quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A cidade e as serras - Eça de Queirós



1 - AUTOR: EÇA DE QUEIRÓS (Póvoa de Varzim, 1845 – Paris, 1900)
Estátua de Eça de Queirós, na Praça do Almada na Póvoa de Varzim.
“O Realismo é uma reação contra o Romantismo: o Romantismo era a apoteose do sentimento; - o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para condenar o que houver de mau na nossa sociedade.”

Eça de Queirós

José Maria Eça de Queirós nasceu na Póvoa do Varzim em 25 de Novembro de 1845. Veio ao mundo em circunstâncias morais irregulares: «filho natural de José Maria de Almeida Teixeira de Queirós e de May incógnita» (lê-se no assento do seu batismo). O pai do escritor era, ao tempo, delegado do Procurador Régio em Ponte de Lima; a «mãe incógnita» era D. Carolina Augusta, filha do coronel José António Pereira D’ Eça na altura já falecido. Casaram em Viana do Castelo, na Igreja do Convento de Santo António em 1849. O pequeno José Maria, criado até esta data em Vila do Conde pela madrinha, é levado então para casa dos avôs paternos, em Verdemilho, próxima de Aveiro. Só aos 10 anos é que juntou progenitores, passando a viver com eles no Porto, onde começou os estudos secundários.
Em 1861, matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mantendo-se então quase despercebido aos coriféus do Realismo (Antero, Teófilo, Vieira do Castro).
Depois de concluída a formatura em 1866, fixou-se em Lisboa, onde o pai trabalhava. Repartiu então a atividade entre a advocacia e o jornalismo. Dirigiu, durante algum tempo, o Distrito de Évora e colaborou na Gazeta de Portugal com folhetins dominicais (mais tarde reunidos em volume com o título de Prosas Bárbaras). Assistiu de longe a polêmica da Questão Coimbrã, mas participou ativamente das Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense. Nomeado cônsul em 1872, indo servir em Cuba, Londres e em Paris retornou a Portugal esporadicamente para rever os amigos “revolucionários”, o grupo dos “Vencidos da Vida”.
Nesta altura da vida, por influência de Antero, começou a entregar-se ao estudo de Proudhon e aderiu ao grupo do «Cenáculo». Teve ensejo de assistir à inauguração do canal de Suez e viajou pela Palestina. Muito do que então presenciou havia de servir-lhe para compor mais tarde O Egipto e A Relíquia.
Por 1870, colaborou com Ramalho n’ O Mistério da Estrada de Sintra, proferiu uma conferência no «Cassino» e iniciou à publicação d’ As Farpas. A sua vocação de escritor realista manifestava-se aos poucos.
Tendo concorrido para a diplomacia, fez nesse ano um pequeno estágio de funcionário público na Cidade do Liz. Aí arquitetou O Crime do Padre Amaro. Em 1873, é colocado no consulado português de Havana, em Cuba. Dois anos mais tarde, foi transferido para Inglaterra e lá começou a escrever O Primo Basílio e a pensar n’ Os Maias, n’ O Mandarim, n’ A Relíquia. De Newcastle e de Bristol, onde residiu, ia mandando correspondência vária para jornais de Portugal e Brasil.
Em 1886, casou com uma senhora fidalga, irmã do conde de Resende, D. Maria Emília de Castro. Em 1888, foi tomar conta do consulado de Paris. Dali, ainda chegou a publicar em jornais a Correspondência de Fradique Mendes e A Ilustre Casa de Ramires. Nos últimos anos vemo-lo atarefado a escrever para a imprensa periódica, chegando mesmo a fundar e dirigir a Revista de Portugal.
Morreu em França em 1900.
2 - OBRAS:
Romance: Prosas bárbaras
Mistério da estrada de Sintra
O crime do padre Amaro
O primo Basílio
Os Maias
A relíquia

O mandarim

A ilustre casa de Ramires

A cidade e as serras

Correspondência de Fradique Mendes

Dicionário de milagres
A capital
Tragédia da Rua das Flores
Conto: Contos
Jornalismo : Uma campanha alegre
Cartas de Inglaterra
Cartas familiares
O Egito
Últimas páginas
3 – ESTILO LITERÁRIO:
Considerado o maior prosador do Realismo português, podemos dividir sua produção literária em três fases:
1ª FASE:
Fase inicial do autor contendo ainda características românticas.
Período que corresponde sua produção folhetinesca, Prosas Bárbaras e do romance, O Mistério da Estrada de Sintra, escrito em parceria com Ramalho Ortigão.
Mais tarde, o próprio autor, confessa envergonhar-se dessa fase literária de sua obra.
2ª FASE:
Fase mais importante do autor. É quando ele adere ao Realismo-Naturalismo, tornando-se o maior prosador desse período em Portugal.
Nesse período, Eça de Queirós, faz uma crítica severa a toda sociedade portuguesa: desde a hipocrisia do clero, o atraso cultural de Portugal, o conservadorismo, a falsa intelectualidade, a ociosidade, o pseudomoralismo...
Destacamos nesta fase a Trilogia Realista-Naturalista do autor: O crime do padre Amaro, O primo Basílio e Os Maias.
3ª FASE:
Época de amadurecimento de seu estilo. Passada a fase de críticas desenfreadas a toda sociedade portuguesa, o autor encontra-se em pleno equilíbrio e apresenta Portugal de forma lírica e irônica.
No plano estilístico acrescentará barbarismos e coloquialismos, aproximando a sua escrita da modernidade e ampliando os recursos da linguagem literária.
Nesta fase encontraremos A ilustre casa de Ramires, A relíquia, A cidade e as serras e Correspondência de Fradique Mendes.
4 – ESTRUTURA DA OBRA/FOCO NARRATIVO:
A Cidade e as Serras” é um romance composto por 16 capítulos que podem ser divididos em duas partes: a primeira parte é formada pelos capítulos de 1 a 7 e metade do oitavo (A Cidade); e a segunda parte vai de metade do oitavo capítulo até o final do livro (As Serras).
Narrado em primeira pessoa, como a maioria dos romances de Eça de Queirós. Há um narrador-personagem, Zé Fernandes, o qual não se confunde com o protagonista da obra: Jacinto de Tormes.
Zé Fernandes é um narrador-testemunha, pois além de ser personagem da história, ele conta o que vê e pensa sobre o que ficou sabendo de tudo o que aconteceu.
Segundo Norman Friedman, o narrador-testemunha narra em 1ª pessoa, mas é um “eu” já interno à narrativa, que vive os acontecimentos e, portanto, dá-los ao leitor de modo mais direto, mais verossímil.”
O importante é observar que tudo o que foi narrado, foi selecionado pela memória do eu-narrativo (Zé Fernandes) a partir da sua memória dos fatos e da sua subjetividade. Portanto, todas as personagens, as paisagens e os acontecimentos são apresentados com base nas opiniões desse narrador.
Nos primeiros parágrafos do livro o narrador, em vez de apresentar-se ao leitor, coloca-se em segundo plano para apresentar toda a descendência dos de Tormes, até aparecer à figura de Jacinto. Além disso, dá-lhe tratamento diferenciado, parecendo idealizar Jacinto, na medida em que o chama de "Príncipe da Grã-Ventura", conforme apelido estudantil do protagonista.
5 – TEMPO/ESPAÇO:
A questão espacial nessa narrativa é de suma importância. Na primeira parte da obra, nos é apresentada a grande Cidade - Paris (o boulevard; o Bosque de Bolonha; Montmartre; a Avenida dos Campos Elíseos) e a partir do Cap. VIII, o Baixo Douro, as Serras (Tormes).

Apresentando uma narrativa linear, mas sem continuidade, Zé Fernandes enumera os detalhes que acredita serem mais importantes para o entendimento da história. O tempo transcorre desde 1820, com as aventuras de Dom Galião até 1894, quando Jacinto já está casado e com dois filhos. Portanto, focaliza a burguesia do último quartel do século XIX.
6 - LINGUAGEM:
Eça de Queirós é considerado um autor da “modernidade” por sua maestria de combinação de palavras. Utilizando-se de uma linguagem descritiva, elaborada e minuciosa, consegue o perfeito equilíbrio para dar expressividade e dinâmica ao texto:
HIPÁLAGE ou deslocamento do adjetivo do termo próprio para outro termo próximo.
Ex.: “fila atroante dos ônibus” (em vez de “fila dos ônibus atroantes”; “puída tristeza do tapete” (em vez de “tristeza do tapete puído”); “a erudita nave da biblioteca” (em vez de “nave da biblioteca erudita).
ADJETIVO ABSTRATO APLICADO A UM SUBSTANTIVO CONCRETO OU VICE-VERSA:
Ex.: “silêncio enrugado”; “nariz agudo e triste”; “elogios finamente torneados”.
ADJETIVOS DESCRITIVOS IRÔNICOS, ÁS VEZES EM OXÍMOROS (antíteses em que um termo nega ou contradiz o outro), utilizados para denunciar um comportamento encoberto da personagem.
Ex.: “atribuía a Jacinto, com astuta candura, todas aquelas invenções do Saber” (astuta = esperta nega a sinceridade da candura =ingenuidade); “ela mostrava seu lindo espanto” (lindo indicando o espanto afetado, fingido, charme).
ASSOCIAÇÃO DE OBJETIVO E SUBJETIVO:
Ex.: “inverno escuro e pessimista”; “o sol e a eletricidade vertiam luz estudiosa e calma”.
TRANSFORMAÇÃO DO ADJETIVO EM ADVÉRBIO:
Ex.: “velhos gordos, de casaco escarlate, pedalavam gordamente” (o advérbio em que se transformou o adjetivo não o substitui, mas o reforça com grande acréscimo o efeito cômico).
EMPREGO METAFÓRICO DO ADVÉRBIO:
Ex.: “outra portentosa rima de volumes...que trepavam montanhosamente até aos últimos vidros” (advérbio neológico, funciona como metáfora ou comparação a “trepavam como montanhas”.
USO DA CARICATURA; DISCURSO INDIRETO LIVRE, MUSICALIDADE, etc
7 – PERSONAGENS:
JACINTO, Príncipe ou Príncipe da Grã-Ventura: protagonista, homem rico, forte e inteligente. Representante da elite nobre de Portugal, apenas por direito de nobreza (na verdade, Jacinto não nasceu em Portugal) que, com a chegada do liberalismo ao país, perdeu definitivamente os laços ancestrais e patrióticos com sua terra.
Ao longo da narrativa, Jacinto passa de homem parisiense inteligente (mas, superficial e inútil) ao homem parisiense deslumbrado com a natureza e a vida no campo, para finalmente chegar a ser o homem português moderno, ativo e interessado por sua terra e seu povo.
ZÉ FERNANDES: narrador da história, homem rústico, português, dotado de cultura e conhecimento prático. Ele é a personagem mais bem construída do livro. Realista e equilibrado; sabe portar-se diante as elegantes senhoras de Paris e ao mesmo tempo, apaixona-se por uma prostituta.
Foi expulso da universidade por ter agredido um professor e no final do romance, agride um aluno que desacata outro professor.
Ele é o falso símbolo do Campo.
JOANINHA: prima do narrador-testemunha Zé Fernandes; filha do tio Adrião e depois, esposa de Jacinto.
Personagem ausente, corpo físico destituído de espírito. Não dialoga e não apresenta a sua visão do mundo.
O GRÃO-DUQUE CASIMIRO; MADAME DE ORIOL, CONDESSA e o CONDE DE TRÈVES, o poeta DORNAN, o psicólogo feminista, o DUQUE DE MARIZAC, a MADAME VERGHANE, o banqueiro judeu DAVI EFRAIM, o jovem TODELLE, representam a superficialidade das modas da capital, a mesquinhez e a falsidade na busca pelo poder e pelo dinheiro, a degradação da arte, a sensualidade puramente carnal, a falsa intelectualidade, enfim uma sociedade que vive de aparências e status.
GRILO e ANATOLE – criados de Jacinto.
TIA VICÊNCIA, o SILVÉRIO, o MELCHIOR, o PIMENTINHA, representam a simplicidade, a simpatia e a sabedoria popular da cultura portuguesa.
8 – RESUMO:
Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de Queirós, o romance A Cidade e as Serras, foi desenvolvido a partir da idéia central contida no conto Civilização, datado de 1892. É um romance denso, belo, ao longo do qual Eça de Queirós ironiza ferrenhamente os males da civilização, fazendo elogio dos valores da natureza.

