sexta-feira, 29 de outubro de 2010

ANJO NEGRO (1946)


“Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos, em suma, de uma rajada de monstros”, Nelson Rodrigues.




TÉCNICAS E MONTAGEM:


Apresentada no Teatro Fênix – RJ, em 02/04/1948 – Interditada em janeiro do mesmo ano.
Produção e cenários: Sandro
Direção, cenários e figurinos: Ziembinski



"Seus cenários, desdobrando planos, na sua largura, profundidade e altura, permitem ao diretor agrupar, aumentar, diminuir, fazer desaparecer, como por passes mágicos, auxiliado por efeitos luminosos, os intérpretes. Cada marcação percebe-se logo foi estudada e realizada com sensibilidade e inteligência. O primeiro ato é uma lição de direção cênica", Paschoal Carlos Magno.
Pouco se fala dos atores, postos à prova pela grande carga dramática e pelo rigoroso desenho formal. E mesmo os comentários mais positivos, quando se louva a dedicação e a concentração de Maria Della Costa, excluem os intérpretes do relativo êxito da montagem, considerando que foram abafados e apiedando-se do seu esforço. Em todas as abordagens, o texto é visto como o único elemento definitivamente negativo.
Em “Anjo Negro”, a grande plasticidade usada pelo diretor não esconde a explosão trágica do texto, baseada no efeito do preconceito racial sobre o comportamento humano. A peça de Nelson Rodrigues, censurada por seis votos contra um, julgada pelo chefe de Polícia, pelo ministro da Justiça e finalmente liberada, atinge a moral da família burguesa e coloca o dedo na ferida do mal disfarçado racismo brasileiro.
No Correio da Manhã, uma crítica estreante não titubeia em aplaudir a tentativa de interdição da peça e considerá-la um "ponto de partida para uma luta de raça, com o intuito de engendrar ódios e desordens sociais". Um grupo de senhoras, ex-alunas do Colégio Sacré-Coeur, se reúne sob a presidência do reitor do Colégio Santo Inácio e consegue 64 assinaturas para um documento que apóia a ação da censura. Nos jornais, a polêmica gira em torno do uso de músicas e orações católicas durante a cena do funeral.
Alguns críticos julgam excessiva a plasticidade expressionista da encenação e tentam explicá-la pela necessidade de desumanizar as personagens para "criar uma atmosfera estranha, de pesadelo, propícia ao florescimento e expansão de todas as taras, todas as aberrações e perversões do instinto". Outros consideram que o espetáculo "não é a vitória de um autor, mas de um diretor" que "substituiu a interpretação e o texto pela encenação".
O autor Nelson Rodrigues é alvo de ironias e rejeição por parte de críticos que afirmam faltar ao persistente candidato a autor os méritos mais básicos para o ofício.

CARACTERÍSTICAS:


moderna do país, com a encenação de “Vestido de noiva”, de Nelson Rodrigues. Construindo um universo dramático absolutamente original, coube a ele apontar caminhos de vanguarda para o teatro brasileiro. Com efeito, as peças de Nelson Rodrigues são uma verdadeira suma de novidades: elas mostram brutalmente a realidade familiar, seja sob a forma naturalista, seja sob a forma expressionista, desvendam de forma quase psicanalítica a interioridade mais profunda das personagens, apresentam os enredos mediante sofisticados jogos temporais e possibilitam encenações de grande ousadia. Há nelas, principalmente, um uso sistemático do português coloquial nos diálogos que, por isso mesmo, são sempre vivos e ricos.
Segundo algumas fontes, Nelson tinha o romance como gênero literário predileto, e suas peças seguiram essa predileção, pois as mesmas são como romances em forma de texto teatral. Nelson é um originalíssimo realista. Não é à toa que foi considerado um novo Eça. De fato, a prosa de Nelson era realista e, tal como os realistas do século XIX, ele criticou a sociedade e suas instituições, sobretudo o casamento.
Sendo esteticamente realista em pleno Modernismo, Nelson não deixou de inovar tal como fizeram os modernos. O autor transpôs a tragédia grega para o sociedade carioca do início do século XX, e dessa transposição surgiu a "tragédia carioca", com as mesmas regras daquela, mas com um tom contemporâneo. O erotismo está muito presente na obra de Nelson Rodrigues, o que lhe garante o título de realista. Nelson não hesitou em denunciar a sordidez da sociedade tal como o fez Eça de Queirós em suas obras. Esse erotismo realista de Nelson teve sua gênese em obras do século XIX, como "O Primo Basílio", e se desenvolveu grandemente na obra do autor pernambucano. Em síntese, Nelson foi um grande escritor, dramaturgo e cronista, e está imortalizado na literatura brasileira.
Nelson Rodrigues pode ser considerado, de acordo com a tipologia de Jung, um intuitivo com uma função pensamento bastante diferenciada. O autor tinha a capacidade de mergulhar nas profundezas sombrias e trazê-las a tona de forma brutal num estilo quase que sarcástico como apenas uma pessoa com um forte poder de julgamento e crítica poderia. O retrato cru dessa natureza instintiva do homem que toca o absurdo, ganha um tom irônico, crítico, característico de sua arte quando trazido para o quotidiano mais banal.
O traço marcante de todas essas obras é a tentativa de desvelar a interioridade mais recôndita dos protagonistas. Além da análise psicológica tradicional, Nelson Rodrigues procura, sob influência freudiana (que ele negava, afirmando nunca ter lido Freud), aproximar-se dos abismos do inconsciente e do subconsciente, além de uma criar uma galeria de personagens arquetípicos.
Jamais houve no teatro brasileiro um mergulho tão profundo na psique humana. O resultado dessa investigação artística, no entanto, é também, assustador. Destruídos os bloqueios morais impostos pela civilização, o que aparece é um mundo infernal de desejos proibidos, crueldade, amoralismo e “nostalgia da lama”.
Os instintos arrastam as personagens dentro do próprio quadro familiar ao incesto, à perversão e ao crime, ao mesmo tempo, que, o sonho de uma impossível pureza segue atormentando-os.
A obsessão pelo sexo na obra de Nelson Rodrigues parece resultar tanto da derrocada dos pilares patriarcalistas e católicos presentes em sua formação quanto de seu conhecimento de teorias psicanalíticas. Nelson Rodrigues, na verdade, é um moralista. Sua concepção de mundo mostra os seres como vítimas de paixões selvagens e ruinosas. Os instintos (sobretudo o sexo) são abomináveis. Esta complexa visão do dramaturgo a respeito da natureza humana faz com que suas peças sejam de difícil encenação.

