(1912-1980)
I – AUTOR:
“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico (desde menino).”
“Sou um homem que cultiva velhos sentimentos de culpa. Lembro-me de coisas que fiz aos sete, oito anos. Não tenho ilusões. O canalha é uma dimensão que existe em mim ou em qualquer um. Eis que, nas minhas insônias, me pergunto: - O que é que eu fiz?”
Nelson Rodrigues nasceu no Recife - PE, em 23 de agosto de 1912, quinto filho dos catorze que o casal Maria Esther Falcão e o jornalista Mário Rodrigues puseram no mundo.
Seu pai, deputado e jornalista do Jornal do Recife, mudou-se para o Rio de Janeiro, em virtude de problemas políticos e empregou-se como redator parlamentar do jornal Correio da Manhã. Em julho de 1916, d. Maria Esther e filhos chegam ao Rio de Janeiro num vapor do Lloyd.
Nelson cresceu vendo as vizinhas gordas na janela, fiscalizando os outros moradores, solteironas ressentidas, viúvas tristes, com as pernas amarradas com gazes por causa das varizes. Naquela época os nascimentos eram assistidos por parteiras de confiança e eram feitos em casa. Os velórios também eram feitos em casa, usava-se escarradeira e o banho era de bacia. Nelson registrava em sua memória esse cenário que mais tarde fariam parte de sua obra literária.
Em 1920 Nelson venceu seu primeiro concurso literário. A professora havia pedido uma redação de tema livre e Nelson escreveu uma história de adultério. O marido chega a casa, entra no quarto, vê a mulher nua na cama e o vulto de um homem pulando pela janela e sumindo na madrugada. O marido pega uma faca e liquida a mulher. Depois, ajoelha-se e pede perdão.
Nesse período, Nelson influenciado por seus irmão mais velhos, passou a ter a leitura como passatempo, saindo rapidamente do Tico Tico para romances mais "pesados" como Rocambole, de Ponson du Terrail, Epopéia do Amor, Os Amantes de Veneza e Os Amores de Nanico, de Michel Zevaco, O Conde de Monte Cristo e as Memórias de um Médico, de Alexandre Dumas, os fascículos de Elzira, a Morta-Virgem, de Hugo de América, e outros mais. Mudavam os autores, mas no fundo era uma coisa só: a morte punindo o sexo ou o sexo punindo a morte.
Mário Rodrigues adquire prestígio junto a Edmundo Bittencourt, do Correio da Manhã e foi nomeado diretor do jornal. Na época, Nelson visitava o pai na redação do jornal.
Em 1924, envolveu-se numa discussão entre Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o que custou a Mário Rodrigues um ano de cadeia e, o Correio da Manhã foi silenciado pelo governo por oito meses.
Nelson inicia sua carreira jornalística em 29 de dezembro de 1925, como repórter de polícia, ganhando trinta mil réis por mês. Tinha treze anos e embora fosse filho do patrão, teve que comprar calças compridas para impor respeito aos colegas de redação. O autor impressiona os colegas com sua capacidade de dramatizar pequenos acontecimentos. Especializou-se em descrever pactos de morte entre jovens namorados, tão constantes naquela época.
No ano de 1926 foi expulso do Colégio Batista, na Tijuca, na segunda série do ginásio, por rebeldia. Nelson vivia contestando seus professores, em especial dos de Português e História e apresentava uma indolência melancólica, ficando depressivo, suspirando pelos cantos e dizendo: "Eu sou um triste!".
Mário ao ser libertado discute com Edmundo, acaba demitindo-se e fundando o seu próprio jornal, A Manhã.
O indomável escritor cria um tablóide de quatro páginas intitulado Alma Infantil, nascido da troca de cartas com seu primo Augusto Rodrigues Filho, que não conhecia pessoalmente e que morava no Recife. Ele queria ser como seu pai, um espadachim verbal. Depois de cinco números e muitos ataques a políticos pernambucanos e a cariocas, Nelson desiste do tablóide.
Em 1928, o autor e seus irmãos mais velhos trabalhavam no jornal A Manhã: Milton era o secretário, Roberto ilustrava algumas reportagens, Mário Filho começou como gerente, indo depois para a página literária e depois a de esportes. Nelson havia abandonado desde 1927 a terceira série do ginásio no Curso Normal de Preparatórios. Nunca mais voltou à escola, apesar do esforço desenvolvido por seu pai.
