domingo, 29 de agosto de 2010
A POESIA LÍRICA E SATÍRICA DE GREGÓRIO DE MATOS
“Não é apenas por ser o primeiro grande poeta da literatura luso-brasileira que Gregório de Matos deve ser incluído nestas obras seletas. Sua poesia é de uma contemporaneidade espantosa e tem influenciado poetas críticos brasileiros, sobretudo da modernidade. O rigor de sua ironia traz marcas profundas no modo como lê as relações sociais da época seiscentistas, as quais parecem se enquadrar perfeitamente na contemporaneidade. Sua poesia, construída em alto estilo barroco, faz permanente ironia às formas retóricas usadas na época, ao mesmo tempo que delas se vale. A questão política e as questões de justiça consistem num dos motes marcantes no lúcido procedimento argumentativo do poeta.”(FGV-Direito/2008)
O BARROCO - “PÉROLA IRREGULAR”
BARROCO: originalmente, uma palavra portuguesa que significa uma pérola de formato irregular ou, como alguns historiadores asseveram, deriva do italiano “baroco”, um obstáculo na lógica escolástica medieval. Num ou noutro caso, a palavra circulou num sentido metafórico quando significava qualquer idéia enrolada ou um processo tortuoso e intricado de pensamento.
Denis Diderot, autor francês do século XVIII e crítico de arte, designa-a como metáfora “pérola” igual a “coisa”, imperfeita no sentido etimológico.
Em 1797, o crítico italiano Milizia escreveu: “O Barroco é a última palavra em bizarria; é o ridículo levado a extremos...”
I – DADOS CRONOLÓGICOS:
A culminância do estilo Barroco deu-se no século XVI, ainda que não haja uniformidade de traços: há um Barroco ibérico-jesuítico (Espanha, Itália, Portugal, com projeções na América Latina), caracterizado pela exasperação do conflito provocado pela crise religiosa; há um Barroco reformista e luterano (Alemanha, Holanda, Inglaterra), doméstico, leigo, sem finalidade litúrgica, em virtude de serem países protestantes e há países em que as manifestações do Barroco foram muito tênues (Suécia, países nórdicos, onde quase não existiu conflito religioso).
Assim, o Barroco será mais intenso, quanto mais intensa tiver sido a atuação da Reforma Protestante ou da Contra-Reforma Católica, razão pela qual se diz entre nós que o “Barroco é a arte da Contra-Reforma”.
O Barroco português foi um estilo artístico que teve início em 1580, com a Unificação Ibérica (Portugal passando a ser dominado pela Espanha), e pela morte do grande poeta português, Camões, estendendo-se até 1756, com a fundação da Arcádia Lusitana (ou Ulissiponense) – início do Arcadismo em Portugal.
No Brasil, tem início em 1601, com a publicação do poema “Prosopopéia” de Bento Teixeira e vai até com a publicação de “Obras” de Cláudio Manoel da Costa.
II – CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL:
Para entendermos os acontecimentos daquele século, precisamos buscar suas origens, em fatos do século XVI, dos quais um dos mais importantes foi a Reforma Protestante, que se iniciou na Alemanha e expandiu-se por muitos outros países. Ao barroco, como estilo artístico, vinculam-se diretamente acontecimentos históricos, religiosos, econômicos e sociais de grande significação para a história da humanidade e que devem ser pelos citados aqui. Entre eles, destaca-se o início dos governos absolutistas europeus com especial ênfase para a França, Áustria e a Alemanha, quando os reis eram considerados como senhores absolutos, com amplos poderes adquiridos por direito pessoal.
Por outro lado, após a revolta de Lutero, que resultou na Reforma Protestante, a Igreja Católica foi obrigada a rever suas atitudes quanto aos principais dogmas e ao seu próprio fundamento, diminuindo os abusos do poder dos papas e dos religiosos em geral, como foi determinado pelo Concílio de Trento.
A REFORMA E A CONTRA-REFORMA:
A Reforma Protestante foi o movimento de contestação à doutrina da Igreja Católica, teve como principal líder o alemão Martinho Lutero. Apesar de ter sido um movimento religioso, provocou mudanças em outros setores da cultura européia. Favoreceu, por exemplo, a formação dos Estados nacionais, ao propor que cada nação se libertasse do poder do papa.
A Igreja Católica, porém, logo se organizou contra a Reforma. Na verdade, desde o início do século XV havia essa reação espiritual, mas apenas no século XVI essa reação viria a constituir a Contra-Reforma.
Com a ação das grandes ordens religiosas, como a Companhia de Jesus, a Igreja Católica retomou sua força e construiu novas e grandes igrejas.
A arte voltava a ser vista como um meio de ampliar a influência católica.
Dessa maneira, o Absolutismo e a Contra-Reforma, podem ser ainda somados outros eventos importantes como a Revolução Comercial, resultante do ciclo das grandes navegações que modificou os sistemas econômicos até então vigentes e favoreceu as descobertas de novas terras.
A própria cultura barroca seria instrumento ideológico de uma classe poderosa, a burguesia, que via naquela um agente de seu interesse, principalmente na Holanda, Bélgica e França.
Assim, a opinião pública, pré-condicionada, foi manipulada por inúmeros artifícios, notadamente nas artes plásticas, no teatro e nos festivais religiosos.
As reformas religiosas foram:
Função do sacerdote (líder, dízimo, impostos dos governantes): poder espiritual e temporal.
Calvino corta com a Igreja e obtêm apoio dos governantes (evitar mandar dinheiro para Roma e construir governos locais).
O sacerdote protestante não tinha o poder de perdoar ninguém, o perdão tem que vir da própria consciência do pecador e buscavam a ensinar a “salvação” através das leituras realizadas na Escola Dominical. O pecador reconhece a sua culpa com base nos ensinamentos religiosos. As traduções eram interpretativas, subjetivas e buscavam o enriquecimento pessoal pela graça divina, onde o trabalho é o caminho da salvação e da continuidade da obra divina.
O sacerdote não tinha acesso às escrituras. Ele era custeado pela comunidade, podia casar-se e o dízimo era recolhido no hollerith e controlado pelo Estado.
Com o enfraquecimento da nobreza e o fortalecimento da burguesia, o catolicismo centrado em Roma reagiu. O Concílio Tridentino visava conter a debandada e expandir os números de fiéis.
Na época a Península Ibérica dominava o mundo, ao invés de buscar àquele que demandou, buscou na Contra-Reforma (Santo Ofício da inquisição) mais na Companhia de Jesus representada pelo Pe. Inácio de Loyola (espanhol) através da catequese, trabalhando em troca da salvação.
Para garantir o acesso da comunidade negra, associaram as imagens africanas com o catolicismo.
O período entre 1600-1750 conseguiu casar a técnica avançada e o grande porte da Renascença com a emoção, a intensidade e a dramaticidade do Maneirismo, fazendo do estilo barroco o mais suntuoso e ornamentado na história da arte.
Com o desaparecimento de D. Sebastião, rei de Portugal, na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, e não tendo herdeiros à sucessão, o trono português ficou condicionado ao sucessor mais próximo, que reservava os direitos a D. Felipe II, rei da Espanha, culminando a união das coroas ibéricas.
O Barroco encontrou Portugal em seu período mais negro (Século das Trevas), sem sua autonomia política e acreditando na volta de D. Sebastião, que tornaria Portugal potência mundial (Mito do Sebastianismo).
Enquanto a Europa vive um avanço científico, a Península Ibérica está encoberta de medo, insegurança e contradições, tendo a religiosidade (contra-reforma) como ponto de partida para discussões.
III – CARACTERÍSTICAS:
O Barroco é considerado um dos estilos artísticos mais complexos. A historiografia e a crítica dividem-se desde a recusa do Barroco, por falta de temática e exagerada manipulação da palavra, à forte apologia que fazem à escola os anatomistas do estilo, maravilhados com a sua engenhosidade. A ala mais conservadora rotula o Barroco como “pérola irregular”, alegando que a escola na verdade, é um classicismo atrasado e imperfeito.
Heinrich Wölfflin analisa o Barroco como uma arte universal, expressiva dos períodos marcados por graves conflitos espirituais.
O Barroco é marcado pelo dualismo entre a conscientização do pecado versus a preocupação com a salvação da alma.
A linguagem rebuscada, o excesso de figuras de linguagem, a ordem inversa, o detalhismo, resultam numa arte obscura revestida de conflitos íntimos, onde o teocentrismo medieval duela com o antropocentrismo pagão renascentista.
O bifrontismo do homem Barroco é evidenciado na dúvida existencial; ele se coloca dividido entre o espírito versus carne, perdão versus pecado, céu versus terra, alma versus corpo, virtudes versus prazeres, levando o poeta abusar das antíteses, paradoxos, hipérboles, hipérbatos e metáforas.
A brevidade de vida e a transitoriedade de tudo fazem com que o homem Barroco viva intensamente o seu presente, gozando ao máximo os seus dias.
O homem do Barroco foi marcado por impulsos contraditórios e sua produção artística tem como traço fundamental o culto do contraste, do conflito e da contradição.
IV – ESTILOS DO BARROCO:
O Barroco literário possui dois estilos: o cultismo e o conceptismo.
CULTISMO – Também conhecido por GONGORISMO, esse estilo diz respeito à forma. Caracterizado por construções bem elaboradas, emprego excessivo de figuras de linguagem, vocabulário culto, é uma arte mais técnica, preocupada com a estética do poema
e constituído por um jogo de palavras.
O termo Cultismo deriva da obsessão barroca pela linguagem culta, erudita, e o termo Gongorismo alude ao autor espanhol Luís de Gôngora, expoente maior desse procedimento literário, criador de uma verdadeira escola que tem como seguidores, entre nós, Manuel Botelho de Oliveira e, em alguns momentos, Gregório de Matos Guerra.
CONCEPTISMO – Também conhecido por QUEVEDISMO, apresenta um raciocínio lógico, voltado para o jogo das idéias, para a argumentação sutil, para a dialética cerrada, que opera por meio de associações inesperadas, ainda fundadas na metáfora e, especialmente, nos procedimentos da lógica formal, como o silogismo, o sofisma e o paradoxo.
Enquanto os Cultistas ou Gongóricos consideravam que a percepção cognoscitiva das coisas deveria processar-se pela captação de seus aspectos sensoriais e plásticos (contorno, forma, cor, volume), produzindo como resultado um verdadeiro frenesi cromático, visando a apreender o como dos objetos, os Conceptistas pesquisaram a essência íntima, buscando saber o que são, visando à apreensão da face oculta, apenas acessível ao pensamento, ou seja, aos conceitos, assim, a inteligência, a lógica e o raciocínio ocupam o lugar dos sentidos, impondo a concisão e a ordem, onde reinavam a exuberância e o exagero. Assim, é usual a presença de elementos da lógica formal, como:
SILOGISMO – Dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada, chamada conclusão. Assim, temos como exemplo: Todo homem é mortal (premissa maior); ora, eu sou homem (premissa menor); logo, eu sou mortal (conclusão).
SOFISMA – É o argumento que parte de premissas verdadeiras e que chega a uma conclusão inadmissível, que não pode enganar ninguém, mas que se apresenta como resultante de regras formais do raciocínio, não podendo ser refutado. É um raciocínio falso, elaborado com a função de enganar.
Ex.: Muitas nações são capazes de governarem-se por si mesmas, as nações capazes de governarem-se por si mesmas não devem submeter-se às leis de um governo despótico. Logo, nenhuma nação deve submeter-se às leis de um governo despótico.
Cultismo e Conceptismo são dois aspectos do Barroco que não se separam; antes, superpõem-se como as duas faces de uma mesma moeda.
V - GREGÓRIO DE MATOS GUERRA
“O BOCA DO INFERNO”
Nascido no Brasil (BA), Gregório de Matos fez os seus primeiros estudos no Colégio dos Jesuítas, partindo em seguida para Portugal, onde se forma em Direito.
De caráter explosivo, personalidade forte, vocabulário agressivo, produziu sátiras irreverentes, ocasionando perseguições e sua expulsão de Portugal.
Retornado ao Brasil, estabelece-se na Bahia, levando vida desordenada e boêmia. Casa-se com Maria dos Povos, vende as terras que recebeu como dote e vive mais da sua atividade artística que de advogado.
Suas críticas a toda a sociedade portuguesa e brasileira, principalmente a baiana, fez com que fosse deportado para Angola.
Regressou ao Brasil e morreu desacreditado em Pernambuco (1696).
Suas obras foram publicadas após sua morte e como o poeta não deixou nenhum texto produzido de próprio punho, há uma grande controvérsia de poemas que foram atribuídos a ele.
Desenvolveu temas: líricos, satíricos e sacros.
POESIA LÍRICA-AMOROSA: “Amar versus querer”
São classificados como líricos, na obra de Gregório de Matos, os poemas de caráter existencial, amoroso ou religioso.
A sua temática lírica amorosa é marcada pelo dualismo do Barroco: ora a mulher aparece em seus poemas como ideal, espiritualizada e de postura platônica, ora de maneira erótica, amor-carnal – conforme o tom da cor da pele da mulher.
O poeta confronta-se com os sentimentos mais puros e idealizados por sua amada e seus desejos mundanos. Seus poemas, no geral, são cultistas e o tema da consciência da finitude é freqüente.
As incertezas da vida levam o poeta a viver intensamente o presente.
I - “A DONA MARIA DOS POVOS, MINHA FUTURA ESPOSA”
Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo a qualquer hora,
Em tuas faces a rosada aurora
Em teus olhos e boca o sol, e o dia:
Enquanto com gentil descortesia
Te espalha a rica trança voadora,
O ar, que fresco Adônis te namora,
Quando vem passear-te pela fria:
Goza, goza da flor da mocidade,
Que o tempo trota a toda ligeireza
E imprime em toda a flor sua pisada.
Oh não aguardes que a madura idade
Te converta em flor, essa beleza,
Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada”.
Esse soneto tornou-se famoso por parafrasear e traduzir, combinando de modo original, o soneto do espanhol Luís de Gôngora, que se inicia com os versos “Illustre y hermosíssima Maria”.
Note-se, nele, o forte impacto da gradação ascendente (em clímax) no verso final, antecipando a corrosão da “beleza em flor”, que o tempo converterá “em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada”.
A discrição, as maneiras contidas e elegantes da jovem amada são o primeiro traço escolhido pelo poeta para iniciar a apóstrofe, o vocativo lírico inicial do poema.
A juventude e beleza da mulher são descritas através de metáforas freqüentes na poesia Barroca: a magnífica cor do rosto é associada à “rosada Aurora”; os olhos têm o brilho do sol; a boca, o frescor da manhã (dia).
No segundo quarteto, entende-se; “enquanto, com amável indelicadeza, o ar te espalha os cabelos brilhantes (porque dourados, louros), quando vem cortejar-te ao entardecer (pela fria). O ar fresco é comparado a Adônis, amado de Afrodite e símbolo da beleza juvenil.
II – TERCEIRA VEZ, IMPACIENTE, MUDA O POETA O SEU SONETO NA FORMA SEGUINTE
Discreta e formosíssima Maria,
Enquanto estamos vendo claramente
Na vossa ardente vista o sol ardente,
E na rosada face a aurora fria:
Enquanto pois produz, enquanto cria
Essa esfera gentil, mina excelente,
No cabelo o metal mais reluzente,
E na boca a mais fina pedraria:
Gozai, gozai da flor da formosura,
Antes que o frio da madura idade
Tronco deixe despido, o que é verdura.
Que passado o zenit da mocidade,
Sem a noite encontrar da sepultura,
É cada dia ocaso da beldade.
Como se vê da rubrica acima, esta é a terceira variante que Gregório de Matos elaborou em torno do mesmo poema acima.
No segundo quarteto, entenda-se “enquanto tua cabeça, teu rosto, é como uma mina que produz, nos cabelos, o ouro mais brilhante (pois os cabelos são louros) e, na boca, as pedras mais preciosas referem-se aos belos dentes.
No primeiro terceto, o poeta insiste no poder destrutivo do tempo (“verdura” simboliza o frescor, a juventude), e agora compara a velhice (“a madura idade”) ao inverno rigoroso, que retira às árvores sua cobertura verdejante.
No segundo terceto, entenda-se “passado o zenit da mocidade” (auge da juventude), cada dia traz a decadência da beleza, antes que se encontre a morte, “a noite da sepultura”.
No verso 11 desse soneto há uma notável metáfora do tempo: á de um cavalo que trota ligeiro e em seu caminho vai pisando as flores da beleza e de uma figura sonora – a aliteração do “t”: que o Tempo Trota a Toda ligeireza.
III – AOS AFETOS E LÁGRIMAS DERRAMADAS NA AUSÊNCIA DA DAMA A QUEM QUERIA BEM
Ardor em firme coração nascido
Pranto por belos olhos derramado;
Incêndio em mares de água disfarçado;
Rio de neve em fogo convertido:
Tu, que em um peito abrasas escondido;
Tu, que em um rosto corres desatado; (incontido)
Quando fogo, em cristais aprisionado;
Quando cristal em chamas derretido.
Se és fogo como passa brandamente,
Se és neve, como queima com porfia? (insistência)
Mas ai, que andou Amor em ti prudente!
Pois para temperar a tirania, (equilibrar o domínio do Amor)
Como quis que fosse a neve ardente,
Permitiu parecesse a chama fria.”
O soneto marca-se pela predominância do aspecto Cultista ou Gongórico, pelo jogo de palavras, predomínio do elemento sensorial, pela sintaxe apoiada na inversão e na repetição de elementos oracionais.
O soneto tematiza basicamente o sofrimento amoroso do eu-lírico, que derrama lágrimas na ausência da amada.
Trata-se de um soneto altamente metafórico, em que o lúdico se manifesta a todo instante, no jogo de oposições entre o amor (afeto), associado ao quente, enquanto a lágrima é relacionada ao frio.
Ornato dialético, retórica, metonímias, metáforas, eis o que o texto exibe, em cada concha.
A hiperbólica metáfora é acrescida de um pleonasmo (“mares de água”).
Pode-se perceber também, ao longo das estrofes, a oposição entre o que é estático, firme e o que se espalha, derrete, move-se e derrama.
Os belos olhos são dama e não do poeta. É o poeta quem chora por ela.
A técnica paralelística é marcante no segundo quarteto, em que o poeta dirige-se ao afeto (ardor) e às lágrimas (pranto) derramadas pela dama a quem queria bem.
Os cristais relacionam-se ao peito e às lágrimas (cor branca/pureza/refreamento) versus chama (vermelho/erotismo/paixão).
No 12º verso temos um exemplo de aliteração que torna o verso mais melódico.
A tirania do Amor será temperada paradoxalmente. Gregório de Matos faz nesse trabalho de confronto e fusão de opostos uma hábil alquimia dos contrários.
O poeta, como um artista barroco, tende a transformar toda diferença em oposição, toda oposição em simetria e a simetria em identidade.
O diferente torna-se o mesmo. Observa-se, ainda, no último verso, a fusão das antíteses entre aparência e essência.
Porém, tanto o sentimento ardente, “o ardor em firme coração nascido”, quanto sua manifestação, o “pranto por belos olhos derramado” (versos iniciais do soneto) é associado a metáforas visuais que se desenvolvem ao longo do poema. Assim, “incêndio”, “fogo”, e “chamas” são, no soneto, imagens para a paixão ardente; “mares”, “rio” e “neve”, imagens das lágrimas abundantes.
Notem-se os inesperados efeitos que o poeta obtém através da manipulação dessas imagens opostas, criando pares antitéticos, que se combinam de modo paradoxal no poema e se transformam no interlocutor enigmático do eu lírico ( o “tu”, ao qual ele se dirige, numa representação objetiva de seu sentimento, seu “ardor” e seu “pranto”), até que ele reconheça na fria aparência desse sintoma a mesma ebulição do sentimento.
Os dois últimos versos desse quarteto exprimem o mistério da transformação do “fogo” (o sentimento) em “cristais” (as lágrimas).
O eu lírico reconhece a ação paradoxal do Amor no seu sentimento (este último é o “interlocutor” ao qual ele se dirige): o ardor do estado amoroso é, curiosamente, transitório e suave (passas brandamente), como as lágrimas que escorrem pela face; estas, por sua vez, embora frias como a neve, conservam o calor intenso e insistente do sentimento (“queimas com porfia”).
Conclusão:
Gregório retoma um tema clássico: os paradoxos desencadeados pelo amor, que se desdobram nas perguntas introduzidas pelo primeiro terceto e encaminham a resposta: todos os paradoxos são responsabilidade do amor, que para “temperar a tirania”, permitiu que “parecesse a chama fria”.
IV – AO MESMO ASSUNTO E NA MESMA OCASIÃO
Corrente, que do peito destilada
Sois por dois belos olhos despedida;
E por carmim correndo dividida
Deixais o ser, levais a cor mudada.
Não sei, quando cais precipitada,
Às flores que regais tão parecida,
Se sois neve por rosa derretida,
Ou se rosa por neve desfolhada.
Essa enchente gentil de prata fina,
Que de rubi por conchas se dilata,
Faz troca tão diversa e peregrina,
Que no objeto, que mostra, ou que retrata,
Mesclando a cor purpúrea à cristalina,
Não sei quando é rubi, ou quando é prata.
Esse soneto é uma variação em torno do mesmo tema e das mesmas metáforas, do soneto anterior. As lágrimas são vistas a princípio como uma “corrente destilada do peito”, imagem que sintetiza o fenômeno de sua transformação tratada no soneto anterior.
No curso das lágrimas, Gregório de Matos detecta outra transformação, a da cor que possui o que lhes define o próprio ser.
“Mesclando a cor purpúrea à cristalina”, isto é, alterando a sua transparência original diante do vermelho (“carmim”) das faces e dos lábios, as lágrimas acabam por despertar nova hesitação no poeta: “Não sei quando é rubi, ou quando é prata” (verso final). Este tratamento raro e delicado das imagens é tipicamente cultista, e imprime um novo sabor ao tema simples e já conhecido.
O eu lírico afirma não saber se as lágrimas que caem sobre as flores, isto é, o vermelho das faces (as “maçãs do rosto”, como hoje dizemos), é afinal, “neve por rosa derretida” (“derretida” no vermelho do rosto, e por isso avermelhada) ou, ao contrário, “rosa por neve desfolhada” (o vermelho do rosto desfeito em meio às lágrimas).
Essas imagens antecipam as seguintes: “prata”, “rubi”, que apenas as reiteram.
Entenda-se: a transformação da “enchente de prata fina” (nova imagem para a corrente de lágrimas), esparramando-se por “conchas de rubi” (as faces), é tão extraordinária que, estando sobre a face (“no objeto”), que ela deixa ver “que mostra” em sua transparência, ou com a qual se confunde em cor que “retrata” em si mesma, não se sabe qual é uma (a face, vermelha, “rubi”) e qual é a outra (a corrente de lágrimas, “prata”).
V – DESENGANOS DA VIDA HUMANA, METAFORICAMENTE
É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.
É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.
É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias aprestas, alentos preza:
Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?
Exemplo do estilo cultista, seu tema é o da precariedade de todas as coisas diante da adversidade do tempo, que tudo arrasta para a “tarde”, o crepúsculo final que se sucederá à “manhã” de nossas vidas. Note-se o tratamento indireto da “vaidade” (palavra que significa, originalmente, “coisa vã, vazia”), à qual são associadas sucessivas imagens (“rosa”, “planta”, “nau”), disseminadas no poema e recolhidas em seu verso final, num procedimento chamado Disseminação e Recolha que é comum na poesia barroca.
Registre-se ainda a presença da mitologia antiga, através da Fênix, o pássaro-deus egípcio, símbolo da imortalidade, capaz de renascer das próprias cinzas, e com o qual a vaidade presumidamente se identifica. Note-se como, no verso final, temos a segunda recolha dos termos antes disseminados, confrontados com seus contrários (“ferro” é a lâmina que corta a planta; “penha”, o penhasco que destrói a “nau”, e “tarde”, o momento em que morre a “rosa”).
Esse soneto ao organizar de forma complexa e ornamentada um pensamento simples: parte da idéia de que a vaidade, apesar de sua aparência, não tem nenhuma substância na vida; desdobra esse pensamento em três metáforas resplandecentes, desdobradas em outras metáforas, que se distribuem simetricamente pelas três primeiras estrofes e são reunidas na quarta, acopladas aos seus contrários.
Na primeira estrofe, entenda-se: ”da manhã lisonjeada” como envaidecida pela juventude, indicada pela metáfora “manhã; “airosa”, como altiva e “presumida”, como “cheia de presunção”.
A vaidade é como uma rosa que abre (“rompe”), altiva, a “púrpura” de suas pétalas com “ambição dourada”, isto é, com ambição de brilhar, de se comparar ao ouro.
Na segunda estrofe: “que de abril favorecida”, significa animada pela primavera européia, que acontece em abril. Primavera também conota juventude; “soberba desatada” como arrogância incontida; “galeota empavesada” como uma embarcação equipada com defesas ou, em outro sentido, enfeitada e “sulca ufana” como navega orgulhosa.
Na terceira estrofe: “em breve ligeireza” refere-se ao vento brando; “com presunção de Fênix generosa” como pensando ser uma Fênix capaz de muitas ressurreições, por isso generosa e “galhardias apresta, alentos preza” como prepara valentias, preza estímulos do vento.
Na quarta estrofe, o último verso chamado “plurimembre”, é composto da enumeração de três pares de elementos antitéticos (contrapostos), recapitulando as três metáforas anteriores em ordem inversa à de seu aparecimento (nau, planta, rosa) e confrontando-as com os elementos que as hão de destruir, em três rápidas imagens da morte (penha, ferro, tarde).
VI – ADMIRÁVEL EXPRESSÃO QUE FAZ O POETA DE SEU ATENCIOSO SILÊNCIO
Largo em sentir, em respirar sucinto,
Peno, e calo, tão fino, e tão atento,
Que fazendo disfarce do tormento,
Mostro que o não padeço, e sei que o sinto.
O mal, que fora encubro, ou que desminto,
Dentro do coração é que o sustento:
Com que para penar é sentimento,
Para não se entender, é labirinto.
Ninguém sufoca a voz nos seus retiros;
Da tempestade é o estrondo efeito:
Lá tem ecos a terra, o mar suspiros.
Mas oh do meu segredo o alto conceito!
Pois não chegam a vir à boca os tiros
Dos combates que vão dentro no peito.
Este é um soneto descritivo, porém o objeto da descrição não é externo ao sujeito, mas é o próprio sujeito, o eu lírico, o conflito entre o que sente e o que deixa transparecer.
A princípio, parece inverossímil que um poeta de tão poucas amarras quanto Gregório de Matos encontre dificuldade em expressar o seu “segredo” e o seu “tormento”, mas não é outro o tema deste poema.
No primeiro quarteto, encontramos a oposição entre “sentir” (interior) e “respirar” (exterior) e entre “largo” e “sucinto”: o grande sentimento não transparece exteriormente. A “finura” e a “atenção” são atitudes comuns no formalismo amoroso barroco. O poeta se diz “atento”, concentrando no sofrimento, mas “fino” porque não exprime a força desse sentimento. O ponto de partida amoroso dessa temática (sofrer sem manifestar esse sofrimento, em atenção à pessoa amada) encontra-se bastante rarefeito neste poema: o poeta nem se refere à amada e pode estar falando do sofrimento e sua expressão em geral.
Na terceira estrofe, entenda-se: “ninguém, na intimidade, pode calar seus sentimentos”. Em seguida, vêm imagens da natureza que funcionam como símiles da expressão violenta de agitação interior.
Na última estrofe, o tema, porém, é corrente na época: o conflito entre o sentir e o exprimir, entre o que vai ao interior do sujeito e o que ele demonstra, e talvez, mais profundamente, o que o sujeito sente e a dificuldade, o “labirinto”, que esse sentimento contrapõe a sua compreensão. Entenda-se: “o segredo de meu sofrimento corresponde a um “conceito” profundo, “alto”, difícil para o entendimento e para a expressão.”
VII – CONTEMPLA NA BORBOLETA EXEMPLOS DO SEU AMOR
Ó tu do meu amor fiel traslado,
Mariposa, entre as chamas consumida,
Pois se à força do ardor perdes a vida,
A violência do fogo me há prostrado.
Tu de amante o teu fim hás encontrado,
Essa flama girando apetecida, (girando em torno dessa flama desejada)
Eu, girando uma penha endurecida,
No fogo, que exalou, morro abrasado.
Ambos, de firmes, anelando chamas, (desejando)
Tu a vida deixas, eu a morte imploro,
Nas constâncias iguais, iguais nas famas.
Mas, aí! que a diferença entre nós choro;
Pois acabado tu ao fogo, que amas,
Eu morro, sem chegar à luz, que adoro.
Esse poema desenvolve comparações entre a mariposa, que morre por girar em torno da luz que a atraí, e o poeta, que morre por girar em torno de um rochedo (“penha”, metáfora da amada) que o destrói, sendo ambos, abrasados pelo fogo: a borboleta, pelo fogo da chama; o poeta, pelo fogo do amor. Mas, no final, o poeta lamenta a diferença entre a situação de sua morte e a da morte da mariposa: esta morre por chegar à chama, ele morre sem atingir aquela que o atrai.
As metáforas utilizadas no poema (“fogo” para o amor, “penha” e “luz” para a amada) são freqüentes na poesia barroca.
VIII - A MESMA D. ÂNGELA
Anjo no nome, Angélica na cara!
Isso é ser flor, e Anjo juntamente:
Ser Angélica flor, e Anjo florente,
Em quem, senão em vós, se uniformara:
Quem vira uma tal flor, que a não cortara,
De verde pé, de rama florescente;
E quem um Anjo vira tão luzente,
Que por seu Deus o não idolatrara?
Se pois como Anjo sois dos meus altares,
Fôreis o meu Custódio, e a minha guarda.
Livrara eu de diabólicos azares.
Mas vejo, que por bela, e por galharda
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo que me tenta, e não me guarda.
O soneto marca-se pelo aspecto Cultista, desenvolvendo-se por meio do jogo de palavras e imagens: “Ângela” = “Angélica” = “Anjo”, “flor” = “florente”.
O tema central é o caráter contraditório dos sentimentos dos poetas pela mulher, que é simultaneamente “flor” (metáfora da beleza) e objeto do desejo, e “anjo” (metáfora da pureza) e símbolo da elevação espiritual.
A contradição entre o amar e o querer desemboca no paradoxo dos versos finais:
“Sois Anjo, que me tenta, e não me guarda.”
POESIA SATÍRICA – “Boca de inferno”
Numa época em que a imprensa era proibida no Brasil, Gregório de Matos foi “o primeiro prelo e o primeiro jornal que circulou na Colônia”, como afirma Segismundo Spina, importante estudioso de sua obra. De fato, os poemas de Gregório de Matos oferecem um amplo painel da nascente sociedade brasileira, vista desde o princípio com impressionante sagacidade crítica.
Ninguém se salvou da linguagem ferina do autor, fazendo dessa forma jus ao seu apelido. Desde o administrador português, o clero, os colono, os índios, os negros, os brancos; enfim, sua crítica à sociedade de sua época atingia a tudo e a todos. O poeta não deixou de retratar e censurar as mais diversas figuras do Brasil de então, independentemente da posição social que ocupavam, assim como as contradições do sistema colonial imperante no país, à época em que Portugal saía dos sessenta anos de domínio espanhol (1580-1640).
O inconformismo com a transformação da colônia, a corrupção da administração da capital, fizeram do poeta um crítico ativo, desenvolvendo um sentimento nativista.
I - DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA
A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha;
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.
Em cada porta um bem freqüente olheiro,
Que a vida do vizinho e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
Para o levar à praça e ao terreiro.
Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos sob os pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia,
Estupendas usuras nos mercados,
Todos os que não furtam muito pobres:
E eis aqui a cidade da Bahia.
Nesse soneto o autor apresente um plano crítico da degradação moral e econômica da cidade da Bahia, considerados oportunistas e corruptos pelo poeta.
Critica “um grande conselheiro”, incapaz de dirigir sua vida e desejoso de controlar a dos outros; os “olheiros”, os fofoqueiros que vigiam a vida alheia; a perversão dos valores morais da nobreza que são subjugados, “trazidos sob os pés”, e a malandragem, a “picardia”, é enaltecida, “posto nas palmas”, e o total disparate econômico: a “usura”, ou os lucros do “mercado financeiro”; os ladrões enriquecidos e os honestos muito pobres. Além, do racismo do poeta, presente na terceira estrofe.
II –
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.
Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!
Nesse soneto, o poeta lamenta e repercute a transformação degeneradora da cidade, pela “máquina mercante” (as naus de comércio), que os “troca” e torna diferentes de seu estado anterior. O poeta recrimina o comércio nascente do açúcar, o “açúcar excelente”, então um produto muito precioso, que era trocado pelas “drogas inúteis” oferecidas pelo “sagaz Brichote” (“british”, o inglês, o estrangeiro, designado pejorativamente, visto como sagaz, isto é, esperto, perspicaz, pois trocou coisas inúteis pela riqueza do açúcar); no fim, roga pelo restabelecimento do juízo da cidade, que gostaria de ver “amanhecer recoberta por um manto simples de algodão”, e não mais pelas ricas roupagens que lhe propiciava o comércio degenerador.
O termo “abelhuda”, relacionado à cidade, mostra que ela, intrometida e ignorante, deixou-se levar pelas trocas dos gringos.
No último verso, há uma alusão ao fim do monopólio do açúcar e o início da cultura do algodão.
Segundo Ângela Maria Dias, o poema parodia uma composição de Francisco Rodrigues Lobo, poeta português do seiscentismo, que inicia assim seu soneto: “Formoso Tejo meu, quão semelhante...”