É uma obra das mais significativas de Eça de Queirós. Nela o escritor relata a travessia de Jacinto de Tormes, um ferrenho adepto do progresso e da civilização - da cidade para as serras. Ele troca o mundo civilizado, repleto de comodidades provenientes do progresso tecnológico, pelo mundo natural, selvagem, primitivo e pouco confortável, no sentido dos bens que caracterizam a vida urbana moderna, mas onde encontra a felicidade, mudando radicalmente de opinião.
A Cidade e as Serras preconiza uma relação entre as elites e as classes subalternas na qual aquelas promovessem estas socialmente, como faz Jacinto ao reformar sua propriedade no campo e melhorar as condições vida dos trabalhadores.
CAPÍTULO I
“O meu amigo Jacinto nasceu num palácio, com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça e de olival.
“À sua quinta e casa senhorial de Tormes, no Baixo Douro, cobriam uma serra. (...) Mas o palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos Elísios, nº 202.”
O seu avô, homem muito gordo e riquíssimo, Sr. Jacinto Galião, como era chamado em Lisboa, uma tarde escorregou numa casca de laranja e desabou no chão. Foi socorrido por um homem moreno que o levantou e disse-lhe:
“ – Oh Jacinto Galião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas pedras?”
Jacinto reconheceu imediatamente o Senhor Infante D. Miguel. A partir desse momento, passou a adorar o “seu Salvador”, chegando a colocar o seu retrato na sala nobre de sua casa.
Enquanto o seu herói penava no desterro, Jacinto Galião sofria de saudades e tramava o regresso do seu “anjinho”.
Quando D. Miguel torna-se rei, entusiasma-se, ergue um monumento em seu louvor; mas, quando soube que ele fora liquidado pelas forças liberais comandadas por D. Pedro, seu irmão; destronado e mandado para o exílio, Jacinto não se conformou e auto exilou-se para a França com a mulher, D. Angelina Fafes; com o filho Cintinho; com a aia e com o moleque. Cartoon representando D. Pedro IV e D. Miguel a brigar pela
coroa portuguesa, por Honoré Daumier, 1833
“Não, não queria ficar na terra perversa de onde partia, esbulhado e escorraçado, aquele rei de Portugal que levantava na rua os Jacintos.”
A viagem foi terrível: viajaram num paquete em um colchão rústico do beliche; na estrada de Orleães, o eixo da carruagem quebrou e tiveram que marchar durante três horas na chuva; dormiram nos bancos de uma taberna; no “Hotel dos Santos Padres”, em Paris, sofreram os terrores de um fogo que rebentara na cavalariça; o D.Galião cortou o pé numa lasca de vidro....e naquela mesma semana, Jacinto Galião comprou o palacete dos Campos Elísios, nª 202 de um príncipe polaco que tornara-se frade.
Depois de tantos dissabores, “descansando de tantas agitações, numa vida de pachorra e de boa mesa, com alguns companheiros de emigração (o Desembargador Nuno Velho, o Conde de Rabacena, outros menores), até que morreu de indigestão, de uma lampreia de escabeche que lhe mandara o seu procurador em Montemor.”
D. Angelina Fafes preferiu continuar em Paris a enfrentar o caminho de volta, além do mais não queria se separar do seu confessor, nem do seu médico.
Cintinho crescera sempre muito doente. Quando criança teve icterícia e agora moço, à noite, não conseguia dormir, por causa da tosse e de sufocações.
“Era um moço mais esguio e lívido que um círio, de longos cabelos corredios, narigudo, silencioso, encafuado em roupas pretas, muito largas e bambas (...) os criados na copa sempre lhe chamavam a Sombra.”
Aos vinte anos, apaixonou-se por Teresinha Velha, filha do Desembargador Velho, “uma menina redondinha como uma rola, educada num convento de Paris...”
Quando se casou com Teresinha, já havia cuspido sangue uma vez; depois, cuspiu o resto e “três meses e três dias depois do seu enterro o meu Jacinto nasceu.”
A avó supersticiosa espalhou no berço essências aromáticas; mas, ao contrário de seu pai, Jacinto “não teve sarampo e não teve lombrigas. As letras, a tabuada, o latim entraram por ele tão facilmente como o sol por uma vidraça. Entre os camaradas, nos pátios dos colégios, erguendo a sua espada de lata e lançando um brado de comando, foi logo o vencedor, o rei que se adula, e a quem se cede a fruta das merendas. Na idade em que se lê Balzac e Musset nunca atravessou os tormento da sensibilidade; nem crepúsculos quentes o retiveram na solidão de uma janela, padecendo de um desejo sem forma e sem nome.”
“Rijo, rico, indiferente ao Estado e ao Governo, nunca lhe conhecemos outra ambição além de compreender bem as ideias gerais; e a sua inteligência (...) circulava dentro das filosofias mais densas com enguia lustrosa na água limpa de um tanque.”
Além de rico, sadio, belo e inteligente; tinha sorte, ganhou 400 mil pesetas na loteria.
Por todas essas qualidades, era conhecido por “Príncipe da Grã-Ventura.”
“Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos encontramos e acamaradamos em Paris, nas escolas do Bairro Latino, para onde me mandara meu bom tio Afonso Fernandes Lorena de Noronha e Sande, quando aqueles malvados me riscaram da Universidade por eu ter esborrachado, numa tarde de procissão, na Sofia, a cara sórdida do Doutor Pais Pita. Ora, nesse tempo Jacinto concebera uma idéia (...) “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado”. E por homem civilizado o meu camarada entendia aquele que, robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com todos os mecanismos inventados desde Terâmenes, criador da roda, se torna um magnífico Adão, quase onipotente, quase onisciente, e apto portanto a recolher dentro de uma sociedade e nos limites do progresso (tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e todos os proveitos que resultam de saber e de poder...Pelo menos assim Jacinto formulava copiosamente a sua idéia, quando conversávamos de fins e destinos humanos, sorvendo bocks (cervejas escuras e fortes) poeirentos, sob o toldo das cervejarias filosóficas do “Boulevard Saint-Michel.”
Jorge Carlande, um conhecido de Jacinto, resumia sua teoria a uma forma algébrica:
Suma ciência X Suma potência = Suma felicidade
“E durante dias, do Odeon à Sorbona, foi louvada pela mocidade positiva (os jovens contaminados pelas idéias filosóficas do positivismo, que valorizavam supremamente a ciência e o progresso) a equação metafísica de Jacinto.”
Para Jacinto, porém, a sua teoria não é metafísica; na verdade, é uma regra prática, pois entusiasta da Cidade, ele vive de acordo com esse princípio.
Jacinto exemplificava da seguinte maneira: com os olhos que temos, podemos apenas distinguir além da avenida, uma vidraça alumiada; mas, com um binóculo de corridas, consegue percebe que por trás da vidraça, há presuntos, queijos, potes e conclui que é uma mercearia. Agora, se usasse um telescópio, de composição mais científica, poderia avistar muito além.
“Tens aqui pois o olho primitivo, o da natureza, elevado pela civilização à sua máxima potência de visão. E desde já, pelo lado do olho portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele não suspeita e de que está privado.”
“(...) a idéia de civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de cidade, de uma enorme cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente.”
Quando José Fernandes perguntava-lhe sobre a religião; ele encolhia os ombros e dizia que, “a religião é o desenvolvimento suntuoso de um instinto rudimentar, comum a todos os brutos, o terror.”
“Só o fonógrafo Zé Fernandes, me faz verdadeiramente sentir a minha superioridade de ser pensante e me separa do bicho (...) E depois (acrescentava) só a cidade lhe dava a sensação, tão necessária à vida como o calor, da solidariedade humana.”
No campo, ele se amedrontava: que árvore estenderia o seu fruto a ele? De que servia ser um gênio ou ser um santo?
Quando Zé Fernandes levou Jacinto para passear na floresta de Montmorency, divertiu-se bastante com a reação do amigo. Tinha medo de pisar no chão; não tolerava que os galhos lhe roçassem a manga ou a face; todas as plantas que não conhecia, julgava-as venenosas etc.
Jacinto nesta época tinha 23 anos. “Todo o seu traje, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural...”
Em fevereiro de 1880, Zé Fernandes recebeu uma carta do seu tio, Afonso Fernandes, pedindo para que ele retornasse à casa de Guiães, no Douro. Dizia estar velho, falava de suas hemorróidas e acrescentava que precisava de “homem mais novo, com pernas mais rijas”
Embora censurando o tio de ter-lhe cortado em plena flor do seu saber jurídico; lembrou-se da sopa dourada da tia Vicência; do leitão assado; do arroz de forno; dos dias lindos e arrumou as malas para partir.
Quando anunciou a Jacinto a sua partida, o amigo ficou chocado, disse: “...que horror!” e recomendou-lhe que levasse alguns confortos.
“A mágoa com que me acompanhou ao comboio conviria excelentemente ao meu funeral.”
Ao chegar a Guiães, Zé Fernandes esteve tão ocupado, que não teve tempo de abrir o Tratado de Direito Civil.
Jacinto escrevia-lhe umas breves linhas.
Num setembro, o bom tio Afonso Fernandes faleceu e Zé Fernandes voltou à Paris.
CAPÍTULO II
Ao encaminhar-se à Rua Campos Elísios em demanda do 202, encontra-se com Jacinto, no portão de sua casa.
Fazia sete anos que estavam separados e o abraço entre eles foi de pura amizade.
Nada havia mudado no jardim do 202; mas dentro, Zé Fernandes surpreendeu-se com um elevador instalado por Jacinto. A casa tinha dois andares e eram ligados por uma escadaria suave.
“Espaçoso, tapetado, ele oferecia, para aquela jornada de sete segundos, confortos numeroso, um divã, uma pela de urso, um roteiro, “encadernados em branco, em escarlate, em negro, com retoques de ouro...” das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e livros. Na antecâmara, onde desembarcamos, encontrei a temperatura macia é tépida de uma tarde de maio, em Guiães. Um criado, mais atento ao termômetro que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares, esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e superfino.”
Num outro compartimento, ficava a biblioteca. Jacinto roçou de leve o dedo na parede e várias lâmpadas elétricas do teto iluminaram mais de trinta mil volumes.
Mesmo diante de tanto luxo e conforto, Zé Fernandes notou que Jacinto emagrecera, envelhecera e corcovava.
Em seu gabinete de trabalho, um tapete grosso abafava o som dos passos. Uma decoração suntuosa pendendo para a tonalidade verde composta por uma mecânica de aparelhos, lâminas, rodas, tubos, engrenagens...
Mas, Jacinto transparecia um ar de cansado e de tristeza. Disse que durante esses sete anos, “vivera – cumprira com serenidade todas as funções, as que pertencem à matéria e as que pertencem ao espírito...”
Sobre a mesa de trabalho de Jacinto, desfilava inúmeros instrumentozinhos de utilidades misteriosas. Enquanto, no outro canto, recebia o sinal do telégrafo, que anunciava ao meu amigo que a fragata russa “Azoff” entrara em Marselha. Depois, consultou um enorme relógio que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, pediu licença pra escrever uma carta, sem antes insistir para Zé Fernandes esperá-lo.
Havia os jornais de Paris, da noite; e os de Londres, desta manhã; ao lado da cadeira de Jacinto, gordos tubos acústicos, por onde ele dava as suas ordens; máquina de escrever e de calcular; diversos dicionários, manuais; atlas; guias e outros objetos não decifráveis.
