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domingo, 8 de julho de 2012

CONSTRUÇÃO, CHICO BUARQUE DE HOLLANDA: ANÁLISE LITERÁRIA



Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
 
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
 
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
 
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
 
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
 
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
 
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo como tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
 
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
 
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
 
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio público
 
Morreu na contramão atrapalhando o público
 
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
 
Morreu na contramão atrapalhando o sábado.

“Construção”, 1971, que, junto com “Pedro Pedreiro”, é uma das canções emblemáticas da vertente crítica, podendo-se enquadrar como um testemunho doloroso das relações aviltantes entre o capital e o trabalho.
Com efeito, “Construção” retoma o filão inaugurado precocemente por Chico Buarque: o da crítica social, tendo como personagem um elemento do proletariado – no caso, coincidentemente, um pedreiro. Pois o protagonista de “Construção”, que não é nomeado, é apenas o sujeito oculto dos verbos na terceira pessoa, parece ser o “Pedro Pedreiro” que esperava o trem nos velhos tempos – nos idos de 1965, talvez um pouco antes - e que agora cai dos “andaimes pingentes” e se despedaça.
Trata-se de um dos textos mais rigorosamente “construídos” do compositor, de estrito rigor formal e apuro técnico. Significativo, aliás, que uma de suas canções mais “engajadas” seja, ao mesmo tempo, a de mais rigoroso travejamento formal.
É interessante ressaltar que “Construção” situa-se no bojo da maré de experimentalismo formal que, vestido das roupagens de “Estruturalismo”, “Construtivismo” e outros ismos vários, predominou entre nós no início da década de 70, tanto no pensamento crítico quanto na produção literária.
Mesmo tendo sido basicamente como o autor de “Construção” que Chico se criou um lugar de cantor dos oprimidos na Música Popular Brasileira, ele recusa, terminantemente, qualquer intencionalidade social no ato de compor essa canção. Em entrevista concedida à revista Status, por exemplo, faz declarações bastante interessantes para se abrir o debate das relações entre “Lírica” e “Sociedade”. Depois de declarar que “problema pessoal não dá samba”, Chico diz que “Construção” não era, dentro dele, uma música de denúncia ou de “protesto”.

Segue um trecho da entrevista:

CHICO: Não passava de experiência formal, jogo de tijolos. Não tinha nada a ver com o problema dos operários – evidente, aliás, sempre que se abre a janela.

STATUS: Portanto, não havia nenhuma intenção na música.

CHICO: Exatamente. Na hora em que componho, não há intenção – só emoção. Em “Construção”, a emoção estava no jogo de palavras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse...um tijolo – acaba mexendo com a emoção das pessoas.

STATUS: Então não se liga com intenção?

CHICO: Tudo é ligado. Mas há diferença entre fazer a coisa com intenção ou – no meu caso – fazer sem a preocupação do significado. Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio, a Patagônia, talvez, que não tem nada a ver com nada. Em resumo, eu não colocaria na letra um ser humano. Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir a futebol. Tudo entra na cabeça em tumulto e sai em silêncio. Porém resultado de uma vivência não solitária, que contrabalança o jogo mental e garante o pé no chão. A vivência dá a carga oposta à solidão e vem da solidariedade – é o conteúdo social. Mas trata-se de uma coisa intuitiva, não intencional: faz parte da minha formação que compreende – igual aos outros da mesma geração – jogar bola e brigar na rua, ler histórias em quadrinhos, colar, aos seis anos, cartazes a favor do Brigadeiro por causa dos meus pais, contrários ao Estado Novo.

Há nessa fala alguns pontos a serem ressaltados. Em primeiro lugar, há que se equacionar devidamente a afirmação segundo a qual não existe “intenção” na hora de criar. Pode não haver a intencionalidade de uma denúncia, de um recado político, mas, conforme o próprio Chico diz, há o artesanato verbal. E só com “emoção” dificilmente ele encontraria as proparoxítonas certas para ser desenho lógico, que, transfigurado pela poesia, se transformará em “desenho mágico”.