Os versos foram elaborados pelas antíteses rico/pobre, empenhado (endividado)/abundante que, diante de um mundo “trocado pela troca”, o poeta põe em jogo a maquinaria das trocas poéticas, “afiadas também nos seus truques, trocadilhos, jogos paronomásticos, em suma, numa série de deslocamentos de significante e significado. Há de se observar o jogo das aliterações em (tal/to/ti/ta) e assonâncias (trocando/tanto/negociante).
III - QUEIXA-SE O POETA DE QUE O MUNDO VAI ERRADO E, QUERENDO EMENDÁ-LO, O TEM POR EMPRESA DIFICULTOSA
Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas,
Do que anda só o engenho mais profundo?
Não é fácil viver entre os insanos,
Erra quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c’os demais, que, só, sisudo.
Trata-se de um soneto de caráter existencial e reflexivo. O autor retrata a insatisfação do homem de “engenho profundo”, cansado de andar por “vias desusadas” (incomuns, marginais) e que se vê obrigado a trilhar os rumos ordinários da sociedade (“O remédio será seguir o imundo / Caminho, onde dos mais vejo as pisadas”).
O poeta parece cético diante à qualquer possibilidade de salvação do “desconcerto do mundo” e conclui que ao homem resta enredar-se silenciosamente no “mar de enganos”, pois é preferível “ser louco c’os demais, que, só sisudo” (sábio sozinho)”.
No primeiro quarteto, entenda-se “ando no mundo suportando a carga que eu mesmo sou, e o peso dessa carga tolhe (embarga, atrapalha) os meus passos”.
No segundo quarteto, entenda-se “os animais irracionais (as bestas), em grupos, são mais arrojados do que o homem de maior capacidade (“engenho”) quando isolado”.
No primeiro terceto, entenda-se: “se não soube pôr fim a seus males”.
IV – A CERTA PERSONAGEM DESVANECIDA
Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira;
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vai também desta maneira;
Na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora, nos tercetos, que direi:
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais,
Gabando-vos a vós eu fico um rei.
Nesta vida um soneto já ditei;
Se desta agora escapo, nunca mais.
Louvado seja Deus, que o acabei!
Nesse soneto o poeta utiliza-se de uma ironia metalingüística. Ao compor esse poema, Gregório de Matos vai ao mesmo tempo descrevendo a elaboração do poema, e o faz com muita graça e, de sobre, zomba de alguma pessoa afetada que, presumidamente, queria ser elogiada (“gabada”) em sua poesia. “Regra”, no segundo verso, além de seu sentido normal, significa “linha, verso”.
V –
“Tudo é bebedice,
ou tudo uma borracheira
que se acaba co’o dormir,
e co’o dormir se começa.
O Amor é finalmente
Um embaraço de pernas,
Uma união de barrigas,
Um breve tremor de artérias.
Uma confusão de bocas,
Uma batalha de veias,
Um reboliço de ancas,
Quem diz outra coisa, é besta.”
VI – TENTANDO A VIVER NA SOLEDADE, SE LHE APRESENTAM AS GLÓRIAS DE QUEM NÃO VIU, NEM TRATOU A CORTE
Ditoso tu, que na palhoça agreste (“palhoça agreste” – moradia rústica)
Viveste moço, e velho respirasse;
Berço foi, em que moço te criaste,
Essa será, que para morto ergueste. (“essa será” – túmulo)
Aí do que ignoravas, aprendeste,
Aí do que aprendeste, me ensinaste,
Que os desprezos do mundo, que alcançaste,
Armas são com que a vida defendeste.
Ditoso tu, que longe dos enganos
A que a Corte tributa rendimentos,
Tua vida dilatas e deleitas. (“dilatas” – alongas; “deleitas” – goza, aproveitas)
Nos palácios reais se encurtam anos,
Porém tu, sincopando os aposentos, (“sincopando” – suprimindo, cortando)
Mas te dilatas quanto mais te estreitas.
Este poema trata o tema da inserção do indivíduo numa sociedade desprezível, opondo-se aqui a vida saudável e simples do campo aos “enganos da Corte”, aos atrativos da vida palaciana que abreviam os anos.
Gregório de Matos saúda como “ditoso” (afortunado) aquele que conseguiu alcançar “os desprezos do mundo”, usando-os em defesa da própria vida. Essa oposição clássica entre o “mundo” e a “vida” tenderá a estereotipar-se na visão do Arcadismo, que condenará a cidade em favor da vida “natural” no campo. Portanto, “a Corte dá recompensa, estímulos, à vida enganosa dos que nela vivem” e “vivendo em habitação menor, mais humilde, mais simples do que os palácios (a Corte), mais ampliam a tua vida quando mais estreitas o espaço dela”.
VII – EPÍLOGOS
1
Que falta nesta cidade?...Verdade.
Que mais por sua desonra?...Honra.
Falta mais que se lhe ponha?...Vergonha.
O demo a viver se exponha.
Por mais que a fama a exalta.
Numa cidade onde falta
Verdade, honra, vergonha.
2
Quem a pôs neste socrócio?...Negócio. (“socrócio” – confusão)
Quem causa tal perdição?...Ambição.
E o maior desta loucura?...Usura.
Notável desaventura (“desaventura” – infelicidade)
De um povo néscio e sandeu, (“sandeu” – ignorantes e idiotas)
Que não sabe que o perdeu
Negócio, ambição, usura.
3
Quais são os seus doces objetos?...Pretos.
Tem outros bens mais maciços?...Mestiços.
Quais deste lhe são mais gratos?...Mulatos.
Dou ao demo os insensatos,
Deou ao demo a gente asnal,
Que estima por cabedal (“cabedal” – riqueza)
Pretos, mestiços, mulatos.
4
Quem faz os círios mesquinhos?...Meirinhos.
Quem faz as farinhas tardas?...Guardas.
Quem as tem nos aposentos?...Sargentos.
Os círios lá vêm aos centos,
E a terra fica esfaimando,
Porque os vãos atravessando
Meirinhos, guardas, sargentos.
5
E que a justiça a resguarda?...Bastarda.
É grátis distribuída?...Vendida.
Que tem, que a todos assusta?...Injusta.
Valha-me Deus, o que custa
O que El-Rei nos dá de graça,
Que anda a justiça na praça
Bastarda, vendida, injusta.
6
Que vai pela cleresia?...Simonia (“cleresia” – clero; “simonia” – vendas de bens religiosos)
E pelos membros da Igreja?...Inveja.
Cuidei que mais se lhe punha?...Unha. (“unha” – roubalheira)
Sazonada caramunha, (“sazonada” – velha; “caramunha” – queixa)
Enfim, que na Santa Sé
O que mais se pratica é
Simonia, inveja, unha.
7
E nos frades há manqueiras?...Freiras.
Em que ocupam os serões?...Sermões.
Não se ocupam em disputas?...Putas.
Com palavras dissolutas
Me concluís, na verdade,
Que as lidas todas de um Frade (“lidas” – funções, atividades)
São freiras, sermões, e putas.
8
O açúcar já se acabou?...Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?...Subiu.
Logo já convalesceu?...Morreu.
À Bahia aconteceu
O que a um doente acontece,
Cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, subiu, e morreu.
9
A Câmara não acode?...Não pode.
Pois não tem todo o poder?...Não quer.
É que o governo a convence?...Não vence.
Quem haverá que tal pense,
Que uma Câmara tão nobre,
Por ver-se mísera e pobre,
Não pode, não quer, não vence.
Nesse soneto, o poeta faz um diagnóstico, válido para “todos os tempos”, dos males do país, cuja capital era então a Bahia, em linguagem às vezes licenciosa. Sua crítica volta-se para a situação da economia, a corrupção das autoridades policiais e militares, a libertinagem do clero, a farsa dos políticos, a venalidade da justiça.
Além disso, Gregório tem, mais uma vez, ocasião de exprimir seus preconceitos raciais. A atualidade de seu diagnóstico é evidente em muitos pontos, sobretudo no que diz respeito à crise econômica e à corrupção.
O título “Epílogos” se deve ao fato de que, em cada um dos três versos interrogativos (decassílabos) que iniciam cada bloco, a resposta, que encerra o verso, rima com o final (o epílogo) da pergunta. Depois de cada terceto, segue-se uma quadra conclusiva (em redondilhos maiores), em que o verso final é a recolha das três respostas disseminadas na estrofe anterior. Dividido em nove partes, nos tercetos, há exploração da rima horizontal ou eco, dando forte acento lúdico ao poema. Nas quadras, o esquema rímico é ABBA.
Os círios eram sacos de farinha distribuídos à população, que, em meio à crise econômica, vivia um período de tremenda escassez. Esses sacos ficavam pequenos (“mesquinhos”), porque a farinha, antes de chegar ao povo, era roubada pelos oficiais de justiça (“meirinhos”) e outras autoridades encarregadas de distribuí-la: os guardas atrasavam a entrega (faziam as farinhas ficarem tardas) e os sargentos as desviavam para si.
No verso “e nos Frades há mangueiras”, relaciona-se ao ato de mancar. No sentido figurado, um deslize moral. É também certa doença infecciosa dos animais, que o poeta poderia, talvez, associar às doenças venéreas dos frades.
Em “Baixou, Subiu e Morreu”, João Adolfo Hansen observa o uso da metáfora da doença, tão em uso na época. Em sua circulação, a metáfora efetua a equivalência de circulação monetária e circulação sangüínea. Na sátira, diagrama a corrupção e a morte da acumulação pela circulação defeituosa das trocas. Encena-se, assim, também o discurso que lamenta e critica os impostos que sobretaxam o açúcar.
VIII – ANA MARIA ERA UMA DONZELA NOBRE E RICA, QUE VEIO DA ÍNDIA SENDO SOLICITADA DOS MELHORES DA TERRA PARA DESPOSÓRIOS, EMPREENDEU FR. TOMÁS CASÁ-LA COM O DITO, E O CONSEGUIU.
Sete anos a Nobreza da Bahia
Serviu a uma Pastora Indiana e bela,
Porém serviu a Índia, e não a ela,
Que à Índia só por prêmio pretendia.
Mil dias na esperança de um só dia
Passava contentando-se com vê-la;
Mas Fr.Tomás usando de cautela,
Deu-lhe o vilão, quitou-lhe a fidalguia.
Vendo o Brasil, que por tão sujos modos (cacofonia – portão)
Se lhe usurpara a sua Dona Elvira,
Quase a golpes de um maço e de uma goiva:
Logo se arrependeram de amar todos,
E qualquer mais amara, se não fora
Para tão limpo amor tão suja Noiva.
O poeta mais uma vez está exibindo seus preconceitos, irá ridicularizar a mulher indiana, fazendo paródia do famoso soneto de Camões, inspirado na Bíblia, que se inicia assim: “Sete anos de pastor de Jacó servia/Labão, pai de Rachel, serrana bela...” O conhecimento de Camões é determinante para entender a paródia da forma lírica, não a agressão satírica. O tema do poema versa sobre a “limpeza do sangue” e boatos sobre o Frei Tomás e o noivo, Pedro Álvares de Neiva; e a degradação da noiva, de “sujo sangue”
No primeiro terceiro, Dona Elvira é provável alusão a uma senhora fidalga da época. O nome feminino contrastará com o de Rachel e de Lia, nomes bíblicos, presentes em Camões, distante da realidade social baiana. Ainda nesse terceto, encontramos o verso “quase a golpes de um maço e de uma goiva”, onde maço é uma espécie de martelo e goiva uma espécie de formão, instrumentos usados por carpinteiros, escultores etc.
IX –
Minha rica mulatinha,
Desvelo e cuidado meu,
Eu já fora todo teu,
E tu foras toda minha:
Juro-te, minha vidinha,
Se acaso minha ques ser,
Que todo me hei de acender
em ser teu amante fino
pois por ti já perco o tino,
e ando para morrer.
Este poema apresenta-se sobre o signo da dualidade barroca, oscilando entre a atitude contemplativa, o amor elevado, à maneira dos sonetos de Camões, e a obscenidade, o carnalismo. É curioso que a postura platônica é dominante quando poeta se refere a mulheres brancas, de condição superior, e a libido, quando o poeta se inspira nas mulheres de condição social inferior, especialmente as mulatas. Neste sentido destaca-se já certa “tropicalidade”, a antecipação de certo “sentimento brasileiro”.
X – CONTEMPLANDO NAS COISAS DO MUNDO DESDE O SEU RETIRO, LHE ATIRA COM O SEU APAGE, COMO QUEM A NADA ESCAPOU DA TORMENTA.
Neste mundo é mais rico, o que mais rapa;
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa; (“carepa” – sujeira)
Com sua língua ao nobre o vil decepa; (“o vil” – o que não presta, fala mau do nobre)
O velhaco maior sempre tem capa.
Mostra o patife da nobreza o mapa;
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
Quem menos falar pode, mais increpa:
Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.
A flor baixa se inculca por Tulipa;
Bengala hoje na mão, ontem garlopa;
Mais isento se mostra, o que mais chupa.
Para a tropa do trapo vazo a tripa,
E mais não digo, porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.
No segundo quarteto do soneto, entenda-se: faz críticas aos oportunistas, àqueles que pretendem descender de uma linhagem nobre, fraudando a genealogia. Encontramos nesse quarteto uma paráfrase do provérbio: “o sujo falando do mau lavado ou o roto falando do maltrapilho”.
Temos um verso metafórico em “a flor baixa se inculta por Tulipa”, em que a flor baixa representa o vulgar, que quer aparentar uma condição nobre, como é nobre a tulipa; um verso metonímico, em que a bengala é índice de nobreza, ao passo que a garlopa (plaina), instrumento do carpinteiro, é índice do trabalho braçal, ou seja, de condição humilde. O poeta critica a rápida ascensão social dos arrivistas e outro verso metonímico em “mais isento se mostra, o que mais chupa”, os que mais cometem delitos ou corrupção querem aparentar inocência.
Em “para a tropa do trapo vazo a tripa”, vazar a tripa é defecar. O rumor dos gases intestinais foi sugerido pelas aliterações cortantes dos tr..tr..tr. No último verso do soneto temos a aplicação cômico do processo da disseminação e recolha: o poeta reagrupa as rimas usadas ao longo das estrofes. Pode-se pensar, também, no caráter onomatopaico desses sufixos, que sugerem o som dos excretos caindo.
XI – DESAIRES DA FORMOSURA COM AS PENSÕES DA NATUREZA PONDERADAS NA MESMA DAMA
Rubi, concha de perlas peregrina,
Animado Cristal, viva escarlata,
Duas Safiras sobre a lisa prata,
Ouro encrespado sobre a prata fina.
Este o rostinho é de Caterina;
E porque docemente obriga, e mata,
Não livra o ser divina em ser ingrata,
E raio a raio os corações fulmina.
Viu Fábio uma tarde transportado
Bebendo admirações, e galhardias,
A quem já tanto amor levantou aras;
Disse igualmente amante, e magoado:
Ah muchacha gentil, que tal serias,
Se sendo tão formosa não cagaras!
O título já evidencia a intenção satírica: desairar é tirar o merecimento, apontar a deselegância. A dama Caterina, tão festejada em outros sonetos do poeta, continua sendo bela, mas sua pobre condição humana será denunciada, com termo chulo, no verso final.
A chave da primeira estrofe será fornecida no sexto verso, pois se trata da descrição do rostinho de Caterina. Assim, a boca iguala ao rubi, os dentes são pérolas dispostas em uma concha; os olhos são safiras, o cabelo é de ouro e a face rubra é a viva escarlata. O sorriso feminino é metaforizado num animado cristal.
No primeiro terceto, Fábio é uma espécie de alter ego do poeta. Ele vê a mulher, fica enlouquecido e a identifica como uma deusa a quem os altares foram levantados. O altar é sugerido metonimicamente pela ara, pedra de altar.
Na última estrofe, o termo “muchacha”, termo espanhol, significando rapariga, como a expressão anterior, “rostinho”, evidenciam a recaída da linguagem nobre e lírica para um linguajar mais rasteiro, culminando no vocábulo chulo final.
C - POESIA SACRA – “A consciência do pecado versus a certeza do perdão”
O conflito entre o teocentrismo versus o antropocentrismo é resultante do homem que busca salvar à sua alma, ao mesmo tempo deseja gozar os prazeres terrestres.
Desenvolvendo mais o estilo conceptista, Gregório de Matos, argumenta que Deus deve perdoá-lo, pois o amor de Cristo é infinito.
I – A JESUS CRISTO NOSSO SENHOR
“Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,
Da vossa alta clemência me despido;
Porque, quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.
Se basta a nos irar tanto pecado,
A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.
Se uma ovelha perdida e já cobrada,
Glória tal, e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,
Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,
Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
Perder na vossa ovelha a vossa glória.”
Além de ilustrar a atitude religiosa de Gregório de Matos, este poema é exemplo do conceptismo barroco.
Imediatamente após confessar-se diante de Cristo, reconhecendo o seu pecado, o eu lírico inicia uma argumentação em favor de si mesmo, o que diminui o impacto de sua submissão religiosa. O que possibilita essa versatilidade do pecador é certa ambigüidade inscrita na própria doutrina cristã, assim formulada pelo eu lírico: “a mesma culpa, que vos há ofendido, / vos tem para o perdão lisonjeado”, isto é, a própria culpa, que é ofensa a Cristo, vale como lisonja, elogio, que fará que Cristo perdoe o pecado.
Os tercetos encerram o soneto com completa reviravolta em relação aos versos iniciais, uma vez que o pecador se vê no direito de se dirigir ao Senhor usando até o modo imperativo do verbo, “Cobrai-a; e não queirais, pastor divino”.
II – BUSCANDO A CRISTO
A vós correndo vou, braços sagrados,
Nessa cruz sacrossanta descobertos, (“sacrossanta” –sagrada e santa)
Que, para receber-me, estais abertos,
E, por não castigar-me, estais cravados.
A vós, divinos olhos, eclipsados
De tanto sangue e lágrimas cobertos,
Pois, para perdoar-me, estais despertos,
E, por não condenar-me, estais fechados.
A vós, pregados pés, por não deixar-me,
A vós, sangue vertido, para ungir-me,
A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me.
A vós, lado patente, quero unir-me,
A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
Para ficar unido, atado e firme.
Soneto de caráter penitente em cujas imagens transparecem a ambigüidade da motivação religiosa do poeta. Os traços da figura do Cristo crucificado são aproveitados para, através de engenhosas antíteses, servir à conveniência do pecador; os braços estão abertos para recebê-lo e pregados para não o castigar; os olhos divinos eclipsados estão despertos para perdoá-lo, assim como estão fechados para não condenar.
O soneto é construído a partir de um sistema de metonímias que vão relacionando as partes de Cristo (“bravos”, “olhos”, “pés”, “sangue”, “cabeça”, “cravos”), substituindo todo o Cristo crucificado.
Os versos 5, 9, 10, 11, 12, 13 constroem-se com a omissão do verbo, já referido no 1º verso – “correndo vou”. Em todos eles ocorre o procedimento estilístico denominado Zeugma.
III – NO DIA DE QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Que és terra, homem, e em terra hás de tornar-te,
Te lembra hoje Deus por sua Igreja;
De pó te faz espelho, em que se veja
A vil matéria, de que quis formar-te.
Lembra-te Deus que és pó para humilhar-te
E como o teu baixel sempre fraqueja (baixel – barco, navio)
Nos mares da vaidade, onde peleja,
Te põe à vista a terra, onde salvar-te.
Alerta, alerta, pois, que o vento berra.
Se assopra a vaidade e incha o pano,
Na proa a terra tens, amaina e ferra.
Todo o lenho mortal, baixel humano,
Se busca a salvação, tome hoje terra,
Que a terra de hoje é porto soberano.
Este soneto se fundamenta em dois ditos bíblicos recorrentes: o primeiro, de que a vida humana é “vaidade das vaidades”, conceito central no Eclesiastes (livro do Antigo Testamento); o segundo, de que o homem não passa de “pó”, que afinal retorna sempre à terra. Dotados de conteúdo semelhante, os dois ditos aparecem no poema associados de forma tão surpreendente, porém, que a união soa como um achado até um pouco irônico do poeta, uma vez que precisamente a “terra”, que representa o fim desastroso do homem: a morte, a transformação no pó original, é também a salvação para os riscos dos “mares da vaidade” em que luta o homem, pois este, reconhecendo sua precariedade, sua mortalidade, reconhecendo que é terra, livra-se dos perigos da vaidade.
IV – ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO MENINO DEUS DE N.S. DAS MARAVILHAS, QUE DESACATARAM INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA
O todo sem a parte não é todo;
A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo o todo.
Em todo o Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda a parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.
O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.
Não se sabendo parte deste todo,
Um braço que lhe acharam, sendo parte,
Nos diz as partes todas desse todo.
Esse poema é um exemplo da poesia conceptista de Gregório de Matos: nele, a complexidade não se deve à ornamentação, como no caso precedente, mas aos próprios conceitos desenvolvidos.
O episódio do encontro de um fragmento de escultura religiosa (“o braço de Jesus”) enseja a discussão conceitual do que seja “parte” ou “todo”, assim como das relações que mantêm entre si essas duas entidades. O poeta argumenta, nos dois primeiros versos, que a definição de “parte” e “todo” só pode ser recíproca, e extrai dessa premissa – a premissa da interdependência entre parte e todo – a conclusão paradoxal da equivalência de parte e todo (“mas se a parte o faz todo, sendo parte, / não se diga que é parte, sendo o todo”, isto é, se a parte, faz o todo ser todo, não se diga que ela é parte, pois ela é tudo no todo, sem ela o todo não o é).
Há uma referência à liturgia católica, segundo a qual Deus está presente inteiro em cada parte do Sacramento.
V – A CRISTO S.N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA
Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro:
Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É meu Jesus, a hora de ser ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.
Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.
Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.
Este poema se baseia a crença de que o poeta, velho e arrependido da vida desregrada que levara, reconciliou-se com a religião, e, como Bocage, um século depois, compôs sonetos de arrependimento em seus últimos dias.
Expressa a cosmovisão barroca: a insignificância do homem perante Deus, a consciência nítida do pecado e a busca do perdão .Ao lado de momentos de verdadeiro arrependimento, muitas vezes o tema religioso é utilizado como simples pretexto para o exercício poético, desenvolvendo engenhosos jogos de imagens e conceitos.
Nas duas primeiras estrofes, o poeta expressa a contrição religiosa e a crença no amor infinito de Cristo, para manifestar, no final, a certeza do perdão. O soneto encobre uma formulação silogística, que se pode expressar dessa maneira: o amor de Cristo é infinito (verso 11); o meu pecado, por maior que seja, é finito, e menor que o amor de Jesus (versos 9 e 10). Logo, por maior que seja o meu pecado, eu espero salvar-me (versos 13 e 14).
REFLEXÃO-FILOSÓFICA – A INCONSTÂNCIA DO MUNDO
Nasce o Sol, e não dura mais que um dia,
Depois da luz se segue a noite escura,
Em tristes sombras morre a formosura,
Em contínuas tristezas a alegria.
Porém, se acaba o Sol, por que nascia?
Se é tão formosa a luz, por que não dura?
Como a beleza assim se transfigura?
Como o gosto da pena assim se fia?
Mas no Sol e na luz falte a firmeza,
Na formosura não se dê constância,
E na alegria sinta-se tristeza.
Começa o mundo enfim pela ignorância,
E tem qualquer dos bens por natureza
A firmeza somente na inconstância?
O tema é o da inconstância do mundo, da instabilidade da vida humana, da fugacidade de tudo, da inconsistência da beleza e das alegrias. No poema, a constatação da brevidade da luz do sol leva a interrogações sobre o motivo de existirem no mundo belezas assim passageiras; finalmente, a conclusão é que, nas coisas do mundo, a única constante é a variação.
No oitavo verso, entenda-se: “como o gosto (o que é belo e agradável) pode assim confiar na pena (o que é triste, doloroso)?” A idéia é de que o sofrimento é certo, já que a felicidade é fugaz, precária.
O poema não é conceptista, pois, o conceito que desenvolve, é simples e não é tratado de forma surpreendente ou sutil. Ele é cultista, pois desenvolve o tema acima indicado, que é comum no Barroco, apresentando um jogo de figuras contrastantes, através das quais idéias abstratas - a beleza, a passagem do tempo é apresentada em imagens concretas – a luz, o anoitecer. A exuberância do poema, portanto, não se deve a sua trama de raciocínio, como seria o caso do conceptismo, mas ao engenho com que uma idéia simples se traduz num espetáculo sensorial. A antítese é a figura mais repetida no poema: dia/noite; luz/sombras; tristezas/alegria; gosto/pena; firmeza/inconstância.
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A poesia lírica e satírica de Gregório de Matos,
Barroco
ARTISTAS MANAUARAS CANTAM E ENCANTAM POUSO ALEGRE-MG
A Praça João Pinheiros, Pouso Alegre-MG foi contemplada com uma bela exposição da cultura amazonense na noite de 13/08.
O evento contou com a participação de grandes talentos do universo artístico da Amazônia que encantou o público presente.
Valéria de Cássia, representando o Projeto Cultural Uakti, abriu o evento fazendo um breve relato sobre a história do Projeto idealizado pela Associação dos Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (ASPI), Associação dos Servidores do INPA (ASSINPA) e que conta com o apoio da Manaus Cult.
Valéria explicitou que o Projeto Cultural Uakti tornou-se verdadeira referência de articulação e divulgação de vontades criadoras e tem como objetivo primordial conceder voz, participação e espaço às pessoas que expressam a cultura amazonense com seus costumes e particularidades para todo o país.
Em seguida, chamou ao palco Dóri Carvalho, poeta e dramaturgo que declamou textos de sua autoria e de grandes expoentes da literatura universal.
Armando de Paula acompanhado por Afrânio (bateria), Herich (baixo) e William (teclado) contagiaram o público com a canção “Tartaruga”, “Mosquito da Malária” e outras reverenciando como o próprio nome do Projeto revela: a Cultura Amazonense.
Finalizando a apresentação, Antonio Pereira presenteou o público com sua voz inconfundível, suas letras e melodias inovadoras, que nos tocam a alma de forma suave e alegre. O músico é considerado um dos pioneiros na resistência dos ritmos amazônicos frente à cultura globalizada
O Projeto teve o privilégio de contar com a participação especial de Rita de Cássia, integrante do grupo “Caixeiras da Guia”, de Campinas e de João Bá, um dos mais respeitados cantadores vivos do Brasil.
O trabalho deste artista busca despertar o senso crítico e uma compreensão consciente de que todas as coisas estão interligadas entre si e suas raízes. Pesquisador da cultura popular brasileira traz nas suas poesias e nas suas melodias um canto de resistência da natureza, um jeito simples de louvar a terra, a vida, o respeito à história e memória de nossa cultura
O 40º FENAC – Festival Nacional da Canção de Pouso Alegre-MG encerrou-se com a belíssima apresentação do cantador e compositor Pereira da Viola que durante o show prestou homenagem ao seu grande mestre João Bá e ao Antonio Pereira, reafirmando seu apreço e respeito que tem pelo cantador amazonense.
quinta-feira, 26 de agosto de 2010
O MONSTRO (1994) - Sergio Sant'anna
I – AUTOR:
SÉRGIO SANT’ANNA, carioca, nascido em 1941, iniciou sua carreira de escritor em 1969, com os contos de “O Sobrevivente”, livro que o levou a participar do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos EUA. Recebeu o prêmio Jabuti por duas vezes, com “O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro” (1982) e “Amazona” (1986). Suas publicações incluem ainda “Notas de Manfredo Rangel”, “Repórter” (1973), “Confissões de Ralfo” (1975), “Simulacros” (1977) e “A Tragédia Brasileira” (1987). Pela Companhia das Letras, editou “A Senhorita Simpson” (1989), “Breve História do Espírito” (1991), “O Monstro” (1994) e “Contos e Novelas Reunidos” (1997).
II – CARACTERÍSTICAS:
Os contos de “O monstro” possuem o subtítulo de "Três histórias de amor", ironia do autor ao apresentar os conflitos íntimos vividos pelo homem contemporâneo, retratando-os através da palavra as angústias humanas.
Sérgio Sant’anna, autor pós-modernista, eclético, utiliza-se da escrita para exprimir o indizível ao mesmo tempo em que explora o próprio fazer poético onde o desejo se transforma em narrativa.
As narrativas recorrem a um mundo feito de paixões violentas e de um erotismo que vem mais da mente que do corpo e que nunca está isento de um voyeurismo.
A temática da solidão, da fragmentação humana e do abandono remete as personagens ao trágico e ao inesperado apresentando narrativas em que o resultado de se conviver com a transgressão e uma pretensa normalidade, transporta o leitor em cúmplice de atos tresloucados, além de raciocínios imprevistos, onde o insólito e o banal, o instinto e uma acurada reflexão mental caminham lado a lado.
A violência explorada nos contos é apresentada a partir de contradições, antíteses e paradoxos e ora é encarada como um instrumento de poder, ora como via para a transcendência, onde o sexo é a figura central.
Assim, teorias da filosofia, psicanálise, criminologia, entre outras, são indispensáveis para a leitura e compreensão dessa obra.
III – ESPAÇO:
O espaço focado nas três narrativas que compõem o livro “O monstro”, de Sérgio Sant’Anna, situam-se respectivamente numa cidade do interior do Brasil, numa prisão do Rio de Janeiro, e num hotel de cinco estrelas em Chicago.
A diversidade entre os espaços acompanha a variedade de gênero explorado pelo autor indo da epístola (carta) à entrevista policial. A cidade apreciada à distância não ameaça nem estimula a ilusão de que poderíamos decifrar seus enigmas. Suas luzes, à distância, não ofuscam as luzes da razão que ordena a narrativa.
IV - LINGUAGEM:
A diversidade de gêneros, o jornalismo e a mídia, faz com que a obra transite entre a ficção e a realidade permeando uma linguagem que mescla objetividade para garantir verossimilhança e legitimidade.
O autor retoma o pastiche da linguagem da imprensa que já havia experimentado em obras dos anos 70 e 80 e não abre mão de um tom moralizante que em grande parte da ficção abandonou em favor do amoralismo e da valorização do jogo da linguagem por si mesmo.
V - PERSONAGENS:
As personagens, nos três contos de “O Monstro” são perturbadas, preocupadas em narrar suas experiências ao mesmo tempo em que buscam através da memória e da auto-análise reviver os mundos que criam ao narrá-las, na tentativa de compreenderem seu universo particular e suas intimidades. Suas personagens afastam-se da realidade e mergulham-se numa viagem no imaginário individual dentro de uma sociedade abstrata. Elas não são capazes de viagem, na acepção de saída de um mundo determinado, porque estão presos ao único mundo que lhes interessa, ou seja, o mundo das palavras, através das quais procuram criar um espaço em que possam se encontrar, como forma de compensação para a perda de sentido da dimensão do real.
VI – ANÁLISE DOS CONTOS:
1. “A carta”
Mulher de azul, lendo uma carta (1664), Johannes Vermeer
“Esta carta então apócrifa, egoísta, orgulhosa, que se quer uma essência das cartas, utópica e abstracta como uma melodia vermelha, entoada por uma mulher que talvez nem seja engenheira, talvez a louca em trajes fétidos no pátio do asilo e que se chama Jussara, mas assina Beatriz como quem se veste de princesa para um amante inventado; que inventa ainda uma cachoeira, uma casa, uma cidade e até seu prefeito; esta louca que talvez até nem seja mulher, mas um homem solitário em seu quarto acanhado e que constrói para si uma amante louca em nome de quem remete a si mesmo ou ao léu uma carta que tenha a duração escrita de uma noite.”
O conto “A carta” relata a experiência de Beatriz, uma engenheira de uma cidade do interior que se envolve sexualmente por uma noite com Carlos, um secretário do governo, casado que estava de visita profissional na cidade. A importância da carta não está nem na emissora e nem no destinatário da mesma, mas em sua reconstrução idealizada, na intenção de reviver utopicamente o momento fugaz e na tentativa de reconstruir a experiência vivida, remodelando-a na memória, como pode ser comprovada pela personagem do conto “A carta”:
“E o que realmente importaria, então, não seria o destinatário, nem mesmo a autora, mas a construção utópica, o gozo do corpo na razão, a carta em sua autonomia.”
A personagem ao escrever a carta, descobre que seu encontro fortuito e seus sentimentos pelo amante, eram inferiores ao prazer à sensação de narrar o ocorrido:
“(...) as coisas nunca são uma só coisa e, à medida que escrevemos sobre elas, os caminhos se bifurcam, às vezes queremos seguir todos eles e uma escrita vai se tornado interminável”.
A carta consiste no prolongamento da aventura passageira, tornando-a real e documental. Porém, contraditoriamente, essa a carta memorável pode ser considerada com algo efêmero, sempre passível de ser reescrita e alterada, mas sem desvincular-se da memória.
“Esta carta, esta grafia, que por vezes reluziu nos candelabros de um palácio íntimo (...), não poderá consumir-se para além da extensão de uma noite”.
Para Beatriz, seus sentimentos “são como as obras que necessita edificar.” Além de, concretizar o prazer que na ocasião do relacionamento físico, embora com toda a excitação, ela não conseguiu realizar.
Dessa maneira, a carta representa o encontro; o descobrimento; a atração sexual; o clímax; a despedida; a conscientização sobre seus sentimentos; a liberdade de expressão e a própria narrativa (sucessão de fatos e a narrativa da narrativa).
Beatriz reflete sobre sua necessidade de escrever e conclui que é um ato vital, forma de preencher as lacunas da sua vida. Para tanto, a engenheira recria uma situação utópica, idealizando uma nova aventura amorosa com seu amante, podendo dessa forma, ampliar as suas expectativas ao narrar sua experiência.
