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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

A VOLTA DA MULHER MORENA, VINÍCIUS DE MORAES


Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!




Desde o Trovadorismo, o amor pela mulher tornou-se tema inesgotável da poesia ocidental e estiveram presentes no papel de musa, heroína, santa ou demoníaca, mas nunca como protagonistas de sua própria história, visto que, sempre retratadas a partir da óptica masculina.

O conceito de inferioridade feminina vem desde a Antiguidade, como se pode notar através das palavras de Pitágoras:

“Há um princípio bom que criou a ordem, a luz e o homem, e um princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher” (PITÁGORAS apud BEAUVOIR, 1997, p.6).

Já Aristóteles via a mulher como um ser incompleto, pois que só servia para a reprodução, ao passo que o homem era o ser completo, que dava a vida. Esta visão predominou durante toda a Idade Média e a Igreja Cristã acabou herdando e exacerbando esta visão da mulher procriadora e sem prazer sexual. Desta forma, a sexualidade feminina sempre foi analisada por uma perspectiva restritiva e negativa do ponto de vista da sociedade patriarcal.
Na literatura brasileira essa negatividade também se faz presente na obra de Vinícius de Moraes, temática onipresente em sua fase espiritualista que se resume em três livros: “O caminho para a distância” (1933), “Forma e exegese” (1935) e “Ariana, a mulher” (1936).
Nestas obras:

“[Há uma] Profusão de imagens, criadas a partir de fortes e simultâneas impressões sensoriais. Esse procedimento vem carregado de intenso sensualismo, que entrará em conflito com o sentimento religioso. Por isso o amor aparece aí como elemento “negativo”, pois liga firmemente o poeta ao mundo terreno, impedindo a liberação do espírito.” (MOISÉS, 1980, p.92.)

Os temas do eterno e do sublime aparecem na relação do sujeito lírico com as figuras femininas etéreas, envoltas em branco e/ou despertadoras do desejo, vivendo um constante conflito religioso, por meio do embate entre o amor carnal e preservação da castidade.
No poema “A volta da mulher morena”, de “Forma e Exegese” prevalece o tom de pregação religiosa ou suplício que, já nos versos iniciais, o eu-lírico convoca de forma imperativa sua confraria - os seus possíveis interlocutores (“tu”, segunda pessoa do singular e “vós”, segunda pessoa do plural) para a mutilação gradual (cegai, cortai, traze-me, salva-me, livra-me, reza) da “mulher morena”, causadora de tormento e do desejo proibido de um eu devoto a Deus.
A atmosfera pecaminosa é evocada a partir do 3° verso com a chegada da noite, período em que a libido é despertada. A adjetivação utilizada pelo eu-lírico: mulher morena, tonalidade que remete ao escurecer e a sedução, herança dos colonizadores europeus que viam na beleza exótica e na nudez morena das índias brasileiras, o convite ao pecado.
O título do poema é composto pelo substantivo “volta” que tem o sentido de regresso, perturbação constante e fonte de perdição, assim, a mulher morena como os mitos de Pandora, Lilith e Eva personalizam o pecado, pois liga o poeta ao mundo terreno, à queda, à imanência, impedindo sua transcendência e dissociando-o do caminho divino.
Nota-se o sofrimento deste eu que se debate entre rendição aos prazeres da carne e uma vida casta, pedindo então o esfacelamento da figura tentadora.
É importante ressaltar o fato da mulher morena não ser nomeada, perdendo, dessa forma, sua individualidade e constituindo uma alegoria do demônio lascivo que surge nas visões da noite, levando o homem ao pecado.
As imagens do corpo feminino são carregadas de fortes impressões sensoriais e sensualismo intenso e apresentadas de forma descendente, a partir dos olhos, lábios, peitos, braços, ventre e atinge as pernas: os olhos que envolvem, os lábios maduros, úmidos e inquietos, os peitos que sufocam à noite, os braços lassos que são como raízes recendendo resina fresca e como dois silêncios que o paralisam mostrando uma força quase incontrolável agindo sobre ele.
Impregnada pela negatividade que atrai o sujeito do poema, a mulher morena hipnotiza o eu-lírico de forma que todas as partes abominadas do corpo tornam-se centro de atração, isto é, a personificação do pecado. O sentido de negatividade presente nos poemas é invertido: ao invés de provocar o distanciamento do sujeito lírico, transforma-se em encanto, fascínio, algo do qual ele não consegue se desvencilhar, porém a relação física do eu-lírico com a mulher morena não se concretiza. É uma relação baseada na distância, na rejeição e na negação contada a partir do discurso masculino.
Outras mulheres são convocadas para ajudá-lo: a jovem camponesa, a mulher branca, o “anjo”, símbolo do amor platônico, sublime e espiritual do qual o poeta deseja o “contato casto” e que é a antítese da mulher morena, fonte do mal e do irrefreável apelo erótico; a branca avozinha, que simboliza pureza e a aventureira do Rio da Vida, ou seja, a prostituta, que o poeta saberia como lidar e não se envolveria emocionalmente.
Dessa forma, a saída encontrada pelo eu-lírico é decretar a morte da mulher morena, ao final de sua composição poética.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:


- Embora houvesse, no contexto de 1930, uma atmosfera que defendia valores familiares como a mulher reprodutora e dona-de-casa, nota-se um outro tipo de mudança no comportamento das mulheres. A mesma época é marcada um fluxo maior das mulheres no mercado de trabalho e também um maior envolvimento em movimentos sociais e na militância político-partidária, como a Intentona Comunista de Luis Carlos Prestes em 1935. Além disso, em 1934 todas as mulheres passaram a ter o direito ao voto, algo anteriormente restrito às mulheres casadas com autorização dos maridos e a algumas solteiras ou casadas com renda própria.

Falar sobre a negatividade da sexualidade feminina não é apontar somente o caráter pecador e imoral perpetuado pela Igreja Católica, mas é também refletir como as concepções negativas acerca do feminino determinaram o destino de muitas mulheres, tanto na ficção como na sociedade. Pensar que às mulheres sempre coube o papel de musas é desconsiderar que elas também foram escritoras, porém, com uma produção desmerecida e raramente vista na forma de diários, cartas ou poemas. Além disso, percebemos ironicamente como o papel de musas inspiradoras motivou as mulheres a repensarem seu papel na história e a questionarem a própria história.

- Boas ou más, santas como Maria ou pecadoras como Eva, estas imagens maniqueístas de representação do feminino existem desde a Idade Média nas figuras de anjo e monstro. É também nesse período que as figuras de Maria e Eva, isto é, o anjo e o monstro ou a santa e a pecadora, foram difundidas em pinturas como forma de ensinar o povo analfabeto a noção de pureza e pecado.

“(...) Eva, Maria; uma simbolizando mais as mulheres reais e a outra a mulher ideal.”

A Virgem Maria aparece como o grande símbolo de maternidade e pureza, principalmente no século XII, durante o culto mariano. Apesar de suas aparições bíblicas estarem restritas a três episódios: a anunciação do anjo Gabriel, as Bodas de Canaã e a morte de Cristo na Cruz, sua imagem prevalece sobre a imagem de Eva, seu oposto, responsável pela queda do homem e dos males do mundo.
Mulher feita da costela de Adão, Eva era “a culpada da união carnal, marcando, desse modo, pesadamente o destino de esposa e mãe.” (DUBY e PERROT, 1990, p.33.) As definições feitas a seu respeito sempre enfatizaram o aspecto pecaminoso e contribuíram para que se fizesse uma leitura negativa a seu respeito. Uma das definições da época dizia que ela era o “primeiro modelo feminino que reunia todos os indivíduos do seu sexo. Súmula de elementos negativos e indutora da desobediência de Adão, personifica a tentação, a sedução, a deserção, a inimiga, a ‘porta do diabo’.” (DUBY e PERROT, 1990, p.33)
Ao mesmo tempo representando a possibilidade de transcendência e de imanência, como já afirmou antes Beauvoir, a figura feminina torna-se ambígua. A possibilidade de transcendência e as características angelicais conferem-lhe um aspecto santo, ao mesmo tempo em que leva o eu-lírico a cair em tentação a caracteriza negativamente como demônio. De santa à pecadora, a figura feminina do poema está vinculada à concepção feminina da Idade Média.
Imagens de santas e pecadoras estão presentes em obras canônicas como Macbeth de Shakespeare, no qual Lady Macbeth é a personagem perversa e ambiciosa que induz o marido a cometer um crime. Outra obra de Shakespeare, Hamlet, nos mostra uma Ofélia frágil, virgem e inocente, representando o amor idealizado. Nos sonetos de Petrarca, vemos em Laura uma figura feminina idealizada, inacessível, branca e loira como a Virgem Maria das pinturas do final da Idade Média e caminho para a ascese divina.



sábado, 15 de janeiro de 2011

A ROSA DE HIROSHIMA, VINÍCIUS DE MORAES



Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A antirrosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada

I – CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:
A. ANTECEDENTES:
O desfecho da Primeira Guerra Mundial não proporcionou a paz que se esperava. Primeiro, porque alguns países, sobretudo Alemanha e Itália, ficaram em situação econômica bem difícil; segundo, porque as disputas imperialistas que levaram ao primeiro conflito não foram resolvidas, e as potências continuavam disputando as áreas de dominação; terceiro, porque, após se reorganizar militarmente sob o governo nazista, a Alemanha estava novamente preparada para disputar seu espaço entre as nações mais poderosas do mundo.
No período entreguerras, as teses nascionalistas e anticomunistas pareceram a muitos povos a saída para a difícil crise econômica e que haviam mergulhado. Alguns dos países que adotaram o Nazi-fascismo como doutrina política tinham projetos expansionistas. O mesmo se pode dizer dos vencedores de 1918, como a Inglaterra e os Estados Unidos. Esses países demonstravam claramente a intenção de expandir suas áreas de influência ou, pelo menos, de garantir as que já tinham sido conquistadas. No Oriente, o Japão também se armava, igualmente visando à expansão de suas fronteiras.
Em resumo, essas nações ensaiavam o segundo conflito mundial.

Nos primeiros anos da década de 1930, formaram-se três blocos de identidade ideológica própria: Inglaterra, França e Estados Unidos, os chamados países democráticos; Alemanha e Itália, os fascistas; e a comunista União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). No mesmo período, os ditadores da Itália e da Alemanha deixavam claras suas intenções imperialistas e a truculência de seus regimes políticos; por exemplo, os nazistas já perseguiam os judeus, sem que os países democráticos inteferissem em suas ações.
Sentindo-se livre para agir, Hitler rompeu várias determinações do Tratado de Versalhes: invadiu a Renânia, área desmilitarizada pelo tratado, localizada entre a França e a Alemanha; assinou, em 1936, o pacto com o Japão (Pacto Anti-Komintern) de ajuda mútua no combate ao comunismo internacional, o que era um ataque direto à União Soviética; em 1938, anexou a Áustria ao III Reich (o “Anschuluss”); conquistou a Tchecoslováquia em 1939. Nesse mesmo ano assinou com o líder soviético Stalin o Pacto Germano-Soviético de Não-Agressão, que dividiu a Polônia e colocou a Letônia, a Lituânia e a Estônia sob controle soviético.
Apesar de todas essas demonstrações públicas de desrespeito às determinações do acordo de paz de 1918, a Inglaterra e a França não reagiram, levando a Alemanha a seguir com seu projeto expansionista.
Os militares alemães penavam em invadir e conquistar a França e a Inglaterra, o que lhes daria, segundo entendiam, o controle sobre toda a Europa. Dessa forma, em 1°  de setembro de 1939, os exércitos nazistas entraram na Polônia, iniciando sua marcha de conquista sobre a Europa.

B. DESENROLAR DA GUERRA:

Em 1940 foram organizados dois blocos adversários: o Eixo, que englobava Alemanha, Itália e Japão; e o Aliado, do qual participaram, de início, a Inglaterra e a França livre, e que depois recebeu a adesão da União Soviética, dos Estados Unidos, do Brasil e de outras nações. Em 1941, Bulgária, Romênia e Hungria aliaram-se aos países do Eixo.
Os primeiros passos da marcha expansionista da Alemanha foram vitoriosos. Sua estratégia de ataques rápidos, apoiados pelos veículos motorizados e pela aviação de guerra, mostrou-se muito eficaz e os alemães dominaram a parte ocidental da Polônia, a Bélgica, a Hollanda, a Noruega, a Dinamarca e parte da França. Diante do avanço alemão, a Inglaterra ficou praticamente sozinha resistindo aos ataques nazistas na frente européia. A guerra se estendeu para o Norte da África na tentativa alemã de tirar os ingleses do Canal de Suez e do Egito. Também no Mediterrâneo e nos Bálcãs as forças do Eixo conquistaram expressivas vitórias: em 1941 as tropas nazistas ocuparam a Iugolávia e a Grécia. Finalmente, os nazistas iniciaram o avanço na parte Oriental da Europa, conquistando Lituânia, Estônia, Letônia, Romênia e parte da Finlândia. Em junho de 1941 entraram em território russo.
Com o rompimento do Pacto Germano-Soviético de Não-Agressão, Stalin entrou na guerra ao lado dos Aliados. O exército nazista era muito grande e bem armado; as forças de apoio, como a aviação e as tropas motorizadas, supreenderam o mundo por sua capacidade de ação; a Alemanha toda estava envolvida no esforço da guerra, mas, mesmo assim, sustentar uma guerra em tantas frentes diferentes era muito difícil. Começaram, então, as primeiras derrotas. No início de 1943 pela primeira vez os exércitos alemães foram barrados em seu avanço. Esse fato mostrou ao mundo qu os nazistas não eram invencíveis como se pensava até então e deu novo ânimo aos exércitos adversários.
Em dezembro de 1941, os japoneses, que, desde o final o século XIX, travavam uma disputa imperialista com os norte-americanos, bombardearam a base militar de Pearl Harbor, localizada no Oceano Pacífico, que pertencia aos Estados Unidos. Esse ataque determinou a entrada dos Estados Unidos na guerra, ao lado das forças aliadas. A entrada da nação norte-americana proporcionou à Inglaterra, que ainda lutava sozinha na Europa Ocidental, um reforço militar muito importante para restabelecer o equilíbrio de forças. O ano de 1942 foi marcado pelo equilíbrio da guerra, o que já era uma espécie de vitória dos Aliados, que, até 1941, somente tinham conhecido derrotas.    

C. DESFECHO DA GUERRA:
A Alemanha começou a perder a guerra na Batalha de Stalingrado, em 1943. Por um erro de estragégia, as tropas nazistas avançaram sobre o solo russo durante o verão e o outono. Quando chegou o inverno, encontravam-se em meio a estepes congeladas, onde as temperaturas caem até 50°C negativos. Despreparados para enfrentar um clima tão desfavorável, os alemães começaram a morrer de frio e de fome, uma vez que os suprimentos não chegavam até eles. Nessas circuntâncias, o exército soviético, mesmo sem o poderio bélico dos nazistas, mas acostumado às baixas temperaturas, derrotou os invasores. Esse episódio lembra a derrota do exército de Napoleão, que sucumbiu pelos mesmos motivos.
A guerra entrou, então, em sua fase final, que foi a do avanço aliado: saindo da Inglaterra e do norte do África, os exérxitos aliados avançaram sobre as posições conquistadas pelos alemães, fazendo as tropas nazistas recuarem.
Em 1944, após expulsar os alemães de seu território, os russos iniciaram a retomada da Europa Oriental, ocupada pelas forças nazistas.
No dia 2 de maio de 1945, as tropas soviéticas tomaram Berlim e decretaram a derrota alemã. Os nazistas informaram que Hitler não tivera coragem para ficar ao lado do povo alemão na hora da derrota e suicidara-se no dia 30 de abril, dois dias antes da invasão de Berlim.
A guerra já estava encerrada no Ocidente, mas no Oriente o conflito se prolongou até agosto quando os Estados Unidos lançaram as bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.

D. HIROSHIMA E NAGASAKI:

Em agosto de 1945, a vitória aliada já etava definida: a Alemanha havia capitulado três meses antes. As tropas japonesas, ovidas pelo orgulho nacional, se recusavam a depor as armas. Os Estados Unidos aproveitaram-se desse fato para jogar sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki a sua mais nova invenção militar: a bomba atômica, um artefato com capacidade de destruição várias vezes superior ao que se conhecia até aquela data. Hiroshima foi bombardeada no dia 6 de agosoto de 1945 e Nagasaki, no dia 9.

