sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

MANÉ FALA Ó


Ele chegava silencioso, às vezes, a gente nem percebia, parecia assombração. Mas, quando estava pertinho, era só correria.
Emparelhava sua velha bicicleta ao nosso lado e dizia:
- Ó!
Ah, se não respondêssemos...
Ele pedalava, pedalava, incansavelmente, até a pessoa corresponder a sua saudação.
E, como era persistente. Seguia bondes, atravessava bairros inteiros, não desistia...
Diziam que era violento e se não retribuíssem seus cumprimentos, era capaz de crueldades.
Disso, eu não tinha certeza, não! Pois, nunca me arrisquei.
Contavam-me.
A única verdade é que quando ele se aproximava, desesperadamente, eu gritava:
- Ó! E, em seguida, acrescentava mais dois Ó, Ó para não restar dúvida em sua confirmação.
Então, ele partia e eu sentia-me confortavelmente aliviada.
Admito que, eu desconhecia sua fisionomia. Meu medo não permitia reparar.
Desconfio que, ele sorrisse em retribuição a saudação...
Era conhecido por Mané Fala Ó, grande figura popular de Campinas.
Poucos conheciam seu passado e até o seu presente. Só era notável o momento de sua aparição, como diria Guimarães Rosa, “no seu repente da amedrontação”.
Não sei exatar sua idade, perpassava outras gerações.
Hoje, recordo-me que seu Ó não trazia tonalidade de maldade, mas, de suplício.
Como se buscasse recepção, aceitação e reconhecimento. Ou seria sua maneira de “ser” e “estar presente” evitando incomodação?
Talvez. Só sei que, Mané Fala Ó surgia, apagava-se e não deixava saudades, nem rastros.
O pior é que ele incomodava, principalmente àqueles que são desprezíveis do lirismo essencial.
Mané Fala Ó e sua bicicleta percorriam as pacatas ruas da Vila Industrial, nas décadas de 40 e 50.
A Vila nascera às margens das ferrovias Mogiana e Paulista. Era repleta de aposentados que se divertiam com o jogo de dama espalhado na praça e que, já não se assustavam com a presença repentina do Mané Fala Ó.
Nós, filhos da ditadura, criados sobre o teto da repressão, dividíamos em dois grupos: os rebeldes e os calados ou medrosos. Enfim, àqueles que apedrejavam o Mané Fala Ó e, o outro, que compartilhava com sua dor.
Confesso que eu fazia parte “do outro” e isso, não me isentava da culpa de ser ausente.
Um dia desapareceu uma menina do bairro.
A notícia foi logo se alastrando.
Calou-se o rádio, encerrou-se o jogo, desligaram a panela de pressão, trancaram janelas e portas com medo do sequestrador. E, em poucos minutos, reuniram-se na pracinha da Vila, polícia, vizinhos, amigos, inimigos, curiosos e parentes.
Grupos de pessoas conversavam baixinho, disfarçando a preocupação diante da família; outro, com extrema insensatez, especulava o que pior teria acontecido; o grupo da esquina, culpava o governador, o prefeito, a polícia, o salário, a educação; algumas mulheres puxavam o terço e muitos choravam.
Cada um à sua maneira estava entristecido e queria demonstrar sua solidariedade. Entre choros, rezas, velas, boatos, palpites, vasculharam todos os lugares e nada.
Até que alguém se lembrou do casebre de Mané Fala Ó.
Olhares tenebrosos cruzaram-se.
Lembro-me de ter ouvido a avó da menina balbuciar: - Meu Deus, não permita essa desgraça!
Logo, uma comitiva de voluntários devidamente armados de pedaços de pau, pedras, prontificou-se a ajudar o resgate e dirigiu-se ao local.
Eu, de longe, calada, observava o afrontamento.
Não chamaram, nem bateram a sua porta. Foram, logo, arrombando o paupérrimo casebre.
Lá, assustado e encolhido num canto escuro no meio dos entulhos, estava Mané Fala Ó, que sem entender a razão da visita e sem ter nada dizer, levantou-se, olhou para todos e disse um sonoro:
“- Ó!”
Quando vi aqueles olhos sem brilho e indefeso, senti vontade de largar a mão de meu pai, correr até o Mané Fala Ó, abraçá-lo, protegê-lo, consolidar-me com ele.
No entanto, assisti passivamente amarrarem aquele coitado que não atinava nada e que tudo permitia, e, o empurrarem no Camburão.
De dentro do carro da polícia, Mané deu uma última olhada para sua bicicleta, àquela que foi sua única amiga e companheira, e partiu.
Aos poucos, a rotina retornou e os grupos foram se dispersando carregando para seus lares suas verdades e conclusões.
Horas depois, a menina apareceu.
Estivera o tempo inteiro, escondida atrás de um vaso brincando de esconde-esconde. Não aparecera antes, pois com o alvoroço, tivera medo de apanhar.
Nunca mais vi Mané Fala Ó, desde o dia que embarcara na “nau dos insensatos”.
Sua bicicleta ficara enferrujando, largada no meio dos destroços do casebre abandonado, até que um dia, também desaparecera.

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