quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Pedro Américo, O grito do Ipiranga - independência ou morte



(1843-1905)

"A realidade inspira, e não escraviza o pintor", disse Pedro Américo para justificar suas opções

I – PEDRO AMÉRICO:

PEDRO AMÉRICO nasceu em uma família ligada às artes, filho de Daniel Eduardo de Figueiredo e Feliciana Cirne e, irmão do pintor Francisco Aurélio de Figueiredo e Melo, desde cedo encontrou em sua casa o estímulo necessário ao desenvolvimento de seu talento precoce na música e no desenho.


Casa onde Pedro Américo nasceu, hoje um museu à sua memória

Pedro Américo tinha apenas 10 anos quando integrou a missão científica do naturalista francês Louis-Jacques Brunet pelo Nordeste do Brasil, desenhando a fauna e a flora do sertão.
Nascido em Areias, Paraíba, o talento precoce abriu-lhe as portas da Corte. Um ano depois da aventura naturalista, estava no Rio de Janeiro, onde caiu nas graças de D. Pedro II, grande incentivador das artes nacionais.
Ingressou na Academia Imperial de Belas-Artes pelas mãos do próprio imperador, que mais tarde patrocinou-lhe uma bolsa de estudos na Europa, onde foi aluno de mestres do neoclassicismo, como Ingres e Horace Vernet. Veio daí seu gosto por temas mitológicos e históricos, sempre com toques ufanistas e grandiloquentes.
Regressando ao Brasil, venceu um concurso para professor da cátedra de Desenho da Academia com a obra Sócrates afastando Alcebíades dos braços do vício, que lhe rendeu elogios mesmo dos outros competidores. Desta fase são também Petrus ad Vincula, na Igreja de São Pedro no Rio, e A carioca que foi oferecida ao Imperador mas foi recusada por ser considerada licenciosa, causando escândalo quando foi exposta ao público em 1865.


A carioca, Museu Nacional de Belas Artes. Versão de 1882 de original de c. 1865

Em seguida retornou à Europa para mais uma temporada de estudo, produzindo um São Marcos, a Visão de São Paulo e a Cabeça de São Jerônimo, além de outros quadros, e defendendo tese na Faculdade de Ciências da Universidade Livre do Partido Liberal em Bruxelas para obter o grau de Doutor em Ciências Naturais, sendo aprovado com mérito e indicado professor adjunto.
Retornou ao Brasil e passou a dedicar-se ao magistério na Academia e à pintura, iniciando um período fértil em grandes realizações, com as telas Batalha do Campo Grande, Ataque da Ilha do Carvalho, o Passo da Pátria e diversos retratos, incluindo dos imperadores D. Pedro I e Pedro II e do Duque de Caxias.

Fala do Trono, 1873.


Também neste período começou os esboços para uma que seria das suas maiores obras-primas, a enorme Batalha de Avaí, que só viria a ser concluída em 1877 e que é uma das peças capitais do nacionalismo romântico e do academismo no Brasil.


A Batalha do Avaí, 1877, Museu Nacional de Belas Artes

Ainda em Florença realizou muitas outras pinturas, das quais se destacam A Batalha de San Martino, A noite acompanhada dos gênios do amor e do estudo, Joana D'Arc e O voto de Heloísa.
Entre 1885 e 1893 deslocou-se diversas vezes entre Europa e Brasil, terminando a Batalha de Avaí e outra obra de grande vulto, a Proclamação da Independência, e peças menores. Neste ínterim foi eleito em 1890 deputado junto ao Congresso Constituinte por Pernambuco. O artista nunca ocultou do monarca protetor suas posições republicanas. Conseguiu manter seu prestígio junto ao governo quando proclamou-se a República, mudança que levou ao ostracismo o outro grande mestre acadêmico de sua geração, Victor Meirelles, e para o novo regime produziu obras emblemáticas como o Tiradentes esquartejado, além de Honra e Pátria e Paz e Concórdia, seu último trabalho.
Morreu em Florença, Itália, cinco anos depois.


Tiradentes Esquartejado, 1893.