Tendo garantido uma coluna assinada na página três do jornal — a página principal — o escritor publica seu primeiro artigo, em 07 de fevereiro de 1928. Tinha o título de "A tragédia de pedra...", com as solenes reticências. Depois vieram "Gritos Bárbaros", "O elogio do silêncio", "A felicidade", e "Palavras ao mar", todos de grande sensibilidade poética. Seu lado monstro só apareceu na crônica de 16 de março, "O rato..." (com as famosas reticências), em que ele conta como viu um rato morto, achatado por um carro, defronte à Biblioteca Nacional. Para desespero de seu pai, começa a "bater" em Ruy Barbosa. No segundo artigo em que esculhambava o "Águia de Haia", antevendo o que aconteceria, Nelson achou que se safaria de seu pai se saísse bem cedo de casa, antes que o "velho" lesse o jornal. Enganou-se. O castigo foi mais duro do que ele imaginava: foi rebaixado, saindo da página três e retornando à seção de polícia, onde trabalhou nos cinco meses seguintes.
Mal teve tempo de voltar à terceira página e o pior acontece. O jornal, mal administrado, está cheio de dívidas e a intervenção do novo dono em seus artigos faz com que ele e a família deixem o jornal.
Em seguida, Mário Rodrigues lançou seu novo jornal de grande sucesso: Crítica, que chegou a ter uma circulação de 130.000 exemplares.
Em 26 de dezembro de 1929 o jornal estampa matéria, na primeira página, sobre o desquite de Sylvia e José Thibau Jr. Foi à fórmula encontrada para o diário não sair sem assunto, já que era o primeiro dia após o natal. No dia 27, pela manhã, Sylvia entra na redação da Crítica procurando por Mário Rodrigues. Não o encontrando, pede para falar com seu filho Roberto e dá-lhe um tiro no estômago. Nelson viu e ouviu aquilo tudo. Com dezessete anos e quatro meses, era a primeira cena de violência brutal que presenciava. Seu irmão faleceu no dia 29.
Apenas 67 dias após a morte do filho, Mário Rodrigues sofre, aos 44 anos, uma trombose cerebral e faleceu.
Estoura a revolução, em 3 de outubro, no Rio Grande do Sul, Minas e quase todo o Nordeste. Crítica, num erro de avaliação, continua a atacar os rebeldes. Em 24 de outubro Washington Luís é deposto e a turba saiu cedo para acertar as contas com os jornais do velho regime. As redações e oficinas de diversos jornais são invadidas e empasteladas. Dentre elas, a do jornal dos Rodrigues. De todos eles só um não voltaria a circular: Crítica. Isso sem contar que Milton e Mário Filho foram novamente presos, porém logo libertados.
Irineu Marinho havia fundado o jornal O Globo em 1925, mas, apenas 21 dias após o jornal circular pela primeira vez, morreu de enfarte. Roberto Marinho, filho de Irineu, era o sucessor natural, mas achou-se muito inexperiente para comandar um jornal. Roberto Marinho convida Mário Filho para assumir a página de esportes de O Globo. Mário aceita nas condições de que pudesse levar seus irmãos Nelson e Joffre.
Nelson era chamado de "filósofo" pelos colegas de O Globo, tinha um aspecto desleixado, um só terno e não vestia meias por não tê-las.
Em 1932 o autor teve sua carteira assinada em O Globo, um ano após começar a trabalhar naquele diário, com um ordenado de quinhentos mil réis por mês. Entregava todo o dinheiro para sua mãe e recebia uns trocados de volta para comprar seus cigarros (média de quatro carteiras por dia). Em compensação, economizava, pois voltava de carona com o "Dr. Roberto" para casa. Para arranjar mais algum dinheiro, trabalhou como redator da firma Ponce & Irmão, distribuidora no Rio dos filmes da RKO Radio Pictures. Criava textos para os anúncios dos filmes nos jornais.
Nesse meio tempo, tinha suas paixões: por Loreto Carbonell, argentina de olhos azuis, bailarina do Municipal; por Eros Volúsia, filha da poetisa Gilka Machado, também bailarina, linda e jovem morena. Depois vieram: Clélia, uma estudante de Copacabana e Alice, professora de Ipanema.
