quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Conto: Casa Tomada - Julio Cortázar

JULIO CORTÁZAR

(1914 – 1984)


I – AUTOR:

Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu em Bruxelas, em 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina, onde, devido à separação dos seus pais.
Aos nove anos de idade, Cortázar escreveu seu primeiro livro, causando desconfiança da sua autoria. Com o diploma da escola normalista, o que lhe conferia o direito de lecionar ganhava o seu próprio sustento e iniciou os seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve de abandonar logo de seguida, por problemas financeiros.
Em 1938, Cortázar publicou o seu primeiro livro, intitulado "Presencia", sob o pseudônimo de Julio Dinis.


Em 1947 lança o "Bestiário"; em 1949, "Os Reis", um poema dramático, o primeiro a sair com seu nome verdadeiro e "Divertimento", seu primeiro romance. Porém, o livro só viria a ser publicado em 1986, dois anos após sua morte.


Em 1947 lança o "Bestiário"; em 1949, "Os Reis", um poema dramático, o primeiro a sair com seu nome verdadeiro e "Divertimento", seu primeiro romance. Porém, o livro só viria a ser publicado em 1986, dois anos após sua morte.


Por não concordar com a ditadura vigente no seu país, muda-se para Paris, em 1951.



Em Paris casa-se com Aurora Bernadéz e os dois vivem em péssimas condições econômicas. Será esta experiência que inspirará parcialmente "Rayuela" (“O jogo do mundo”), que concluirá anos mais tarde. É ainda durante os anos de Paris que aceita o trabalho de traduzir toda a obra em prosa de Edgar Allan Poe, ainda hoje considerada como a melhor tradução em espanhol desse autor.
Morre em Paris, de leucemia, em 1984.
Da sua vasta obra, que inclui volumes de contos, romances e poesia, para além de "Rayuela" («O jogo do mundo»), publicado em 1963, destacamos: "Bestiario" (1951), "Final del juego" (1956), "Las armas secretas" (1959), "Historias de cronopios y de famas" (1962), "Todos los fuegos el fuego" (1966), "La vuelta al dia en ochenta mundos" (1964), "Ultimo round" (1969), "Octaedro" (1974), "Queremos tanto a Glenda" (1980) e "Deshoras" (1982).


II – CONTO “CASA TOMADA” (1946) NA ÍNTEGRA:


“Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos.


Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, uma sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão.


De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava-se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a idéia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro-me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e frequentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)
É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d’água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
— Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.”


III - FOCO NARRATIVO E TEMPO:

O conto é narrado é em primeira pessoa com onisciência seletiva, assim apresenta os fatos, pensamentos e opiniões a partir de sua ótica, aproximando-o da credibilidade e cumplicidade dos leitores.
O tempo é cronológico. O narrador apresenta no início do conto um breve relato histórico, rememorando o passado histórico da casa e o drama familiar, e, em seguida, narra os fatos essenciais da narrativa. Assim, o tempo psicológico encontra alicerce na memória do narrador. Porém, esses relatos iniciais não possuem relevância no desfecho do conto, apenas contribuem para criar o suspense e o ambiente fantástico que o autor é mestre.

IV – CARACTERÍSTICAS:

Cortázar é considerado um dos autores mais inovadores, intransigentes e originais do seu tempo. Mestre no conto e na narrativa curta foi o criador de novelas que inauguraram uma nova forma de fazer literatura na América Latina, rompendo os moldes clássicos mediante narrações que escapam da linearidade temporal e onde as personagens adquirem autonomia e profundidade psicológica inéditas. Embora, nascido em Bruxelas, Cortázar é considerado um escritor latino americano ou essencialmente argentino, comprovadamente por sua temática e pela renovação da linguagem que sua obra representa.
Desde o início da sua carreira literária, o autor sempre combateu a literatura tradicionalista e passadista e buscou conciliar em perfeita harmonia objetividade e imaginação, inserindo o elemento onírico que permeia a aparente normalidade em suas narrativas


V – ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:

Sobre a composição do conto “Casa Tomada”, o autor afirma:

“Eu sonhei aquilo. A única diferença entre o sonho e o conto é que, no pesadelo, eu estava sozinho. Estava numa casa que é exatamente a casa descrita no conto, e via tudo com muitos detalhes, e num dado momento ouvi ruídos vindos da cozinha, fechei a porta e voltei. Ou seja, adotei a mesma atitude que os irmãos adotam no conto. Isso, até um momento totalmente insuportável em que...o espanto total consistia nesse som. Eu me defendia como podia, ou seja, fechando as portas e olhando para trás. Até que acordei espantado....Era pleno verão e eu acordei encharcado por causa do pesadelo. Já era de manhã, me levantei...e nessa mesma manhã escrevi o conto inteiro, de um tirão. Começo falando na casa...porque a tinha diante dos olhos.... Aí você tem um caso em que o fantástico não é algo que eu comprove fora de mim, mas que vem do meu sonho. Acho que dos meus contos, uns vinte por cento surgiram de pesadelos” (Cortázar, 1982).