Em segundo lugar, pode-se desentranhar daí uma reflexão (com toda a descontração de quem se propunha a ser publicado por “Status”) de como se faz a ligação entre o individual e o social (em termos hegelianos, a relação dialética entre a parte e o todo, entre o pessoal e o geral): aquilo que Adorno sistematizou de uma maneira definitiva no seu “Discurso sobre Lírica y Sociedad”, e que servirá de análise desse texto. Depois de declarar que “uma corrente coletiva subterrânea funda toda a lírica individual”, diz o pensador de Frankfurt que a participação da corrente subterrânea coletiva se faz graças à experiência histórica (Chico: “Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio...[...] Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir a futebol...”). Não é a experiência individual que vale nem a emoção individual, continua Adorno, “mas estas não chegam a ser nunca artísticas, a menos que consigam uma participação no geral por meio, precisamente, da especificação que é o seu estético tomar forma.
Assim, a dimensão social toma existência, na poesia, através da linguagem (o que é uma retomada de uma ideia do jovem Lukács, segundo a qual o social na literatura é a própria forma). Em outras palavras, a linguagem é uma mediação entre o homem e a sociedade. E aqui se toca num ponto de vital importância. É por isso que naquilo que nas palavras de Chico “não passava de uma experiência formal, jogo de tijolos” – o social emergiu com tamanha força. No que Chico declara não passar de um exercício lúdico com a linguagem, num jogo de palavras, transmite-se um tal recado social.
Mas vamos examinar as peças desse explícito jogo de palavras que é “Construção”, onde se mostra sua poderosa força artesanal. O essencial desse jogo consiste no caráter intercambiável dos termos (e, consequentemente, do ser humano aí em questão). As palavras finais de todos os versos, todas proparoxítonas, são substituíveis. Cabe em primeiro lugar perguntar por que proparoxítonas. Há algo de estranhamento numa proparoxítona, de rareza, que Chico tão bem soube capitalizar. Há nela quase que um soluço: a voz se alça e como se suspende lá em cima, caindo em dois tempos. Aliás, instituiu-se em Chico já quase uma “tradição” no manejo com as proparoxítonas.
Esse poema de versos rigorosamente dodecassílabos obedece a um rígido esquema estrutural: um bloco de 4 estrofes de 4 versos: 1 verso isolado (verso 17); um bloco de 4 estrofes de 4 versos (que repetem os 16 versos iniciais, com exceção da última palavra de cada verso, sempre uma proparoxítona); um verso isolado (verso 34); um bloco de uma estrofe de seis versos, constituída por versos retomados do primeiro bloco (com exceção da última palavra, sempre um proparoxítona), a saber: versos 1, 2, 6, 9, 14 e 15. Essa estrofe funciona como uma espécie de condensação ou resumo da canção inteira; um verso final isolado (verso 41).
Evidencia-se uma aflitiva repetitividade que, no limite, sugere o eterno retorno dos gestos sempre retomados, a mecanização do corpo e da vida. Dentro da simetria, da mesmice da estrutura sintática, das regularidades morfológicas, métricas, rítmicas e fônicas que desenham a circularidade do todo, mudam só as últimas palavras, todas proparoxítonas.
Mas os versos isolados, que falam de morte, a saber:

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego (v. 17)
Morreu na contramão atrapalhando público (v. 34)
Morreu na contramão atrapalhando o sábado (v. 41)

Pontuam o texto, introduzindo aí um movimento alterado (e aqui se pode tatear muito bem o parentesco da ironia com a morte, ou melhor a ironia enquanto jogo com o instinto de morte). Pois a partir do verso 17, a linguagem sofre uma desarticulação – como que imitando o despedaçamento que sofre o pedreiro com a queda.
Na realidade, a morte atrapalha. Desorganiza o mundo, perturba o tráfego, o público, o sábado. É a grande dissonância que transforma duplamente: pelo trombolho físico que um cadáver representa, fazendo, por exemplo, com que o tráfego tenha que ser desviado e que os carros andem na contramão (embora o texto desloque para o corpo o fato de ter caído na contramão); e ainda por um segundo aspecto: a necessidade não apenas de sobrevivência, mas também da reprodução da mão-de-obra desqualificada, sem o que o sistema entraria em colapso. Mas se a morte atrapalha, no entanto ela é o limite para o qual tende a reificação provocada pelo trabalho alienado. De “homem” o indivíduo passa a “máquina” (mundo reificado, mas com movimento) e logo a pacote (objeto, mas desprovido de movimento). E interessa ao público antes a máquina que o pacote.
Há assim dois grandes movimentos no texto: no primeiro deles, que compreende as quatro primeiras estrofes mais o verso 17, há uma pertinência quase impecável dos adjetivos em relação a seus substantivos, das orações subordinadas (no caso, comparativas) em relação a seus referentes. Do verso 18 em diante – isto é, depois que a morte foi introduzida no texto – a pertinência se perturba, se embaralha, revelando desarticulação. Compare-se, á guisa de ilustração, os diferentes graus de pertinência, por exemplo, entre:

a) Sentou pra descansar como se fosse sábado (v. 9) e

b) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro (v. 38); ou

a) Dançou e gargalhou como se ouvisse música (v. 12) e

b) Dançou e gargalhou como se fosse o próximo (v. 29); ou ainda

a) E flutuou no ar como se fosse um pássaro (v. 14) e

b) E flutuou no ar como se fosse sábado (v. 31).

Em todos os versos a), os adjetivos ou termos comparativos são racionais, lógicos, pertinentes; nos b) o grau de pertinência diminui, quando não desaparece totalmente; embora o rígido esquema estrutural da canção continue o mesmo, em relação ao último termo de cada verso revela-se qualquer coisa de estranho, de desfocado, de incongruente, de inquietante – no limite, de desarticulado. É como se o corpo despedaçado do pedreiro – mimese do corpo social fragmentado, disperso e mutilado – contaminasse a linguagem do poema, desarticulando-a. Deflagra-se uma crise da linguagem.
O próprio caráter de coisa eminentemente “substituível” das proparoxítonas finais, manipuladas como tijolos, revela a sua pouca personificação. A mulher do pedreiro, tanto faz que seja a “única”, ou a “última”; o filho, “único”, ou “pródigo”, do mesmo jeito que as paredes, “sólidas”, “mágicas”, “flácidas”. As palavras são tão intercambiáveis quanto o ser humano reificado. E as alterações, ao fim de cada verso, são tão aleatórias que apenas reforçam a mesmice trágica daquela vida ou daquela morte? Além disso, o torneio sintático – irônico “como se” testemunha uma realidade vivida vicariamente: as personagens agem como se realizassem tais e tais gestos, quase que numa suposição.
Desse conjunto de realidades trocáveis, realçam-se umas tantas proparoxítonas, que aparecem com maior frequência (três vezes cada): último, máquina, sábado, príncipe, bêbado. Todas, extremamente significativas. Com efeito, “último(a)” revela a dramaticidade da cena fatal: a personagem é flagrada nos seus gestos rotineiros, cotidianos, repetitivos, mas executados pela última vez, porque depois sobrevirá a morte. “Último” torna-se assim uma proparoxítona patética, à altura da tragicidade que a cena exige. Por seu lado, “máquina” traduz um dos motivos mais importantes do poema, senão o mais importante, uma vez que o homem, reduzido a um desempenho de trabalho alienado, é desumanizado tanto no trabalho como no amor:

Subiu a construção como se fosse máquina
[...]
Amou daquela vez como se fosse máquina

Aqui mais uma vez uma equivalência entre o afetivo e o social (Marcuse: “Seu desempenho erótico é posto em alinhamento com seu desempenho social”), funcionando o trabalho alienado como instrumento anti-sexual privilegiado. Efetivamente, a compulsão ao trabalho dessensibiliza, embota o indivíduo (cf. “Seus olhos embotados de cimento e lágrima”; “Seus olhos embotados de cimento e tráfego”) e, no limite, o robotiza. Como pode amar um homem “embotado”, isto é, que perdeu o fio, o gume, o corte – o poder de penetração?
Por isso é que “sábado” – símbolo do fim de semana e, portanto, do lazer, aparece também insistentemente. Pois sábado – que significaria a possibilidade da liberação do trabalho compulsivo – surge pela primeira vez no poema pertinentemente, como metáfora de descanso. Mas no caso de pedreiro, trata-se do lazer negado, roubado, que é reservado ao...príncipe. Assim “príncipe” aparece para ressaltar o seu contrário. É referência indispensável numa sociedade de classes, marcando o grotesco da comparação.
Por seu lado, “bêbado” se remete diretamente à desarticulação. Há uma ligação eventual, sugerida, entre a bebedeira e a queda (sentou-comeu-bebeu e soluçou-dançou e gargalhou-tropeçou-flutuou-se acabou), assim como há uma ligação entre a bebedeira e o poder inebriante do ritmo. Do ritmo do trabalho mecânico, repetitivo, alienado, e que é mimetizado pelo ritmo do poema na sua repetividade. A desarticulação a que me referi pode ser figurada como uma “pertinência bêbada”.
Existe nesse poema a construção de uma queda e de uma morte, e devemos estar atentos ao realismo psicológico contido nessa metáfora. A ressonância emotiva do desfecho, no leitor, é demoradamente construída: a personagem é apresentada e ganha movimento, vida e densidade ao longo das estrofes. Suas entidade afetivas são convocadas: a mulher, os filhos. Revelam-se seus hábitos, modos de vida: basicamente os gestos no trabalho (pois todos sabemos que, na classe operária, é este o principal vínculo do indivíduo com a realidade); a hora do descanso; o que come; suas características físicas: “passo tímido”, “olhos embotados de cimento e lágrimas” – a deformação corporal devida ao trabalho. “Cimento e lágrimas”: junção de dois termos tão disparatados entre si, mas que formam a argamassa duma vida de pedreiro. E a queda em si é preparada, através de uma sequência quase cinematográfica: subiu-dançou-tropeçou-flutuou-se acabou-agonizou-morreu.
O pedreiro sobre para cair: é essa a única “ascensão” que a vida lhe permite.
Em “Construção” pode-se decodificar não apenas o “problema social” do operário não-qualificado, que se expõe à morte pela precariedade das condições de segurança no trabalho, mas, alargando-se o campo, pode-se ver aí a alegoria do corpo social fragmentado, de uma sociedade desintegrada e mutiladora, que isola os indivíduos.







quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

MULHERES DE ATENAS, CHICO BUARQUE E AUGUSTO BOAL



Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas

Vivem pros seus maridos, orgulho e raça de Atenas
Quando amadas, se perfumam
Se banham com leite, se arrumam
Suas melenas
Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas


Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Sofrem por seus maridos, poder e força de Atenas
Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam sedentos
Querem arrancar violentos
Carícias plenas
Obscenas


Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos, bravos guerreiros de Atenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas
Helenas


Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas


Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Temem pro seus maridos, heróis e amantes de Atenas
As jovens viúvas marcadas
E as gestantes abandonadas
Não fazem cenas
Vestem-se de negro se encolhem
Se confortam e se recolhem
Às suas novenas
Serenas


Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
Secam por seus maridos, orgulho e raça de Atenas.

BUARQUE, Chico, BOAL, Augusto. In: Chico Buarque – letra e música. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 144.






I – CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL:


“Mulheres de Atenas” faz referência a aspectos da sociedade ateniense do período clássico, e a alguns episódios e personagens da mitologia grega.
A letra faz uma alusão aos famosos poemas épicos “Odisséia” e “Ilíada”, ambos atribuídos a Homero.
Em “Odisséia”, a bela Penélope, padece dolorosamente de solidão com a separação de seu esposo Ulisses, herói do poema. Durante essa ausência, Penélope se arruma, perfuma e implora a deusa Atena que providencie o retorno de seu amado ao lar.
Sua beleza e riqueza atraem a ambição de vários pretendentes que julgavam seu marido morto, ela, porém, preserva sua dignidade e absoluta fidelidade ao marido.
Na época era costume as mulheres tecerem uma mortalha para seus entes queridos, que se encontravam prestes a deixar esse mundo. Penélope usa desse artifício para ganhar tempo com seus pretendentes, que se conformaram e aceitaram de imediato, visto ser uma proposta honesta.


Penélope, no entanto, jamais a concluiria; pois na tentativa de fazer com que seus pretendentes desistissem do plano de disputar o lugar de Ulisses, ela desmanchava a noite, às escondidas o trabalho realizado durante o dia, como uma perfeita heroína romântica à espera de seu eterno amor.

“(...) Urgem-me os procos, e eu maquino enganos. Um gênio me inspirou tramar imensa larga teia delgada, e assim lhes disse: - Amantes meus, depois de morto Ulisses, vós não me insteis, o meu lavor perdendo, sem que do herói Laertes a mortalha toda esteja tecida, para quando no sono longo o sopitar o fado: nenhuma argiva expobre-me um funéreo manto rico não ter quem teve nato. – A diurna obra desfazia à noite, e os entretive ilusos por três anos (...)” (Homero, p. 335, 2002).

No poema de Chico Buarque essa referência à Penélope é feita na segunda estrofe:

Quando eles embarcam, soldados
Elas tecem longos bordados (preservam-se)
Mil quarentenas (anos a fio a espera de seus maridos)

Com o passar do tempo, ocorre a morte dos pretendentes de Penélope e o rei Agamêmnon, filho de Atreu, lamenta profundamente a morte dos que lhes eram caros e faz a seguinte referência à esposa de Ulisses, descrita em “Odisséia”, de Homero, na Rapsódia XXIV, p. 216, Abril, Editora, edição de 1981:

A alma do filho de Atreu exclamou: Ditoso filho de Laertes, industrioso Ulisses, grande era o mérito da que tomaste por esposa. Nobres os sentimentos da irrepreensível Penélope, filha de Icário, que soube manter-se sempre fiel ao seu esposo Ulisses! Por isso, jamais perecerá a fama de sua virtude, e os Imortais inspirarão aos homens belos cantos em louvor da prudência de Penélope”.

Os autores de “Mulheres de Atenas” remetem a uma referência histórica de um momento da humanidade que data de cinco séculos antes de Cristo e valem-se da ideologia em “Odisséia” para chamar a atenção das mulheres que ainda “vivem” e “secam” por seus maridos ao estilo ateniense.
É importante ressaltar que parte da crítica literária avalia esse texto como uma apologia à submissão e à subserviência feminina em relação ao seu marido, a exemplo do comportamento das mulheres da Grécia antiga. Porém, a grande parte dessa crítica não interpretou corretamente a ironia que consta no texto. Onde se lê “Mirem-se...” sugere-se que se faça o contrário; dessa forma, o texto é um hino contra a submissão das mulheres que se sujeitam às regras ditadas pelas sociedades patriarcais.
O próprio Chico Buarque, em uma entrevista à televisão Cultura, ao ser indagado sobre o pensamento das feministas da época, disse:

Elas não entenderam muito bem. Eu disse: mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocês vão ver o que vai dar. A coisa é exatamente ao contrário.”

A ironia não se prende somente à falta de clareza da própria condição da mulher. O autor estende sua ironia também aos homens que se consideram superiores e elevados, em relação ao sexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada estrofe percebe-se que sempre quando se refere aos homens atenienses, Chico faz complementos enaltecendo suas características. O exagero e a insistência da exposição das qualificações superiores masculinas tornam-se cansativos e chamam bastante a atenção daqueles homens que, na visão das mulheres de Atenas, são heróis, mas, por outro lado, são cativos de suas falenas, de sereias, aventuras, naufrágios e morte prematura, por inconsequências de seus atos vulgares e riscos que correm em alto mar.
Em “Ilíada”, Helena, filha de Zeus era considerada a mulher mais bela do mundo e é usada pela deusa Vênus para servir como prêmio para o príncipe Páris.
Helena, esposa de Menelau, rei de Esparta, foi seduzida e raptada por Páris, filho do rei de Tróia. Ao apaixonar-se por ele, ela é tida como vulgar, por haver deixado de amar seu verdadeiro marido. Esse rapto deu origem à guerra de Tróia, que os gregos promoveram para resgatar Helena; fato narrado em “Ilíada” de Homero. Embora, Ulisses não figurasse no primeiro plano da “Ilíada”, nele é frequentemente mencionado como um viajante conduzido às terras distantes e herói da batalha de Tróia.


O poeta Homero relaciona as duas epopéias contrapondo as vertentes femininas: a esposa de Ulisses, a fiel Penélope e Helena, à esposa desleal e libertina. Por essas e outras razões a “Odisséia” está intimamente ligada à “Ilíada.”

II - LINGUAGEM:

Os autores de “Mulheres de Atenas” optaram pelo tom épico narrativo, ressaltando o caráter heróico das mulheres de Atenas.
O texto explora uma preocupação com a linguagem culta e emprego de vocabulário metafórico composto por um universo semântico helênico: presságios, naufrágios, heróis guerreiros, melenas, cadenas, pequenas Helenas, sirenas, e longos bordados tecidos. Dessa forma, é necessário percorrer os caminhos da história, principalmente da cultura grega do período clássico, da mitologia, e reconhecer a intertextualidade com outros textos, contido em “Mulheres de Atenas” para melhor interpretá-lo.
Nos versos a seguir nota-se nitidamente o aspecto comportamental dos séculos V e IV a.C. apresentados figurativamente.

Quando fustigadas não choram
Se ajoelham, pedem, imploram
Mais duras penas
Cadenas

(...)

Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar o carinho
De outras falenas

Os autores ao fazerem referências aos termos “cadenas” e “falenas” estabelecem uma relação fundamental entre o significante e o significado do texto que remete à conduta e à cultura da época.

De acordo com as palavras do historiador Edward MacNall Burns:

Embora o casamento continuasse a ser uma instituição importante para a procriação dos filhos, que se tornariam os cidadãos do Estado, há razão para se crer que a vida familiar tivesse declinado. Ao menos os homens de classes mais prósperas passavam a maior parte do tempo longe de suas famílias. As esposas, relegadas a uma posição inferior, deviam permanecer reclusas em casa. O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras, algumas das quais eram naturais das cidades jônicas e demonstravam grande cultura. Os homens casavam para assegurar legitimidade ao menos a alguns de seus filhos e para adquirir prosperidade por meio do dote. Era também necessário, naturalmente, ter alguém para tomar conta da casa”.

Dessa forma, sob o ponto de vista semântico, os autores recorreram à justaposição de ideias para autenticar a situação das mulheres atenienses.
Cadena é um espanholismo que significa “cadeia, corrente, fila, série”, como, também, “Meio empregado para tirar dos chifres do touro, sem perigo, o laço que o prende”.
De qualquer maneira, sua definição transporta à ideia de prisão, subordinação e obediência a que vivem às mulheres à mercê dos seus maridos, no texto, representada por Penélope.
Falena, heteras (do grego ἑταίραι - hetaírai - "companheiras") ou mariposas em sentido metafórico, eram cortesãs e prostitutas sofisticadas, que além de suas prestações sexuais ofereciam companhia e com as quais os clientes frequentemente tinham relacionamentos prolongados. A menção de Helena no texto, uma figura de conduta antagônica à de Penélope, é feita para expressar sua rara beleza, ressaltando as aventuras dos maridos que buscam os carinhos de outras “falenas”, mas mantém em seus lares uma mulher de beleza maior para quem sempre voltam para os braços, sem reminiscência de seus atos extraconjugais.
Enquanto que “as cadenas” vivem, sofrem, despem-se, geram, temem, secam, por seus maridos; “as falenas” desfrutam dos prazeres de seus amantes.
É importante observar a colocação sequencial dos verbos gerando uma gradação decrescente do ciclo de vida das mulheres de Atenas, que se inicia com o verbo viver e se fecha com o verbo secar, isto é, morrer.
Na quarta estrofe encontra-se a perda de identidade das mulheres de Atenas que assistem sua vida passar despercebida e tendo seus desejos anulados, restando-lhes, apenas, pressentimentos.

Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeitos nem qualidade
Têm medo apenas
Não têm sonhos, só têm presságios

Na continuidade, os versos remetem a mais um fragmento do poema épico “Odisséia”. Trata-se da passagem de Ulisses pela ilha das Sereias, próximo ao golfo de Nápoles. Segundo o poema de Homero, o herói tapou com cera os ouvidos de seus companheiros e pediu que o amarrassem ao mastro do navio, para que nem ele nem a tripulação se deixassem seduzir pelo canto de morte das sereias, todavia, ele queria saber como era esse canto.
Os autores de “Mulheres de Atenas” retomam e traçam a intertextualidade com o poema épico através dos versos:

O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas
Morenas



O signo “sirenas” corresponde á sirene (som, barulho) e ao canto das sereias da mitologia, personificada por “lindas” e “morenas”, aquelas que atraiam pelo seu canto e beleza os homens ao fundo do mar.

Outros recursos encontrados no texto são:
- antítese: ao expressar a condição feminina da mulher ateniense, como por exemplo: defeito... qualidade; vivem... secam (morrem); despem-se... vestem-se; gosto... vontade; amadas... abandonadas; embarcam (partem)... voltam; etc.

- anacoluto: usado apenas para manter a construção idêntica das estrofes: “Lindas sirenas (sereias) / Morenas”; “Se confortam e se recolhem / às suas novenas /Serenas”; “Querem arrancar violentos / Carícias plenas”; etc.

- eufemismo: empregado no texto para atenuar a condição de dramaticidade exposta pelo autor. Exemplo: “Se banham com leite” - Aprisionam-se em casa.

- zeugma: marcado pela elipse de um termo integrante da oração que foi mencionado anteriormente.
“Elas não têm gosto ou vontade / Nem defeito nem qualidade / (elas) têm medo apenas” / (elas) Não têm sonhos, só têm presságios / O seu homem (tem) mares, naufrágios / Lindas sirenas / Morenas”.

- gradação: emprego de uma sequência encadeada.
“Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas /Cadenas”
Nesse caso, o autor estabelece uma gradação com clímax em ordem crescente ao denunciar a degradante condição das mulheres de Atenas em total subserviência.

III – ESTRUTURA DO TEXTO:

O texto se compõe, fundamentalmente, de cinco estrofes de nove versos cada uma. As estrofes apresentam um esquema fixo de rimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com o quarto; o sexto com o sétimo. Do ponto de vista métrico, é inegável a habilidade do autor que abusou de uma métrica elaborada: os dois primeiros versos têm 14 sílabas poéticas: o terceiro, o quarto, o sexto e o sétimo têm oito; o quinto e o oitavo têm quatro e o nono tem duas sílabas métricas poéticas.
Os dois primeiros versos funcionam como refrão. As ideias básicas do poema são reafirmadas pelo fim do poema que traz o refrão como se quisesse iniciar uma sexta estrofe.
O poema apresenta uma forma cíclica, circular deixando em aberto a reflexão do leitor.
O refrão e o paralelismo remetem à estrutura usada nas cantigas medievais com o intuito de dar ênfase á temática do poema.

IV – TEMPO E ESPAÇO:

No texto não há indicações temporais específicas. A narrativa dá-se no tempo cronológico, entretanto, refere-se ao tempo psicológico.
O espaço remete a cidade de Atenas, havendo menções de mares e de guerras (supostamente em terras distantes, fato denunciado pelas ausências e naufrágios de seus maridos).

V- FOCO NARRATIVO:

O texto tem o foco narrativo em terceira pessoa. Do ponto de vista gramatical, os autores dirigem a narrativa ao coletivo, “ás mulheres” representadas alegoricamente pelos estereótipos de Penélope e Helena.
Esse coletivo está representado gramaticalmente pelo sujeito da forma verbal de terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo mirem-se (vocês). Observe que o verbo no imperativo não admite a classificação de sujeito indeterminado (a norma culta diz que só se emprega o imperativo quando se tem certeza do enunciatário da mensagem, daí não ser possível classificar o sintagma nominal de um imperativo como indeterminado).
Há, também, outro sintagma nominal que é introduzido no enredo e faz parte do contexto, sem importância central: “eles”, os soldados, seus maridos, bravos guerreiros, etc.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

ZERA A REZA, CAETANO VELOSO


ZERA A REZA


Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza
Zera a reza, meu amor
Canta o pagode do nosso viver
Que a gente pode entre dor e prazer
Pagar pra ver o que pode
E o que não pode ser
A pureza desse amor
Espalha espelhos pelo carnaval
E cada cara e corpo é desigual
Sabe o que é bom e o que é mau
Chão é céu
E é seu e meu
E eu sou quem não morre nunca
Vela leva a seta tesa
Rema na maré
Rima mira a terça certa
E zera a reza

“Zera a reza”, primeira letra do disco "Noites do Norte" (2000) revela mais uma demonstração da arte neobarroca de Caetano Veloso, artista engajado com seu tempo, cujas letras são, quase sempre, tidas como complexas e de difícil entendimento, ou seja, o receptor desfruta a letra e a melodia, mas encontra dificuldades para entender a mensagem.
O neobarroco, que segundo Chiampi (1998), é uma reciclagem do barroco histórico feita nos dias atuais, surge como característica do "fim das utopias". Severo Sarduy (1979), em seu ensaio O barroco e o neobarroco, apontam três mecanismos de artificialização que são á base da teoria neobarroca, a saber: substituição, troca do objeto-foco por outro, que faz referência àquele; proliferação, a multiplicação de metonímias do objeto-foco através da repetição de termos e mesmo sequências de significantes; e condensação, fusão de dois dos termos de uma cadeia de significantes, de cujo choque resulta um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros.

“As palavras da letra são uma brincadeira nada rigorosa com inversões e espelhamentos" (Veloso, 2003).

Esta definição feita pelo compositor refere-se aos quatro primeiros versos da letra, em que os anagramas: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; sera-reza, utilizados aqui como ludismo, desviam a atenção do receptor para o texto sob a letra.
Em “Zera a reza” apresenta um dualismo pois, citando a reza, momento sagrado em que o ser se comunica com o divino, e a música/dança, momento de profanação do corpo e, o pecado, Caetano Veloso parodia veladamente com a letra Deus e o Diabo (1989), de sua autoria, em que o verso "O carnaval é a invenção do Diabo / que Deus abençoou", fortalece a correlação entre espírito e corpo; perdão e pecado; virtude e prazer, características fundamentais do estilo barroco.
Nos versos: "Zera a reza meu amor / canta o pagode do nosso viver" há um convite para que o receptor, evocado através da expressão "meu amor", abandone seu estado contemplativo, principalmente, a reza, e aproveite ao máximo sua vida, pois tudo é transitório e a vida breve. Há aqui a intertextualidade com os versos da canção Deixa sangrar (1989), também de Caetano: "Deixa o mar ferver, deixa o sol despencar / deixa o coração bater, se despedaçar / chora depois mas agora deixa sangrar, deixa o carnaval passar", ou seja, é preciso zerar a reza, livrar-se das convenções e extravasar os sentimentos e as emoções.


O carnaval é um conjunto de festividades populares que ocorrem em diversos países e regiões católicas nos dias que antecedem o início da Quaresma, principalmente do domingo da Quinquagésima à chamada terça-feira gorda, “a terça certa”.

A própria origem do carnaval é obscura, embora seja encontrado já no latim medieval, como carnem levare ou carnelevarium, palavra dos séculos XI e XII, que significava a véspera da quarta-feira de cinzas, isto é, á hora em que começava a abstinência da carne durante os quarenta dias nos quais, no passado, os católicos eram proibidos pela igreja de comer carne.
É possível que suas raízes se encontrem num festival religioso primitivo, pagão, que homenageava o início do Ano Novo e o ressurgimento da natureza, mas há quem diga que suas primeiras manifestações ocorreram na Roma dos césares, ligadas às famosas saturnálias, de caráter orgíaco. Contudo, o rei Momo é uma das formas de Dionísio, o deus Baco, patrono do vinho e do seu cultivo; e isto, faz recuar a origem do carnaval para a Grécia arcaica, para os festejos que honravam a colheita. Sempre uma forma de comemorar, com muita alegria e desenvoltura, os atos de alimentar-se e beber, elementos indispensáveis à vida. É, portanto "entre dor e prazer" que acontece o pagode, o samba, o carnaval, feito, em grande parte, por pessoas que passam a maior parte do ano em meio á dor, pela marginalidade social imposta.
Dessa maneira, é preciso “pagar pra ver o que pode / e o que não pode ser”, arriscar-se, extravasar-se com toda coragem, sem medo e sem culpas, mesmo que seja por poucos dias.
Segundo Bakhtin (1999), em seus estudos sobre o contexto de Rabelais, "os bufões não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte". Bakhtin (1999) observa ainda que os atores assistiam às funções do cerimonial sério, para parodiá-los. O carnaval ignora toda distinção entre atores e expectadores, pois os expectadores vivem o carnaval. Obviamente, as representações carnavalescas atuais são outras, mas ainda percebe-se esta essência do carnaval como uma "segunda vida", principalmente para aqueles que trabalham durante o ano preparando a festa, apesar da turistização, e de se fazer hoje um carnaval com palco (Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; entre outros).
O folião é um participante essencial para a existência do carnaval, seu sujeito e objeto; ator e expectador, onde o "chão é céu" por onde as estrelas, que são os passistas desfilam e brilham no palco ilimitado para o show de uma vida "que pode e o que não pode ser", livre das convenções morais, sociais, religiosas e, com a própria realidade.
Há uma citação de um verso da letra Gente (1977), do mesmo autor, em que diz que "Gente é pra brilhar". O carnaval permite a elevação do povo, inclusive os mais carentes, ao céu e às estrelas.
Não há hierarquia, desigualdades e nem diferenças. O essencial é festejar a vida com toda a expressividade que o corpo permite, libertando o “eu reprimido” até na “terça certa”, a "terça-feira gorda", o último dia da festa.
Para Bakhtin (1999) "convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância".
O verso "E eu sou o que não morre nunca", parodia com outros, "o samba não vai morrer", da canção Desde que o samba é samba (1993); "o samba é pai do prazer, o samba é filho da dor" e atenta para o fato de que, o eu-lírico incorpora o próprio samba, zerando o sagrado, transcendendo e imortalizando como um deus.
Nos versos: "A pureza desse amor / espalha espelhos pelo carnaval” apontam para as pessoas que ideologicamente e passionalmente trabalham o ano todo, envolvidas na expectativa do carnaval e em seu brilho.
Os espelhamentos, quase anagramáticos desenvolvendo novas técnicas poéticas em “Espalha-espelhos e cada-cara” retomam a ideia inicial do jogo como recurso para desviar a atenção do leitor tal como observa Affonso Ávila (1994), ao tratar do artista barroco. Ao fazer o jogo de espelhamentos com as palavras do refrão: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; sera-reza, e ao dizer que "espalha espelhos" Caetano Veloso trabalha criando um processo de metalinguagem na letra.
A proliferação dos significantes: "pagode do nosso viver"; "pode entre dor e prazer"; "vê o que pode e o que não pode ser", "espelho", "conhece o bom e o mau", "que não morre nunca", resulta no significado “samba”, simbolizado no título por "zera a reza".
Não é por acaso que Zera a reza abre o disco Noites do Norte (2000), um disco que, inspirado pelo pensamento do abolicionista Joaquim Nabuco, tem fortemente impresso nas letras a questão da cultura afra-descendência. Portanto iniciá-lo falando do samba, dança de origem africana, herança dos negros trazidos como escravos, e do carnaval, festa popular que, no Brasil, incorporou o samba, além do frevo e hoje do axé, como ritmos matrizes. Todavia, Caetano Veloso faz essa homenagem de forma velada, através do jogo significante/significado, das proliferações e substituições que caracterizam a obra neobarroca.