sábado, 13 de novembro de 2010

SE NÃO


Ele surgia sem ninguém desejar.
Se sorria, nunca vi.
Seu rosto trazia um mapa da vida; mas, sem história ou geografia, sem idade ou saudades, muito menos poesia - impossível de contextualizar.
Seu olhar indiferente e cabisbaixo não denunciava nem encarava, seguia inerte e fixo entre o acaso e o desejo, procurando algo, sem saber o que buscar.
Errante andarilho... Sem passado ou presente; sem norte nem oriente; passageiro do instante; matéria flutuante; semente e colheita e só servia para assustar!
E, conseguia!!!!
Era o ser mais respeitado entre as crianças desobedientes de minha época e isso, incluía-me. Além de ser o sensor pedagógico de minha mãe, o seu infalível educador!!!
Carregava um saco de estopa às costas, talvez, toda bagagem de sua existência. Diziam que eram brinquedos roubados de meninos malcriados. Talvez....não tenho certeza!


Se ele tinha um nome, família, confesso que desconheço. Conhecia-o como o “homem do saco”, vivia só, embaixo da ponte da linha do trem.
E, como eu o temia! Muito mais que os castigos maternos e as prova da professora de português.
Ele era livre, estranho, maltrapido, pele clara, cabelos longos e loiros, barba sem fazer, enfim, um caminhante sem esmo que com sua simples presença metaforizava um enorme perigo.
Bastava a sua aparição que eu recolhia meus brinquedos e tornava-me um anjo.
Sua existência disputava opiniões. Alguns afirmavam que fora muito judiado na infância e que nunca havia ganhado um presente, renegou sua família e agora, vingava-se das crianças desobedientes, roubando-lhes seus brinquedos. Outros, que se tratava de um psicopata que atraía crianças através dos brinquedos para o seu esconderijo.
Às vezes, eu o observava escondido, mas ir até o seu esconderijo; nunca, ousei.
Nutria por esse incógnito uma mistura de compaixão, medo, mistério e ódio.
Será que depois de adulto brincava como criança? Acumulava brinquedos para doá-los? Fazia por pura maldade? Correção? Violência sexual?
Na época eu era criança para todas essas divagações e meus questionamentos sintetizavam entre o Papai Noel dos Pobres ou o Capeta vingador???!!!!
Na verdade, a única certeza que eu tinha era que “o homem do saco” não só roubava os brinquedos, mas, também, a minha infância, o meu Herodes!
Esse inquiridor amputava o meu livre arbítrio, sucumbia-me às suas ordens e alegorizava a minha contra existência, impossibilitando-me de ser o que eu realmente era ou que eu queria ser.
O pior é que esse ser queria incriminar-me de um erro que eu não havia cometido, embutia-me uma culpa que não era minha e, que, eu desconhecia.
Se não tirar notas altas....se não obedecer aos seus pais...se brigar com suas irmãs....se não tomar banho...se não comer tudo.....
Confesso que rotulei “O Homem do Saco” como “Se Não” e tornei-me seu inimigo.
Minha educação alicerçava-se nas escritas da bíblia, nas lições de minha professora, nas ordens de minha mãe, na cinta de meu pai e na disciplina do “Se Não”.
Nunca me esqueci desse desconhecido. Durante toda a minha vida, ele foi o meu grande sensor.
Passados alguns anos, já homem “feito” e formado em Medicina, fui informado que um andarilho fora morto por apedrejamento.
Chocado com o acontecimento, dirigi-me até ao local e lá, para minha surpresa, encontrei estendido sobre um madeiro com os braços abertos como se pedisse um abraço, feito cruz, um ancião e ao seu lado, reconheci dois carrinhos e uma bola que um dia, foram meus.

Nenhum comentário: