”. Porém, como quem se indigna com essa submissão, Severina tem atitudes mais que ousadas para uma senhora casada inserida na sociedade brasileira oitocentista. Como achasse por bem observar o rapaz Inácio antes de tomar uma atitude inapropriada e precipitada, aceitou estrategicamente que tudo fora apenas ilusão, e “percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo.”
Perdida nos extremos de sua realidade íntima, trata Inácio mais secamente, chegando, às vezes, ao contrário, a dedicar-lhe meiguice e atenção. Além de sua inconstância, o narrador mostra também os titubeios do jovem após percebê-la, a vontade de ir embora, uma ideia que nunca se concretiza e sempre permanece em segundo plano.

- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais. Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos.

O próximo comportamento de D. Severina foi oferecer a Inácio todos os seus cuidados, desencadeando no moço algumas reações adversas.

Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lhe não trouxesse à memória” (p. 381), e, em casa, estava inquieto, sem entender e dormindo mal. O rapaz realmente sofria sua paixão, já não se encontrava e até começava a deixar de ser o pródigo dorminhoco de antes, porque, com as novas esperanças vindas com o carinho que recebia, “acordava de noite, pensando em D. Severina” (p. 381).

Esse triste insucesso começou com “a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina” (p. 382) cantada pelo mar, avistado, através da janela do quarto, pelo solitário Inácio. Era como se o fluxo e influxo das ondas não fossem coisas reais, mas signos a serem interpretados, mediações linguísticas que, em sentido último, enfraquecem a perspectiva de uma realidade una, transparente e sem contradições.

Já um pouco hipnotizado e como estivesse cansado, pois “dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera” (p. 382), começou a ler o folheto da História da Princesa Magalona, filha de El-rei de Nápoles, e do nobre e valoroso Pierre, Pedro de Provença, e dos muitos trabalhos e adversidades que passaram, difundido no Brasil junto a outros folhetos populares de cordel, por volta dos anos de 1860 e 70. Comparou a heroína desse livro de origem medieval e de todas as outras histórias antigas à D. Severina, mas quem serviria ao papel da princesa capturada, de quem o bravo herói, cavaleiro ou príncipe, se aproxima para salvá-la do sono mais profundo com um beijo apaixonado, seria ele próprio, outra Branca de Neve, Bela Adormecida ou até Julieta de Shakespeare, que, dessa vez, fez falhar a profecia romântica. Mesmo que Inácio fosse o nobre e valoroso cavaleiro medieval da época da Princesa Magalona, havia demasiado torpor em seu olhar a aproximação da “dama de seus cuidados”, com braços passivos que não foram ao encontro dos de D. Severina. Enfim, ele dormia.

Pena ter ele justamente ido recuperar a noite de insônia na hora errada, causando, por esse infortúnio, o fim de seu caso amoroso com tão lindos braços...
Essa frase já aponta para o próprio final do conto, e poderia mesmo ser repetida, em se tratando de um adiantamento de expectativas.

A simultaneidade temporal das ações e do sono de Inácio vivida na sala próxima ao seu quarto é imediatamente revelada. D. Severina sofria sintomas de loucura e criava pretextos para ir vê-lo, julgando-o doente. A visão angelical do moço dormindo, apesar de tocar seu coração, convenceu-a de que estava diante de uma criança. Convenceu a si mesma com a argumentação do sentimento, “naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco” (p. 383).

D. Severina aproxima-se de Inácio dormindo na rede e dá-lhe um leve beijo na boca. Enquanto os pensamentos e impulsos de D. Severina davam reviravoltas, um primeiro incidente veio confirmar a compleição um tanto infantil de Inácio: ele não acordou com o barulho da tigela derrubada pelo gato ali perto, que sobressaltou a senhora.

A criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade” (p. 383-4).
Depois do beijo dado por D. Severina no moço dorminhoco, que, naquele exato momento, sonhava ser beijado pelo mesmo beijo, ela sentiu primeiramente medo, em seguida vergonha pelo ato incestuoso de se aproveitar de um filho inconsciente, e irritação por ele talvez estar só fingindo que dormia. Sentia e pensava isso tudo sem a certeza de nada. Já Inácio só tinha a certeza de que sonhava e de que nada havia interrompido suas horas de descanso até o jantar, durante as quais “ouvia as palavras dela, que eram lindas, cálidas, principalmente novas, ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse” (p. 383). A linguagem do amor só podia ser por ele interpretada em sonho, longe de sua amada real.

Uma semana depois do beijo “sonhado”, Borges dispensa o garoto de forma admiravelmente amistosa sem nenhuma razão exata. O menino não vê mais D. Severina, guardando a sensação daquela tarde como algo que não ia ser superado em nenhum relacionamento de sua existência.

Por fim, na conclusão do conto, tem-se a fusão do sonho com a realidade. Inácio está dormindo em sua rede, e sonha com Severina encarando-lhe de frente, pegando-lhe nas mãos, cruzando-as nos braços, e dando-lhe um beijo na boca. Este exato momento do sonho coincide com a realidade, pois que Severina de fato beija a boca do rapaz para de imediato sair do quarto, assustada, confusa e arrependida com sua atitude. E não somente por vergonha, mas como forma de punir a si mesma por tamanha ousadia, Severina passa a cobrir os braços à mesa, mas também como punição ao próprio rapaz, a quem ela atribui uma parcela de culpa. A princípio Inácio não percebe que o famoso par de braços não mais está à vista, tão embriago pela sensação do beijo. Ao final, o rapaz deve ir embora da casa do comendador, mas não consegue se despedir de Severina, que inventa uma forte dor de cabeça. O mocinho jamais saberia que não foi um mero sonho, muito embora nunca tenha achado sensação igual à daquele domingo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

1. D. SEVERINA:

- Magalhães de Azeredo faz uma observação muito pertinente em se tratando das figuras femininas de Machado de Assis, e que se aplica muito bem a D. Severina, cujo nome já aponta para certa perversidade e consequente sedução, ou, conforme o próprio nome, severidade mesmo:

As mulheres, evocadas por Machado de Assis - para quem o eterno feminino é um vasto elemento moral -, têm de ordinário uma soberania de beleza, de sedução, de resistência ou mesmo de virtude, que lhe confere a vitória na luta com o sexo rival. Perversa, em rigor, não vejo nenhuma; perturbadoras há muitas, e de penosa decifração.

- Dona Severina tem personalidade complexa, pois muda de postura no decorrer da trama, deixando-se envolver pela possibilidade de um romance extraconjugal. Embora os valores morais resistam ao desvio de conduta da jovem senhora, a preservação da família burguesa triunfa no final da trama.

- Machado lança a temática do adultério feminino, ainda que suavemente, assunto nunca abordado anteriormente por outros autores e que viria a ser uma das principais chaves para o Realismo em ascendência. É justamente o final da trama que marca a decadência romântica, já que os desejos de Inácio não são extravasados, como é comum no Romantismo.   

- No que concerne ao papel feminino da época as mulheres tinham maior dependência e viviam sobre o domínio dos homens, não possuíam desejos próprios como exercer uma profissão e, para muitos homens, a mulher era vista apenas como uma pessoa doméstica, para cuidar da casa e dos filhos e porventura satisfazer aos desejos carnais sem nenhum tipo de carinho.  

- As mulheres machadianas para quem o eterno feminino é uma vasta figura moral, têm de extraordinário uma soberania de beleza e sedução. Vemos isso em D. Severina quando ela passa a gostar de si mesma.

- Outra interpretação possível pela aproximação de D. Severina seja a idealização em Inácio do filho desejado. Dona Severina compensa ou justifica seu interesse no menino alegando ser ele o filho que ela nunca tivera e por isso cerca-o de tantos mimos e recomendações:
"D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão."
O motivo de tanta brandura poderia ser para realmente confirmar os sentimentos de Inácio para com ela, ou já uma forma inconsciente de aceitação e retribuição desse sentimento, usado para suprir alguma carência afetiva ou mesmo capricho. O fato é que depois do beijo dado em Inácio adormecido na rede desfez todas as suas certezas e a vergonha tomou de conta de seu ser, seja porque foi capaz de fantasiar algo tão intensamente, indo tão longe em seus atos, ou porque o rapaz não correspondeu suas expectativas, ou ainda por medo de ser descoberta e perder sua posição social tão valorizada na época. 


2. FANTASIA E REALIDADE:

- É perceptível no decorrer da história a oposição entre a fantasia e a realidade, onde os sonhos de Inácio se confundem com as reações sucintas e gradativas de Dona Severina. O que é realidade para um, é sonho para o outro; eis o grande conflito da história. Os universos das personagens nunca se encontram e na única oportunidade de se cruzarem, o sono pesado de Inácio é o motivo de frustração desse sonho. O “final feliz”, portanto, não acontece, nem mesmo o reconhecimento recíproco de sentimento entre os personagens; ao contrário, o que existe é uma confusão e a desilusão, os sonhos perdidos na própria realidade.

- Em “Uns braços”, o sonho vira realidade, a realidade, sonho, linguagem simbólica. Então, o que teria dito a Borges D. Severina? Desculpas inventadas que provassem ser Inácio importuno naquela casa? Mentiras bobas que não a incriminassem? Ou nenhuma palavra, deixando que o marido naturalmente percebesse que não valia a pena investir naquele moleque irresponsável e dorminhoco? Há um mistério que não se resolve no conto, porque a língua literária de Machado, assim como a língua do amor, nem mais nem menos confiável do que a realidade das coisas, é sempre nova e obscura.

- O leitor, por sua vez, irá conhecer parcialmente a verdade, porque acaba por participar, de modo indireto, dessas alusões, hesitações e suspensões da realidade dos fatos narrados, sendo colocado em meio aos artifícios do narrador, a fim de também ter um destino literário incerto. Observa-se que, por um lado, o leitor conhece a inocência de Inácio enquanto realmente dormia e a injustiça que Borges (ou Severina?) cometeu ao mandá-lo embora sem muitas explicações, e até com simpatia, o que era incomum de sua parte; assim como também conhece a marca guardada por Inácio daquela primeira paixão em suas experiências amorosas posteriores, a marca definitiva da sexualidade e do abandono da infância, simbolizada no sonho. Por outro lado, o leitor desconhece verdadeiramente o motivo (se é que houve apenas um) de D. Severina passar a evitar Inácio e depois convencer o marido a expulsá-lo dali (se é que partiu dela a iniciativa).
Sob a aura de mistério que encerra o conto, é possível apenas tentar desdobrar como são construídas pelo narrador machadiano ao longo do texto as possibilidades da verdade, as diversas roupagens da realidade das coisas, muitas vezes usadas em conjunto, para perscrutar as hipóteses sobre a razão do afastamento de D. Severina e o responsável pela expulsão de Inácio.

3. CARÁTER VICIOSO E FETICHISTA:

- O caráter vicioso e fetichista da atração de Inácio por D. Severina, que encontra, pela fixação de uma mesma parte do corpo feminino, como visto, longa tradição na obra machadiana. E a culpa pelo impulso sexual, negada por Inácio (“a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente”), mas logo rebatida pelo narrador, que relativiza o comportamento da mulher, dizendo ser “justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas” (p. 378), explicação que, por sua vez, apenas abala um pouco a imagem de um jogo da sedução permanentemente consciente, mas não isenta D. Severina da condição de comprar novos vestidos de mangas, se pudesse fazê-lo.