Repentinamente, em questão de segundos, a destruição foi quase completa. Aos sobreviventes custou muito entender o que estava acontecendo. Só posteriormente ficaram sabendo que estavam contaminados pela radiação e que, portanto, não eram sobreviventes e sim moribundos.


Esses crimes são injustificáveis. O Estado norte-americano não precisava matar tantas pessoas para demonstrar seu poder. A espionagem era uma força muito presente no período da Segunda Guerra e certamente o desenvolvimento da bomba nuclear não era um segredo que seria guardado por muito tempo.

II – A ARTE ENGAJADA:
As cidades de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, destruídas por bombas atômicas, tornaram-se alegorias da tecnologia violência, que manchou o século XX.
Esse triste episódio tornou-se tema de repúdio e reflexão em todo o mundo e não escapou ao olhar e sentir de várias expressões artísticas.
Vinícius de Moraes em 1943 foi aprovado em concurso do Ministério das Relações Exteriores (MRE), para assumir sua primeira função diplomática em 1946 (vice-cônsul em Los Angeles). Depois dos Estados Unidos, viriam funções diplomáticas em Paris e em Roma.  Numa postura humanista, em que cria figuras com fortes tintas, o poeta canta contra a guerra. Usando o verbo "pensar" no imperativo ("pensem"), "convida-nos" a todos a refletir diante das atrocidades causadas pela guerra; e, principalmente, a causada pelo mais novo rebento gerado pelo ser humano: a bomba atômica. No meio do poema encontra-se o verso: “Mas, oh, não se esqueçam”, também no imperativo, funcionando como uma pausa, alertando à reflexão que a culpa e responsabilidade da destruição não é de um país, mas de toda a humanidade. Portanto, a temática do poema é a própria existência, a própria sobrevivência humana.

Longe da mística, da metafísica, do lirismo cortante ou mesmo do erotismo viniciano, em “A Rosa de Hiroshima” revela-se o poeta social, mergulhado pelo propósito ideológico de denúncia e marcado pela impotência do homem, diante de um mundo frio, mecânico e cruel, que o reduz a um objeto “sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”.
A comparação da bomba com a rosa forma um interessante paradoxo entre a destruição e a fragilidade; a razão e a emoção; o terror e a beleza. Dessa forma, a coisificação que a palavra “rosa” adquire no poema, torna-se a representação de um objeto mnemônico, lírico e oposto ao sentido de bomba atômica.
Vinícius de Moraes comparou a imagem produzida no instante em que a bomba atingiu a cidade de Hiroshima como uma rosa que cobriu com suas pétalas de fogo e sangue toda uma população deixando-a “sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada", portanto, transformando-se em uma “anti rosa” que trouxe a morte.

Nesses versos, o poeta atingiu um estilo de ressignificação através do qual faz com que as pessoas possam atribuir um novo significado a acontecimentos e repensarem em sua visão de mundo.
O poema é composto morfologicamente por substantivos, adjetivos e verbos. O jogo de ideias do poema na interposição constante de imperativas e adjetivações ilustram as consequências verso a verso:
 Pensem nas crianças
MUDAS TELEPÁTICAS (problemas de má-formaçao do feto)
Pensem nas meninas
CEGAS INEXATAS (uma variação de catarata e problemas motores)
Pensem nas mulheres
ROTAS ALTERADAS (comprometimento do sistema hormonal)
A rosa HEREDITÁRIA (problemas genéticos)
 A rosa radioativa
ESTÚPIDA E INVÁLIDA (retardamento mental e invalidez)
O poeta optou pela coloquialidade imperativa de tom elegíaco, em contraponto ao seu costumeiro subjetivismo oral, além da concisão e da métrica inicial em redondilhas menores.   
Pen / sem /  nas / me / ni / nas
Ce / gas /  i / ne / xa / tas
Nota-se que em ambos os versos a entonação encontra-se no mesmo lugar e depois há, novamente, a queda. Isto ocorre do primeiro verso até o nono onde o ritmo é lento, para em seguida tornar-se mais rápido e com mais ênfase.
Por conseguinte, pode-se notar os efeitos da bomba nuclear nas pessoas, tornando-as lentas, doentes, enquanto outras já mortas. Já, no verso 10 em diante, quando se relata da bomba, propriamente dita, e da cidade Hiroshima, vê-se a rapidez com que esta atinge a cidade que é devastada imediatamente. Parece-nos que o poema começa pelo fim da tragédia, pois os 10 últimos versos deveriam ser os primeiros e os 9 primeiros versos os últimos. Há, assim, uma inversão dos acontecimentos. Com isso, parece-nos que Vinícius de Moraes quissesse fazer um resumo do que aconteceu nos primeiros versos até o 8 verso. Após, já no 9 verso desse uma pausa, como se quisesse fazer uma restrospectiva do acontecido:  Mas, oh, não se esqueçam. Só depois descreveria o acontecido, para que as pessoas se lembrassem da tragédia.
As rimas encontram-se no mesmo gênero (feminino) referindo-se a bomba, a rosa e a cidade de Hiroshima e em número (plural), alegorizando a população indefesa naquele fatídico dia do bombardeio.
A rosa está sendo manifestada pela rota das consoantes bilabias /p/ e /t/ liguodentais (oclusivas e sudas). Isto nos dá uma ideia de uma rachadura na terra, provocada pela explosão da bomba radioatíva.
Veja o exemplo abaixo (1º versos):
 Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas

Já, quanto a 2º parte, notamos o seguinte:
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa herediria
A rosa radioativa
Espida e inlida
 Parece-nos até uma contagem regressiva, começando com as consoantes linguodentais explosivas /d/. E seguida, logo após pelas já citadas vogais /t/ e terminando na explosão da bomba que se dá /v/ da palavra inválida (que é uma palavras proparoxítona), assim como estúpida. Tendo uma mesclagem de palavras paroxitonas e proparoxítonas nos versos do poema.
Os últimos versos restantes dá-nos a impresão de silêncio após a explosão. O silêncio do nada, como afirma o próprio poema:
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa sem nada
Por fim, a presença do fonema /r/, sonora e vibrante ressoasse como um grito de socorro nascido das profundezas dos seres ecoando ao longo da História. Dessa forma, o poema demonstra um sujeito lírico movido pelo sentimento de antiviolência, que alerta para as consequências das ações bélicas praticadas durante a Segunda Guerra Mundial. Por isso, o poema é atual, uma vez que o mesmo sentimento pacifista ressurge em face dos atentados terroristas e de seus desdobramentos.

domingo, 2 de janeiro de 2011

MARINHA, VINICIUS DE MORAES


Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.

Aos mergulhares do bando
Afloram perspectivas
Redondas, se aglutinando
Volitivas.

E as ondas de pontas roxas
Vão e vêm, verdes e esquivas
Vagabundas como frouxas
Entre vivas!


Em “Marinha”, Vinicius de Moraes, atinge o caráter sublime que perpassa toda a sua produção.