TEMA:



O autor partiu do preconceito de que o negro é alvo na sociedade brasileira e da existência de preconceito do negro em relação a outro da mesma cor.
Naquela época, o Brasil encontrava-se em um período de grandes modificações na organização do estado brasileiro, saindo de um período de bastante restrição ideológica e entrando num período onde reinava a esperança em um país desenvolvido e livre. Tem-se uma modificação evidente, um período conturbado na esfera social, modificações na maneira de governar.
Nelson Rodrigues ao escrever “Anjo Negro” apresenta sua crítica a sociedade dominadora dos brancos que apresentava o negro apenas como o “moleque gaiato” das comédias de costumes ou por tipos estereotipados. Assim, criou uma personagem Ismael de classe média, inteligente que desfrutava dos privilégios do branco: dinheiro, status, prestígio e uma mulher também branca, mas também com paixões e ódios, ou seja, “um homem, com dignidade dramática”, enredado em situações proféticas e míticas. O autor, em várias ocasiões, afirma ter escrito a personagem para seu amigo Abdias representar, pois, segundo ele, era o “único negro do Brasil”.
Dessa forma, o autor explora a construção de uma personagem que repudia sua cor e origem, única alternativa de inclusão no mundo tipo como superior.
O protagonista de Anjo negro, Ismael, não é moleque, malandro ou empregado subalterno, trata-se aqui de um homem cheio de ressentimentos e paixões, mas também de orgulho e sensibilidade, um vencedor, bem-sucedido, arquiteto do seu destino.
O tema é tratado de forma paradoxal. O negro Ismael, por odiar a própria cor, repudia tudo o que possa estar associado à sua raça, da religião aos hábitos culturais. Além, do preconceito racial, fica evidente nesse texto dramático a violência das mais variadas naturezas, em constantes situações.
As personagens são violentas entre si, sofrem a violência, vivem-na. Há vinganças recíprocas e intermináveis. Há ódio dissimulado no amor. Amor dissimulado no ódio. Ou somente um desejo, que gera violência. A história de Anjo Negro apresenta-se, assim, como uma rede truncada de muita violência.


ESTRUTURA:
A peça é estruturada em três atos.
Em sua primeira encenação o cenário apresentou-se sem nenhum caráter realista: um pequeno caixão de seda branca ocupava o andar térreo da casa onde dez senhoras pretas se postaram em semicírculo e formaram um coro, como no teatro grego. No segundo andar, duas camas, uma delas quebrada, ajudavam a compor o cenário. No primeiro andar, Ismael, o negro que representa o anjo, vestia um terno branco e calçava sapatos de verniz. No andar de cima, Virgínia, sua esposa, branca, trajava luto. “A casa não tem teto, para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro” (p.125).
É nesse cenário que se inscreve o drama, que também reproduziu cenas da infância do autor em Aldeia Campestre, Rio de Janeiro, onde morou. Quando criança, Nelson não perdia velórios. O drama humano o instigava: ora curioso por capturar o desespero de mães que choravam a perda dos filhos, ora curioso para perceber a sinceridade ou não das viúvas que choravam a morte dos maridos.
Essa estrutura formal provoca um estranhamento grande, pois não se formam duas forças de igual valor moral; uma é o funcionamento normal e equivocado da sociedade; outro é a valorização de uma cor tão boa quanto todas as outras. O destaque que Ismael recebe também reforça esse estranhamento, mostra o quanto ele é capaz, mas mesmo assim discriminado por ser negro.
Todavia, Nelson Rodrigues usa muitos aspectos formais clássicos, como o uso do coro, com a função de trazer para o palco a opinião do senso comum sobre a situação apresentada; nesta peça ele é feito por um grupo de senhoras negras, como já visto, que rezam no velório dos filhos do casal.
A presença do coro de mulheres negras que amaldiçoam o negro que casou com a branca também mostra que há discriminação pelos dois lados, as duas cores tentam desvalorizar a outra a fim de valorizar a sua, isso fica evidente quando o coro afirma que Virgínia tem o útero fraco.