Zé Fernandes curioso com as novas instalações do 202 mexeu em uma caixa e uma voz de homem ecoou. Jacinto explicou que era o conferençofone (transmitia as conferências da universidade), que junto com o teatrofone (transmitia as peças que se representavam nos teatros), além de outras novidades técnicas.
Zé Fernandes recusou o convite para o jantar, onde mais dois convidados estariam presentes: “o autor de “Coração Triplo”, um psicólogo feminista, de agudeza transcendente, Mestre muito experimentado e muito consultado em ciências sentimentais; e Vorcan, um pintor místico, que interpretara etereamente, havia um ano, a simbolia rapsódica do cerco de Tróia, numa vasta composição, “Helena Devastadora...”
“ – Não, Jacinto, não...Eu venho de Guiães, das serras; preciso entrar em toda esta civilização, lentamente, com cautela, se não rebento. Logo na mesma tarde a eletricidade, e o conferençofone, e os espaços hipermágicos e o feminista e o etéreo, e a simbolia devastadora, é excessivo! Volto amanhã.”
Jacinto convida-o para voltar amanhã com as malas, lá ele teria mais conforto. Em seguida fechou a carta que escrevia e colocou duas violetas brancas; chamou o Grilo, seu criado, ordenou que enviasse a carta a Madame de Oriol, telefonasse para a casa dos Trèves avisando que os espiritistas só estão livres no domingo e que preparasse sua ducha antes de jantar, “tépida, a 17. Fricção com malva-rosa.”
Antes de sair, Zé Fernandes perguntou quais eram as utilidades aqueles instrumentozinhos? E, Jacinto respondeu-lhe que eram providenciais, pela simplificação que dão ao trabalho!
“Este arrancava as penas velhas; o outro numerava rapidamente as páginas de um manuscrito; aqueloutro, além, raspava emendas...E ainda os havia para colar estampilhas, imprimir datas, derreter lacres, cintar documentos...”
Na passagem pela sala de jantar, Zé Fernandes reparou que a cada talher correspondiam seis garfos; dois copos, para os dois vinhos; águas oxigenadas, carbonatadas, fosfatadas, esterilizadas, de sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados terapêuticos impressos em rótulos. Perante tantas águas, Jacinto reclamava que sofria de sede e que não havia encontrado uma boa água.
Por sobremesa seriam servidas laranjas geladas em éter, “parece que o éter desenvolve, faz aflorar a alma das frutas...”
Enquanto Zé Fernandes descia os Campos Elísios, pensava no atraso de Guiães, onde desde séculos, a alma das laranjas permanece ignorada.
CAPÍTULO III
“No 202, todas as manhãs, às nove horas, depois do meu chocolate e ainda em chinelas, penetrava no quarto de Jacinto. Encontrava o meu amigo banhado, barbeado, friccionado, envolto num roupão branco de pêlo de cabra do Tibete, diante da sua mesa de toilette, toda de cristal, (por causa dos micróbios) e atulhada com esses utensílios de tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola que o homem do século XIX necessita para não desfear o conjunto suntuário da civilização e manter nela o seu tipo.(...) E assim. Em face ao espelho emoldurado de folhedos de prata, permanecia este Príncipe passando pêlo sobre o seu pêlo durante catorze minutos.”
Para banhar-se, Jacinto escolhe a temperatura da água entre zero e cem graus; utiliza-se de diversas escovas; variados instrumentos de banho e muitas toalhas de felpo, de linho, de seda...
Tudo isso causava tédio em Jacinto.
Em seguida, analisava os compromissos do dia, tão numerosos que cobriam duas laudas.
Jacinto tinha-se tornado o presidente do Clube da Espada e Alvo; sócio do jornal “O Boulevard”; diretor da Companhia dos Telefones de Constantinopla; sócio dos Bazares Unidos da Arte Espiritualista; membro do Comitê de Iniciação das Religiões Esotéricas etc.
Jacinto passava o dia rabiscando a carteira, atendendo telefone, desatando pacotes e ocupações incessantes. Entre um compromisso e outro, Jacinto exclamava que tudo “é uma seca!”
No almoço, “nenhum prato, por mais engenhoso, o seduzia...” e fumava incontáveis cigarrettes russas, onde rebrilhava o seu nome, impresso à ouro na mortalha.”
Quando a sua agenda estava mais folgada, Jacinto e Zé Fernandes passeavam pelas ruas de Paris, observando a transformação da grande cidade.
Aos poucos, Zé Fernandes foi conhecendo os amigos sofisticados e ricos da grande cidade: o barbeiro Efraim, com a sua encaracolada barba hebraica; o longo nariz aristocrático de Madame Trèves; as bochechas flácidas do poeta neoplatônico Dornan; os cabelos negros de Madame Verghane; o monóculo do diretor do Boulevard; o bigodinho do Duque de Marizac ...
Numa tarde, ocorre um acidente no banheiro: rompe um tubo d’água quente, faíscas soltam dos fios elétricos; um vapor quente abafou as luzes e a água inundou o tapete.
“Por todo 202 ia um tumulto de desastre. Diante do portão, atraídas pela fumarada que se escapava das janelas, estacionava polícia, uma multidão. E na escada esbarrei com um repórter, de chapéu para a nuca, a carteira aberta, gritando sofregamente “se havia mortos?”
Jacinto de ceroulas, tentando salvar as nobres sedas bordadas e uma fotografia de Madame de Oriol, enquanto, reclamava da impotência das indústrias. Enquanto, Zé Fernandes com raiva por ter molhado a sua casaca, lembrava-se que em Guiães a água era aquecida em seguras panelas.
No dia seguinte, o Grilo, com a mão enfaixada pelo acidente da véspera, trazia o “Fígaro” que noticiava o desastre do 202.
O dia todo foi um reboliço: telefonemas, telegramas, visitas, solidariedades, críticas e zombarias.
Zé Fernandes pergunta quem é a Diana, que escreve, telefona, telegrafa e Jacinto diz que é uma cocotte, uma cortesã de grande pompa e luxo; mas, para manter uma cocotte de tal nível é necessário muito dinheiro, então, formam-se um sindicato.
“Somos uns sete, no Clube. Eu pago um bocado...Mas meramente por civismo, para dotar a cidade com uma cocotte monumental (...) Pobre Diana!...Dos ombros para baixo nem sei se tem a pele cor de neve ou cor de limão.”
“ – Dos ombros para baixo?...E para cima?
“ – Oh! Para cima tem pó-de-arroz...Mas é uma seca! Sempre bilhetes, sempre telefones, sempre telegramas. E três mil francos por mês, além das flores...Uma maçada!”
É anunciada a chegada da Madame de Oriol que estava morrendo por admirar as ruínas!
No final do dia, Jacinto extasiado de tanta confusão, convida o amigo para fazerem um programa mais tranquilo no domingo: ir ao Jardim das Plantas, verem a girafa!
CAPÍTULO IV
Uma noite, Jacinto comunica a Zé Fernandes que haverá uma festa no 202 em homenagem ao grão-duque, que trará um peixe muito raro da Dalmácia. Jacinto estava desanimado com a festa; mas, o grão-duque reclamava de uma ceia e mesmo sem interesse, Jacinto encomendou uma orquestra de tziganes (ciganos), mandou ligar o teatrofone com a Ópera, com a Comédia Francesa, com o Alcácer e com os Bufos, para contentar todos os gostos, desde o trágico até ao pícaro. Da copa saíam dois ascensores que rolavam das profundidades da cozinha, um para os peixes e carnes aquecido por tubos de água fervente, o outro para as saladas e gelados revestidos de placas frigoríficas.
Enquanto Zé Fernandes escrevia à sua tia Vicência e Jacinto polia as suas unhas, as luzes do 202 se apagaram.
Jacinto mandou chamar um engenheiro da Companhia Central da Eletricidade Doméstica, comprar velas, desenterrar os candelabros abandonados (...) “caso falhassem perfidamente as forças bisonhas (inexperientes) da civilização.”
Entre os convidados estavam: a Condessa de Trèves que perguntava sobre todos os aparelhos, elogiava e sorria mecanicamente (“Toda ela era uma sublime falsidade”); acompanhada pelo seu marido, o Conde de Trèves, descendente dos reis de Cândia; o seu amante, Davi Efraim, o terrível banqueiro judeu que queriam envolver Jacinto em negócios de esmeraldas; o ilustre historiador Danjon, da Academia Francesa; o Duque de Marizac, diretor do Boulevard que critica a obra “Couraça” do psicólogo feminista, também autor de “Coração Triplo”, por ter descrito em sua obra um encontro amoroso de uma duquesa elegante trajando-se com um colete de cetim preto; Antônio de Todelle (a esposa não o acompanhou por ter esfolado um perna no velocípede) que imitava cantores de café-concerto e temperava saladas raras e conhecia todas as fofocas de Paris; o grande Dornan, poeta neoplatônico e místico Madame de Oriol, que esbanjava um lindo devote, deixando à vista seu colo nu e branco; Madame Verghane, que trazia uma fita tão fina, que dava a impressão que ela iria se partir ao meio; a Princesa De Carman e uma outra loura.
A chegada do Grão-Duque Casimiro foi triunfal! Ele reclamou da péssima comida de Paris, sugeriu para que ligassem o teatrofone para ouvirem a Gilberte cantar uma nova cançoneta: “As Casquettes”.
“Então, ante aqueles seres de superior civilização, sorvendo num silêncio devoto as obscenidades que a Gilberte lhes gania, por debaixo do solo de Paris, através de fios mergulhados nos esgotos, cingidos aos canos das fezes...”
De repente o mordomo apareceu e cochichou algo para Jacinto, que empalideceu; “...o elevador dos pratos que inesperadamente, ao subir o peixe de Sua Alteza, se desarranjara, e não se movia, encalhado.”
Toda a polidez do Grão-duque transformou-se em fúria: “Pois um peixe que me deu tanto trabalho! Para que estamos nós aqui então a cear?”
Todos vão à cozinha na tentativa de salvar o peixe, quando Todelle sugere pescá-lo.
Precisavam de uma bengala, uma guita e um gancho. Durante o tumulto, Madame de Oriol oferece gentilmente um gancho de seu vestido e todos exaltaram a amorável dedicação.
“E o psicólogo proclamou que nunca se pescara com tão divino anzol!”
Mas, todas as tentativas foram inválidas, tiveram que jantar sem o famoso peixe e aceitar a idéia que foi mais “divertido pescá-lo (ao tentar, pescá-lo) que comê-lo”
A findar a festa, Jacinto estava arrasado e falou que era: “ – Uma maçada! E tudo falha!”
Três dias depois, Jacinto recebe uma carta do procurador Silvério, comunicando-lhe que em Tormes ocorrerá uma grande tempestade que arrastara a “velha igreja, uma igrejinha rústica do século XVI, onde jaziam sepultados os avôs de Jacinto desde os tempos de El-Rei D.Manuel. Os ossos veneráveis desses Jacintos jaziam agora soterrados sob um montão informe de terra e pedra. O Silvério já começara com os moços da quinta a desatulhar os preciosos restos. Mas esperava ansiosamente as ordens de Sua Excelência...”
Jacinto fica perplexo com a notícia; afinal, “essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma data, uma história, confundidas num lixo de ruína!”
Jacinto passou a noite inteira interrogando Zé Fernandes sobre Tormes; local que ele conhecia muito bem, por ter sido criado há duas léguas dali, além de que o caseiro de Tormes, o bom Melquior, ser cunhado do feitor da Roqueirinha, terras da família de Zé Fernandes.
Jacinto telegrafou ao Silvério, ordenando que fizesse os reparos, sem levar em contas as despesas.
CAPÍTULO V
No entanto, Jacinto decepcionado com a ineficiência do mundo civilizado, decide reformar o 202, implantando mais tecnologias. Uma multidão de operários transitavam diariamente pelo 202, trazendo “uma nova máquina que nos tornaria a vida mais fácil estabelecendo de um modo mais seguro o nosso domínio sobre a substância.”