O autor com apenas vinte e um anos, foi diagnosticado de tuberculose e vai, então, para Campos do Jordão - SP, local recomendado para tratamento, sozinho, sem saber se voltaria.
Foi a primeira de uma série de seis internações. Roberto Marinho, sabendo das dificuldades da família, continuou pagando seu ordenado normalmente. Nelson passou 14 meses no Sanatório, de abril de 1934 a junho de 1935. Durante esse período só os irmãos Milton e Augustinho foram visitá-lo uma única vez. Compensava a ausência de parentes e amigos com cartas, muitas delas para Alice, a professorinha.
Contam que, em 1935, um doente propôs encenarem um teatrinho. O autor foi encarregado de escrever a comédia, um "sketch" cômico sobre eles mesmos. Logo nas primeiras cenas a platéia começou a gargalhar e, com isso, surgiram os ataques de tosse que quase fizeram vítimas. Foi à primeira experiência "dramática" de Nelson.
O autor pede ao secretário do jornal O Globo que o transfira da página de esportes para a de cultura. Queria escrever sobre ópera. Com a ajuda de Roberto Marinho consegue a transferência e começa arrasando a "Esmeralda", ópera brasileira do compositor Carlos de Mesquita. Foi sua única incursão nessa área.
Em 1936, a terrível doença atacou seu irmão Joffre e levou-o a óbito.
Em 1937 conhece Elza Bretanha, apadrinhada do diretor administrativo e secretária de Henrique Tavares, gerente de O Globo Juvenil.
Nelson se aproxima de Elza, expõe sua situação de penúria de saúde e financeira, e fala em casamento. Consultada sua família, não encontrou objeção. Afinal, já tinha 25 anos. A mãe de Elza, D. Concetta, siciliana das boas, quase teve um ataque, tendo a honra de ter sido acompanhada nisso por Roberto Marinho. Ele disse a Elza: "Está sabendo que vai se casar com um rapaz muito inteligente e de grande talento, mas pobre, absolutamente preguiçoso e doente? Sua mãe está coberta de razão!" Mesmo assim marcaram para se casar no dia do aniversário de Elza: 08 de maio de 1939. Se fosse preciso, fugiriam. Porém, em 13 de maio, mandou para a noiva um recado que dizia: "Amor, estou com a alma cheia de pressentimentos tristes". Era a tuberculose que o atacava novamente.
Nos quatro meses em que ficou internado, Nelson mostrou seu lado ciumento. Vivia atormentado com isso e, na volta, acabou desfazendo o noivado. Mas o coração falou mais forte do que o infundado ciúme e marcaram novamente o casamento, contrariando a mãe da noiva e o patrão de ambos.
No dia 29 de abril de 1940, sem externar qualquer anormalidade, Elza saiu para trabalhar, foi para a casa de uma amiga onde trocou de roupa e casou-se no civil, diante do juiz. Depois, foram comemorar tomando uma média com torrada na leiteria "Palmira". Voltaram para O Globo Juvenil e trabalharam normalmente. Haviam acertado, por vontade de ambos, que a noite de núpcias só aconteceria após o casamento religioso.
Os irmãos de Elza ficaram sabendo e falaram até em matá-lo. Nelson, com a alma leve, alugou uma casinha no Engenho Novo. Era sua volta ao subúrbio. Compraram móveis de segunda mão e Mário, o irmão, lhe deu de presente a cama de casal e a penteadeira. Finalmente D. Concetta dá o "de acordo" e o casamento religioso se realiza, em 17 de maio, após o autor, com quase 28 anos, ter sido batizado, fazer a primeira comunhão e estudado o catecismo, como manda a santa madre Igreja.
Após seis meses de casamento, certa manhã Nelson acorda e comunica a Elza que estava ficando cego, tratava-se de uma sequela da tuberculose. Nelson procurava uma saída para seu aperto financeiro. Elza estava grávida e seu salário estava estagnado nos 500 mil réis mensais. Um dia, ao passar em frente ao Teatro Rival, viu uma enorme fila que se formava para assistir "A família Lerolero", de R. Magalhães Júnior. Alguém comentou: "Esta chanchada está rendendo os tubos!" Uma luz se acendeu na cabeça do autor: por que não escrever teatro?