“Mas por que, mais uma vez, sendo assim tão primário o que busco, escrevo eu tanto? Talvez porque, para refazer esse percurso, reencontrar o lugar e tempo perdidos, seja preciso retraçar um rastro em palavras até o lugar em que se perderam, para que eu não precise mais dessas palavras e me cale, porque as disse.”
Beatriz inicia a sua carta demonstrando grande insegurança e apresentando o verdadeiro motivo de escrevê-la: prolongar o seu encontro para completar o vazio que ficou. Afinal, se não houvesse incompletude na relação sexual, não haveria a lacuna deixada e nem automaticamente, a carta. O texto vai adquirindo um ritmo forte onde a escrita e o sexo mesclam até atingir ao clímax.
“A questão do tratamento a lhe dar me fez manter suspensa a escrita desta carta, a caneta na mão, e confesso que cheguei a escrever, no início de uma página depois abandonada, ‘Carlos, meu amor’.”
“Porque é nesta escrita e construção – e esta sua razão maior – que as coisas parecem ter acontecido, tornam-se reais e vivas. Escrevo para repetir, viver”.
“Seja ou não violada esta carta, estará aqui esta mulher abrindo as pernas para o amante (...) esta pornografia como uma construção assinada também pelo corpo...”.
A engenheira envia a carta a Carlos, mesmo sem ter certeza que ele a receberá.
O conto termina deixando em aberto a verdadeira identidade da redatora da carta o que não faz diferença até porque a verdadeira é todas, trata-se de um narrador de identidade fragmentada, os eventos da estória contada passam a ser menos importante do que a capacidade de contá-la; do que o gesto de esforço e desprendimento para narrá-la. A escrita como tema, sob o disfarce da temática amorosa – disfarce que não deixa de guardar verdades, já que a questão da relação amorosa no texto metaforiza a relação de amor com a escrita – no fim do conto, se revela plenamente porque não quer perder-se como complemento para a narrativa da própria vida. O que temos, no fim, é um narrador que tem a necessidade visceral de reinventar a memória nomeando e renomeando as coisas de seu mundo e os seus desejos mais íntimos com a força que só lhe brotaria a partir da escrita.
“Logo já estarei antecipando-a na mala postal. (...) Esta carta, entoada por uma mulher que talvez nem seja engenheira, talvez a louca em trajes fétidos no pátio do asilo (...); a louca que talvez nem seja mulher, mas um homem solitário em seu quarto acanhado e que constrói para si uma amante louca em nome de quem remete a si mesmo ou ao léu uma carta que tenha a duração escrita de uma noite.”
2. “O Monstro”
Visage I – 2001, Ana Lima Netto
“È necessária muita cautela para se chegar a alguma verdade quando se trata de atos humanos.”
O tema policial e a estrutura da história são extraídos do jornalismo. O conto incentiva a aproximação entre literatura e jornal mimetizando as convenções da linguagem jornalística. Trata-se do que se chama, em jargão, de "pingue-pongue", pastiche, uma reportagem policial em forma de entrevista de perguntas e respostas, na qual a intervenção do jornalista, no caso específico a edição da revista fictícia Flagrante, resume-se à introdução e às questões direcionadas de forma sensacionalista, levantando informações, e deixando o maior espaço ao entrevistado, que assume diretamente a fala, em função do interesse do depoimento.
O jornalista, ao pontuar a narrativa, funciona como o observador neutro, que amplia o horizonte da narração no seu posicionamento que é, simultaneamente, de questionamento e corroboração do narrado. A entrevista gira em torno do dualismo entre o amor e o desejo sexual e o entrevistado, é o próprio autor do crime.
A construção em primeira pessoa acrescenta complexidade à narrativa, porque a apresenta do ponto de vista do sujeito que procura se conhecer.
Em “O monstro” os retratos são ambíguos. Sant’Anna não deixa nunca de provocar no leitor o desconforto de duvidar da completude da percepção e da linguagem.
Além disso, como o narrador é testemunha participante da ação, suas palavras ganham concretude e produzem empatia no leitor:
“Mas, como procurei esse tempo todo não ser complacente comigo, vou permitir-me agora expor sentimentos meus muito profundos, de um modo que nunca seria possibilitado numa investigação policial ou julgamento.”
A linguagem adotada por Antenor é, apesar de sua participação nos acontecimentos, predominantemente objetiva, fria, distante e impessoal como também a apresentação das demais personagens da trama.
Em “O monstro”, o professor universitário, Antenor Lott Marçal, 45 anos é preso por assassinato e estupro de Frederica Stucker, 20 anos, portadora de uma grave deficiência visual. Anomalias patológicas, sexualidade, voyerismo, paixão, violência, crime, amor, obsessões, novos modos de olhar o sexo e a morte são alguns temas que envolvem esse conto.
Tanto no caso da co-autora do crime Marieta como no da vítima Frederica, alguns aspectos característicos são enfatizados e até repetitivos, para reforçar a imagem e caráter de forma convincente.
ANTENOR: (…) Ali de pé, no centro do banheiro, de frente para mim, era como se ela [Frederica] ocupasse um espaço próprio e olhasse para dentro de si mesma, séria, compenetrada, sem qualquer afetação ou consciência da sua beleza, de que pudesse estar sendo objeto do amor e da cobiça de outros olhares.
FLAGRANTE: É sabido que os cegos, ou mesmo os quase cegos, possuem os sentidos muito aguçados. Não lhe ocorreu, ainda que não naquele momento, que Frederica possa ter pressentido a presença e o olhar do senhor, sem reagir a isso?
ANTENOR: Não… É claro que não… Não pode ser. Qualquer dúvida nesse sentido lançaria uma nova luz sobre os acontecimentos, não menos terrível, ou ainda mais terrível. (SANT’ANNA, 1994, p.53)
ESTRUTURA:
O conto é dividido em duas partes como recurso técnico e traz um cabeçalho no inicio de cada uma, indicando detalhes específicos de uma entrevista: a data da publicação (2 e 9 de junho de 1993), nomes próprios completos, as datas exatas e locais precisos, a idade do entrevistado, inclusive reproduzindo cacoetes do jornalismo num tom ligeiramente caricato.
“Em sessão do 2º Tribunal do Júri, em 4 de março passado, no Rio de Janeiro, o professor universitário Antenor Lott Marçal, de 45 anos, após ter sua culpa reconhecida unanimemente pelos jurados, foi condenado pelo juiz Irailton Catanhede à pena de trinta anos de reclusão, pelo estupro e co-autoria do assassinato de Frederica Stucker, de vinte anos, no dia 18 de junho de 1992.” (SANT’ANNA, 1994, p.39)
As duas introduções apresentam indícios de preocupação em legitimar o relato como verdadeiro. Porém, por mais que se propõe relatar a verdade, o enredo é conflituoso e transita entre verdade e imaginação, entre o jornalismo e a vida humana, para tanto, “é necessária muita cautela para se chegar a alguma verdade quando se trata de atos humanos”, questiona o protagonista, além do papel da mídia em sua conformação.
“O pouco de edição que foi feito na matéria obedeceu a critérios de melhor ordenamento da mesma e obteve a concordância do entrevistado, que introduziu algumas alterações no texto final, revelando sobretudo preocupações de ordem sintática e de clareza, para depois colocar sua assinatura em todas as folhas originais.”
“(…) a exemplo do que aconteceu com a primeira parte da entrevista, preferimos não antecipar com subtítulos ou destaques na matéria, para que suas etapas com as correspondentes revelações possam ser acompanhadas pelos leitores em sua ordem e mecanismos próprios.”(SANT’ANNA, 1994, p.40 e 69)
Em seu depoimento, o professor Antenor, narrar como ele e sua amante, Marieta de Castro, 34 anos, conheceram Frederica e também o fascínio que essa causou no casal. O entrevistado caracteriza Marieta como uma mulher de personalidade possessiva e violenta e, que sempre almejou a transcendência física na busca do prazer sexual.
“Marieta queria verdadeiramente, as pessoas que a interessavam e a atraíam. A diferença, aquilo que Marieta não possuía ou atribuía a outrem, a exasperava.
Ela queria desmistificar as pessoas, torná-las seres comuns (...).”
Antenor passivamente não se rebelou contra as fantasias eróticas de Marieta, na ocasião do encontro entre os três, no apartamento da amante. Mas, despertou ciúmes em Marieta quando fixou seu olhar de admiração diretamente no corpo de Frederica.
“Marieta não suportava a frustração. Havia uma espécie de pureza infantil em sua amoralidade. O fato é que se você tiver a psicologia de uma criança em um adulto dotado de força e inteligência, eis o monstro.”
Marieta coloca calmantes na bebida de Frederica, e enquanto ela está desacordada, o casal desfruta de prazeres sexuais seviciam a garota. A co-autora do crime sentia necessidade de dominar sua presa e inferiorizá-la para poder se sobressair na situação.
Frederica desperta e não aceita participar das fantasias do casal. Então, eles a drogam com éter e cocaína e depois a asfixiam com uma almofada.
Antenor tinha necessidade de calar a jovem, pois só dessa maneira, ele poderia possuí-la e esse ato tornará fundamental para a interioridade do conflito do professor.
A garota morre e Antenor induzido por sua amante, consuma sua relação sexual para satisfazer a fantasia erótica de Marieta que atinge seu clímax com uma “voracidade sem limites”.
O casal oculta o corpo da jovem, num local distante. Em seguida, Marieta se suicida ao saber que Antenor se entregaria à polícia.
A decisão de Antenor de ser entregar à polícia reflete um forte traço de sua personalidade: a possessão.
O professor não suporta que outros ocupem o seu lugar. Ele tem necessidade de ser o sujeito de seus atos e quando vários suspeitos assumem o crime nos interrogatórios e jornais, Antenor sente necessidade de assumir a sua própria história, não se importando com as consequências. Para Antenor, a autoria do crime era essencial para sua verdade e experiência de vida.
O professor explica como precisou elaborar os acontecimentos experimentados no assassinato e assimilá-los, para continuar a viver.
“Durante os dias eu ficava sozinho e a história de Frederica se transformava ao sabor do que se publicava nos jornais, observa.” (SANT’ANNA, 1994, p.72)
“É curioso o poder da palavra impressa. Eu mesmo tentei colocar em dúvida, intimamente, algumas coisas. Por exemplo, se Frederica não teria buscado conosco uma aventura amorosa.
E se a sua morte não teria ocorrido por uma fatalidade.
(…) Está certo, não lhe posso dar essa certeza. E, ainda quando se trata de fatos concretos, como os que levaram à morte de Frederica, eu próprio duvido, algumas vezes, se a reprodução deles que tenho em mente e procuro transmitir é a mais correta possível. No decorrer desta entrevista, pareceu-me, várias vezes, que enxergava os acontecimentos sob novos ângulos e que eu mesmo me transformava, falando deles. As coisas acontecem velozmente, não podemos fixá-las nos momentos em que as vivemos.” (SANT’ANNA, 1994, p.71, 77 e 78)
Sobre os seus “concorrentes”, Antenor afirma que está defendendo a verdade e que:
“(...) sempre houve nele, em sua formação, esse desejo de buscar a verdade.”
No entanto, trata-se de individualismo e egocentrismo da personagem, além do egoísmo de querer deter para si o corpo e a vida de Frederica.