E assim surgiu o aparelho automático para arrancar os pés de morangos; o misturador de prata e cristal para as saladas; um abotoador de ceroulas e milhares de novos livros que ficavam entulhados nos armários, despencando quando os abriam.
Com a ampliação de sua biblioteca, Jacinto espalha livros por todos os cantos da casa: quarto, atrás da cortina, entrada do banheiro, corredor, depois na areia do jardim...
Uma noite, Zé Fernandes até sonhou que viu Deus, sorrindo e lendo um livro de Voltaire.
Passadas algumas semanas, Zé Fernandes continuava hóspede do 202, mas a sua alma habitava a Rua do Hélder, nº 16, quarto andar, porta à esquerda.
Acontece que, numa tarde, descendo o Boulevard da Madalena, conheceu uma prostituta decadente: Madame Colombe.
“Amei aquela criatura. Amei aquela criatura com amor, com todos os amores, que estão no amor, o amor divino, o amor humano, o amor bestial, como Santo Antonino amava a Virgem, como Romeu amava Julieta, como um bode ama uma cabra. (...) Durante sete furiosas semanas perdi a consciência da minha personalidade de Zé Fernandes...”
(...) Desses dias de sublime sordidez só conservo a impressão de uma alcova forrada de cretones sujos, de uma bata de lã cor de lilás, com soutaches (trancinha usada como enfeite de vestuário) negros, de vagas garrafas de cerveja no mármore de um lavatório, e de um corpo tisnado que rangia e tinha cabelos no peito. E também me resta a sensação de incessantemente e com arrobado deleite me despojar, arremessar para um regaço, os meus berloques, os meus anéis, os meus botões de punho de safira, e as cento e noventa e sete livras em ouro que eu trouxe de Guiães numa cinta de camurça.”
Certa tarde, Zé Fernandes ao se conduzir à Rua do Hélder para mais uma tarde de delícias e gozos; encontrou a conhecida porta fechada.
“Tudo no meu ser tremeu como se o chão de Paris tremesse! Aquela era a porta do mundo que ante mim se fechara! Para além estavam às gentes, as cidades, a vida, Deus e Ela.”
Zé Fernandes ao perguntar aos vizinhos sobre Madame Colombe ouviu de uma barbuda comadre que: “ – Já não mora...Abalou esta manhã, para outra terra, com outra porca!”
Desesperado, Zé Fernandes embriaga-se; e, embora sentindo desejo de espancar àquela porca que fugira com outra porca, lembrava-se da “ mata imensa de pêlo amarelo, em que a minha alma se perdera, e três meses se debatera, e para sempre se emporcalhara!”
No 202, Grilo tenta acalmá-lo, mas a imagem de Madame Colombe amando-o, devorando-o, sugando o seu coração não saía de sua mente. Até que Zé Fernandes vomitou: o Borgonha, o pato, a lagosta e “num esforço ultra-humano, com um rugido, sentindo que, não somente toda a entranha, mas a alma se esvaziava toda, vomitei Madame Colombe!”
No dia seguinte, Zé Fernandes já recuperado, reencontra Jacinto arrastando-se com o seu tédio e vacuidade.
Um dia o Grilo comentou que Jacinto sofria de fartura...
“Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na cidade, na simbólica cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a “delícia de viver”, ele não encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil.”
Jacinto piorava. Nada mais lhe interessava: as cartas amontoavam-se em sua mesa; não se ocupava mais das suas sociedades; a agência andava desafogada; recusava a quase todos os convites...
Apesar do imenso calor do mês de julho, Jacinto não admite a idéia de deixar a cidade, apesar dos convites e da insistência do narrador.
CAPÍTULO VI
Durante o calor de julho, os amigos de Jacinto gozaram o seu verão à beira do lago, numa casa que pertencia a Efraim. Naquele ano, Madame de Oriol permaneceu em Paris e Jacinto visitava-a diariamente às quatro horas da tarde. Numa dessas tardes, Jacinto recebeu o recado que a sua amiga não estaria em casa, jantava com os Trèves.
Zé Fernandes, então, sugere dar um passeio nos altos de Montmartre, uma região periférica de Paris e poderem visitar a Basílica do Sacré-Coeur, em construção.
“E por fim logo que começamos a penetrar, para além de S. Vicente de Paula, em bairros estreitos e íngremes, de uma quietação de província, com muros velhos fechando quintalejos rústicos, mulheres despenteadas cosendo à soleira das portas, carriolas desatreladas descansando diante das tascas (tabernas), galinhas soltas picando o lixo, cueiros molhados secando em canas – o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberdade e singeleza das coisas.”
Do topo do morro, Jacinto interessou-se mais em contemplar Paris de lá de cima a conhecer a construção da Basílica.
Uma grande névoa cinzenta encobria a bela cidade, ocultando à sua beleza e riqueza.
Zé Fernandes aproveita-se do momento para fazer críticas severas à Civilização da Cidade: onde estavam os palácios, os bancos, as bibliotecas, o 202, tudo estava esvaído na confusão de telha e cinza! E ainda completa que, se era esta vista que tinham do alto da colina, “o que será então aos olhos de Deus!”
Jacinto fica pensativo e responde-lhe:
“ – Sim, é talvez tudo uma ilusão...E a cidade a maior ilusão!”
E Zé Fernandes completou:
“ – E a mais amarga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria.”
Zé Fernandes através de um discurso de fundo ideológico, culpa a cidade de desumana, responsável pela miséria, pelas falsas amizades, pela violência, pela falência do amor puro e sincero; pela rivalidade e orgulho; pelos interesses, conduzindo o homem à banalidade e à extravagância.
“(...) nesta criação tão antinatural...o homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade, sem riso, sem sentimento, e trazendo em si um espírito que é passivo como um escravo ou impudente (sem pudor) como um histrião (ator cômico).”
- Sim, com efeito, a cidade...É talvez uma ilusão perversa! dizia Jacinto.
- E se ao menos essa ilusão da cidade tornasse feliz a totalidade dos seres que a mantêm...completava Zé Fernandes.
Enquanto o povo lá embaixo passa fome e crianças morrem de fome e de frio; a polícia faz a ronda para que não seja perturbado o “sono daqueles que amam a neve, para patinar nos lagos do Bosque de Bolonha com peliças de três mil francos. (...) Há andrajos (farrapos) em trapeiras (catadoras de papel) – para que as belas madamas de Oriol, resplandecentes de sedas e rendas, subam, em doce ondulação, a escadaria da Ópera. (...) Há mãos regeladas que se estendem, e beiços sumidos que agradecem o dom magnânimo de um sou (tostão) – para que os Efrains tenham milhões no Banco de França...E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos – para que os Jacintos, em janeiro, debiquem (comam), bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em Champagne e avivados de um fio de éter!”
“O burguês triunfa, muito forte, todo endurecido no pecado – e contra ele são impotentes os prantos dos humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos anarquistas. Para amolecer tão duro granito só uma doçura divina. Eis pois a esperança da terra novamente posta num Messias!...”
Quando desciam, encontraram um antigo amigo de Jacinto, Maurício de Mayolle ou Monsieur de Mayolle. Ele tinha sido um grande praticante do modismo intelectual de Paris (wagnerismo, pré-rafaelismo, renanismo, culto do eu, hartmannismo, nietzchianismo, feudalismo espiritual, tolstoísmo, ruskianismo), e agora satirizava todas as tendências culturais da época. Aderiu a Filosofia Oriental e seguia um mestre místico “um homem de gênio, que percorreu toda a Índia”.
Na volta, quando Zé Fernandes pergunta quem era o bruxo? Jacinto responde:
“ – Era um nobre e leal rapaz, muito rico, muito inteligente, da antiga casa soberana de Mayolle, descendente dos duques de Septimânia...”
Em seguida, os amigos param para jantar no Bosque e se deliciam com uma regalia de vinhos e champagne.
“ – Pois estou com vontade de construir uma casa nos cimos de Montmartre, com um miradouro no alto, todo de vidro e ferro para descansar de tarde e dominar a cidade...” diz Jacinto.
CAPÍTULO VII
Agora, Zé Fernandes acompanhava diariamente Jacinto às suas visitas à Madame de Oriol. Extremamente egocêntrica, “ela só sabia chalrar sobre a sua pessoa, que era o resumo da sua classe, e sobre a sua existência, que era o resumo do seu Paris...”
Embora casada, era constante o seu lusco-fusco com alguém e nesse ano, esse alguém era Jacinto.
“Em política era pelos Príncipes; E todos os outros “horrores”, a república, o socialismo, a democracia que se não lava, os sacudia risonhamente com um bater de leque. Na Semana Santa juntava às rendas do chapéu a coroa amarga dos espinhos – por serem esses, para a gente bem-nascida, dias de penitência e dor. (...) No inverno, logo que na amável cidade começavam a morrer de frio, debaixo das pontes, criancinhas sem abrigo – ela preparava com comovido cuidado os seus vestidos de patinagem. E preparava também os de caridade – porque era boa, e concorria para bazares, concertos e tômbolas, quando fossem patrocinados pelas duquesas do seu “rancho”. Depois, na primavera, muito metodicamente, regateando, vendia a uma adela (mulher que compra e vende artigos usados) os vestidos e as capas de inverno. Paris admirava nela uma suprema flor de parisianismo.”
Porém, Jacinto quando subia a escadaria de Madame de Oriol era como se subisse o calvário e o beijo da despedida, era dado com alívio.
Zé Fernandes decide finalmente, viajar pela Europa. Visitou trinta e quatro lugares; onze vezes passou o dia num vagão; quatorze vezes hospedou-se num hotel diferente; oito vezes brigou com cocheiros que o exploraram; perdeu alguns pertences; comeu e bebeu mal; visitou muitos museus e igrejas; enfrentou mau tempo e gastou seis mil francos.
Enfastiado pela viagem, Zé regressa ao 202 e encontra o seu amigo mais desolado que o deixara.
“Desde essa manhã, Jacinto começou a mostrar claramente, escancaradamente, ao seu Zé Fernandes, o tédio de que a existência o saturava. O seu cuidado realmente e o seu esforço consistiram então em sondar e formular esse tédio – na esperança de o vencer logo que lhe conhecesse bem a origem e a potência.(...) E concluía que “em que a sua alma andava amortalhada, não provinha da sua individualidade de Jacinto – mas da vida, do lamentável, do desastroso fato de viver! E assim o saudável, intelectual, riquíssimo, bem-acolhido Jacinto tombara no pessimismo.”
Desde então, Jacinto passou a ler todos os líricos e todos os teóricos do pessimismo desde o “Eclesiastes” (livro bíblico do chamado Velho Testamento, que exprime uma visão amarga da vida) até Schopenhauer (filósofo alemão da primeira metade do século XIX, para quem a vida era um contínuo sofrimento, sendo o prazer apenas um breve momento de supressão da dor), concluiu que o mal não era só dele, mas resultante de uma lei universal e passou a maldizer a vida.
Passou pelos festins de cor contados na “História Augusta”; pelo humanitarismo, fundou um hospício para velhinhos e outro para crianças débeis; depois penetrou no teosofismo e fez experiências para verificar a misteriosa exteriorização da motilidade e por fim, ligou o 202 com os fios telegráficos do “Times”. Mas, nada o tirava o seu pessimismo, o seu tédio e o desejo de morrer.
No dia em que completara 34 anos de idade ou de maçada, não quis festas e nem receber ninguém. E quando Zé Fernandes perguntou-lhe sobre a igreja em Tormes, Jacinto diz que não tinha notícias, pois não respondera a carta do Silvério.

CAPÍTULO VIII
No fim do inverno, Jacinto entrou no quarto de Zé Fernandes e comunicou-lhe que partiria para Tormes.
“ – Para Tormes? Oh Jacinto, quem assassinaste?:...”
Jacinto mostra a carta que recebeu do Silvério, anunciando o final das obras da capela, para onde seriam trasladados os restos mortais de seus antepassados e anuncia o desejo de estar presente no dia da cerimônia.
“ – Não é por causa dos outros avós, que são ossos vagos, e que eu não conheci. É por causa do avô Galião..Também não o conheci. Mas este 202 está cheio dele...Não posso abandonar ao Silvério e aos caseiros o cuidado de o instalarem no seu jazigo novo. Há aqui um escrúpulo de decência, de elegância moral...”.
Zé Fernandes lembrou-lhe que a casa de Tormes era rústica e quase sem móveis.
“ – Acabou!...Alea jacta est (em latim, a sorte está lançada)! E como só partimos para abril, há tempo de pintar, de assoalhar, de envidraçar...Mando daqui de Paris tapetes e camas...Um estofador de Lisboa vai depois forrar e disfarçar algum buraco...Levamos livros, uma máquina para fabricar gelo...E é mesmo uma ocasião de pôr enfim numa das minhas casas de Portugal alguma decência e ordem. Pois não achas? E então essa! Uma casa que data de 1410...Ainda existia o Império Bizantino!”
Jacinto admirando uma galeria de fotos no quarto de Zé Fernandes, pergunta-lhe quem é “esta lavradeirona (camponesa) tão rechonchuda?”
Zé Fernandes pede-lhe respeito e explica que é sua prima Joaninha, de Sandofim, da casa da Flor da Malva.
Em seguida, Jacinto começa os preparativos para a viagem: escreve ao Silvério dando-lhe ordens para fazer as reformas necessárias da casa; contrata a Companhia Universal de Transportes para a remessa das mobílias; encaixota roupas; camas de penas; banheiras de níquel; lâmpadas Carcel; divãs; cortinas; tapetes e outras preciosidades para desfrutarem de todo o conforto durante um mês em Tormes, nas serras.
Preocupou-se também com a alimentação: fornalhas, geleiras; bocais de trufas; latas de conservas; garrafas de águas minerais, e lembrando-se das chuvas fortes da serra, comprou um pára-raios.
“ – Vês tu, Zé Fernandes, que facilidade!...Saímos do 202, chegamos à serra, encontramos o 202. Não há senão Paris!”
A preparação para a viagem fez ressurgir em Jacinto o seu amor pela Cidade e “em duas semanas, se abarrotaram as páginas da sua agência.”
Certa manhã, Jacinto invade o quarto do amigo gritando que se esquecera de separar os livros para levar a serra. “Assim era – e que vexame para a nossa intelectualidade! Mas que livros escolher entre os facundos milhares sob que vergara o 202?”
E separou muitos livros de diversos assuntos.
Depois que a última caixa sai do 202, Jacinto volta à sua melancolia. Zé Fernandes tenta reanimá-lo e Jacinto passa a se preocupar agora com o trajeto, com as acomodações durante a viagem e na véspera da partida, fazem um passeio no Bosque para a despedida.
Durante o passeio encontraram os conhecidos e diante do Arco do Triunfo, Jacinto murmurou:
“ - É muito grave, deixar a Europa!”
Finalmente, partiram. O Grilo e o Anatole seguiam num fiacre atulhado de preciosidades e mais um ônibus seguia levando 23 malas.
Na estação, comprou todos os jornais, ilustrações, mais livros, horários e um saca-rolhas.
Quando Paris se distanciou, Jacinto afirmou:
“ – Que aventura, Zé Fernandes!”
Passaram por Chartres; Orleães; Bordéus; Biarritz com chuva e névoa e num desalento, Jacinto murmurou: “ –Agora adeus, começa a Espanha!”
E quando Zé Fernandes insiste alegrá-lo; ele suplica: “ – Zé Fernandes, tem piedade do enfermo e do triste!”
Jacinto reclama de tudo: das acomodações; das chuvas; das serras sempre iguais; das noites escuras; do vento; do atraso do trem...
Ao chegarem a Medina, um cavalheiro barbudo pede que eles se apressem para fazerem a baldeação, caso contrário, perderiam o comboio de Salamanca.
Saltaram rapidamente e enquanto pegavam as malas, o trem despegou e rolou. Na verdade, vindo de comboio ou tendo chegado de autocarro, não deixará de se erguer do seu banco
Jacinto esgoelava-se, gritando:
“ – Oh! Que serviço! Oh que canalhas!...Só em Espanha!...E agora? As malas perdidas!...Nem uma camisa, nem um escova!”
Zé Fernandes pergunta ao Jacinto se ele tinha fome. O fidalgo responde-lhe:
“ – Não. Tenho horror, furor, rancor!...E tenho sono!”
E dormiu vestido como estava, embrulhando os pés no paletó do amigo, o único agasalho que sobrou.
Zé Fernandes acorda o fidalgo, para conhecer a sua terra.
“ – Então é Portugal, hem?...Cheira bem.”
E depois, reclama:
“ – E nem uma camisa, nem uma escova, nem uma gota de água-de-colônia!...Entro em Portugal, imundo!”
Na primeira manhã em Portugal, Jacinto sente fome e come com vontade. Aprecia a paisagem e lamenta-se ter “deixado Tormes, um solar histórico, assim abandonado e vazio! Que delícia, por aquela manhã tão lustrosa e tépida, subir à serra, encontrar a sua casa bem apetrechada, bem civilizada...Para animar, lembrei que com as obras do Silvério, tantos caixotes de civilização remetidos de Paris, Tormes estaria confortável mesmo para Epicuro (filósofo grego (341-270 a.C), cuja doutrina materialista é geralmente lembrada pela defesa do prazer moderado como bem supremo da vida)”.
Quando o comboio parou na estação de Régoa, ficaram esperando pelo Grilo ou Anatole; mas, ninguém apareceu. Seguiram, conversando sobre Tormes.
“No meu Príncipe já evidentemente nascera uma curiosidade pela sua rude casa ancestral. Mirava o relógio, impaciente. Ainda trinta minutos! Depois, sorvendo o ar e a luz, murmurava, no primeiro encanto de iniciado:
-Que doçura, que paz...”.
Na estação de Tormes, outra decepção os aguardava: ninguém os esperava; inclusive o administrador e o caseiro da Quinta estavam fora da propriedade há meses; não encontraram o Grilo e nem o Anatole e tão pouco as vinte e três malas.
Pimenta, um amigo antigo de Zé Fernandes, carregador da estação, lembrou-se de um amigo que possuía uma égua e um jumento e, foi buscá-los.
“ – Está tudo arranjado, meu senhor! Vêm aí os bichos!...Só o que não calhou foi um selinzinho para a jumenta!”
“ (...) E começamos a trepar o caminho, que não se alisara nem se desbravara desde os tempos em que o trilhavam, com rudes sapatões ferrados, cortando de rio a monte, os Jacintos do século XIV! Logo depois de atravessarmos uma trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Príncipe, com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das oliveiras... – E em breve os nossos males esqueceram ante a incomparável beleza daquela serra bendita!”
Melchior, o caseiro, recebeu-os com espanto; pois, Silvério estava ausente (cuidar da mãe no Castelo de Vide que apanhara uma cornada na virilha), não havia recebido cartas, as obras seguiam muito devagar e só esperavam por ele, em setembro. Quando Jacinto pergunta sobre os caixotes enviando de Paris há quatro meses...Melchior desconhecia o assunto e nada tinha recebido.
Zé Fernandes aconselhou-o a conhecerem o casarão, comerem e descansarem até o amanhecer. No dia seguinte, partiriam para a casa da tia Vicência.
O fidalgo acrescenta:
“ – Amanhã troto, mas para baixo, para a estação!...E depois, para Lisboa!”
Visitaram o casarão e Jacinto achou um horror! Inabitável!
Continuava a queixar-se dos caixotes, “aquele brusco desaparecimento de toda a civilização”, da horrenda Medina, da indiferença das companhias, da inércia do Silvério...Enfim a Península, a barbárie!”
Mas, da janela observava tudo ao seu redor e exclamava que era uma lindeza...e que paz!
Jacinto bebeu a água da fonte, apeteceu a alface rechonchuda e crespa, colheu cerejas e admirou o milharal e os pinheirais.
O jantar simples, mas com fartura foi elogiado pelos amigos e deliciosamente degustado por Jacinto.
“ – Pois é cá a comidinha dos moços da quinta! E cada pratada, que até suas “incelências” se riam...Mas agora, aqui, o senhor D.Jacinto, também vai engordar e enrijar!”
O bom caseiro acreditava que ele passava fome em Paris.
Depois do jantar, foram contemplar o céu e Jacinto observou que “na cidade nunca se olham, nem lembram os astros – por causa dos candeeiros de gás ou dos globos de eletricidade que os ofuscam.”
Ficam a filosofar e Jacinto afirmar, que:
“ – Com a certeza de Descartes. “Penso, logo fujo!” Como queres tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?...Nem só de arroz com fava vive o homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com o Cesimbra, o meu administrador. E também à espera que estas obras acabem, os caixotes surjam, e eu possa voltar decentemente, com roupa lavada, para a trasladação...”
Jacinto já decidido partir no dia seguinte preocupava-se agora com a sua aparência e higiene. Zé Fernandes promete-lhe que chegando a Guiães, providenciaria roupas limpas para ele. “As minhas camisas e as minhas ceroulas talvez te estejam largas. Mas um mendigo como tu não tem direito a elegâncias e a roupas bem cortadas.”
Sem roupas e objetos adequados ao ato de dormir, passam a noite nas modestas instalações improvisadas da Quinta, vivendo, assim, uma original experiência.
CAPÍTULO IX
No dia seguinte, Zé Fernandes parte a Guiães e deixa o fidalgo dormindo beatificamente na sua cama de granito.
Depois de uma semana, Zé Fernandes recebe sua bagagem desviada e telegrafa para Lisboa, onde Jacinto disse que estaria para obter notícias dele e nada consegue.
Um tarde, depois de ter ido visitar a sua prima Joaninha, parou em Sandofim para degustar um vinho e encontrou-se com o Severo, sobrinho do Melchior.
Quando Zé Fernandes pergunta-lhe sobre o Melchior; o sobrinho responde que está bem, que jantou com ele e com o fidalgo em Tormes no dia anterior.
“E meu espanto divertiu o Severo:
- Então V.Exª ...Pois em Tormes é que ele está, há mais de cinco semanas, sem arredar! E parece que fica para a vindima, e vai lá uma grandeza!”
Zé Fernandes vai à Tormes visitar o amigo e encontra-o um “Jacinto novíssimo”, já não corcovava, corado, brilho nos olhos e até o bigode encrespara.
O casarão tinha passado por uma grande reforma e estava lindo.
“E só me soube contar (...) que, ao acordar em Tormes, depois de se lavar numa dorna, e de enfiar a minha roupa branca, se sentira de repente como desanuviado, desenvencilhado! Almoçara uma pratada de ovos com chouriço, sublime. Passeara por toda aquela magnificência da serra com pensamentos ligeiros de liberdade e de paz. Mandara ao Porto comprar uma cama, uns cabides. E ali estava...”
Zé Fernandes indagava por quanto tempo ele pretendia ficar. “Enquanto houver chouriços, e a água da fonte, bebida pela telha ou numa folha de couve, me souber tão divinamente!”
E continuava:
“ – Ando aí pelas terras desde o romper da alva! Pesquei já hoje quatro trutas magníficas...”
Acrescentou que não foi a Lisboa. “Estive lá em cima, ao pé da fonte da Lira, à sombra de uma grande árvores, sub tegmine (em latim, sob a sombra, do verso de Virgílio) não sei quê, a ler esse adorável Virgílio...E também a arranjar o meu palácio!Que te parece, Zé Fernandes? Em três semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!...Trabalhou a freguesia inteira! Até eu pintei, com uma imensa brocha...”
O Grilo já não parecia tão satisfeito com a serra, sua face já não resplandecia, como em Paris.
Jacinto não rompeu totalmente com a imprensa. Agora, no lugar do “Fígaro” ou do “Dois-Mundos”, assinava jornais sobre agricultura. Uma bela rapariga chamada Ana Vaqueira, servia-lhe na casa, mas não estava iludido por ela: “È uma bela moça, mas uma bruta...Não há ali mais poesia, nem mais sensibilidade, nem mesmo mais beleza do que numa linda vaca turina”.
Contou-me que as bagagens foram extraviadas para uma cidade de nome Alba-de-Tormes, na Espanha, pura confusão do rapaz da Companhia de Transporte e que não havia mandado buscar, pois queria gozar da delícia de se erguer de manhã, e de ter só uma escova para alisar o cabelo – antes, tinha talvez trinta!
Tinha descoberto as maravilhas da natureza e da vida bucólica. Ao mesmo tempo, reconciliava-se consigo mesmo.
“ – Oh! Que engenhosa besta, esse Schopenhauer! E maior besta eu, que o sorvia, e que me desolava com sinceridade! E todavia – continuava ele, remexendo a chávena – o pessimismo é uma teoria bem consoladora para os que sofrem, porque desindividualiza o sofrimento, alarga-o até o tornar uma lei universal...”
Aproveitando a presença de Zé Fernandes, decidem marcarem a cerimônia da trasladação dos ossos dos velhos Jacintos. “A cerimônia, de resto, reclamava muita singeleza por serem tão incertos, quase impessoais, aqueles restos...”
Uma tardinha, Jacinto comenta que nunca plantara uma árvore.
“ – Pois é um dos três grandes atos, sem os quais, segundo diz não sei que filósofo, nunca se foi um verdadeiro homem...Fazer um filho, plantar uma árvores, escrever um livro. Tens de te apressar, para ser homem.”
Mas, uma árvore levava tanto tempo para crescer....e ele tinha pressa!
Depois, passou a pensar em criar gado, em seguida, uma queijaria...
E todas essas idéias de transformar a sua propriedade em uma estrutura moderna, com organização e trabalho decente para todos, martelava a mente de Jacinto.
Silvério, o administrador da propriedade, discordava desses empreendimentos, argumentava que tudo isso seria custoso demais e não apresentaria lucros. Segundo ele, Jacinto devia investir em outras terras mais proveitosas que ele possuía em Portugal, principalmente em Montemor, pois lá o clima era melhor.
Mas, nada detinha Jacinto e enquanto “meditava estas transformações da terra, muito progressivamente e com um amável esforço, se ia familiarizando com os homens simples que a trabalhavam.”
No início de sua chegada a Tormes, Jacinto apresentava timidez perante todos que cruzassem o seu caminho, talvez por medo de demonstrar a sua ignorância da lavoura e da terra; ou por receio de parecer desdenhoso de ocupações e de interesses...Agora, parava junto dos trabalhadores, conversava e dizia coisas amáveis.
CAPÍTULO X
Numa manhã o dia nasceu encoberto de nuvens, mas como a previsão de Melchior que a chuva só cairia pela tarde, Jacinto foi até a Corujeira, falar com Silvério, sem se prevenir contra a chuva. No caminho foram surpreendidos pelo temporal que assustou Jacinto. Silvério amedronta-o mais ainda, dizendo que o inverno era pior. Contou-lhe que também foi apanhado logo cedo quando se dirigia a Corujeira, então, pensou em escondera-se na casa do Esgueira, que é um caseiro de cá, mas, lembrou-se que a sua mulher está muito doente, talvez bexigas e vai que essa doença pega...
Jacinto pergunta-lhe se não havia médico e nem boticário pela região. Havia, mas muito longe e as pessoas eram tão pobres que “tomaram eles para pão, quanto mais para remédios!”
Nesse momento, surgiu um rapazinho muito magro, com uma cara miúda, toda amarela, era um dos filhos do Esgueira.
Silvério perguntou sobre a saúde da mãe do rapaz e ele, timidamente murchou os descorados beicinhos.
O fidalgo alertou que o menino também estava doente, mas Silvério sorria, com bondade:
“ – Nada! Este é sãozinho...Coitado é assim amarelo e enfezadito, porque...Que quer Vossa Excelência? Mal comido! Muita miséria...Quando há o bocadito de pão é para todo o rancho. Fomezinha, fomezinha!
Jacinto pulou bruscamente da borda do carro.
- Fome? Então ele tem fome? Há aqui gente com fome?”
Zé Fernandes respondeu que “onde há trabalho há proletariado, seja em Paris, seja no Douro...
“ – Eu não quero saber o que há no Douro. O que eu pergunto é se aqui, em Tormes, na minha propriedade, dentro destes campos que são meus, há gente que trabalhe para mim, e que tenha fome...Se há criancinhas, como esta, esfomeadas? É o que eu quero saber.”
Com a confirmação de Silvério, Jacinto quer certificar-se pessoalmente. Silvério tenta impedi-lo, afirmando ser perigoso ir à casa do Esgueira, não se sabe o que a mulher tem...
Chegando lá, Jacinto choca-se com a aquela morada da Fome, da Doença e da Tristeza.
“E, no pedaço de chão que viam, chão de terra batida, uma mancha úmida reluzia, da chuva pingada de uma telha rota. A parede, coberta de fuligem, das longas fumaraças da lareira, era tão negra como o chão. E aquela penumbra suja parecia atulhada, numa desordem escura, de trapos, de cacos, de restos de coisas, onde só mostravam forma compreensível uma arca de pau negro, e por cima, pendurado de um prego, entre uma serra e uma candeia, um grosso saiote escarlate.”
No caminho de volta, Jacinto parou e disse:
“ – Pois, Silvério, eu não quero mais estas horríveis misérias na quinta. (...) Antes de tudo – continua Jacinto – mande já hoje chamar esse Doutor Avelino para aquela mulher...E os remédios que os vão buscar logo a Guiães. E recomendação ao médico para voltar amanhã, e em cada dia; até que ela melhore...Escute! E quero, Silvério, que lhe leve dinheiro, para os caldos, para a dieta, uns dez ou quinze mil-réis...Bastará?”
Silvério afirmava que:
“ – Quinze mil-réis! Uns tostões bastavam...Nem era bom acostumar assim, a tanta franqueza, aquela gente. Depois todos queriam, todos pedinchavam...”
- Mas é que todos hão de ter – disse Jacinto simplesmente.”
Despertada sua consciência social, Jacinto ordenar providências para minorar a precariedade da vida de seus empregados e promover alguma justiça. Manda construir novas residências para os seus empregados, dar algumas mobílias, comprar roupas e rever o contrato que existem, para melhorá-los.
Então o Silvério teve um brado de terror:
“ – Mas então, Excelentíssimo Senhor, é uma revolução!”
Zé Fernandes compara a atitude de Jacinto com a lenda de um santo...o Santo Jacinto, que “andavas namorado da serra, sem a conhecer, só pela sua beleza de verão. E a serra, hoje, zás! De repente, descobre a sua grande úlcera...”
CAPÍTULO XI
Tia Vicência ficava enciumada das ausências de Zé Fernandes, sempre se demorando em Tormes. Um dia ela pede para o sobrinho levar Jacinto para ela conhecê-lo.
“ – Sossegue, tia Vicência, que o trarei agora, para o dia dos meus anos, a jantar...Damos uma festa, haverá um bailarico no pátio, e vem aí toda essa senhorama dos arredores. Talvez até se arranje uma noiva para o Jacinto.”
Jacinto concordava que em Tormes, faltavam mulheres com M grande. Zé Fernandes fala que a maioria parecia legumes; a filha do D. Teotônio, um monstrengo; a irmã dos Albergaria, um espinafre; a D .Beatriz Veloso, fala como as heroínas do Camilo...e, por fim, cita a sua prima Joaninha, da Flor da Malva. Órfã desde criança de mãe foi criada em Guiães; seu pai, o tio Adrião, era um bom homem.
Jacinto nessa época vivia muito ocupado com os seus investimentos e com a fiscalização das suas obras, função que fazia com muito amor. Os planos iniciais de construir casas simples para os empregados, aperfeiçoaram-se e agora, Jacinto, pretendia instalar uma banheira em cada casa, vidraças...Já encomendara ao seu arquiteto em Paris, a planta para a construção de uma escola, depois uma biblioteca, uma creche, farmácia, e, até uma sala, com projeções de lanterna mágica, para ensinar àquela gente um pouco de cultura e história de Portugal.
A popularidade de Jacinto corre por todos os lados. As pessoas tratam-lhe por “bom senhor” e vêm saudá-lo com risos desdentados clamando-o por: “Este é o nosso benfeitor e desejando-lhe que Deus o cubra de bênçãos!”
Silvério já previa que nas próximas eleições Jacinto teria mais voto que o Doutor Alípio.
João Torrado, um velho morador daqueles sítios, chegou a afirmar que “aquele bom senhor era El-Rei D. Sebastião, que voltara!”
CAPÍTULO XII
Chegou o dia da festa de aniversário de Zé Fernandes (36 anos de idade). Ele estava ansioso, pois pela primeira vez o seu Príncipe, ia visitar Guiães. Com a chegada de uma carta de sua prima Joaninha desculpando-se por não poder ir (seu pai, o tio Adrião estava com um leicenço, furúnculo e impossibilitado de sentar na carruagem), Zé Fernandes fica irritado.
Jacinto trouxe-lhe de presente um alfinete de gravata, com uma safira, uma cigarreira de aro fosco, adornada de florido ramo de macieira em delicado esmalte, e uma faca para livros de velho lavor chinês e para a tia Vicência, uma caldeirinha de água-benta, em prata lavrada que pertenceu à Princesa de Lamballe. O fidalgo tinha aberto às malas de Paris...
O almoço foi alegre e Jacinto comeu com fartura. À tarde, chega o segundo convidado o D.Teotônio sem a sua “horrendíssima filha”.
CAPÍTULO XIII
Jacinto entrou na sala vestido impecavelmente com os trajes das malas de Paris. Estavam presentes: o D. Teotônio, o Ricardo Veloso, o Doutor Alípio, o gordo Melo Rebelo, do Sandofim, os dois manos Albergarias, da quinta da Loja e as senhoras, Beatriz Veloso, as duas Rojões (com a tia Adelaide Rojão) e a mulher do doutor Alípio.
A entrada de Jacinto foi triunfal; todos ficaram em silêncio, observando e analisando Jacinto. Um clima constrangedor pairava no ar. Zé Fernandes tentava quebrar o embaraço, elogiando excessivamente Jacinto e contando “causos” de Paris, como por exemplo, o arroz-doce preparado no 202 na ocasião do aniversário do Jacinto, o caso do peixe do Grão-Duque, mas nada animava.
Durante os brindes, D. Teotônio dirige-se ao Jacinto e sugere brindar o ausente. O fidalgo correspondeu ao brinde, sem entender o motivo.
Quando o Doutor Alípio comenta com Zé Fernandes que espera que não se erga a força novamente em Guiães e apontava Jacinto, o amigo compreendeu o que se passava:
“ Era o miguelismo, por Deus! O bom D.Tetotônio considerava Jacinto como um hereditário, ferrenho miguelista, e na sua inesperada vinda ao seu solar de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de uma propaganda enérgica, e o primeiro passo para uma tentativa de restauração.E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio de uma influência rica, nova, nas eleições próximas, e a nascente irritação contra as velhas idéias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização tão superior.”
“ – Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacinto veio para Tormes trabalhar no miguelismo?”
“ _ Até corre, como certo, que o Príncipe D. Miguel está com ele em Tormes! Disse Melo Rebelo.
E o Doutor Alípio acrescentou:
- Disfarçado em criado!”
Com a desculpa de jogarem cartas, sabendo que Jacinto não joga, Zé Fernandes arrastou os homens para mesa, deixando o amigo entretido entre as mulheres.
Com a mudança climática, os convidados resolveram antecipar a volta.
Zé Fernandes estava chateado com o desenrolar de sua festa, mas Jacinto o encorajava, alegando que quando aquelas pessoas perceberam que estão enganadas, tornaram seus amigos.
Quando tia Vicência ficou sabendo do episódio, riu e disse que o seu falecido marido, D.Afonso e o seu pai, eram liberais. Jacinto afirmou ser socialista e Zé Fernandes explicou que o seu Príncipe lutava pelos pobres.
Jacinto dorme em Guiães.
CAPÍTULO XIV
No dia seguinte, Zé Fernandes convida Jacinto para um passeio até a Flor da Malva. Iriam visitar o tio Adrião, mas, na verdade, Zé Fernandes queria apresentar a sua prima Joaninha ao Jacinto. De manhã, tia Vicência cobriu de elogios a querida sobrinha, pela sua graça, beleza e caridade.
Durante o caminho, Jacinto comentou:
“ Que delicioso dia! Este caminho para Flor da Malva é o caminho do céu...”
Pararam na taberna do Torto para degustarem um excelente vinho branco e enquanto, eram servidos, detrás da ombreira da taberna, uma voz bradou:
“ - Bendito seja o pai dos pobres!”
Era o tio João Torrado, o profeta da serra.
Zé Fernandes o apresentou ao Jacinto e quando o Príncipe o cumprimentou, ele disse:
“ Mão real, mão de dar, mão que vem de cima, mão já rara! Pois louvado seja Nosso Jesus Cristo, que por aqui me trouxe, que não perdi o meu dia, e vi um homem!”
Conversam sobre a volta de D. Sebastião e o profeta explica que “(...) Não se sabe que vai, nem quem vem. A gente vê os corpos, mas não vê as almas que estão dentro. Há corpos de agora com almas doutros. Corpo é vestido, alma é pessoa...”
Chegando, foram recebidos por Manuel da Porta. A Joaninha estava no laranjal com o seu afilhado, o Josezinho, filho da prima Joana.
Procuraram por Joaninha, de repente uma porta se abre e ela aparece toda risonha.
“(...) corada do passeio e do vivo ar, com um vestido claro um pouco aberto no pescoço, que fundia mais docemente, numa larga claridade, o esplendor branco da sua pele, e o louro ondeado dos seus belos cabelos, lindamente risonha, na surpresa que alargava os seus largos, luminosos olhos negros, e trazendo ao colo uma criancinha, gorda e cor-de-rosa, apenas coberta com uma camisinha, de grandes laços azuis.
E foi assim que Jacinto, nessa tarde de setembro, na Flor da Malva, viu aquela com quem casou em maio, na capelinha de azulejos, quando o grande pé da roseira se cobria todo de rosas.”
CAPÍTULO XV
Passaram-se cinco anos em Tormes e a serra. Jacinto e Joaninha têm dois filhos: Jacintinho e Teresinha. A paternidade em Jacinto trouxe-lhe uma nova qualidade: a responsabilidade. Visitou as suas terras de Montemor, da Beira; reformou a propriedade e optou por um equilíbrio entre a simplicidade e a civilização.