II – CARACTERÍSTICAS:

Foi pintor, historiador, filósofo e escritor.
PEDRO AMÉRICO inseriu-se na tradição acadêmica de índole Neoclássica que foi estabelecida pela Academia Imperial, que privilegiava temas históricos e personificações alegóricas em abordagens idealistas, mas quando sua carreira realmente tomou alento o estilo geral já havia evoluído para o Romantismo, tendência que ele rapidamente pôde acompanhar e onde deixou sua melhor produção.
Na Europa, o Romantismo foi uma corrente que encontrou força nas antigas mitologias nacionais para prosperar, e olhou para o passado com olhos de nostalgia das suas glórias pregressas. Mas a jovem monarquia brasileira nada encontrou no passado local que se comparasse à milenar herança cultural européia. No remoto passado brasileiro só havia selvagens, e os monumentos de arte e arquitetura significativos eram todos barrocos, um estilo considerado há muito fora de moda e por demais ligado a Portugal e à religião para satisfazer as elites e a burguesia ascendente, que desejavam afastar a memória dos tempos de colônia dominada pela Igreja e explorada pela Metrópole distante, e agora tinham a França como modelo. Era um país novo, pobre, que somente há poucos anos conquistara sua independência, e para construir as bases de identidade e união desse projeto de nação, foi necessário o resgate de elementos locais que antes havia rejeitado, como o índio, agora idealizado e retratado cheio de uma nobreza, pureza e beleza inatas. Através dele, e da representação de personagens da família imperial como símbolos vivos da soberania nacional, e das batalhas que asseguraram a posse do território e afirmaram o Brasil como potência militar na Améria do Sul, além de ilustrarem o heroísmo nativo, encontraram-se os elementos emocionais e conceituais adequados para a construção de uma iconografia nacionalista que pudesse legitimar este país recente diante das potências internacionais e que ainda carecia de uma simbologia própria.
Seu nacionalismo encontrou expressão na constante promoção de um projeto de arte nacional, sendo mesmo um defensor da mudança da capital do Rio para o centro do país, embora outros digam que ele pouco interesse real tinha pelo Brasil e que suas longas estadas na Europa eram uma fuga. Seja como for, muitas de suas obras entraram para o imaginário coletivo brasileiro, tendo sido reproduzidas em inúmeros livros de História usados nas escolas e universidades e contribuíram para fomentar o patriotismo entre os brasileiros, e se alinhavam perfeitamente com a ideologia da época, da qual foi sem dúvida um dos grandes intérpretes e o que lhe assegurou um sucesso contínuo entre as elites patrocinadoras, mesmo que na temática suas preferências pessoais caminhassem em outra direção.
PEDRO AMÉRICO foi um inovador e manifestava-se favorável ao uso da fotografia como auxiliar na confecção das obras pictóricas. Apesar de ser mais conhecido por suas obras históricas profanas, era, segundo ele mesmo, a história sagrada o que mais lhe atraía.





Judith rende graças a Jeová por ter conseguido livrar sua pátria dos horrores de Holofernes, 1880, Museu Nacional de Belas Artes

III – O GRITO DO IPIRANGA – INDEPENDÊNCIA OU MORTE (1888)