LINGUAGEM:


“Meus diálogos são realmente pobres. Só eu sei o trabalho que me dá empobrecê-los.”

NELSON RODRIGUES utilizou-se do coloquialismo em suas peças teatrais; da estrutura linear dos textos (sem aparentes complicações para a compreensão do desenrolar da história); dos diálogos diretos, sem floreios e com ritmo, onde o espectador facilmente reconhece sua maneira de se comunicar e dos temas que sempre remetem aos dilemas morais e às ambiguidades comportamentais dos protagonistas.
Suas peças retratavam a fala e a trama folhetinesca da classe média carioca com a incrível crueza do cotidiano que o dramaturgo conhecia tão bem. Essa forma de linguagem não era bem aceita pela crítica ainda influenciada pelos moldes de um teatro mais eloquente e poético e que não conseguiam enxergá-las em seus aspectos simbólicos, como arte.

PERSONAGENS:
“As senhoras me diziam: ─ "Eu queria que os seus personagens fossem como todo mundo". E não ocorria a ninguém que, justamente, meus personagens são "como todo mundo": ─ e daí a repulsa que provocavam. "Todo mundo" não gosta de ver no palco suas íntimas chagas, suas inconfessas abjeções.”
“A ficção para ser purificadora precisa ser atroz. O personagem é vil para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de todos nós”.
As personagens não apresentam o perfil psicológico característico do drama realista, não interessa aprofundar a análise das individualidades ou as razões psicológicas. Elas são complexas e transitam em o amor e o ódio, onde, em determinado momento da ação desmascaram-se e se apresentam, inesperadamente, na mais completa nudez psíquica.
Personagens: Ismael, Virgínia, Elias, Ana Maria, Tia, Primas, Criada, Coveiros de crianças e o coro das pretas descalças.

ISMAEL:
"O negro Ismael — o herói — é belo, forte, sensível e inteligente. Esse desfile de qualidades não é tudo, porém. Se ele fosse perfeito, cairíamos no exagero inverso e faríamos um negro tão falso quanto o outro. Ismael é capaz também de maldades, de sombrias paixões, de violências, de ódios. Mas, no ato de amor ou de crueldade, ele é, será sempre um homem, com dignidade dramática, não um moleque gaiato".
Médico. Homem negro, inescrupuloso e violento. Profundamente recalcado em função de sua cor, diz à filha (Ana Maria) que é branco e a cega para que não perceba a realidade, como também cegou o irmão de criação, branco, por uma ardilosa troca de remédios. Ismael ama o branco, mas com violência, o que fica claro pelo isolamento a que submete a mulher para que ninguém a veja.
VIRGÍNIA:
Mulher de Ismael, branca, vítima da opressão patriarcal e da violência sexual do marido.
ANA MARIA:
Filha branca de Virgínia é fruto de sua relação extraconjugal com Elias, irmão de criação de Ismael. Inexpressiva na obra aparece apenas no terceiro ato. É enganada e abusada sexualmente por Ismael.
ELIAS:
Irmão de criação de Ismael, branco e cego.
TIA (de Virgínia):
Mulher vingativa, cruel e superprotetora das filhas.

ESPAÇO:

“A ação se passa em qualquer lugar, em qualquer tempo.”
O espaço é ageográfico e foge do realismo, concentrando-se no intimismo das personagens.
Há uma referência ao Norte, porém não específica, onde Virgínia recebeu a herança que marcou desde a sua infância, obcecando-a: a visão de quatro carregadores negros, que, cantando transportavam o piano.
O espaço é limitado, fechado como uma clausura. Os protagonistas vivem em uma casa de muros altos, cada vez mais isolados do mundo e partilham de uma vida turbulenta. A entrada de pessoas no lar é completamente restrita e coordenada por Ismael. Brancos não podiam se aproximar e quando isso ocorre sofrem consequências.
Assim, o espaço reduz a perfeita unidade de espaço, só existe a casa de Ismael e Virgínia, não há mundo exterior.



TEMPO:

O tempo é cronológico e extenso. Assiste-se ao nascimento e crescimento de Ana Maria, porém que não é totalmente apresentado, isso faz com que se perca também a unidade de ação; obviamente, sem que isso prejudique a qualidade da peça. Porém, o tempo psicológico está inserido nas memórias e no introspectivo dos protagonistas.


ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:


A peça “Anjo Negro”, escrita em 1946 e estreada em abril de 1948, faz parte das “Peças Míticas” do autor. A principal dificuldade da estréia dos textos se deu na constante briga com os censores na época.
Racistas, os censores proibiram as cenas sensuais entre um negro (no caso o protagonista Ismael) com uma mulher branca. A solução encontrada para a montagem da peça foi à substituição do ator negro por um ator branco (pintado de preto). Ironia destino, a peça fala justamente sobre o racismo, que o negro Ismael luta para desmistificar, tanto o racismo interior (da personagem), quanto o exterior e por consequência os problemas acarretados. Além de tudo, os efeitos plásticos da produção como que anestesiando a platéia, roubaram o espaço da reflexão social e dramática do espetáculo.
Ismael deseja "tornar branco" e adquirir status, para tanto, ele executa, com êxito e sem remorso, sua estratégia de destruir o seu passado, sua origem e sua raça.
Com formação superior, passa a ser um "médico de mão cheia, de muita competência, o melhor de todos"; veste-se sempre de branco e impecável; casa-se com uma mulher branca na tentativa de branqueamento de seus futuros filhos e renega a mãe negra, que lhe transmitiu os moldes genéticos, ao invés de odiar aqueles que o maltratam por razão destes mesmos padrões.
Dessa forma, o autor apresenta a profunda angústia causada na personagem principal pelo preconceito internalizado e assimilado ainda na infância, trazendo para o seu inconsciente os traumas e perdas que sofreu e incorporando-os de maneira agressiva contra si mesmo.
Porém, para sua frustração, seus filhos nascem negros à semelhança do pai. Virgínia, então, assassina-os para não ter de admitir sua vergonha e decadência perante o reflexo de seu marido, que, por sua vez, concorda com o ato em silêncio, sua maneira encontrada de rejeitar o seu futuro.
A morte dos filhos é necessária porque representa a prova constante e inegável do ato sexual forçado. Para Virgínia, cada filho representa o marido, o mesmo rosto, tudo igual. É como se em todas as mortes ela estivesse matando o próprio Ismael, e ele, no seu consentimento, cometesse o suicídio. Esses filhos não podem sobreviver ao crime cometido pelos pais de desejar alguém de outra cor. Virgínia os mata, porque ninguém melhor do que aquela que os gerou para lhes trazer a morte. É uma morte necessária, sem sentimentos, sem ódio.
Esse dualismo entre o branco e o negro será tratado com relevância durante todo o percurso do texto, não só contrastando com a cor, mas evidenciando a oposição entre escuridão versus claridade; vida versus morte; liberdade versus prisão.
Ismael e Virgínia são da mesma classe cultural e econômica, porém a distância entre eles é denunciada pelo preconceito racial, seja pelos condicionamentos históricos e sociais da época ou pelo comportamento particular dos protagonistas.
A peça inicia-se com Virgínia e Ismael já casados, enquanto transcorre o velório do seu terceiro filho, acompanhado pelo coro de dez mulheres pretas que informam sobre a morte do filho do casal, questionam o seu verdadeiro motivo, contextualizam a ação dramática e apresentam pistas para seu entendimento.
Elas já trazem a marca da rejeição e da questão racial, pois são negras, mas hesitam em declarar a verdadeira cor do menino morto na tentativa de mascarar o preconceito com rótulos de moreninho, moreno e mulato. E quando o fazem é numa gradação: primeiro no diminutivo, depois no grau normal e finalmente redundando em uma exclamação de terror com relação à própria cor:

SENHORA (doce) - Um menino tão forte e tão lindo!
SENHORA (patética) - De repente morreu!
SENHORA (doce) - Moreninho, moreninho!
SENHORA - Mulatinho disfarçado!
SENHORA (polêmica) - Preto!
SENHORA (polêmica) - Moreno!
SENHORA (polêmica) - Mulato!
SENHORA (em pânico) — Meu Deus do céu, tenho medo de preto! Tenho medo, tenho medo!
(...)
SENHORA (enamorada) - Menino tão meigo, educado, triste!
SENHORA (encantada) - Sabia que ia morrer, chamou a morte!
SENHORA (na sua dor) - É o terceiro que morre. Aqui nenhum se cria!
SENHORA (num lamento) - Nenhum menino se cria!
SENHORA - Três já morreram. Com a mesma idade. Má vontade de Deus!
SENHORA - Dos anjos, má vontade dos anjos!
SENHORA - Ou é o ventre da mãe que não presta!
SENHORA (acusadora) - Mulher branca, de útero negro!
SENHORA (num lamento) - Deus gosta das crianças. Mata as criancinhas! Morrem tantos meninos!
(...)
SENHORA (assustada) - E se afogou num tanque tão raso!
SENHORA Ninguém viu!
SENHORA - Ou quem sabe foi suicídio?
SENHORA (gritando) - Criança não se mata! Criança não se mata!
SENHORA - O preto desejou a branca!
(...)
SENHORA - A branca também desejou o preto!
TODAS - Maldita seja a vida! Maldito seja o amor!