“Algumas dessas pessoas até desprezíveis, como o viciado maluco que confessou ter estado com Frederica naquela noite, sem nunca tê-la visto na vida. Sua versão foi logo desmontada, mas fazia parte de um festival de fantasias, de manipulações da vida e do corpo de Frederica. Eu não podia suportar também aquele noivinho, como ele se apresentou, todo certinho, posando de protetor da noivinha cega, muito amado por ela, o que eu sabia não ser verdadeiro. Enquanto isso era como se eu não existisse, ali fechado no apartamento.”
Antenor entrega-se para sentir liberdade para amar Frederica, amenizar a sua dor e a violência do seu ato.
Sua entrevista à revista Flagrante trata-se de um depoimento de defesa baseado numa argumentação racional, dissertando sobre o bem e mal e colocando-se em superioridade.
Antenor detém o dom da oratória: explica, questiona, instiga, joga com opostos, articula e responde.
A sensação de vazio diante do acontecimento é substituída pelo desejo e paixão por Frederica revividos durante o interrogatório que desperta no professor a crença na transcendência, onde ele possa encontrá-la e amá-la novamente, como também, protegê-la de Marieta.
Assim, o ato de violência e assassinato é tido como um caminho de alcançar a sua busca espiritual e para tanto, somente o aniquilamento do outro poderia ocorrer.
Dessa forma, o desejo do casal em matar Frederica corresponde à necessidade de posse do outro e em busca de uma “causa maior” e isso é traduzido através da entrevista de Antenor.
O professor Antenor denuncia o sensacionalismo provocado pelo jornalismo e pela exposição da mídia sobre a realidade pública e privada. Acrescenta, ainda que, na segunda parte da entrevista foi procurado por representantes de duas editoras com propostas de escrever livros sobre sua vida.
“Um deles veio com uma conversa mole de que eu poderia mostrar, no livro, o meu lado humano (Antenor ri sarcasticamente). O outro, pelo menos, não procurou escamotear os objetivos comerciais da proposta e disse-me, apenas, que minha história com Marieta, Frederica, seria de grande interesse para os leitores. É verdade e não é outra a razão pela qual a sua revista está me ouvindo. Eis uma questão importante: as pessoas querem compartilhar de tudo o que aconteceu nessa história. Tirarão dela um prazer que não gostariam de admitir.” (SANT’ANNA, 1994, p.75)
3. “AS CARTAS NÃO MENTEM JAMAIS”
“Fruteira e Cartas de Baralho, 1913. Georges Braque.
“Não sei mais quem sou, Dorothy, não sei o que é verdade ou mentira em minha vida. Às vezes só as histórias me parecem reais.”
Antônio Flores é o narrador ambíguo do conto “As cartas não mentem jamais”.
Famoso compositor de música clássica, brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, vive viajando pelo mundo, uma forma de escapismo, na tentativa de não aceitar à ideia, que sua vida não é real.
Afastando-se dos problemas do cotidiano e escondendo-se dos perigos da cidade grande, o narrador hospeda-se no décimo quinto andar de um hotel luxuoso em Chicago de onde observa o mundo e revê a sua vida.
O compositor acabou de ter uma relação sexual com uma jovem francesa de dezesseis anos, Michelle. Em seguida, conversa em inglês com a jovem, contando-lhe sobre a trajetória de vida.
Na tentativa de reconstruir a história de sua família, Flores narra sobre sua infância; sua opção pela música; suas composições, Sinfonia da bola nº 1, Sonata Atlântica, que foram interpretadas pelo famoso maestro Karajan (mistura de elementos reais e ficcionais); o seu primeiro amor por Estela, a sua traição com outro garoto da rua em que moravam e seu desejo em relação ao fato: “queria que o outro rapaz possuísse Estela ali às minhas vistas, para que o meu aniquilamento fosse completo e definitivo”; sobre a iniciação sexual de ambos e sobre Madame Zenaide, a cartomante de um sorriso com dentes muito brancos, que joga suas cartas na própria cama da mulher, além de iniciar o menino nas questões de sexo, também será responsável por ler o destino dele nas cartas e “alterá-lo profundamente”.
Essa leitura de cartas misturada à iniciação sexual, esse dualismo entre anjos e demônios, abrindo caminho para a reversibilidade do destino da personagem, parece abrir caminho também para o destino da narrativa, que a partir desse momento opta por seguir a “verdade” das cartas, que sugere que “não se pode fugir da morte e é melhor entrar num acordo com ela. Às vezes você tem que decidir entre matar ou morrer”.
“Quando madame Zenaide me estendera os braços, seus olhos estavam revirados, numa expressão ao mesmo tempo meiga e selvagem, como se um anjo e um demônio possuíssem simultaneamente o seu corpo, para, por sua vez, serem possuídos por mim e também me possuírem.”
Dessa forma, Madame Zenaide muda o destino de Antônio, iniciando-o sexualmente.
O avô de Antônio foi um grande compositor de marchinhas de carnaval que morreu de overdose de lança-perfume, em um sótão de um casarão onde morava, por sua mulher não ter permitido que ele fosse brincar o carnaval. Antônio procura Zenaide para curar sua depressão, através da leitura de seu destino nas cartas e a cartomante, metaforicamente, liberta Antônio de ter o mesmo fim autodestrutivo que teve o seu avô.
Assim, o narrador apega-se nas profecias das cartas para dar continuidade à sua própria vida e automaticamente, de um ouvinte que pode estar à distância para que prolongue à sua sensação de viver um eterno presente.
O narrador perde-se em sua complexidade e transita entre o plano real e o imaginário do passado, mescla verdades e mentiras, tornando-se contraditório e no momento em que fala dos outros, age, muitas vezes, como se tratasse de si mesmo em terceira pessoa. Ele cria cenas cheias de clichês, fantasias sexuais, sonhos e imaginações temperando-as com maestria de criatividade e de encenações sofisticadas, apresentando traços definidos de desvios de identidade.
Na tentativa de interligar passado, presente e futuro, Flores busca reconstruir “uma temporalidade despedaçada pela grande mobilidade no espaço que a tecnologia moderna tornou possível, pelos ritmos acelerados que regem o cotidiano, pela obsolescência rápida dos sistemas técnicos, pelo apagamento das fontes e referências.”
Flores deixa Michelle dormindo no quarto de hotel, porque “o ato terminou e ele deve abandonar a cena para não estragá-la, para que as notas continuem a repercutir no tempo.”
Antônio é um cidadão mundialmente conhecido, ironicamente “não se conhece”, vive em espaço aberto, percorre o mundo, ao mesmo tempo sente-se enclausurado e sua válvula de escape é a tecnologia moderna. Assim temos: um pianista brasileiro, que está com uma francesa em Chicago, falando inglês e conhecerá uma psicanalista, Dorothy, que mora em Las Vegas, e irá falar com ela, pelo telefone, de Tóquio, onde as cartas são lidas novamente e todas as vezes que se trocam a posição das cartas, os acontecimentos futuros mudam.
O narrador utiliza-se do recurso metalinguístico objetivando recuperar a origem de sua própria arte, pois perderam suas raízes no momento em que foi absorvida por culturas diversificadas.
Antônio está no aeroporto, apenas como um passageiro anônimo, de óculos escuros, na esteira rolante, no meio de tantos outros passageiros. O seu movimento, estacionado na esteira, dá-lhe uma noção exata de que não existe nenhum lugar para ir, o mundo é muito pequeno, o único movimento significativo é o do próprio planeta, a bola, dentro ou fora dele, Antônio. E tudo o que lhe aconteceu e acontece de importante se deu em sua própria casa; a casa que ele carrega consigo para Tóquio.
Durante a viagem ao Japão, Antônio escolhe hospedar-se num motel-cápsula, radicalizando o seu desinteresse por um mundo que lhe parece sempre igual, onde tudo é superficial e efêmero. Porém, sua atitude é inválida, pois ele tem a impressão de que se move sem se mover.
“Agora Antônio está no aeroporto, apenas um passageiro anônimo, de óculos escuros, na esteira rolante, no meio de tantos outros passageiros. O seu movimento, estacionado na esteira, dá-lhe uma noção exata de que não existe nenhum lugar para ir, o mundo é muito pequeno, o único movimento significativo é o do próprio planeta, a bola, dentro ou fora dele, Antônio. E tudo o que lhe aconteceu e acontece de importante se deu em sua própria casa; a casa que ele carrega consigo para Tóquio. Precisa ter a ilusão de um tempo ordenado, no qual as coisas se sucedessem com uma relação de causa e efeito, quer recuperar uma concepção do tempo contra a qual tudo conspira, inclusive a viagem, dos Estados Unidos ao Japão, que, prolongando absurdamente o dia, contribui ainda mais para estilhaçar, gerando uma sensação de estar estagnado (...).”
Não se trata, entretanto, de opor, como faziam os personagens da fase heróica do modernismo, a este mundo exterior fragmentado, um mundo interior onde se poderia encontrar um sentido profundo para o vivido. Trata-se de se refugiar na lógica narrativa, que se autonomiza e cria um espaço com leis específicas, no interior do qual o próprio criador é concebido.
Antônio Flores ao comentar sobre sua viagem ao Japão, disse:
— Já estive lá antes. Os japoneses me confundem. São ouvintes atentíssimos, mas às vezes desconfio que não estão entendendo coisa alguma da minha música. Ou que estão embarcando numa outra viagem, só deles.
E, quando lhe perguntam se não achava esta situação interessante, acrescenta:
— Acho, mas gostaria de conhecer melhor a viagem em que estão embarcando. A expressão deles é indecifrável. Às vezes tenho a sensação de estar completamente por fora naquele país, de ser um primitivo diante de toda aquela tecnologia deles, aqueles sintetizadores de última geração. Na maioria dos casos sai um pastiche idiota, do Ocidente ou deles mesmos. Mas isso pode mudar e talvez os japoneses encontrem um novo caminho para a música. De qualquer modo gosto muito de Tóquio à noite (...).”
As personagens com quem dialoga ora em inglês ora em francês, também estão em trânsito, são indivíduos cultos, da mesma classe social, cultural e econômica que vai desde o hábito de beber champanhe, comer hamburger com batatas fritas e serem fãs dos filmes de Godard, que estão dispersos no mundo globalizado.
Dessa forma, Godard, torna-se personagem da narrativa, o cineasta que frequenta o divã da Dra. Dorothy para curar-se de uma grande obsessão: a impossibilidade de filmar todas as imagens que passavam por sua cabeça. E, a solução encontrada foi criar um filme onde contivesse todos os seus outros filmes, o God-art.
“God-art”, eu disse para ele. “God-arte”, ele concordou imediatamente, pois tal associação já lhe ocorrera um monte de vezes.
Talvez, Madame Zenaide, se fosse analisada como Godard, se sentisse também frustrada, por não poder fazer uma leitura tão radical das cartas a ponto de conter todas as previsões possíveis. Então, como diz o conto, sob pena do “grande perigo”, que seria “embaralhar todas as cartas”, vamos combinar que as cartas não mentem... mas das verdades que dizem, não teremos certeza jamais.
Ao final, fica subentendido que Antônio terá com Dorothy o mesmo tipo de relação que tivera com Michelle. No entanto, pode-se questionar se a história contada por ele, e gravada por Michelle, a dama de cabelos ruivos vislumbrada nas cartas, não poderia ter sido inventada, como uma forma de sedução. Afinal, o seu erotismo só se realiza concretamente através da linguagem e para isso, a necessidade do ouvinte ou leitor.
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