Dois meses antes de nascer a Teresinha, mandou buscar os caixotes extraviados para Alba de Tormes. Zé Fernandes pensou que seu amigo estava tendo uma recaída. No entanto, ele mandou guardar no sótão todas as “inutilidades”, separando para a família, somente o necessário para um conforto razoável.
Depois de algumas semanas, Jacinto trouxe o telefone: para a casa do sogro; para a casa do médico e para Guiães, onde estavam o farmacêutico e o amigo.
A preocupação de Jacinto retornasse ao seu comportamento antigo foi desfeita.
“Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a grã-ventura, de que tanto tempo ele fora o príncipe sem principado.”
CAPÍTULO XVI
“Muitas vezes Jacinto, durante esses anos, falara com prazer num regresso de dois, três meses, ao 202, para mostrar Paris à prima Joaninha.”
Mas, essa idéia era sempre adiada: primeiro para esperar o Jacintinho completar dois anos de idade; depois, pela falta de vontade de Joaninha.
Zé Fernandes andava desolado: com a falta de ocupação em virtude das fortes chuvas; com a ida de Ana Vaqueira, viúva que habitava seu coração, para o Brasil; com a morte de sua égua; com algumas dores em seu corpo, então, resolveu partir para Paris.
Chegando a França, encontrou-se por acaso com o Duque de Marizac; contou-lhe todas as novidades de Tomes e perguntou sobre o 202 e pelos amigos.
O Duque de Marizac respondeu que tudo continuava como cinco anos atrás.
Despedem-se e quando Zé Fernandes entra em seu compartimento solitário, teve uma “(...) sensação de monotonia, de saciedade, como cercado já de gentes muito vistas, murmurando histórias muito sabidas, e coisas ditas, através de sorrisos estafados.”
A indiferença, o luxo, a solidão e a promiscuidade de Paris, enojavam Zé Fernandes.
Percorreu as mais famosas ruas de Paris e tudo lhe parecia estagnado. “Não há nada de novo!”
Decidiu, então, visitar o 202. No caminho, encontrou-se com o Grão-Duque, que ao saber das novidades sobre Jacinto, fez ar de desolado e exclamou: “Casado na aldeia, com filharada...Homem perdido!”
No 202 foi recebido pelo velho Vian que queria saber tudo sobre o casamento de Jacinto e sobre os seus filhos.
“Quando penetrei na amada casa senti mais vivamente a minha solidão. Não restava em toda ela nenhum dos costumados aspectos que fizessem reviver a velha camaradagem com o meu Príncipe.”
Teve a sensação de estar dentro de um museu de antiguidades; “e que mais tarde outros homens, com uma compreensão mais pura e exata da vida e da felicidade, percorreriam, como eu, longas salas, atulhadas com os instrumentos da supercivilização, e, como eu, encolheriam desdenhosamente os ombros ante a grande ilusão que findara, agora para sempre inútil, arrumada como um lixo histórico, guardado debaixo da lona.”
Assistiu à uma comédia no Teatro das Variedades, “toda faiscante do mais vivo parisianismo, em que todo o enredo se enrodilhava à volta de uma cama”; tomou um chá no Julien, “nomeio de um áspero e lúgubre namoro de prostitutas, fariscando a presa”; percorreu o Boulevard, só encontrando luxos “que já me enfartara havia cinco anos” e nas livrarias, “sem descobrir um livro, folheava centenas de volumes amarelo...”.
No jantar, era obrigado a saborear pratos exóticos, sem nenhum sabor; pagar preços altos por uma garrafa de vinho fabricado em Tormes, enobrecido com rótulos sofisticados e à noite, nos teatros, deparar-se com a mesma cama em cena, “como centro e único fim da vida, atraindo, mais fortemente que o monturo atrai os moscardos, todo um enxame de gentes, estonteadas, frementes de erotismo, zumbindo chacotas senis.”
Zé Fernandes passa as pontes que separam o centro de Paris do Bairro Latino, onde estudou.
“Num anfiteatro, onde sentira um grosso sussurro, um homem magro, com uma testa muito branca e larga, como talhada para alojar pensamentos altos e puros, ensinava, falando das instituições da cidade antiga. Mas, mal eu entrara, o seu dizer elegante e límpido foi sufocado por gritos, urros, patadas, um tumulto rancoroso de troça bestial, que saía da mocidade apinhada nos bancos, a mocidade das escolas, primavera sagrada, em que eu fora flor murcha.”
Quando o professor foi retomar a palavra, os alunos continuaram com a algazarra. Zé Fernandes pergunta a um senhor, por que estava acontecendo aquilo e o velho responde que: “ ...È sempre assim, agora, em todos os cursos...Não querem idéias...Creio que queriam cançonetas. É o amor da porcaria e da troça.”
Irritado com esse comportamento dos alunos, Zé Fernandes berra:
“ - Silêncio, brutos!”
Um rapaz enfrenta Zé Fernandes, chamando-o de mouro sujo.
“Ergui o meu grosso punho serrano, e o desgraçado, numa confusão de melenas, com sangue por toda a face, aluiu, como um montão de trapos moles, ganindo desesperadamente, enquanto o furacão de uivos e cacarejos, guinchos e silvos, envolvia o professor, que cruzara os braços, esperando com uma serenidade simples.”
Nesse momento, Zé Fernandes decide voltar para as serras. Antes, passou um dia divertido comprando brinquedos para os seus queridos de Tormes: vapores de aço e cobre providos de caldeiras para viajar em tanques; leões de pele verídica rugindo pavorosamente; bonecas vestidas pela Laferrière, com fonógrafo no ventre...
“ – Pois adeusinho, até nunca mais! Na lama do teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez, não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu gênio, elegante e claro, lá o receberei na serra pelo correio. Adeusinho!”
Zé Fernandes, ao desembarcar em sua estação em Portugal, foi recebido pelos senhores de Tormes; Teresa, sua afilhada e Jacintinho que empunhava uma bandeira branca, dizendo que era a bandeira do castelo, feita pelo Grilo.
Jacinto pergunta-lhe sobre Paris e ele responde que está medonha.
Enquanto isso, a serra prosperava!!!
Jacinto convida o amigo para ficar em Tormes e contar sobre a civilização. No momento que se preparavam para subir as serras, o carregador da estação traz a Zé Fernandes um maço de jornais e papéis, que havia esquecido na carruagem.
“ Era uma papelada, de que me sortira na Estação de Orleães, toda recheada de mulheres nuas, de historietas sujas, de parisianismo, de erotismo. Jacinto, que as reconhecera, gritou rindo:
- Deita isso fora!”
E eu atirei, para um montão de lixo, ao canto do pátio, aquele pútrido rebotalho da civilização.”
Já montado, quando olhou para trás para despedir-se do Pimenta, viu-o recolhendo aquele lixo da civilização de Paris.
E em fila começaram a subir a Serra. A natureza exuberante os rodeava; a bandeira na mão do Jacintinho flutuava no ar “ e na verdade me parecia que, por aqueles caminhos, através da natureza campestre e mansa, o meu Príncipe, atrigueirado nas soalheiras e nos ventos da serra, a minha prima Joaninha, tão doce e risonha mãe, os dois primeiros representantes da sua abençoada tribo, e eu, tão longe de amarguradas ilusões e de falsas delícias, trilhando um solo eterno, e de eterna solidez, com a alma contente, e Deus contente de nós, serenamente e seguramente subíamos – para o Castelo da Grã-Ventura!”
9 – CONSIDERAÇÕES FINAIS:
- Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de Queirós, o seu último romance, “A Cidade e as Serras”, não se pode considerar uma obra inteiramente acabada, pois não foi submetida à revisão final – que o autor chamava a operação de “pente fino” -, importante para garantir as sutilezas de seu estilo.
Na verdade, esse romance é o desenvolvimento de um conto que Eça escrevera anteriormente e que se chamava “A Civilização”.
- A obra “A Cidade e as Serras” pertence à terceira fase do autor. O escritor abranda sua atitude crítica diante de Portugal, abandona o negativismo da fase anterior, e cria histórias em que ocorre um reencontro com as forças positivas do país – nas forças encontráveis no presente, na vida das pessoas simples e vigorosas que habitam os campos e as serras de Portugal.
- A primeira parte do livro, passada em Paris, ainda conserva algumas características mais marcantes da sátira de Eça de Queirós, com seus tipos caricatos e situações de grande comicidade. Na segunda parte, o tom muda bastante: as críticas zombeteiras e cáusticas são substituídas por compreensão simpática, que às vezes à exaltação, as notações caricaturais dão lugar a longas descrições comovidas, o olhar malicioso transforma-se em gesto de ternura. Enfim, - e isto e motivo de contentamento para os admiradores nacionalistas de “A Cidade e as Serras”. Eça, o irônico e terrível demolidor da vida portuguesa de seu tempo, converte-se em ardoroso entusiasta de seu país, confiante não só na força de seu passado grandioso (“O Mito do Sebastianismo”), mas também nas virtudes de seu presente alheio à marcha da história e às novidades do progresso.
- Oposição cidade-campo: A civilização é tratada com comicidade justamente porque várias das fantásticas novidades do Progresso ali satirizadas converteram-se ou em velharias datadas, ou em banalidades absolutamente integradas à vida cotidiana. Enquanto que, o campo é exaltado como sede das fontes da vida, em detrimento da cidade artificial e nociva.
- O gênero bucólico foi cultivado por grandes autores de várias épocas, desde a Antiguidade, entretanto era inteiramente estranho ao universo do romance realista-naturalista, que se caracterizava por ser urbano e progressista.
- Para o crítico Antonio Sérgio (Ensaios) “a antítese queirosiana da Cidade-Serra (ou de Civilização-Simplicidade) foi uma falsa aparência com que a imaginação o iludiu, e que a verdadeira antítese em que se esteia o livro é a antítese Ociosidade-Ocupação.”
- Para Alexandre Pinheiro Torres, em “Os falsos códigos edênicos de “A Cidade e as Serras”, o autor quer mostrar-nos que tanto Jacinto como Zé Fernandes possuem uma noção falsa da Cidade. O primeiro porque a converteu erradamente num Éden, o segundo porque sempre a considerou Inferno, disfarçada de coisas superficialmente atraentes. Ambas as visões são caricaturais. Jacinto e Zé Fernandes são simultaneamente falsos intérpretes da Cidade e do Campo, logo falsos intérpretes das soluções que salvariam os espaços urbanos e rurais dos males de que Zé Fernandes se faz principal diagnosticador.”
- Álvaro Lins, grande crítico literário, considerou o livro como “uma vergonha” de romance, se comparado com os livros da fase anterior do escritor. “Há apenas dois personagens que são trabalhados (Jacinto e Zé Fernandes); (...) Eça assume um partido muito subjetivo das serras e esquece-se de construir uma história que realmente justifique a superioridade do campo sobre as cidades; o autor abusa das descrições para tapar buracos que a falta de trama e personagens bem construídos cria e a solução para valorizar o livro, segundo o crítico, seria considerá-lo não um romance; mas um ensaio, um estudo sobre a vida no campo comparada à vida nas cidades.
- “A Cidade e as Serras” pode ser considerado um “romance de tese”, isto é: um romance que pretende defender um determinado ponto de vista sobre um assunto. A tese que o autor pretende defender é a superioridade das serras quando comparadas à cidade. Porém, “o amor de Jacinto às serras forma-se como um derivativo e uma consequência; não vem delas mesmas. É um tédio de uma situação que o leva a outra. Mas o tédio de Jacinto origina-se de uma condição excepcional e privilegiada: Jacinto pode concentrar no 202 o máximo de conforto, de progresso e de civilização para depois se cansar de tudo isso. Pôde realizar a sua fórmula perfeita de progresso, e quando terminou não tinha mais nada que fazer. O que significa: o amor das serras vem do desencanto da cidade. O que significa ainda: para amar as serras é preciso ter sido antes Jacinto, o que constitui uma necessidade difícil: exige a posse de uma fortuna fora do comum e de uma desembestada fantasia. É um amor extremamente caro e quase inacessível”, afirma Álvaro Lins.
- “A Cidade e as Serras”, embora pertença a terceira fase do Realismo-Naturalismo português; segundo boa parte da crítica, é uma obra compromissada com o ideário simbolista.
- Por meio da personagem central, Jacinto de Tormes, que representa a elite portuguesa, a obra critica-lhe o estilo de vida afrancesado e desprovido de autenticidade, que enaltece o progresso urbano e industrial e se desenraiza do solo e da cultura do país.