No meio do ano de 1941 escreveu sua primeira peça, “A mulher sem pecado”. Nessa época as peças ficavam, no máximo, duas semanas em cartaz. Nelson oferece sua peça para dois grandes artistas de então: Dulcina e Jaime Costa, mas eles a recusam. O autor, necessitando de dinheiro, começou a se mexer: submeteu a peça a Henrique Pongetti, Carlos Drummond de Andrade e ao crítico Álvaro Lins. Mas não conseguiu encená-la.
Nasce Joffre, seu primeiro filho. O autor, por ordens médicas, não podia ficar perto do filho. Descobre que foi premiado com uma úlcera do duodeno. O médico lhe prescreve regime alimentar e manda que ele pare de tomar café e de fumar, coisa que nunca fez. Depois de muita luta, em 09 de dezembro de 1942, “A mulher sem pecado” foi levada à cena pela "Comédia Brasileira", com direção de Rodolfo Mayer, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Lá ficou por duas semanas e não teve repercussão nenhuma perante o público. Alguns críticos e amigos elogiaram, e isso bastava ao autor.
Em janeiro de 1943 Nelson escreve sua segunda peça teatral: “Vestido de Noiva”. Elza, sua mulher, fez mais de vinte cópias datilografadas para serem entregues a jornalistas, críticos e amigos. O primeiro a receber foi Manuel Bandeira. Ele gostou como tantos outros. Mas, todos diziam que era uma peça que exigia cenário complexo e teria custo muito alto. Falou então com um polonês recém-chegado ao Brasil: Zbigniew Ziembinski que após ler a peça, disse: "Não conheço nada no teatro mundial que se pareça com isso". O autor conhece o diretor e tem início a epopéia do grupo "Os Comediantes". No dia 28 de dezembro de 1943, os portões foram abertos e 2.205 espectadores viram a peça e quando a peça chegou ao fim, o silêncio foi total na platéia. Nos bastidores ninguém sabia o que fazer. Ziembinski, entre palavrões em polonês, manda subir o pano. Os artistas surgem e o aplauso é ensurdecedor. O diretor aparece e o teatro delira. Alguém grita na platéia: "O autor, o autor". Nelson estava escondido em um camarote, lutando contra a dor de sua úlcera, e não foi visto por ninguém. Disse, depois, que sofreu naquele momento, sentindo-se "um marginal da própria glória".
Yoná Magalhães como Alaíde em montagem de 1965 da peça Vestido de Noiva. Foto Carlos.
Apesar da fama que a peça lhe deu continuava sendo mal pago pelo O Globo Juvenil. Em fevereiro de 1945 é contratado por David Nasser, de O Cruzeiro, cinco contos de réis, mais de sete vezes o que lhe pagava Roberto Marinho.
Nelson foi para seu novo emprego: diretor de redação das revistas Detetive e de O Guri. Sempre procurando fazer "bicos" que permitissem um ganho extra e sabendo que Freddy Chateaubriand estava querendo comprar um folhetim francês ou americano para O Jornal, Nelson ofereceu-se para escrever o folhetim. Daí nasceu “Suzana Flag” e “Meu destino é pecar”. Apesar de estar ganhando um extra por capítulo, o autor não gostava que soubessem que escrevia com pseudônimo feminino. Quando a história terminou, o sucesso foi tão grande que foi lançado um livro pelas Edições O Cruzeiro. Calcula-se que a venda tenha ultrapassado a trezentos mil livros. Isso provocou o começo de outro folhetim, “Escravas do amor”, cujo sucesso foi também retumbante.
Em março de 1945 é atacado, novamente, pela tuberculose. E nasceu o seu segundo filho, Nelsinho.
Começa a escrever, então, “Álbum de família”. Em fevereiro de 1946 o texto é submetido à censura federal e a peça foi proibida de ser encenada. A peça só foi liberada em 1965 e levada pela primeira vez em julho de 1967.
Outro sucesso de 1946 foi à publicação de “Minha Vida”, uma "autobiografia" de Suzana Flag.
Os diretores teatrais Zigmunt Turkow e Ziembinski, com Nelson Rodrigues no centro, durante ensaio de 'A Mulher Sem Pecado', 1946
ANJO NEGRO estréia em abril de 1948. Como sempre, gerou comentários polêmicos.