No próprio título, “Casa Tomada”, Cortázar propõe e antecipa o clima fantástico que irradiará durante o enredo.
No início do conto, o narrador protagonista descreve com minúcia um espaço físico: uma casa espaçosa e antiga, propriedade e herança familiar onde vivem o narrador e sua irmã Irene.
A descrição do espaço sugere uma família tradicional, ainda abastada, mas sem o esplendor de outrora. Móveis pesados de madeira nobre, objetos de arte empoeirados e inúteis que contracenam e refletem a solidão, a ociosidade e as lembranças de seus moradores.
A casa é apresentada como uma fortaleza, um porto seguro ou um túmulo para os irmãos; além de ser objeto de cobiça aos futuros herdeiros. Essas referências a casa conferem-lhe uma posição de destaque na narrativa podendo ser considerada mais uma personagem, vista a sua importância sobre a vida dos irmãos.
Os irmãos sobrevivem graças à renda advinda dos campos familiares e possuem uma vida tediosa e monótona. Além de cuidarem da rotina da casa; ele, o narrador dedica-se à leitura de literatura francesa e ela, ao crochê.


O narrador condiz à narrativa pelo seu ponto de vista e se apresenta de maneira humilde ao retratar esse mundo inerte, ordeiro e limpo, sem sonhos, esperanças e impurezas. Mas, na verdade para encobrir o seu egocentrismo, ele se anula e enfatiza os méritos da irmã e da casa, numa dependência mútua até se completarem.




É importante notar que ambos ocupam-se com a linha: ele, com a escrita lida e relida e ela, com os fios de lã, construindo e refazendo, como seguissem uma temporalidade circular, ou seja, as ações se repetem constantemente, num círculo vicioso, onde o tempo não flui e as personagens fecham-se num mundo particular.
O contrato realista é quebrado com a aparição de certos barulhos que denunciam a invasão da parte traseira da casa. A presença estranha é assustadora, mas as personagens a tratam com resignação.
Os irmãos trancam uma porta que os separava dessa parte ocupada, passam a morar nas habitações da frente e adaptam-se à nova rotina, agora tendo um espaço mais limitado.
A rotina dos dois ficou levemente afetada. Tiveram de fazer certos ajustes. Ele troca seu hábito de leitura pela coleção de selos, e ela continua incessantemente a tricotar.
Mas, o novo equilíbrio voltou a ser rompido por novos barulhos, dessa vez, do outro lado da casa, anunciando a presença estranha na parte da casa que dava para a rua.
Os irmãos sem opção abandonam a casa, o seu mundo. Trancaram a porta e jogaram a chave fora, para que ninguém assuma o controle deste mundo perdido, afinal a casa foi tomada.
Assim, expulsos de “seu mundo”, os dois irmãos são obrigados a enfrentarem uma nova realidade.
O autor não se utiliza de recursos sobrenaturais para permear a narrativa e sim, das próprias reações humanas para causar o choque necessário para este tipo de narrativa.
O clima fantástico se instala não a partir dos ruídos que os irmãos escutam, mesmo porque a presença assustadora do invasor não é definida e, em nenhum momento eles pensam em investigar, mas do comportamento que adotam, do acatamento cego dessa “presença”, de sua retirada, sua fuga e alienação.
Os irmãos acatam a regra do jogo, e é esse acatamento que instala o fantástico no conto.
Os protagonistas, nos quais se apóia o foco narrativo, parecem cientes da inutilidade das suas vidas. Não se sentem com força e nem vontade para disputar o controle do seu espaço, nem para se relacionar com os invasores, seja negociando, seja compartilhando a casa. A presença desses estranhos é uma fatalidade contra a qual nada se pode fazer, devido aos seus limites existenciais. Enfim, abrir espaço, em oposição ao fechado; a opressão, prisão em oposição a liberdade e o novo em oposição ao permanente.
O conto revela um momento de pura intuição acrescido da imagem do sonho, dessa forma, permite variadas interpretações sobre o misterioso caso da “Casa tomada”.
Entre eles, encontra-se a análise comparativa do enredo e o contexto político da época representado pela Argentina invadida, tomada para ditadura peronista que obrigou o autor abandonar o seu mundo, sua casa e refugiar-se no exílio. Como também, pode ser interpretado como uma alegoria do angustioso sentimento de invasão que a migração interna provocava na classe média após a queda do poder político da burguesia proprietária de terras na etapa peronista que provocou a perda da suave tutoria que aquela exercia sobre a classe média.
A presença mais assustadora ainda que a de um possível ladrão, em quem haveria alguma humanidade reconhecida, é a do outro com o qual não haveria diálogo possível, que em Cortázar aparece claramente social.