O poema, logo à primeira leitura, chama a atenção pelas imagens vagas, fluídas e metafóricas que provocam o leitor.
O título do poema evoca o olhar sobre o mar que se desenvolve em todo o texto como seu alicerce. Esse olhar é elevado á captação de um instante fugaz e sua impressão sensorial e cromática de uma paisagem marítima.
A contemplação do mundo marinho não é uma temática recente à poesia brasileira. Ao contrário, a simbologia da água, possui grande força expressiva, primeiramente, por existir antes da terra e, pelo resgate do símbolo da Criação.
À cosmogonia aquática defende a crença que ela representa a morte iniciática simbolizada pelo batismo, mas nunca a sua extinção definitiva e sim, uma renovação.
Este simbolismo corresponde ao batismo e aos banhos rituais primaveris que trazem saúde e fertilidade, adquirindo a função de “lavar os pecados”, a purificação. Assim, a água integra todas as revelações particulares das mais variadas hierofanias, até mesmo por sua disforme que a destaca de todos os objetos.
Desde o século XII, a lírica trovadoresca explorava o mar em suas cantigas de amigo, também denominadas marinhas ou barcarola, de criação galego-portuguesa. O galego e o português foram criados à beira-mar, e talvez por isso a vida marítima participasse do seu temário poético.
As sugestões do mar encantam e compartilham a solidão da donzela apaixonada que desabafa junto ás ondas, pede-lhe notícias do amado, ou ainda espera sua volta através do mar.
Outra característica relevante no poema é a sonoridade de seus versos repletos de sinestesias (fusão de dois ou mais sentidos); de aliterações (sequência constante de fonemas para sugerir um som); de assonâncias (sequência constante de sons vocálicos); reiteração (repetição de palavras ou versos inteiros) e versos curtos resultando numa aproximação entre a poesia e a música (musicalidade).
Na primeira estrofe, as rimas alternadas (brancas, cativas, águas-vivas) que ecoam em todos os versos, aliadas à metrificação (3 versos de 7 e 1 de 3 sílabas), somadas à irregularidade da acentuação, que varia desde a 1ª e 7ª até 3ª e 7ª sílabas, o que caracteriza um movimento rítmico do poema, e à repetição do som /n/ (brancas, ondas, conchas) remetem a leitura a um movimento construído pelo poema: a sedução das ondas do mar.
Seduzido, o leitor se entrega à musicalidade das ondas que se desenvolve no restante do poema e que parte da visualidade impactante e da brancura (limpidez, pureza) insistente da primeira estrofe. Diante das conchas e coxas que se abrem, a voz poética percebe na claridade da praia a transparência no mar, em águas-vivas.
O eu lírico que olha a praia num instante imediato transforma o prosaico em poesia e adentra o mar sob uma perspectiva volumosa, como mostra a segunda estrofe: “Aos mergulhares do bando/Afloram perspectivas”. Ao mergulhar, o verso evidencia um movimento de descida do poema, ao fundo do mar, deixando ao olhar apenas o oculto e obscuro sob a superfície das águas, criando uma oposição à claridade exposta na praia e ainda marcando na memória uma última visão. Por outro lado, o mergulho abre também a possibilidade e expectativa do surgimento, do retorno ao olhar. Sob a mesma luz, o poema esconde no mergulho e faz aparecer no retorno formas no mar (perspectivas, redondas). Os versos mantêm ainda o tom aberto das conchas e coxas da primeira estrofe, contudo trazem agora, além da musicalidade e imagens das ondas, uma sensualidade implícita no jogo esconde/aparece que o poema desenvolve. A expectativa daquilo que pode surgir une-se à contemplação última da cena e cria, junto com a sonoridade da paisagem, um universo de sensualidade, evidenciado na segunda estrofe e, sobretudo, no termo “Afloram” do segundo verso.
Aflorar quer dizer emergir, subir à superfície. O que dá a ideia de surgimento, aparição. Escusado dizer que o poema trata dessa questão (“Abrem-se”!) desde o impacto visual da primeira estrofe. Surgir na superfície das águas retoma, em um momento único ao poeta que se abre em perspectivas, a praia e a claridade do primeiro verso. O mergulho no oculto dá forças ao afloramento que se mostra no olhar ávido de formas (“redondas, se aglutinando”), repleto de expectativas e vontades (“Volitivas”).
Importante notar que o termo “afloram” contém em sua essência a palavra flor e que constitui o centro do poema, tanto formal, já que o termo ocupa o sexto verso de um poema de três quadras, quanto tematicamente. A metáfora da flor, tal como a do mar, é largamente trabalhada na poesia brasileira e com muita intensidade em Vinicius de Moraes. Poeta tido como lírico, Vinicius usou e abusou da metáfora flor em seus sonetos e poemas de amor numa analogia à delicadeza e efemeridade que representa a figura da flor (da mulher, do amor, do órgão sexual feminino) na literatura brasileira. Em “Marinha”, o poeta resgata a imagem da flor como a delicadeza de um olhar iluminado pela perspectiva do efêmero e ainda traz para o texto um novo elemento: a surpresa no verso. Essa figura simboliza aquilo que desponta em uma haste, o que surge do caule antes escondido na planta. Ela simboliza aquilo que toma forma dentro de uma outra forma: a flor que surge na superfície da água, o que aflora. A metáfora da flor, aliada à sedução sonora e imagética e à localização central, contribui para a equação (esconde/aparece) representada. A esses elementos, atribui-se outro, que deriva deles e, ao mesmo tempo, une todos eles: o erotismo.
Ora, é sabido que o erotismo é explorado clara e conscientemente por Vinicius e por toda sua crítica. Falar do tema é iluminar o óbvio. No poema “Marinha”, é notória a relação erótica que estabelece o leitor em um primeiro momento. Mas debruçando-se sobre o poema, é possível retirar daí algo que retoma o lirismo clássico e que, talvez, se diferencie da mera e gratuita indução erótica que beira a sexualidade em uma primeira e rasa leitura.
Octavio Paz, tratando do tema, faz uma diferenciação e gradação entre o erotismo e a sexualidade, trabalhando a relação que retira daí a poesia:

“A relação entre erotismo e poesia é tal que se pode dizer, sem afetação, que o primeiro é uma poética corporal e a segunda uma erótica verbal. Ambos são feitos de uma oposição complementar. A linguagem – som que emite sentido, traço material que denota idéias corpóreas – é capaz de dar nome ao mais fugaz e evanescente: a sensação; por sua vez, o erotismo não é mera sexualidade animal – é cerimônia, representação. O erotismo é sexualidade transfigurada: metáfora. A imaginação é o agente que move o ato erótico e o poético. É a potência que transfigura o sexo em cerimônia e rito e a linguagem em ritmo e metáfora. A imagem poética é abraço de realidades opostas e a rima é cópula de sons; a poesia erotiza a linguagem e o mundo porque ela própria, em seu modo de operação, já é erotismo. E da mesma forma o erotismo é uma metáfora da sexualidade animal. O que diz essa metáfora? Como todas as metáforas, designa algo que está além da realidade que lhe dá origem, algo novo e distinto dos termos que a compõem.”
Tal relação acontece em “Marinha”. A representação é clara: o mar contemplado sob uma perspectiva de rimas e ritmo transforma a visão em metáfora. Algo fica implícito no jogo esconde/aparece do poema, já que tudo se encontra transfigurado. E o elemento implícito é que transforma a sexualidade em cerimônia e erotiza a linguagem, trazendo uma sensualidade para o texto. O eu lírico que olha o mar a partir da praia não pontua marcas sexuais do mar, mas a poesia que o mar proporciona. A eroticidade presente se diferencia da sexualidade animal apontada por muitos na lírica de Vinicius de Moraes. O leitor pode questionar ainda certas imagens passíveis de conotação sexual como as “conchas” que se abrem, sugerindo uma espécie de imagem sexual na praia, do feminino. Ou ainda comentar no termo “redondas” a sugestão que toma e que pode ecoar em vagabundas na última estrofe. Mas neste poema a linguagem adquire uma transfiguração tamanha que a associação perde a força diante da sensualidade sonora das metáforas. O texto deixa clara a intenção metafórica da veia lírica de Vinicius. Tanto que, no poema, o termo que carrega maior força denotativa, e se possível dizer, carnal, identifica-se na palavra coxa, e não esclarece muita coisa. A capacidade poética do texto identifica-se no poder de sedução da palavra voltando-se para si e adquirindo uma totalidade nela mesma.
A relação da poesia com a linguagem é semelhante à do erotismo com a sexualidade. Também no poema – cristalização verbal – a linguagem se desvia de seu fim natural: a comunicação. A disposição linear é uma característica básica da linguagem; as palavras se enlaçam umas às outras de forma que a fala pode ser comparada a um veio de água correndo. No poema a linearidade se torce, atropela seus próprios passos, serpenteia: a linha reta deixa de ser o arquétipo em favor do círculo e da espiral.
A reflexão de Paz pode colaborar para a análise do poema. Em “Marinha”, a linguagem adquire uma função outra: não é mera apresentação de uma paisagem marinha, nem uma consideração sobre elementos expostos na praia. É o jogo entre o eu que contempla o mar e próprio mar que contempla a praia. As perspectivas múltiplas das metáforas na linguagem pertencem ao jogo erótico esconde/aparece do poema. A relação da poesia, tal como diz Paz, não se dá linearmente, mas sim nas voltas que os versos criam entre o mar e a praia, a claridade e a escuridão, a superfície e o fundo: o que esconde e o que aparece.
A última quadra continua a intensificar essa relação. Se antes a perspectiva se manteve no mergulho do mar, agora ela eleva o olhar para a superfície das águas, para o pico das ondas (“E as ondas de pontas roxas”).
A claridade da primeira estrofe ganha cor e movimento nas ondas verdes e esquivas do mar. E o leitor se sente ainda mais seduzido pela lascividade das ondas que chega a sentir, como um sopro erótico, a sensualidade do vento que movimenta o mar, sugerido e sustentado pela repetição do som /v/. O eu lírico que observava o mar especulando movimentos, entre a praia e o mar, entre a superfície e o fundo se deixa levar pelas ondas, que afloram formas e perspectivas sob um olhar desinteressado, mas perplexo da interjeição e poesia que o mar proporciona.
O poeta Vinicius de Moraes diante da força de libertação cavada pelo modernismo brasileiro somada à proposta e projeto concretistas, caminhou por rios secundários e só, a partir do fim do século XX, vem sendo retomada pela crítica. O tom elevado de seus poemas e o lirismo de seus sonetos cede espaço para uma poesia marcada por uma estética de ruptura ou engajamento do século passado, afirmada pelas vanguardas.
Em “Marinha” é possível reconhecer estas marcas líricas que caminham em direção a uma poética pura.





terça-feira, 28 de dezembro de 2010

A MULHER QUE PASSA, VINÍCIUS DE MORAES

Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!