Em seguida, “Senhora dos afogados” é proibida em janeiro de 1948. Com duas peças interditadas, o autor luta como um mouro para tentar liberá-las. Não conseguindo, escreve “Dorotéia”, em 1949, que muitos consideram seu melhor trabalho teatral.
Ainda em 1948 é publicado mais um folhetim, “Núpcias de fogo”, ainda como Suzana Flag.
Em 1949 Freddy Chateaubriand vai comandar o jornal "Diário da Noite" e leva Nelson consigo. Para trás fica Suzana Flag, que o autor não agüentava mais. Em seu lugar surgiu “Myrna”, a nova máscara feminina do biografado. A diferença é que Myrna respondia a cartas de leitoras.
Em 1951 o autor transfere-se para a Última Hora e "A vida como ela é...", em junho Nelson estréia uma nova peça, "Valsa nº. 6", um monólogo estrelado por sua irmã Dulcinha e relançou Suzana Flag em "O homem proibido".
Em 08 de junho de 1953 estréia no Teatro Municipal do Rio a peça "A falecida". Chamada de "tragédia carioca" era, na verdade, uma comédia. Foi escrita em 26 dias. Nessa época Nelson mantinha um romance com Yolanda, secretária de um radialista da rádio Mayrink Veiga. Esse caso durou cinco anos e rendeu três filhos: Maria Lúcia, Sônia e Paulo César, que ele não reconheceu como seus. Com tudo isso acontecendo, o autor produziu o último folhetim de "Suzana Flag", que se chamou "A mentira" e foi publicado no semanário "Flan", lançado por S. Wainer.
"Senhora dos Afogados" é encenada no Rio, em 1954, com direção de Bibi Ferreira. A platéia, ao final, dividiu-se e uma parte gritava "GÊNIO" e a outra, "TARADO". O autor não aguentou e reagiu à platéia, gritando do palco: "BURROS! BURROS!".
Em março de 1955 a família Rodrigues ganha uma ação contra o governo de indenização pela destruição do jornal "Crítica".
"Perdoa-me por me traíres" teve, também, problemas de liberação com a censura, em 1957 e sofreu cortes. Outra surpresa ocorreu na estréia: Nelson interpretava o personagem Raul. Mais uma vez as vaias e os que aplaudiam pediam para o autor falar. Ele não se fez de rogado: "BURROS! ZEBUS!". Ninguém esperava, mas aconteceu um tiro! Na discussão entre prós e contras, o vereador Wilson Leite Passos sacou de seu revólver e deu um tiro para amedrontar alguém que o havia chamado de "palhaço". Tumulto geral. No dia seguinte a censura proibiria a peça.
"Viúva, porém honesta" estreou em 13 de setembro do mesmo ano. Dizem que nela o autor procurava atingir aos críticos que atacaram "Perdoa-me por me traíres". Um dos atores era Jece Valadão, cunhado do autor.
Nelson Rodrigues como ator de 'Perdoa-me por me Traíres' ao lado de Léa Garcia,
A atriz Sônia Oiticica e o dramaturgo Nelson Rodrigues na peça 'Perdoa-me por me Traíres', 1957
Dercy Gonçalves estréia "Dorotéia" em São Paulo. Ficou um mês em cartaz. Nelson não gostava dos "cacos" que a atriz introduzia no texto.
Em 1958 estréia "Os sete gatinhos", também com Jece Valadão no elenco. Apesar de malhar o presidente da República da época, Juscelino Kubitschek, Nelson vai até ele pedir um emprego. Consegue um cargo de tesoureiro em um instituto de aposentadoria e pensões (IAPETEC), mas é reprovado no exame de vista. Pede, então, a vaga para Elza. Juscelino queria agradar Mário Filho e a nomeia.
De agosto de 1959 a fevereiro de 1960, centenas de milhares de leitores acompanharam a história de “Engraçadinha” e sua família em "Asfalto Selvagem". Foram publicados dois livros, intitulados "Engraçadinha — seus amores e seus pecados dos doze aos dezoito", "Engraçadinha — depois dos trinta" e em 1961, o "Boca de Ouro" com Milton Morais no papel de Raul, estréia no Rio com grande sucesso.
Ainda no final de 1960 o autor entrega a Fernanda Montenegro e a seu marido Fernando Tôrres a peça "Beijo no asfalto".