- Na obra, a apologia da natureza não pode ser confundida com o elogio da mesmice e da mediocridade da vida campestre de Portugal. Ao contrário, trata-se de agigantar o espírito lusitano, em seu caráter ativo e trabalhador. Assim, podemos afirmar que depois da tese (a hipervalorização da civilização) e da antítese (a hipervalorização da natureza), o protagonista busca a síntese, ou seja, o equilíbrio, que vem da racionalização e da modernização da vida no campo.

- Um argumento para tal interpretação está no fato de que, quando se desloca para a serra, Jacinto sente um irresistível ímpeto empreendedor, que luta inclusive contra as resistências dos empregados ao trabalho.
- Jacinto de Tormes, ao buscar a felicidade, empreendeu uma viagem que o reencontrou consigo mesmo e com o seu país. Tal viagem, que concomitantemente é exterior e interior, abarca a pátria portuguesa e se reveste de uma significação particular, que pode ser lida como um processo de auto-conhecimento: um novo Portugal e um novo português que se percebem nas serras e que querem utilizar da cidade, o necessário para se civilizarem sem se corromperem.
- Podemos considerar A Cidade e as Serras um romance no qual se destaca a categoria espaço, na medida em que os ambientes são fundamentais para a compreensão da história, destacando-se os contrastes por meio dos quais se contrapõem. Assim, a amplidão da quinta de Tormes contrasta com a estreiteza do universo tecnológico do 202, o que aponta para a oposição entre o espaço civilizado e o espaço natural, presente em todo o romance.
- Uma particularidade da personagem José Fernandes, está na importância que dá aos instintos, sobrepondo-os à sua capacidade de sentir ou de pensar. Assim, tanto desilusões amorosas quanto preocupações sociais são tratadas com almoços extraordinários. Ao longo do romance ele procura provar o engano que as crenças civilizatórias de seu amigo, Jacinto de Tormes, podem conduzir, embora o admire exageradamente.
- Jacinto de Tormes é filho de uma família de fidalgos portugueses, mas nascido e criado em Paris. Se cerca de artefatos da civilização e de tudo o que a ciência produz de mais moderno. Entretanto, o excesso de ócio e conforto o entedia, a ponto de fazê-lo perder o apetite, a sede lendária, a robustez física e a disposição intelectual da juventude. Levado pelas circunstâncias a conhecer suas propriedades nas serras portuguesas, Jacinto de Tormes apaixona-se pelo campo, lá introduzindo algumas inovações.

- Trata-se, enfim, de um D. Sebastião atualizado pelo socialismo e pelo positivismo. A trajetória percorrida pelo protagonista Jacinto de Tormes deve-se em grande parte, às instâncias e insistências de José Fernandes, que ao mesmo tempo é contador da história e um de seus personagens principais.

Um comentário:

Nicole disse...

Muito obrigada pelas análises, além de ler esses livros e resumi-los por conta, estou buscando análises deles na internet, achei o do seu blog o meu completo e mais fácil de entender.