O coro ao referir-se à “Mulher branca, de útero negro” denuncia não somente a raça da criança que ela carrega no ventre como também, o futuro do mesmo, a cor da morte e, ao clamarem por "Os anjos, má vontade dos anjos"; "Deus gosta das crianças. Mata as criancinhas"; "Criança não se mata!", contrapondo o sagrado e o profano.
Virgínia antes de se casar com Ismael desejou ardentemente o noivo de sua prima e deixou-se seduzir por ele. Descobertos, a prima traída se enforcou e a tia de Virgínia, para se vingar da morte da filha, promove o estupro da sobrinha, Virgínia, por Ismael. A partir daí, Virgínia desenvolve a arte da sobrevivência por meio da sexualidade, porém, é o que vai salvá-la no fim da trama, tornando-se duplamente vítima; da tia e do marido.
Virgínia precisa fazer desaparecer os filhos negros, ao mesmo tempo em que esconde seus sentimentos por Ismael.
No seu quarto existem duas camas:
“(...) uma das quais de aspecto normal. A outra quebrada, metade do lençol para fora, travesseiro no chão”.
A cama quebrada simboliza a sua violação primeira. Ela representa a imagem viva do poder de Ismael sobre ela. Ela não pode se entregar por prazer, somente pela força, como até hoje, vivendo enclausurada e submetendo-se aos seus caprichos, enquanto aguarda o momento de sua vingança definitiva, gerar um filho branco.
Assim, Virgínia e Ismael vivem presos um ao outro, cumprindo sempre o mesmo ritual desde o início de seu casamento: gerar e matar a sua descendência.
VIRGÍNIA (com espanto, virando-se para o marido) — O mundo reduzido a mim e a você, e um filho no meio — um filho que sempre morre.
ISMAEL — Sempre.
O isolamento do mundo foi uma ideia dela, que Ismael acatou como sempre. Enquanto ela deseja se esconder da vergonha de ser esposa de um negro, do pecado de praticar o ato sexual com a “mais sensual das criaturas”, ele deseja eliminar o resto do mundo de suas vidas e destruir o desejo dos homens.
O segredo dessa relação está fundando no ato sexual que ela foi submetida na primeira noite e em todas as outras seguintes.

“A casa não tem teto para que a noite possa entrar e possuir os moradores. Ao fundo, grandes muros que crescem à medida que aumenta a solidão do negro.”

A noite representa o negro Ismael, que entrou na casa de Virgínia e a possuiu, sem que ninguém viesse em seu socorro. Porque nada pode evitar que a noite penetre em uma casa sem teto. E é o próprio Ismael que busca desesperadamente o isolamento, fazendo com que cresçam os muros da casa e do seu coração. O amor por Virgínia é o amor por uma pele branca que nem todo o dinheiro do mundo poderá comprar. E ao invés de tentar conquistá-la, ele a tomou pela força. No entanto, condenou-se a ter o objeto amado cada vez mais distante emocionalmente, embora próximo fisicamente:

ISMAEL — Por que mentes? Há oito anos que todas as noites acontece nesta cama o que aconteceu na outra. Há oito anos que gritas como se fosse à primeira vez; e eu tenho que tapar tua boca. Sou teu marido, mas quando me aproximo de ti é como se fosse violar uma mulher. És tu esta mulher sempre violada — porque não queres, não te abandonas, não te entregas... Sentes o meu desejo como um crime. Sentes?

A condição de Ismael enquanto homem superior lhe denuncia. Ele erra por ter vergonha de sua cor, mas ele também se esforça e vence na vida por isso mesmo.
Ismael venceu por meio de seus próprios esforços às adversidades que a vida lhe trouxe, mas renegou a família e faz de sua esposa uma prisioneira, além de ser cruel com todos à sua volta. Também não tem uma posição de liderança, ele só se impõe à esposa. Dessa maneira, quer compensar sua cor com qualidades que quase só os brancos têm neste momento histórico.
Ismael alegoriza a trajetória do herói trágico, passa da fortuna ao infortúnio.
Na morte do filho, no primeiro ato, ele é um homem de prestígio apesar de marcado pela tristeza da perda de todos os filhos.
Um filho é a prova da sobrevivência do nome, da imortalidade de um homem, da perpetuação da espécie. Entretanto Ismael não pode dar frutos, não quer transmitir a sua “deformidade” a outras gerações.

ISMAEL — É o terceiro que morre. Todos morrem. (com veemência) Eles não se criam — ouviste? — não se criam. Nenhum, nenhum! (muda de tom) Você não verá meu filho! Não quero que ninguém veja. A não ser eu e a mãe dele — nós dois, ninguém mais! Vai-te e não voltes nunca!

A impossibilidade de vida dos filhos é declarada por Ismael como desígnio de Deus quando na verdade é a sua própria vontade, realizada pela esposa.
A chegada de Elias, irmão de criação de Ismael, branco e cegado por Ismael quando ainda criança por inveja de sua cor, fez renascer a maldição da mãe negra e, irá causar um desequilíbrio na rotina trágica do casal.
Virgínia insiste em conhecer Elias e durante sua conversa, ela trai os seus sentimentos quando diz que “quem ama mistura suor com suor” deixando claro que apesar de odiar o marido ela o deseja, prova é que ela não tenta nenhuma iniciativa para se libertar dele. O quarto do casal, que aparentemente tem “todos os sinais de uma luta selvagem” pode ter na realidade os sinais de uma relação sexual extremamente ativa e excitante para os dois. Verdadeiramente ela jamais pensou em fugir, em abandoná-lo, porque precisa dele. Ele já faz parte dela.
Virgínia, cuja mudança é registrada pelo próprio ambiente, trairá o marido, com o cunhado.
O segundo ato começa após a consumação do adultério com a imagem de uma noite prematura. É como se o coração de Ismael pressentisse a traição e se tornasse cada vez mais escuro:

“...A noite cai, contra todos os relógios, porque há ainda sol em outros lugares; é, pois, uma noite prematura e triste.”

Após a relação sexual com o cunhado, Virgínia o trata friamente, desprezando-lhe o amor e a adoração, embora “imersa numa tristeza absoluta”. É talvez o momento em que ela percebe a inutilidade de seu gesto. Por mais que tenha se entregado, ela jamais pertencerá a outro homem.
Para ela, o gesto da traição representa uma tentativa de se purificar do ato de ter se entregado a um homem que não amava. Em Elias, ela vê a pureza, o amor no lugar do desejo, uma entrega sem remorsos. Mas, na verdade, ela se sente culpada por desejar, mesmo que íntima e inconscientemente o negro Ismael, desejo que é um crime contra o amor.
Ismael ao chegar a casa, constata a traição.
É no segundo ato que ele confessa ter assistido impassível o assassinato dos três filhos e acrescenta que, essa cumplicidade torna-os mais unidos.
Elias é em seguida, assassinado por Ismael com um tiro à queima-roupa que o atingiu no rosto, insígnia da identidade individual.
Virgínia engravida do cunhado e em primeiro momento, Ismael decide matar o filho do irmão que está sendo gerado, porém faz com que desta vez idealiza a troca de posições, fazendo Virgínia cúmplice e não a assassina, modo de apropriar-se do filho branco que Virgínia terá.
Virgínia dá a luz uma menina branca e durante meses, Ismael se debruça sobre o berço para que a menina não esqueça sua cor e, completando seu plano, um dia pinga ácido nos olhos dela, cegando-a para que ela fique impossibilitada de comprovar a “verdade”. Assim, Ana Maria jamais saberia que o pai é negro e renasce a possibilidade de Ismael ser amado por uma branca. Só que a ele não bastava á negrura de uma noite eterna. A menina deveria viver na escuridão da cegueira, onde ele seria a única luz. O coração de Ismael se torna tão turvo quanto a sua pele e tão isolado quanto a sua casa.



Pai e filha desenvolvem uma paixão desmedida. Ela acredita que o pai é branco e que todos os outros homens são negros e perversos. Com isso, fomenta na enteada o amor e a admiração não alcançados com a esposa.

“Mesmo ambiente dos atos anteriores: casa de Ismael. Passaram-se dezesseis anos e nunca mais fez sol. Não há dia para Ismael e sua família. Pesa sobre á casa uma noite incessante. Parece uma maldição. (...)”

Dezessete anos depois, Ismael constrói uma redoma de vidro, uma espécie de mausoléu para viver com a enteada, onde possa ficar a salvo do mundo com a menina, sem que, nenhum desejo de branco pudesse alcançá-la.
É uma fantasia semelhante à história da Branca de Neve, como a história que ele conta para Ana Maria, de que todos os homens do mundo são negros e ele é o único branco. Já que a sua realidade trágica não o satisfez, ele tenta escapar, deixando para trás tudo o que é desagradável e feio. E chama isso de milagre, pois nesta fantasia ele é o único branco do mundo.
Ana dirige-se à mãe e diz:

“Pai é o que a gente quer, o que a gente escolhe, como um noivo...”.

Resta apenas a certeza de que, se houve sexo entre os dois, o motivo foi, mais uma vez, a vingança. Ismael e Ana contra Virgínia, mãe que odeia a adolescente por não ser o menino necessário ao futuro incesto pretendido por ela para vingar-se de Ismael, o negro. Virgínia enlouquece vendo-se substituída pela filha e consegue convencer Ismael a abandonar Ana Maria sozinha no túmulo de vidro condenada a gritar sem som algum.
E, como ele sempre foi conduzido por Virgínia acaba acatando a proposta. Nesse momento, ele compreende que não é o amor doce e inocente de Ana Maria que deseja, e sim o amor violento e sensual de Virgínia.
Por conseguinte, da mesma forma que Virgínia levou Elias à morte, ele traz Ana Maria, mas desta vez, o crime é cometido pelos dois, selando um pacto final de cumplicidade.
Finalmente, ela se deu conta da verdade que tentava esconder até de si mesma. Ela não podia viver sem Ismael. Era a sua sina desde que viu os carregadores pretos de piano quando pequena. A marca da tragédia foi o derradeiro crime, matar a única filha que poderia sobreviver, mas que também se colocaria entre ela e a realização sexual. O amor de Ismael e Virgínia é violento, é selvagem, é feito de ódio. Não poderia existir filho algum, ninguém, nada que se interpusesse.
O destino trágico de Ana Maria, assim como o dos outros filhos, já estava selado. Fica inegavelmente comprovado que não há espaço nesse relacionamento para filho algum, branco ou preto, nada.
Os três infanticídios, os dois cegamentos, o assassinato, a impressão de Virginia de estar sendo violentada ao ter relações sexuais com o marido, além do confinamento de Ana Maria num mausoléu engendrado por Virginia e Ismael ao final da peça delineiam a trama de Anjo Negro. Juntos, Virgínia e Ismael continuaram, a gerar filhos negros que serão mortos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Um dos méritos de Anjo negro reside em permitir várias interpretações, até díspares entre si. Ao mesmo tempo, é grande a probabilidade de o leitor/espectador não apreender por completo os simbolismos pelos quais caminha o enredo.

A inveja que Ismael sentia de seu irmão branco, de criação, Elias, leva-o a cegar, ainda na infância, através de uma engendrada troca de remédios. É também pelas mãos de Ismael que Elias morre, num ato de vingança pela traição sofrida, uma vez que Elias cedeu à sedução de Virginia. Dessa forma, Nelson Rodrigues, em determinado momento da ação, retira as máscaras de suas personagens e penetra em seu interior e apresenta-as, inesperadamente, na mais completa nudez psíquica.

Virgínia assassina por afogamento, um a um os filhos que trazem em si a marca da mestiçagem, como se quisesse lavá-los de sua cor, embranquecê-los e odeia a filha, fruto do adultério com o cunhado Elias, sem demonstração nenhuma afetação de remorso.
Ao mesmo tempo, admiti querer um filho branco para vingar-se do marido com quem teve apenas filhos negros, considerados réplicas malditas de Ismael e uma praga a ser exterminada.

Ismael é testemunha dos crimes da mulher e acreditava que esses crimes os uniam ainda mais. Isso fica claro quando, próximo ao final da peça, Ismael diz a Virgínia saber ser ela a assassina dos filhos e que, mesmo assim, nada fez para impedir o ato. Ambos recusavam a mestiçagem, os traços negros na pele. Tal qual na tragédia grega, a maldição atinge a descendência. A mãe de Ismael o teria amaldiçoado por este repudiar a própria cor e ele a culpa por ser negro, problema que tentou disfarçar tornando-se um médico competente e rico. Acreditava que, alcançado status, poderia encobrir o fato de ter a pele negra.

Todas as personagens brancas são cegas. Elias e Ana Maria, fisicamente e Virgínia psicologicamente, exceto o coro, todas as personagens da tragédia são moralmente cegas, em maior ou menor grau.
A cegueira de todos é provocada por Ismael. É a forma que ele encontra de tornar a vida destas pessoas tão escura quanto a sua pele.

Elias, o mensageiro da praga materna, enxerga muito bem as consequências de possuir a esposa branca de seu irmão negro, e não evidencia nenhum receio. Muito ao contrário. Afinal, é uma vingança contra Ismael que, no passado, causara sua cegueira. Porque se uma esposa branca é símbolo de vitória para Ismael sobre a sociedade branca que o menospreza. Virgínia a ser possuída por um homem branco simboliza preterir esse triunfo, principalmente por não ser um ato forçado.
Apesar de ser formalmente bem mais semelhante à tragédia clássica, é difícil organizar Anjo Negro dentro dos padrões trágicos. Ismael também é movido por amor, e esse exagero de amor o faz incorrer em erros ainda mais graves, como o assassinato da filha; mas seu maior erro é o preconceito com sua cor. Se tratar-se Virgínia como heroína, teríamos uma estrutura semelhante à de seu marido; seu erro seria o mesmo, é o preconceito da cor, mas depois do casamento, ele se torna repugnante a ela que, por ódio, mata seus filhos. Mas eles não cometem seus erros sem ter consciência de que os estão cometendo, é eticamente inadequado discriminar alguém por sua cor e eles sabem disso; contudo é difícil considerá-los personagens maus, por que a sociedade em que estão inseridos é fortemente racista o que quase os impele para o erro. Então, volta-se a ter o dilaceramento entre o individual e o social. O indivíduo, no caso Ismael, sabe que tem a mesma capacidade que os brancos, mas a sociedade não acredita nisso. Ismael se embate nesse conflito e para provar que é capaz, se forma em medicina, mas para se valorizar não busca a valorização de sua cor, mas a negação dela; ele passa a sentir branco e agir como tal discriminando os negros; desta forma ele nega o individual para dar lugar ao social.
A mansão erguida sem teto e com muros altos para fugir do mundo real, remete ao Mito da Caverna onde só é possível ter uma imagem muito precária e idealizada do que existe para além dela. O exemplo mais bem acabado dessa analogia está na personagem Ana Maria, que durante toda a sua curta existência não sai da caverna (os muros inclusos), é cega e crê incondicionalmente nas verdades fictícias criadas pelo suposto pai. Ismael, assim como Virgínia, também é exemplo da miopia interpretativa que o isolamento provoca. Afinal, vivem reclusos em seu universo particular, onde nem mesmo o lume das estrelas existe.