“O Grito do Ipiranga" (1888), atualmente no salão nobre do Museu Paulista da USP, é a obra mais divulgada de Pedro Américo. O nome original dessa tela é "Independência ou Morte".
Trata-se de uma tela retangular que mostra Dom Pedro I proclamando a independência do Brasil. A imagem, no entanto, não é exatamente uma fotografia do momento em que D. Pedro I recebeu a carta que o deixou irado e o levou a pronunciar a famosa frase: “Independência ou Morte”. Afinal, a independência do Brasil foi proclamada em 1822 e Pedro Américo só foi terminar de pintar o quadro em 1888, em Florença, na Itália.
A obra foi encomendada pela Família Real, que investia na construção do Museu do Ipiranga, hoje oficialmente chamado Museu Paulista, que fica em São Paulo (SP).
Nessa época, Pedro Américo já era um pintor famoso e partiu dele a proposta de pintar um painel alusivo à Independência para decorar o salão de honra do edifício-monumento. "Ao contrário do que se imagina, ele não foi convidado para executar o trabalho, mas se ofereceu para fazê-lo", afirma Cecília Helena de Salles Oliveira, vice-diretora do Museu Paulista. O artista veio ao Brasil especialmente para apresentar um esboço preliminar do quadro. Para tanto, leu, pesquisou, entrevistou testemunhas oculares, visitou o local, pesquisou na Biblioteca Nacional e no Instituto Histórico, ambos no Rio de Janeiro, em busca de descrições que pudessem auxiliá-lo. Antes de se entregar ao trabalho, o pintor visitou várias vezes a colina do Ipiranga, desenhando de diferentes pontos o local que serviu de cenário ao acontecimento histórico. Com a ajuda das respectivas famílias copiou retratos de alguns companheiros de D. Pedro I presentes na proclamação, embora fossem imagens posteriores à Independência.
No entanto, por razões estéticas, teria sido obrigado a fazer mudanças nas personagens e no cenário a fim de produzir os esplendores de imortalidade.
Num contrato firmado em 1886, ele se propôs entregar o painel no prazo máximo de três anos. "Em contrapartida, o pintor, certamente, mudou a concepção da tela, o que proporcionou uma conciliação de interesses", explica Cecília.
Curiosamente, não há esboços integrais da primeira versão do quadro, nem da definitiva. Apenas estudos de alguns detalhes, tais como figurantes da comitiva e cavalos. "É curioso que os esboços tenham desaparecido, pois Pedro Américo não finalizaria uma tela desse porte sem antes fazer um traçado prévio do conjunto", supõe a historiadora. "Eles seriam de grande importância para avaliar as mudanças introduzidas na idéia original." Seja como for, nunca se saberá quais foram às alterações feitas pelo pintor. A maior evidência de que houve alterações na obra original está em um editorial do jornal republicano A Província de São Paulo, de 15 de dezembro de 1885, que sugere ter a comissão rejeitada a primeira versão por não concordar com a "concepção artística".
A tela foi entregue à Comissão do Ipiranga em 14 de julho de 1888. Como o edifício-monumento ainda não estava concluído, permaneceu enrolada e encaixotada por sete anos. A exposição no lugar definitivo só aconteceu durante a República, quando o prédio foi inaugurado como Museu Paulista, em 7 de setembro de 1895. A partir dessa data, o local passou a ser palco de festividades cívicas, como acontece até hoje.
A idéia era ressaltar a monarquia que já estava fragilizada e caiu em 15 de novembro de 1889, com a Proclamação da República. Assim, o “Grito do Ipiranga” é um quadro simbólico como várias outras pinturas históricas espalhadas pelo mundo.
“Só que não é fiel à realidade”, como relata a historiadora Cecília Helena de Salles Oliveira. No livro O Brado do Ipiranga, ela explica como os soldados em uniforme de gala, os cavalos garbosos, o príncipe engalanado e a paisagem foram usados pelos conservadores de então para dar brilho a uma monarquia em decadência.
Além das questões levantadas acima, Pedro Américo também é acusado de plagiar outro quadro histórico. Trata-se de "1807, Friedland", de Ernest Messonier, pintado em 1875 e que retrata a vitória de Napoleão Bonaparte na batalha de mesmo nome.
PEDRO AMÉRICO preferiu retratar D. Pedro I e sua comitiva montados em cavalos, quando na realidade cavalgavam mulas. Assim, o pedestre animal, apesar de ter arcado com o peso imperial, teve o desgosto de se ver substituído no quadro pela nobreza de um cavalo.
Resolveu também dar ao rosto do jovem imperador um ar garboso e resoluto, por considerar indigno eternizá-lo com a feição de quem estava sofrendo com um incômodo gástrico, razão de sua parada nas colinas do Ipiranga, conforme os cronistas. Como se sabe, a diarréia fora o motivo da parada da comitiva às margens do Ipiranga (um irreverente poderia acusar dom Pedro de ter iniciado a poluição do desditoso riacho).
O uniforme da guarda de honra também foi alterado. A ocasião merecia traje de gala, em vez do uniforme "pequeno". O carreiro com seu carro de bois, segundo o pintor, entrou em cena para dar cor local, retratar a placidez usual daquelas paragens, perturbada pelo acontecimento. Não aceitou a sugestão de obter o mesmo efeito com uma tropa de asnos, bicho que definitivamente desprezava. O que não impediu que seu carreiro fosse mais tarde objeto da mordacidade de Eduardo Prado, que nele viu o símbolo do povo brasileiro assistindo espantado à cena insólita.
Entre uma e outra licença estética, o pintor aproveita para se desculpar pelo deslize topográfico que se viu obrigado a cometer na representação do célebre riacho do Ipiranga. Se fosse rigorosamente realista, a correnteza deveria passar por trás de quem observa o painel. Para que as célebres margens do Ipiranga integrassem a alegoria, ele preferiu colocá-las entre o espectador e a cena. Enfim, tudo pela arte.

PEDRO AMÉRICO frisa em seu livro que tais procedimentos são justificados quando se trata de quadros históricos, sobretudo se os acontecimentos retratáveis ocorreram há muito tempo, como era o caso da Independência do Brasil. Atrás deles estão seus acompanhantes: à direita e à frente do grupo principal, num semicírculo, estão os cavaleiros da comitiva; à esquerda, e em contraponto aos cavaleiros, está um longo carro de boi guiado por um homem do campo que olha a cena, curioso. Movimento e imponência fazem o gesto de Dom Pedro I, na concepção do pintor, um momento privilegiado da história do Brasil.

IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS:


O quadro de PEDRO AMÉRICO apresenta muitas semelhanças com a tela "1807, Friedland", de Ernest Meissonier, pintado em 1875, que se refere à batalha de Friedland, vencida por Napoleão em 1807.

A semelhança na composição dos dois quadros é muito grande. Em ambos, a figura central, d. Pedro e Napoleão, é colocada sobre uma elevação do terreno, cercada por seus estados-maiores. Ao seu redor, em movimento circular, soldados entusiasmados saúdam com as espadas desembainhadas. A dinâmica das figuras nos dois quadros aponta para o centro ocupado pelo príncipe e pelo imperador. Sobressai em primeiro plano o movimento dos cavalos, cujo desenho exato era obsessão de Meissonier. Nos dois casos, finalmente, nenhuma ambiguidade quanto ao objetivo dos pintores: a exaltação do herói guerreiro.

PEDRO AMÉRICO também não menciona em seu texto outro quadro sobre o mesmo tema da Independência, executado em 1844, a pedido do Senado imperial, por François-René Moreaux, um pintor francês então residente no Rio. Não se sabe se conhecia o quadro de Moreaux, sem dúvida inferior ao seu em qualidade. O certo é que as duas telas são antitéticas, como observou Maria de Lourdes V. Lyra. Moreaux altera mais radicalmente as figuras e o cenário. D. Pedro monta um cavalo, mas ergue o chapéu em vez da espada. Não está em posição mais alta, cercado de soldados, mas no meio de gente do povo, de mulheres e de crianças descalças que ocupam a frente da cena. O clima é de alegria festiva e não de exaltação patriótica.

Nenhum dos dois pintores representou com exatidão os fatos, como, aliás, querendo ou não o artista, sempre acontece. Mas a distorção tinha finalidades distintas. Pedro Américo, atendendo à finalidade da encomenda, buscou construir a imagem de um herói guerreiro, criador de uma nação. Moreaux, talvez pensando nas revoluções de sua pátria, pintou um líder popular, instrumento de um movimento coletivo que fez a Independência. Duas maneiras de contar a história, duas maneiras de construir a memória nacional. Ironicamente, Pedro Américo, mais fiel do que Moreaux ao que acontecera à margem do Ipiranga, estava mais distante do que o francês do que foi o processo de Independência.


1807, Friedland, Ernest Meissonier (1875)


Independência, François René Moreaux (1844)

Um comentário:

Profª Sheila Suzano disse...

Ótima postagem sobre o fato histórico e sua representação na história da Arte.