Apresentado por sua irmã Helena, Nelson conhece Lúcia Cruz Lima, que logo passa a ser sua namorada. Só que desta vez a coisa era séria. Casada, mãe de três filhos, ela logo se apaixona, deixa o marido e volta a viver com os pais. Ele demora dois anos para se separar de Elza. Seus amigos Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Cláudio Mello e Souza ficam chocados. Nos primeiros meses de 1963 nada impedia a separação do autor. Já havia alugado um pequeno apartamento e Lúcia estava grávida. Após um almoço de despedida, onde Elza tentou suicidar-se, ele partiu de malas e bagagens para o apartamento de sua mãe. Ia ficar lá uns tempos até acertar tudo.
Na marquise do Teatro Maison de France, no Rio, piscava o título da nova peça de Nelson: "Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária". O autor só não se conformou de Otto não ter ido assistir ao espetáculo.
Os atores Tereza Rachel e Carlos Alberto em 'Bonitinha, mas Ordinária', 1962.
O ator Fregolente (centro da foto) na peça 'Bonitinha, mas Ordinária', de 1962.
Lúcia cuidou da aparência do escritor, já que ele participava desde 1960 do programa esportivo "Grande resenha Facit" na TV Rio, por obra e graça de Walter Clark, e era, portanto, um artista! Nasceu Daniela, a filha, que perdeu minutos de oxigenação no cérebro até que resultou numa paralisia cerebral e nunca conseguiu andar ou articular um movimento, além de ser irreversivelmente cega.
Nelson escreveu para Walter Clark a primeira novela brasileira de todos os tempos: "A morte sem espelho". Apesar do grande elenco: Fernanda Montenegro, Fernando Tôrres, Sérgio Brito (que também respondida pela direção), Ítalo Rossi, Paulo Gracindo (que estreava na TV), música de Vinícius de Moraes, não foi autorizada a sua apresentação às oito e meia da noite. Foi empurrada para o horário das vinte e três e trinta.
Ficou claro nesse episódio que o problema era o nome do autor. Na sua novela seguinte, "Sonho de Amor", em 1964, seu nome apareceu, mas ela foi anunciada como “uma adaptação de "O Tronco do Ipê”', de José de Alencar".
Sua última novela para a TV foi "O Desconhecido", com direção de Fernando Tôrres e Jece Valadão, Nathalia Timberg, Carlos Alberto, Joana Fomm e outros mais, que só foi liberada graças ao poder de convencimento de Walter Clark.
Depois de ser renegada por muitas atrizes, "Toda nudez será castigada" estréia no dia 21 de junho de 1965 e é um sucesso. Os artistas são aplaudidos em cena aberta, os ingressos são avidamente disputados e fica em cartaz por seis meses no Teatro Serrador e em excursão pelo Brasil.
Em 1966 o autor muda-se, a convite de Walter Clark, para a TV Globo. Em situação financeira apertada, como sempre, aceitou até aparecer como "tradutor" dos romances de Harold Robins, publicados pela Editora Guanabara. A TV Globo era a "lanterna" na preferência dos telespectadores naquela época.
Nessa época Carlos Lacerda pediu-lhe um romance. Ele escreveu "O Casamento". Era um carnaval de incestos e perversões às vésperas de um casamento. Vendeu-o para Alfredo Machado, da Editora Eldorado. O livro vendeu 8.000 exemplares nas primeiras duas semanas de setembro de 1966, empatando com as vendas do novo romance de Jorge Amado, "Dona Flor e seus dois maridos". A morte de seu irmão, Mário Filho, impediu por algum tempo que ele fizesse a divulgação da obra. Quando reanimou, o livro teve sua venda proibida pelo ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva. Sua venda foi liberada novamente em fevereiro de 1967.
Indignado com o apoio dado pelo jornal "O Globo" à proibição da venda de seu romance, Nelson começa a estudar sua mudança para o "Correio da Manhã". Avisa que não pode deixar a TV Globo e, para sua alegria, é informado que não precisaria deixar nem o jornal "O Globo". O que o "Correio" queria dele eram as suas "Memórias". A estréia ocorreu em 18 de fevereiro de 1967 em grande estilo. Fez um sucesso enorme.
Depois de muita insistência de Nelson e Otto, finalmente libera "Álbum de Família", que estava interditada desde 1946. Só em julho de 1967 foi levada à cena e, apesar do carrossel de incestos, foi aplaudida no final. Já não tinha o impacto de tempos atrás.
As atrizes Tânia Scher, Carmen Palhares, Ana Rita, Thelma Reston, Diana Antonaz e Ana Maria Magalhães em montagem da peça Os Sete Gatinhos de 1967.
Ele volta ao jornal "O Globo" passa a publicar "À sombra das chuteiras imortais" e "As confissões" (já que não podia usar "Memórias").
Em 1970 vai morar com Helena Maria (35 anos mais nova que ele), que trabalhava com ele no jornal. Em 1972 começa nova luta: seu filho, Nelsinho é um dos terroristas mais procurados pelas forças armadas. Dois anos antes, quando seu filho já vivia na clandestinidade, Nelson consegue com o presidente da República, Gal. Medici, que ele saísse do país. Nelsinho não aceita o privilégio. O drama de Nelsinho se desenrolava longe dos olhos do autor. Apesar disso, face a seu prestígio e contatos com os militares, era muito procurado para ajudar pessoas em apuros com o regime militar. De 1969 a 1973 ele teve participação ativa na localização, libertação ou fuga de diversos suspeitos de crimes políticos. Após a prisão de Nelsinho, começa a luta para localizá-lo e procurar mantê-lo vivo, pois a tortura corria solta.
Nelson escreve "Anti-Nelson Rodrigues" no final de 1973. Em 1974, a peça fazia bela carreira no teatro do Serviço Nacional do Teatro. O autor faz alguns exames e é levado de imediato para São Paulo para ser operado de um aneurisma da aorta. Passou por duas operações, quase morreu, retornou ao Rio e, apesar de terminantemente proibido pelo médico, voltou a fumar. Em abril de 1977 é internado com uma arritmia ventricular grave e nova insuficiência respiratória. Elza volta para casa e voltam a viver juntos. Na verdade, já se encontravam há tempos quase todas as noites no restaurante "O bigode do meu tio", em Vila Isabel, de propriedade de Joffre.
O autor escreveu sua grande e última peça "A Serpente" em meados de 1979, pouco antes de seu filho Nelsinho iniciar greve de fome com treze companheiros, os últimos presos políticos cariocas, com a finalidade de transformar a anistia ampla em anistia total e irrestrita. Finalmente, no dia 23 de agosto, dia do aniversário do autor, Nelsinho é autorizado a deixar a prisão e assistir ao nascimento da filha Cristiana. No dia 16 de outubro Nelsinho recebeu a liberdade condicional, mas não pode ver seu pai: estava inconsciente no hospital Pró-Cardíaco.
Nelson Rodrigues faleceu na manhã do dia 21 de dezembro de 1980, um domingo. No fim da tarde daquele dia ele faria treze pontos na loteria esportiva, num "bolo" com seu irmão Augusto e alguns amigos de "O Globo". Dois meses depois, Elza cumpriu o seu pedido de, ainda em vida, gravar o seu nome ao lado do dele na lápide, sob a inscrição: "Unidos para além da vida e da morte. É só".
DIVISÃO DAS PEÇAS:
Sábato Magaldi dividiu as peças de Nelson Rodrigues em três grandes grupos:
PEÇAS PSICOLÓGICAS: A mulher sem pecado (1941); Vestido de noiva (1943); Valsa nº 6 (1951); Viúva, porém honesta (1957); Anti-Nelson Rodrigues (1973).
PEÇAS MÍTICAS: Álbum de família (1945); Anjo Negro (1947); Senhora dos afogados (1947); Dorotéia (1949).
TRAGÉDIAS CARIOCAS: A falecida (1953); Perdoa-me por me traíres (1957); Os sete gatinhos (1958); Boca de ouro (1959); Beijo no asfalto (1960); Otto Lara Resende ou Bonitinha mas ordinária (1962); Toda nudez será castigada (1965); A serpente (1978).
Esta divisão não é estanque. Como o próprio crítico observou, as peças psicológicas contem elementos míticos e das tragédias cariocas. As peças míticas lidam com a análise psicológica e não deixam de revelar a realidade urbana do Rio de Janeiro. E, finalmente, as denominadas tragédias cariocas incorporam o mundo psicológico e mítico das obras anteriores.
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