A atitude de Ismael de erguer o seu próprio universo numa contraposição àquele profundamente agressivo e injusto que lhe foi empurrado pela sociedade, representa a figura bíblica de Lúcifer (o portador da luz), querubim que teria sido expulso do Céu e caído em profunda escuridão por ter provocado um levante contra a autoridade constituída (Deus). Como Lúcifer, Ismael quer mostrar, em seu isolamento, que foi injustiçado pelo poder vigente e anseia por vingança. Sintomaticamente, a personagem central não admite a presença duma gravura de Cristo em sua casa, solicitada por Virgínia para que ela não veja outro rosto, principalmente com características físicas diferentes das suas. A recusa é veemente, alegando que ninguém branco (cor a que a tradição e a ideologia dominantes tomaram como símbolo de pureza e docilidade) entraria em sua casa.

“Ismael – Não deixo, nem quero... (espantado) Esse Cristo, não; claro, de traços finos...”.

Na Bíblia, em Gênesis narra o princípio do universo e do povoamento da Terra. Em seu capítulo 16, nos versículos 11 e 12, lê-se respectivamente o seguinte: “Disse-lhe também o anjo do Senhor: eis que concebeste, e darás à luz um filho, e chamarás o seu filho Ismael; porquanto o Senhor ouviu a tua aflição”; “E ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos.”. O Ismael bíblico era filho duma escrava nascida no Egito, país habitado por um povo de pele morena. Ora, sabemos que a personagem rodrigueano é filho duma negra. Além disso, o Ismael de Anjo Negro, numa fala de Virgínia, é tido como “(...) tão frio, tão duro. Tem mãos de pedra. (...)”, o que remete às palavras iniciais do versículo 12. A continuidade dessa passagem bíblica possui semelhança com a personagem da tragédia no que se refere ao fato de que ele faz questão de mostrar à sociedade embranquecida que o despreza velada e também explicitamente (“e a mão de todos contra ele”), seu ódio sempre realimentado por essa sociedade.


Ismael e Virgínia são complementares e opostos, como a luz e as trevas. Ela a mentora, ele o executor, ou vice-versa. Ele não deseja uma mulher que se entregue (Ana Maria), mas sim uma que lute e que resista.
Ismael compreende finalmente que nem ele e nem a mulher podem se libertar, pois precisam se amar e odiar eternamente. Entende que de nada adianta possuir uma mulher branca se ela pensa que ele também é branco. É uma posse sem o prazer da vitória não ver estampado o terror nos olhos de sua vítima.
Há, no casal protagonista, uma delícia em produzir um mútuo sofrimento moral, numa mescla de ódios explícitos e utilização do corpo do (a) parceiro (a) como instrumento duma tortura que atinge também o (a) torturador (a). Assim, o prazer do negro Ismael quando se relaciona sexualmente com sua esposa branca está muito mais vivo no fato de saber que ela sente repulsa por sua negritude; que os gritos dela na cama estão mais próximos do horror ao estupro que deu motivou o casamento do que do orgasmo. Ao mesmo tempo, Virgínia se permite possuir e fecundar por ele para, posteriormente, destruir os frutos do casamento, os filhos negros. Numa falsa contradição, é essa necessidade que ambos possuem de produzir sofrimento no outro e a si mesmos que causa atração entre eles.

“Ismael – Não impedi porque teus crimes nos uniam ainda mais; e porque meu desejo é maior depois que te sei assassina - três vezes assassina. Ouviste? (...)”.

É uma cumplicidade mórbida que ultrapassa as mágoas e barreiras raciais e que se legitima em dois gestos exemplares no fim do terceiro ato: no aprisionamento da filha Ana Maria, branca, no mausoléu de vidro; na relação sexual que se segue, oculta pelo coro de negras.
A eternidade do amor trágico é simbolizada pela eterna fertilidade. No quarto apertado como um túmulo serão gerados filhos para à morte, enquanto o casal tem vida eterna. É a configuração de um pacto demoníaco feito com o sangue dos dois. É a perpetuação eterna da tragédia, que nada poderá modificar. A não ser que Virgínia ame um filho preto. Então, a paixão que se consome indefinidamente nas chamas da morte das crianças passará a ser amor verdadeiro, que perecerá com a morte dos pais, mas não, como diz o coro: “Vosso amor, vosso ódio não têm fim neste mundo!”

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