Oh! Como és linda, mulher que passas
Que me sacias e suplicias
Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia
Teus sofrimentos, melancolia.
Teus pelos leves são relva boa
Fresca e macia.
Teus belos braços são cisnes mansos
Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas
Que vens e passas, que me sacias
Dentro das noites, dentro dos dias!
Por que me faltas, se te procuro?
Por que me odeias quando te juro
Que te perdia se me encontravas
E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?
Por que não enches a minha vida?
Por que não voltas, mulher querida
Sempre perdida, nunca encontrada?
Por que não voltas à minha vida
Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!
Eu quero-a agora, sem mais demora
A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacífica
Que é tanto pura como devassa
Que bóia leve como a cortiça
E tem raízes como a fumaça.


Neste poema encontra-se ecos baudelaireanos (“Les Fleurs du mal” – simbolista), apresentando existência de uma intertextualidade com o poema “À une passante”.

Vinícius assume o papel de trovador e exalta de forma idealizada os aspectos físicos e a graça de uma passante.
No plano semântico, o poeta ao descrever a beleza da mulher que passa, explora o efeito conotativo da linguagem e potencia o sentido dos versos através de figuras de linguagem que se projetam na imaginação visual do leitor, despertando-lhe impressões sensoriais carregadas de intenso sensualismo.
A figura feminina surge como se fosse manifestação espontânea, transitória que aparentemente, despreocupada com a multidão e com o que acontece ao seu redor, tem à capacidade de transformar o ambiente pela sua simples presença e passagem.
Trata-se de uma mulher bela que tem seu corpo parcialmente exposto aos olhos do observador/poeta, trazendo consigo algo de sublime, uma vez que é colocada como um ser superior para onde convergem as formas elevadas da existência.
Após a descrição da “mulher que passa”, o solitário observador/poeta entra em transe, pois essa mulher atrai sua atenção e embora silenciosa faz-se entender por meio de seus gestos e comportamentos, tornando-se misteriosa para ele.
O poeta ignora o passado da mulher, assim como desconhece o seu presente, deixando visível esse aspecto de transitoriedade, ao mesmo tempo, não apreende mais do que sua beleza e presença.
A passante é fria e indiferente, ao mesmo tempo, faz com que o poeta sinta-se completo (“me sacia”) e aquece-o mesmo mantendo distância.
Sua passagem acontece rapidamente, como é sugerido pela pontuação do poema; entretanto, essa imagem é marcante para ele que dura o tempo de sua presença.
Ela estimula ao pecado, gerando sentimentos dualistas: por um lado, é elevada, sublimada e idealizada, mas “é tanto pura como devassa”, pois desperta no observador, desejos mundanos e carnais. Outro aspecto relevante é o fato dela estar “sempre perdida, nunca encontrada?” sugerindo a sensação de felicidade temporária ou amor em trânsito, temas que perpassam a poesia de Vinicius.
O título do poema já revela o tema da efemeridade, da transitoriedade e da representação do sentimento inacessível que é corroborado pela passagem e a entrega total, embora passageira, através da afirmação (mudança), negação (evolução) e conflito (transição).
O que resta ao poeta são as imagens que ele capta com a passagem da mulher e as sensações que lhe causam.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

O SORVETE, CONTOS DE APRENDIZ


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

“O SORVETE”

   “Quando chegamos ao colégio, em 1916, a cidade teria apenas cinquenta mil habitantes, com uma confeitaria na rua principal, outra na avenida que cortava essa rua. Alguns cafés completavam o equipamento urbano em matéria de casas públicas de consumação e conversa, não falando no espantoso número de botequins, consolo de pobre. As ruas do centro eram ocupadas pelo comércio de armarinho, ainda na forma tradicional do salto dividido em dois: fregueses de um lado, dono e caixeiros do outro; alfaiates, joalherias de uma só porta, agências de loteria que eram ao mesmo tempo pontos de venda de jornais do Rio ostentavam cadeiras de engraxate. Um comércio miúdo, para a clientela de funcionários estaduais, estudantes, gente do interior que vinha visitar a capital e com pouco se deslumbrava.”
O conto é construído a partir de um flash-back. Com foco narrativo em primeira pessoa do plural, debruçado sobre a reconstrução de um fato ocorrido há trinta anos, o narrador vai relatando o tempo passado num colégio interno. Perpassa, pois, o conto uma atmosfera memorialista, dando a impressão de autobiografia.

No conto há inúmeras referências a lugares, lojas, cafés, cinemas, painéis luminosos que evocam a cidade grande, em 1916, “síntese que é de refinamento produzido pela cultura, pelo asfalto, pela eletricidade, pelo Governo e por tantas outras entidades poderosas” e o deslumbramento causado ao narrador e seu amigo Joel, dois interioranos.
“Alunos internos, dispúnhamos apenas dos domingos para os nossos passeios isentos da censura colegial, no espaço de tempo que se confinava entre - a conclusão da missa das oito e o toque de sineta para o estudo das seis da tarde.”
“Eu tinha onze anos, Joel, treze, o que, além do tamanho, lhe bastava para se atribuir definitiva autoridade sobre mim. Na realidade, Joel era meu comandante. Já exercia o comando na cidade, minha onde crescêramos amigos inseparáveis; diante do espelho da "cidade grande", minha timidez xucra apoiava-se na capacidade de resolver, dirimir e providenciar, atributos que sempre me faleceram.”
Quando o seu pai decidiu ingressá-lo num colégio interno e o pai de Joel considerou fazer o mesmo com seu filho, o narrador relata sua felicidade e alívio. Pois, não estaria separado de seu melhor amigo ao mesmo tempo em que, senti-se seguro ao seu lado.
Em um domingo, o narrador e Joel, caminhavam dirigindo-se ao cinema, localizado na rua principal, ao passarem em frente de uma confeitaria, depararam-se com os seguintes dizeres num quadro negro:
“HOJE
Delicioso sorvete de ABACAXI
Especialidade da casa HOJE! “
O anúncio atiçou-lhes desejos. Nenhum dos meninos havia experimentado sorvete de abacaxi, muito menos, um “delicioso sorvete de abacaxi...”. Essas palavras entravam em suas mentes, causando-lhes conflitos: o sorvete ou o cinema?

“- A gente já tinha resolvido ir ao cinema, agora o jeito é ir. O sorvete fica para domingo que vem.
Sem Joel, eu não me arriscaria à aventura do sorvete. Entre duas privações, a do sorvete e a de Joel, resignei-me àquela. E a campainha da porta do cinema, como cigarra, zinia. Pois vamos!”
Entretanto, os garotos não conseguiam concentrar-se no filme.
“A mais simples comparação de dois prazeres deteriora o que estamos desfrutando, e oferece o risco de corromper o segundo, se chegamos a atingi-lo, pela indisposição em que nos deixou a frustração do primeiro. No escuro, eu procurava encontrar no rosto de Joel a tristeza do sorvete frustrado, e se tal sentimento não se manifestava de maneira irrecusável, a verdade é que pelo menos tivera suficiente poder para eliminar todo indício de satisfação ante as proezas espetaculares que William Farnum desenvolvia na tela, salvando Louise Lovely - ou seria talvez outro astro, outra estrela.”
Até não aguentarem mais! Abandonaram o cinema e foram se deliciar com o sorvete de abacaxi.
“O garçom depositou cuidadosamente sobre a toalhinha alva dois copos cheios de água, dois guardanapos de papel, com florezinhas pálidas, e duas tacinhas de vidro, contendo, cada uma delas, meia esfera de uma substância alva e brilhante. Crianças de cinco desprezarão minha narrativa; e já ouço um leitor maduro, que me interrompe: "Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?" Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os países, se travavam conhecimento com uma coisa de que só conhecessem antes a representação gráfica ou oral, dela se aproximavam não raro atribuindo-lhe um valor mágico, às vezes divino, às vezes cruel, em desproporção com a realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestões de som, cor, forma, calor, densidade, que as palavras despertam em nosso espírito maleável. Como posso reconstituir agora tudo o que nós criáramos, para nosso próprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espécie rara de refresco, que às pequenas cidades não era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astúcia do gerente da confeitaria, na seda fina e macia da palavra "delicioso"?
Porém, a decepção foi imediata. O sorvete era horrível, nem se reconhecia o sabor do abacaxi.

“Lágrimas subiram-me aos olhos. No rosto de Joel, também o sofrimento se desenhava.”
Outro conflito se estabeleceu: o que fazer com o sorvete?
“Mas como fazer desaparecer um objeto de difícil transporte e conservação, num lugar público? Pergunta que os assassinos devem formular-se, fechados no quarto com o cadáver; os mais sinistros e engenhosos expedientes têm malogrado. Em certo sentido, nós nos sabíamos criminosos, porque, insisto, o homem do campo, a sós com as complicações da cidade, é sempre débil; éramos debilíssimos. E nada mais triste do que reparar na tranquilidade esmagadora que os da cidade assistem à nossa angústia insolvável. "Por que pediu sorvete? Se não ia gostar?! E por que não gostou? É admissível que alguém não goste de sorvete? Logo de abacaxi! Especialidade da casa!" O caixa saíra do trono para dizer-me isso com a mão direita coçando o queixo e o bigode ... Olhava-me com desdém e reprovação. Não, não saiu nem disse nada. Mas eu ouvia dentro de mim suas palavras, a vergonha que elas fariam derramar sobre minha família - o filho do Coronel Juca não gosta de sorvete de abacaxi: ele teve coragem de ir a uma confeitaria elegante, pedir um sorvete e estragá-lo: e minha boca doía com a lembrança daquele gelo ardente e cáustico.
Então reatacamos o sorvete, mas ele continuava intragável. A verdade é que, sem noção alguma de como ingeri-lo, nós pretendíamos absorvê-lo a dentadas, em grandes porções que levavam consigo o pânico de um motor de dentista. O céu da boca era um teto fulgurante de dor: e o pior é que, eu bem o sentia, essa dor era ridícula.”
Não havia saídas, tinham que devorar o sorvete ou ficariam desmoralizados.
“Era um pensamento, uma noção dos Mendonça, formada na educação burguesa de várias gerações, que ele ministrava a um membro de outra família não menos rica de princípios respeitáveis, os Caldeira Lemos. Uma reputação pode perder-se com à menor prova de fraqueza. Há um orgulho de família, de pessoa, que o indivíduo recebe no berço e tem que sustentar. Joel tirava seu comportamento, numa situação assim imprevista, do corpo de doutrina dos Mendonça, e me lembrava que eu devia fazer o mesmo.
Sucede que aquilo que nos é penoso fazer, por iniciativa própria, mas sabemos necessário, se torna fácil de executar quando um poder estranho no-lo determina. Todo o encanto do sorvete estava perdido. Mas restava um dever do sorvete a cumprir, um dever miserável. Refreando as lágrimas, o desapontamento, a dor que um filho de boa família não pode sentir em público, mastiguei as últimas porções daquela matéria atroz.
Joel olhou-me de novo, já agora aprobativo e cordial. Ele também sofrera bastante, mas a vida é um combate. O garçom aproximou-se. Joel pôs a mão no bolso, perguntou quanto era. O dinheiro não chegava.”
No conto “O sorvete” dá-se a manifestação do aprendizado e da iluminação com forte densidade intimista e confessional.
Tratando de um tema banal e fazendo uso da primeira pessoa, por um narrador adulto, o fio narrativo conduz a uma reflexão psicológica de caráter revelatório.
A técnica narrativa, o anticlímax, as descrições críveis levam o leitor acreditar que o conto não é um conto, mas um relato, uma crônica da vida do próprio Drummond, a ponto de concluir, num plano mais geral e social, que o conflito principal deve-se a uma debilidade do homem do campo com o convívio dentro da cidade e o relacionamento social.
“O homem do campo, a sós com as complicações da cidade, é sempre débil; éramos debilíssimos.”
O que domina no conto não é o tempo cronológico; é o psicológico, que se passa dentro das personagens, dentro da própria vida. Entretanto, não há uma preocupação excessiva em contar a estória, preocupação maior é com a análise, uma análise dissecante e profunda, que é relatada à medida que afloram à consciência ou à memória do narrador, num processo que se aproxima do impressionismo associativo.
A frustrada experiência de transformar o lírico conceito atribuído a sorvete numa triste noção experimental desprovida de qualquer satisfação física ou estética só sai do plano individual, após essa intervenção. No entanto, o que corresponderia ao êxtase torna-se dor, ao mesmo tempo em que, o narrador suspende o relato e de maneira machadiana, estabelece um diálogo com o leitor numa tentativa de autodefesa prévia dos futuros acontecimentos, ressaltando o valor significativo que uma palavra adquire, no caso, o sorvete.








segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

BEIRA RIO, CONTOS DE APRENDIZ

BEIRA RIO


Em “Beira rio” está centralizada a denúncia sobre a exploração de trabalhadores oprimidos por uma “Companhia”, numa cidade chamada Capitão Borges.
Essa cidade fictícia representa a opressão do trabalhador, a desigualdade social, o autoritarismo versus submissão que, infelizmente, é ageográfico e atemporal. 


   No primeiro parágrafo, o poeta estabeleceu uma conexão com os pontos cardeais, elementos fixos entre os espaços oeste versus leste.
“A oeste ficava os terrenos da Companhia, onde tinham começado as obras para insta1ação da grande indústria. A leste improvisara-se uma cidade, residência de diretores técnicos e operários, chamada Capitão Borges, em honrado desbravador daquele sertão. No meio ficava o rio, que se atravessava de balsa.”
  O leste, local em que o sol nasce, representa a saída para a Europa, o berço da civilização e da cultura, local onde estão localizadas as residências dos poderosos contrapondo-se com o oeste, a Companhia, alegoria da exploração, do fim e da morte.
   Os donos da Companhia buscando a lucratividade máxima através da excessiva exploração do trabalho transformaram as jornadas de trabalho em cargas extensas e sem garantia de remuneração e legislação.

“O dia de trabalho espichava-se por oito horas legais e mais duas de prorrogação, sem pagamento. A Companhia tinha pressa na execução do programa. Como não restassem trabalhadores a recrutar, na região, exigia-se de todos um esforço maior. Quanto à remuneração desse suplemente de serviço, falava-se que iria formando um bolo para o operário receber, acabada a obra, ou quando se retirasse. Falava-se. Mas ninguém sabia  nada ao certo. E fiscal do Ministério do Trabalho, naquelas brenhas...você viu???“

Através de recursos linguísticos como a metáfora, a antítese, o paralelismo, a repetição, a elipse e a ironia, a narrativa conduz a um clima de tensão e de indignação do narrador.

  
“Curiosa vila de Capitão, onde há dez refrigeradores e não há esgotos; muitos meninos, e nenhuma escola; um cinema; uma capela novinha, um posto policial, e o imenso armazém; o mais são casas esparsas, cães à procura de ossos; estrumeira de animais marcando a direção dos caminhos; e o cemitério, já com doze corpos.
   O hotel é da Companhia; o cinema é da Companhia; o armazém é da Companhia. O posto policial foi instalado às  expensas da Companhia, e a capela e o cemitério constituem doações amáveis da Companhia. Mas o único negócio da Companhia é realmente a usina, e se a administração consente em explorar ramos subsidiários, isto se deve a seu espírito benevolente, a seu desejo de servir. - Essas miudezas só dão amolação - explica o subdiretor, que é brasileiro, mas adquiriu sotaque norte-americano.”
   A opressão sofrida por esses trabalhadores reduzidos a meros objetos com gestos estereotipados, intensifica-se quando o negro Simplício da Costa monta, num lugar fora do domínio da Companhia, um comércio onde há aguardente, cujo consumo é proibido pelos dirigentes da usina.
  
  No mundo em que pessoas submetidas ao trabalho contínuo, mecânico tem pouco tempo livre ao lazer torna-se comum abaterem-se pela fadiga física e psíquica. Assim, procuram compensações na bebida que os recuperem do amortecimento dos sentidos.
“Em vão procuraríamos um botequim. Não há. É proibido beber. A proibição não está nas leis de um estado onde se bebe tanto, e mesmo onde se destila cachaça tão fina, sob cinquenta nomes diferentes, e que é fonte considerável de receita pública. Proibição tácita, estabelecida pela Companhia, no interesse dos seus servidores ... bem, e no interesse do serviço. O álcool foi rigorosamente proscrito como o jogo. Verdade seja que há abundância de baralhos e de uísque no grande armazém quadrado. Mas esta é uma seção reservada aos técnicos e à alta administração, que quanto mais bebem e jogam - é admirável - mais trabalham.”


“Bebe-se para esquecer, para lembrar, para fazer de conta  para cortar doença, para aguentar o repuxo,  para zombar da administração. O subdiretor fareja cachaça no ar, dá ordens ríspidas.
   -  Quem beber será expulso no sufragante. E quem vender bebida come cadeia - avisam os chefes de turma.”

A mudança de humor e disposição dos trabalhadores despertou desconfiança aos administradores da Companhia.
Simplício da Costa, “vosso criado”, não temia represálias:

   “- A Companhia manda do lado de lá do rio. Do lado de cá, comanda Simplício da Costa, com a autoridade do Governo. Tirei licença do Governo para negociar. Paguei estampilha na coletoria de Guapó. A Companhia não se meta comigo, que eu racho ela, irmãozinho!”

   O subdiretor da Companhia, então, enviou dois homens de confiança para investigar o caso.


“Eles têm a missão de policiar disfarçadamente os colegas e, quando preciso, descer-lhes a lenha sem dar impressão de que é por ordem superior. Recebem instruções para entender-se com o negro e convidá-lo a remover sua tralha da beira do rio.”

   Os homens retornam contando uma história confusa e exalando bafo de cachaça.
   O subdiretor, então, convida o comandante do destacamento para uma cervejinha no hotel. E, “no dia seguinte, antes de amanhecer, Vosso Criado fazia café quando seis praças cercam a vendinha, e o comandante lhe diz, com uma pressão leve no braço:
   - Vai dando o fora de mansinho que esta venda acabou.” 
 O Negro argumenta que tem Licença do Governo para o comércio, mas, um dos praças, ironiza sua alegação:

   “- Eh, compadre, deixa de caçoada. Licença do Governo está aqui ...
     - Ora, negro, tu acredita em licença? Licença é isto - e fez um sinal às praças.
    Dois soldados amarraram Vosso Criado. Outros dois ficaram de sentinela para obstar a intervenção de algum paisano. E os restantes, entrando na vendinha, começaram a tirar de lá os maços de cigarros, as latas e os pratos de pastéis e de doces, as garrafas escuras, sem rótulo.
   - Tua venda acabou, negro ... Eu não te disse? - falou o comandante para Vosso Criado, que se mantinha digno.
   Recuando o braço para tomar impulso, os soldados lançavam no ar cada objeto, cada garrafa cheia. O volume ia cair no rio, deslizava um momento, depois a água avermelhada engolia a coisa preciosa. O negro, firme.
   - Olha negro, tua cachaça acabou.
   Mas ele não olhava, e parecia crescer, peito estofado, indiferente à destruição do seu estabelecimento.
   - Vamos obrigar esse negro a olhar para o rio, seu comandante?
   - Deixa ele. Tanto faz. Mas andem depressa com esse serviço.
   E as garrafas rolando na correnteza, a venda sumindo. Sumiram as latas, os pacotes de fósforos, um rolo de fumo, que trescalava. A caixa de charuto, abrindo-se no ar, deixou cair uma chuva de níqueis que também soverteu nas águas.
   - Ô diacho! E a gente precisando tanto de cobre, hem, Marcolino!
   - Agora vamos tacar fogo - ordenou o comandante.
   As tábuas de pinho começam a arder. As chamas antecipam a manhã que está a  chegar. Daí a pouco não há mais nada de pé. - Solta esse negro, gente.
   Vosso Criado, já livre, sacode-se, tira desdenhosamente da camisa uma folha queimada, trazida pelo vento, e que se desfaz em Cinza.
   - Agora, negro, finca o pé na estrada e vai olhando sempre para a frente. Se não ...
Empurram-no, mas Vosso Criado não quer correr. Caminha natural num passo pesado, de pés chatos, sem pressa.
   - Eta negro safado, até parece que ele tem costume ...
   Para assustá-lo, os soldados atiram a esmo. Detidos a distância pelas sentinelas, apontador e balseiro contemplam as ruínas.”
    “Beira rio”, conto de estrutura densa explora um mundo de sofrimentos, repressões, fragilidades e, sobretudo, de fatalidade das classes desfavorecidas.
     O negro, Simplício da Costa é a vítima da atrocidade maior dos desmandos dos dirigentes da Companhia, quando tem seu comércio destruído e, sob a mira de uma carabina, obrigam-no a “fincar” o pé na estrada. O desfecho, como grande parte dos contos da obra, fica aberto, pois o negro, chamado ironicamente pelo narrado de Vosso Criado, resiste à ordem dos policiais e não é possível precisar ao certo se ele foi morto ou não nas ruínas, que o apontador e o balseiro contemplam ao final e nas quais poderia estar incluído o corpo do “Vosso Criado”. Essa hipótese é acentuada pela linguagem conotativa utilizada, onde o termo “ruínas” que encerra o conto possui carga simbólica de aniquilamento, metáfora do fim do negro o que conferiria ao conto um efeito funesto.



sábado, 4 de dezembro de 2010

OS FUZIS DA SENHORA CARRAR

 BRECHT

1898-1956

I – AUTOR:


BRECHT, dramaturgo e poeta alemão. Nasceu num bairro operário, filho do diretor de uma fábrica de papel que nunca “fabricou papel, mas sim palavras para preencher papéis, palavras que serão armas contra sua própria classe.”
Brecht optou pela defesa do povo oprimido, tornando-se o mais expressivo poeta revolucionário do século 20.
Serviu na Primeira Guerra Mundial como enfermeiro, interrompendo seus estudos de medicina. Começou a carreira teatral em Munique, mudando em seguida para Berlim. Durante a Segunda Guerra exilou-se na Europa e nos EUA. Acusado de atividade antiamericana durante o macarthismo, voltou à Alemanha e fundou, em Berlim Oriental, o teatro “Berliner Ensemble”.
Em “O círculo de giz caucasiano”, “Galileu Galilei” ou “Os fuzis da senhora Carrar”, substituiu o realismo psicológico por textos didáticos, comprometidos com uma ideologia de esquerda. Afirmando que, em vez de hipnotizar o espectador, o teatro deveria despertá-lo para uma reflexão crítica, utilizou processos de "distanciamento", que rompiam a ilusão, lembrando ao público que aquilo é apenas teatro e não a vida real.
Brecht deixou uma rica produção artística, que inclui algumas das melhores peças teatrais de todos os tempos, encenadas e vistas por gerações e gerações de atores e espectadores do mundo inteiro, até hoje, em pleno domínio da cibernética e do ciberespaço.
Nenhum escritor do século XX influenciou tanto o teatro como teórico, dramaturgo e diretor como Brecht, que se ocupou principalmente da dimensão social e política dessa arte. Algumas de suas primeiras anotações, assim como suas primeiras obras já demonstram pistas da revolução que se seguirá. Quando todos achavam que o teatro alemão estava morrendo, que a tragédia era uma impossibilidade dos novos tempos e que o próprio drama já estava ultrapassado, Brecht nos brinda com sua força e seu gênio.

II – CARACTERÍSTICAS:

Brecht, militante socialista, aposta num teatro politizado.

A sua proposta é criar uma obra essencialmente educativa e de reflexão com o intuito de promover o aprendizado do coletivo através de questionamentos e intervenções ideológica, sociológica e histórica; além de derrubar as tradições tanto clássicas quanto naturalistas.
Suas peças tornaram-se alegorias dramáticas destinadas a discutir teses morais no sentido marxista, e arrancar o espectador de sua indolência de pensamento e consciência (teatro épico), da qual “Os fuzis da Senhora Carrar” é um belo exemplo.
Utilizou-se de “efeitos de estranhamento”, como recurso de formação intelectual do espectador através de perguntas diretas do palco para o público; frases fundamentais escritas em cartazes, como “Os pobres nasceram para apanhar” e “Quem com ferro fere, com ferro será ferido” e a desconstrução do espaço cênico com mudanças de cenário em cena aberta.
O dramaturgo elegeu distanciar-se do espaço real e criou uma peça com compromisso estético para evidenciar a ilusão teatral. Esse recurso dramático aproxima-o da modernidade, em que a transgressão e a pesquisa de linguagem mudaram a ordem natural das coisas. Daí sua teoria do teatro épico opor-se tão drasticamente às práticas do teatro dramático.

Brecht afirma que:

“Os esforços do ator convencional concentram-se tão completamente na produção do fenômeno psíquico da empatia, que se poderá dizer que nele, somente se descortina a finalidade principal da sua arte (...) a técnica que causa o efeito do distanciamento é diametralmente oposta à que visa á criação da empatia. A técnica de distanciamento impede o ator de produzir o efeito da empatia”.
O espectador não necessitava ser um grande estudioso das causas sociais e filosóficas do seu tempo para compreender a obra brechtiana, pois, o autor desmascarava-a no palco, com sua auto-imagem projetada. Ainda que, evitava sua transparência, graças ao recurso do distanciamento narrativo, deixando claro que ele era apenas um artista que estava representando uma personagem e não a própria personagem. Entretanto, preocupava-se com a dimensão social do homem e com a criação de uma arte de infundir no público uma forte reação crítica. Dessa forma, propunha um debate com espectador alertando-o sobre a realidade de todos os dias, dramas, misérias, desesperos e frustrações de que se compõem mesmo o mais inocente de todos os públicos.
Para Bertold Brecht “o espectador de teatro é um crítico-social, ou seja, com um júri popular de um julgamento, cujas testemunhas são os atores, que, com sua voz impostada, tentam frisar as partes mais elucidativas de seus testemunhos, fazendo com que os jurados se apropriem desses testemunhos, não por empatia, mas por grande conveniência, por necessidade clara de buscar uma verdade.
A técnica da dúvida perante os acontecimentos usuais, óbvios, jamais postos em dúvida, foi cuidadosamente elaborada pela ciência, e não há motivos para que a arte não a adote, também, uma atitude tão profundamente útil como essa. Tal atitude adveio à ciência do crescimento da força produtiva da humanidade, tendo-se manifestado na arte extremamente pela mesma razão”, conclui Bertold Brecht.
A montagem de “Os fuzis da Senhora Carrar” é minimalista utilizando-se apenas do essencial: chão, janela e mesa, potencializando a tensão opressora do texto.

Há a participação de um coro, que interrompe aos gritos as falas dos atores que deveria servir como instrumento de transformação social e de reflexão crítica do espectador.

Os atores contracenam-se com o rosto pintado de branco, resultando numa complexidade de emoções.
As luzes do palco de intenções realistas são atenuadas e fontes artificiais iluminam a primeira fila, onde está o resto do elenco.

III - TEMPO E ESPAÇO:

A peça foi escrita por Brecht em 1937, ambientada no período da Guerra Civil Espanhola, que durou de 1936 a 1939 e retrata o conflito entre pacifistas e soldados, entre homens comuns e revolucionários anti-franquistas.
Esse período significou dez milhões de vidas, cinco anos de conflito, nações em crise econômica, política e social, desestabilização, famílias destruídas e um longo processo de reconstrução. Além de proibições, interdições e, principalmente, a urgência em reconquistar os ideais, os valores e a humanidade perdida com a guerra. Anos depois da ascensão de Hitler ao poder, em 1933, e da consolidação do regime nazista, Brecht exila-se em países europeus antinazistas e nos Estados Unidos.
A obra dramática é composta por um ato, com duração precisa: o tempo de assar um pão, que Teresa Carrar coloca no forno no início da peça e retira no final.
É estruturada de forma linear e cronológica e retrata a decisão trágica de uma mulher que diante de determinados acontecimentos não encontra outra alternativa para sobreviver, a não ser lutar.

IV – OBRA:
Considerada uma das obras mais famosas do autor, “Os fuzis da Senhora Carrar” é um clássico da dramaturgia mundial.

Trata da luta dos povos em defesa da democracia contra o fascismo.
Brecht foi profundamente influenciado pelas obras de Marx e Engels, bem como pelos grandes fatos da luta de classes na defesa da classe operária e dos povos oprimidos.
Sua proposta artística, seu ideário estético, seu teatro épico-didático é dirigido à conscientização das massas e ao despertar do povo, sempre reservando um olhar especial para a mulher.
A peça narra á trajetória de Tereza Carrar, mulher de quarenta anos de idade, que vive na região de Andaluzia, na Espanha.
Ela é viúva do soldado Carlos, morto por uma bala no pulmão em Olivedo durante o levante, lutando nas brigadas de autodefesa contra o exército de Francisco Franco durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Brecht explora o drama e as contradições vividas pela Senhora Carrar que procura conservar sua família longe da barbárie da guerra, abandona a resistência e assume os códigos morais da igreja.
Numa época de conflitos, permanecer neutro corresponde a aliar-se ao inimigo.
O autor, dessa maneira, promove uma discussão antagonizando ideais entre a neutralidade e o posicionamento político.
A base desta investigação de cunho dialógico está centralizada na personagem da Senhora Carrar e no processo de metamorfose pelo qual a personagem passa.
Angústias, conflitos pessoais e sofrimentos coletivos misturam-se, brigam, rivalizam personagens atordoados por essa guerra cruel.
A Senhora Carrar possui dois filhos: José, o mais novo, que na peça é chamado de Rapaz e Juan, o mais velho.
Ela teme que seu filhos se envolvam no combate revolucionário e sejam mortos em defesa dessa. Assim, por sua determinação, impede que seus filhos se alistem e partam para o campo de batalha.
A mãe protetora mantêm o filho José dentro de casa, enquanto vigia atentamente os movimentos do filho mais velho pescando, observando-o pela janela.
José queria ingressar na linha de frente com a resistência formada pelos republicanos, pessoas da esquerda contrários a ditadura.
Nesse momento instaura-se o conflito existencial da Senhora Carrar: de um lado, encontra-se a protagonista lutando contra a violência e pela proteção de seus filhos, por outro, a comunidade que a vê como traidora e insiste para que ela entregue seus filhos e os fuzis para a causa, vista como justa.
Juan contesta durante o decorrer da peça as atitudes de sua mãe e a situação se agrava com a chegada do tio irmão de Thereza, o Operário, de nome Pedro Jaqueiras.
Ele faz parte da resistência no setor de Málaga e para aumentar o poder de fogo da resistência dirige-se à casa dos Carrar em busca dos fuzis que pertenceram a Carlos e que a Senhora Carrar mantém escondidos debaixo do assoalho.
A guerra é visível e próxima. Pedro tenta convencê-la a dizer onde estão os fuzis que vem guardando há algum tempo.
Os diálogos da mãe com o filho; com o irmão operário; o diálogo do irmão com o padre; com a noiva do filho; com os vizinhos vão se acumulando e desvendando a situação do povo espanhol na guerra civil, despertando sua função de agente transformador social
Porém, a sua conscientização atingirá a integralidade quando recebe o cadáver de seu filho, assassinado enquanto pescava.


A Senhora Carrar, nesse momento, compreende o verdadeiro significado de neutralidade. Diante do corpo do filho, Teresa Carrar percebe que numa época de guerra e atrocidades, calar-se é concordar, por conseguinte, deve assumir a luta.

Entrega os fuzis, retira do forno o pão e parte para o front.




V – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Brecht baseia-se nos fatos históricos de sua época, ao mesmo tempo que analisa meticulosamente o caráter e a psicologia do ser humano desse período conturbado pela guerra, apresentando-o de forma determinista e lírica.

Embora, limita-se á um tempo e espaço, Brecht cria um drama universal, denunciando a opressão feminina, levando-o criar complexas personagens femininas em seu papel social decisivo, conscientes disso ou em processo de conscientização.
Em “Os fuzis da Senhora Carrar” não há herói nem anti-herói; existem vítimas da selvajaria da guerra.