“A irrupção dos pobres como novos sujeitos políticos, a sua presença nos espaços públicos, até então privativos das camadas médias e altas, como resultado da onda migratória que já se insinuava nos anos 30, acompanhando a industrialização resultante da necessidade de substituição de importações devido à guerra mundial, deixou entre aqueles que sentiram seus ambientes invadidos por aquele elemento estranho uma série de imagens paradigmáticas. Uma delas é a dos trabalhadores dos subúrbios ocupando o centro da cidade de Buenos Aires no 17 de outubro de 1945 pedindo pela liberdade do então coronel Juan Domingo Perón, Secretário de Trabalho até pouco tempo antes, que tinha sido preso no contexto de um confronto no seio do governo do militar do qual fazia parte. Alguns desses trabalhadores, depois de caminhar desde a periferia até a região central da Capital, arregaçaram as calças e mergulharam os pés no chafariz da praça do Congresso. O episódio seria lembrado como o das “patas en las fuentes”, e inscrito na memória das camadas médias e altas como um gesto bárbaro contra a cultura urbana, confirmando o ideologema “civilização x barbárie”, instalado como matriz para pensar o popular desde o século XIX, com a publicação de “Facundo”, de Domingo Faustino Sarmiento, em 1845.”

Outra interpretação possível segue uma abordagem psicanalítica que avalia o conto como uma expressão do retorno do reprimido, o qual é representado pelos ruídos vindos dos fundos da casa (inconsciente) cujo conteúdo seria formado pelos desejos incestuosos do casal de irmãos e que estão separados da parte dianteira por uma grossa porta de carvalho (barreira da censura).
Em entrevista cedida Cortázar apresentou duas versões diferentes sobre a acusação de incesto no respectivo conto.
Em um ponto que ele confessou que a expressão "casamento de irmãos" foi concebida acidentalmente e, em seguida, decidiu deixar.

“Os nossos quartos estavam na sala durante a noite, mas se ouviu alguma coisa na casa. Ouvíamos nós respiramos, tosse. (...) Irene foi tricotar em seu quarto, eram oito da noite ... "


A recusa à vida tem como resultado a expulsão da casa, a expulsão de si mesmo, a perda da própria identidade. Esse fato recorda a cena da fuga de Sodoma e Gomorra que pede a sua esposa não olhar para trás e, em sua tentativa de ver o que está acontecendo atrás de suas costas, o faz, é castigado e transformado em uma estátua de sal. Irene neste caso, por medo, não contradiz o seu irmão. Como, também, pode-se relacionar à expulsão de Adão e Eva do paraíso, mas num sentido inverso. Lá o castigo por terem provado o fruto da árvore do conhecimento é o ingresso no mundo real, a vida com o seu borbulhar de dores e prazeres; aqui a repulsa ao conhecer elimina o que ainda resta de vida; fica apenas a rua, o vazio, o fim da história.
Outra análise do discurso de Cortázar é a metáfora do útero, do desejo materno, simbolizado tanto na casa como na irmã para evitar a recusa da mudança de vida.
A casa, portanto, passa a pressagiar o destino sinistro dos que a habitam, visto que nela viveram gerações de antepassados e deles era mantida a lembrança.
A vida estagnada dos irmãos que experimentam a sensação contínua de reclusão simboliza a opção de um mundo diferente, superficial, por não estarem de comum acordo com a vida real. Com a instauração do caos, revela aos poucos o final trágico que estão fadadas essas personagens: uma relação autêntica com a própria morte que pode ser concebida como variante metafórica da solidão em que se encontram.

Nenhum comentário: