quinta-feira, 3 de março de 2011

JOAN MIRÓ E O SURREALISMO


1893-1983


Creio que, depois do grandioso movimento impressionista francês – um canto à vida e ao otimismo -, depois do movimento pós-impressionista, da coragem dos simbolistas, do sintetismo fauvista e da dissecação do cubismo e do futurismo, depois de tudo isso, teremos uma arte livre e todo o interesse estará centralizado na vibração do espírito criador. Esse movimento moderno de análise vai elevar o espírito para uma liberdade luminosa”, escreveu Miró.

O pintor catalão contou que, durante uma visita de Picasso a seu ateliê, o pintor andaluz afirmou ao ver essas pinturas:

Este é o único passo que a pintura deu depois de mim.”

MIRÓ é um dos últimos catalães universais, nasceu em Montroig (Tarragona), em 1893.
Na juventude, Miro estudou na Escola de Belas Artes de Barcelona e na Academia de Gali.
O ingresso da França na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) motivou o sentimento francófilo dos intelectuais catalães – dez mil voluntários partiram para lutar com os aliados. Ao mesmo tempo, Barcelona se transformou temporariamente na capital da arte européia e em refúgio dos artistas franceses. Entre eles, encontrava-se o dadaísta Francis Picabia, que publicou em Barcelona o primeiro número de sua revista “391”.
Naqueles anos, a cosmopolita Barcelona era dominada pelo chamado “Noucentisme”, movimento intelectual que, desde 1906, priorizava valores como razão, ordem e clareza na arte a fim de resgatar a herança greco-romana e as tradições populares catalãs diante das influências estrangeiras. Embora compartilhasse de alguns de seus postulados, Miró acreditava que a arte catalã deveria adotar caráter aberto e universal.
A partir de 1915, tenta encontrar por si só seu estilo artístico, olhando atento a tudo o que o ajude a sair da imensa rede da rica, importante, e muito burguesa e conservadora arte de seu denso entorno barcelonês.

A pintura e a poesia são feitas quando se faz amor, um abraço total, a prudência é jogada para o alto, sem nada ocultar.”

Entre tantos artistas de rotina boêmia, Miró se destaca pela simplicidade de seu caráter catalão. Ordem, respeito, equilíbrio, tenacidade e perfeccionismo são os traços que marcam um pintor de vida discreta, mas de força interior extraordinária.
Entre 1917 e 1918, Miró pintou mais telas do que nos anos anteriores. Com influência do fauvismo, do cubismo, do futurismo, das estampas japonesas e da arte românica, produziu auto-retratos e retratos de pessoas próximas, pintou naturezas-mortas, paisagens de Mont-roig e arredores e dois nus femininos, um deles foi “Nu com pássaros e flor” (1917), um prelúdio de duas grandes fixações temáticas de sua obra posterior: mulheres e pássaros.

“Auto-retrato”


No contraste entre a agitação intelectual e a exaltação de Paris dos “loucos anos de 1920”, onde Miró esteve uma única e breve passagem assimila certas possibilidades do Cubismo que enriquecem seu estilo daquela época, porém manifestada com ingenuidade, sem complicações literárias ou cerebrais; mas repleta de cor e poesia, tão espontaneamente simples, onde se nota a presença da dureza estrutural, as formas recortadas, o desenho rápido, as tintas curtidas, o frontalismo e a ordem certeira.


"É essencial ter os pés firmemente plantados no chão para nos podermos lançar no espaço", disse Miró.

Como Paris, Mont-roig desempenhou papel fundamental na vida e na obra de Miró. Foi ali que o artista se recuperou do tifo e decidiu se tornar pintor. Daí o estabelecimento de um laço sagrado com o local. Tarragona resgatava a magia de sua infância em contato com a natureza.

“Ciruana, o povoado” (1917)


As paisagens de 1917 de Miró dispensavam figuras humanas. Embora o artista tivesse dificuldade para representá-las, a omissão era deliberada. No vilarejo de Ciurana, em Tarragona, distante da intensa agitação intelectual que vivia a industrial e cosmopolita Barcelona, a tranquilidade do campo proporcionava a Miró a chance de se isolar e enclausurar-se em si mesmo.

“Ciruana, o povoado” oferece um panorama dos arredores do povoado.
A tela está dividida em três planos horizontais de diferentes proporções. A metade inferior da tela é destinada à representação do solo; o restante é reservado às construções e ao fundo montanhoso.
As linhas curvas dominam o fundo, as formas cúbicas e triangulares dominam a zona central, enquanto retas e ondulações alternam-se na metade inferior do quadro. O leito do rio divide a cena. Traçado a partir do centro do quadro em uma suave inclinação com duas linhas quebradas e paralelas, o sulco proporciona, graças a suas cores, a ilusão de perspectiva e profundidade; garante um dinamismo que se expande para a direita do quadro. No lado contrário, a tensão causada pelos três triângulos é suavizada com linhas onduladas que, colocadas em paralelo, simulam um plano elevado.
Do mesmo modo que o ritmo compositivo, a intensidade cromática cresce de cima para baixo: as cores suaves aparecem na cabeceira e as mais escuras estão presentes na metade inferior da tela.

“Nord-Sud” (1917)


No início do século XX, os jovens pintores catalães praticavam a natureza-morta e Miró não foi uma exceção. Em 1917, pintou “Nord-Sud”, um bodegón que testemunha o substrato cultural do autor.

Sobre uma mesa posicionam-se uma moringa, uma maçã, um brinquedo, uma tesoura, um livro, uma gaiola com um pintassilgo e um vaso com flores. No centro da composição aparece em destaque o rótulo da revista “Nord-Sud”, fundada naquele ano pelo poeta francês Pierre Reverdy.
O nome da publicação foi inspirado na linha de metrô que liga Montmartre a Montparnasse, os dois pólos da vanguarda artística e literária parisiense.
Os críticos tentaram buscar significados nos elementos deste “bodegón”. Assim, a moringa simbolizaria a herança mediterrânea e catalã de Miró; a maçã, sua preocupação com a saúde; o brinquedo, sua infância e sua fascinação pelas cores; a tesoura, seus primeiros trabalhos em colagem; o livro de Goethe, sua paixão pela leitura e pela poesia; a gaiola com a ave, seu amor pelos seres pequenos e pela música; o vaso com flores, sua firme convicção no amadurecimento de seu dom artístico; e o título “Nord-Sud”, sua preocupação pela atualidade artística e seu desejo de triunfar em Paris.
Os objetos dispostos em círculo e destacados com cores próprias, cada um dos objetos apresenta autonomia sobre a toalha de mesa de colorido estridente. Ao traço negro que contorna os objetos, Miró adiciona grossas pinceladas de cor; a coroa semicircular em torno da base da moringa, as pinceladas verdes e azuis ao redor da maçã, e as espessas linhas verdes junto ao brinquedo e ao livro.
Os arabescos da moringa, o oco do vaso, as aberturas do recipiente da gaiola e o formato de flecha ao redor do brinquedo acentuam o sentido espiral da peça, enquanto o rótulo branco da revista serve como eixo e ponto de fuga.

Em 16 de fevereiro de 1918 realizou sua primeira exposição individual nas Galerias Dalmau de Barcelona, que gerou indignação de parte do público pelo vanguardismo.
Em 1920, Miró desembarcou pela primeira vez a Paris.

“É preciso ir a Paris como lutador, não como espectador da luta”.

A viagem serviu para confirmar que apenas em Paris encontraria o clima intelectual favorável para sua arte.
Em 1921 retornou à Paris e conheceu os poetas Pierre Reverdy, editor da extinta revista “Nord-Sud”, e Tristan Tzara, um dos fundadores do dadaísmo, com quem fez amizade.
Em maio de 1921 realizou a sua primeira exposição individual em Paris. O evento, porém, não se traduziu em vendas.
Depois do novo fracasso, Miró voltou a Mont-roig, onde começou a pintar “A fazenda”, obra-prima que é a síntese e o auge de sua etapa realista e foi finalizada em Paris. O artista chegou a carregar na mala plantas de Mont-roig para finalizar a tela.

“A fazenda” (1921-1922)


Miró imprimiu um ritmo bastante cadenciado à execução dessa obra. Seu desejo era reproduzir em minúcias cada um dos elementos da propriedade familiar de Mont-roig.

Pintada em estilo “naif”, um tipo de arte popular espontânea e autodidata, esta obra representa a visão mais íntima e pessoal de Miró sobre o mundo que melhor conhecia.
A precisão do detalhismo oriental é evidente. Detectam-se as influências de Modest Urgell e de Aduaneiro Rousseau no brilhante astro no céu; e de Galí no cuidadoso desenho das superfícies: o tronco do eucalipto e a textura e as falhas da parede da construção. Também se nota a estilização dos afrescos românicos que Miró tanto admirava.
“A fazenda” mescla diversos modelos de composição. Além da publicação de diferentes perspectivas, a simultaneidade de pontos de vista cubistas pode ser vista em alguns elementos: o grande círculo negro central, o pavimento de ladrilhos, a sombra trapezoidal em primeiro plano, fragmentos de chão onde estão depositados os recipientes e o bebedouro dos animais do galinheiro, entre outros. A ordem compositiva também é sustentada pelas rítmicas formas geométricas ao fundo.
A linha do horizonte divide o quadro entre céu e terra. De um lado, a simplicidade de um céu nu, onde brilha um astro solitário. De outro, a terra repleta de objetos, exuberante como um retábulo barroco, em que cada elemento é importante em si mesmo. Apesar do detalhismo realista, a cor branca do astro sobre um céu homogeneamente azul cria paradoxalmente um ambiente onírico e irreal.
O eucalipto, bem arraigado a terra, é o único elo entre o chão e o firmamento.
A árvore e o ponto negro que serve de base ao os elementos centrais do plano terreno, representado pela fazenda e parece proteger sob seus galhos o pacífico e monótono mundo rural da propriedade de Mont-roig. Foi o elemento mais trabalhado por Miró. Sua figura reúne algumas das obsessões do pintor. A base branca reproduz o fetiche do artista pelos pés, a extremidade por onde se recebe a energia da terra. O tronco rugoso ilustra a fascinação de Miró pelos acidentes das superfícies. O artista acreditava que a superfície viva revelava sua substância e sua realidade interna. Sustentava que era necessário tocá-las para penetrar em seus segredos.
A porção esquerda da tela é reservada ao mundo domesticado: a granjeira e seu filho, a seara e as pegadas, os cavalos, a carruagem, o cachorro e as ferramentas.
A figura feminina ocupa a posição central da tela, o que dá ideia da relevância da mulher na obra do pintor. Miró a apresenta lavando roupas, enquanto a seus pés aparece a imagem de um menino nu. Desse modo, o pintor resume as duas condições fundamentais da mulher camponesa: trabalho e maternidade.
À direita da árvore posicionam-se integrantes mais indomáveis, mas igualmente ligados ao homem.
O tratamento diverso de cor no solo do galinheiro e de forma no terreno que abriga a lagartixa, o caracol e a minhoca reforça essa divisão. Miró sempre admitiu sua fascinação pelos animais pequenos, especialmente insetos.
Miró eliminou a grade frontal do galinheiro porque impediria ver os animais. Substituiu-a por um quadrado vermelho. Não era a primeira vez que utilizou esse recurso. Em “Nord-Sud”, a gaiola do pintassilgo também aparece sem a grade. A presença da tela é reservada às áreas em que não prejudica a visão de outros elementos representados com maiores detalhes.
Aqui aparece pela primeira vez a imagem da escada e da ave, que, assim como o eucalipto, foram considerados posteriormente por Miró como elementos de mediação entre o céu e a terra.
Apesar de seu desejo de se desfazer das influências não catalãs, Miró introduziu um elemento estranho: o conhecido jornal francês “L’Intransigeant”.

Em 1924, fez duas de suas obras iniciais mais importantes, as pinturas “O carnaval de Arlequim” e “Maternidade”.

“O Carnaval de Arlequim” (1924-25)


Esta tela encerra a fase das obras dominadas pela imaginação, série que Miró havia iniciado no verão de 1923 com “Terra lavrada”. Assim como “A fazenda”, essa pintura é meticulosa e forma um conjunto frenético e colorido de figuras fantásticas que exige observação minuciosa.

Usando o tema tradicional de interiores domésticos (a que voltou em 1928, sob a influência da pintura holandesa do século XVII), MIRÓ apresenta nesta obra uma de suas visões mais surrealista simultaneamente humorística e sinistra.
A composição gira em torno de dois personagens centrais: um robô que toca viola e um Arlequim com grandes bigodes e corpo de viola. A seu redor, uma multidão heterogênea de animais e objetos excêntricos se revela alheia à ação dos dois personagens. Sobre um plano quadriculado, Miró divide horizontalmente a tela ao meio, separando cromaticamente a parede do chão, e distribui as figuras de forma equilibrada.
A obra foi inspirada nas alucinações causadas pela fome.

“Voltava ao ateliê da Rua Blomet à noite e deitava às vezes sem jantar: via coisas e as anotava no caderno. Via alucinações no teto”, escreveu o artista.

A tela mostra um ambiente, provavelmente um quarto com manchas de umidade nas paredes; uma mesa e uma janela, onde vêem o sol e a torre Eiffel, reflexos do exterior.
No entanto, o que nele se destaca são elementos oníricos que uns identificam como uma referência ao mundo das crianças, e outros atribuem à influência do surrealismo na sua obra ou mundo interior de Miró.
Trata-se de um retrato irônico da nossa sociedade, onde um permanente espetáculo nos faz esquecer a degradação humana atinge a maior parte da humanidade.

“Maternidade” (1924)


A figura de mulher era quase sempre retratada como a mãe terra: um símbolo de fecundidade.

A tela foi construída sobre um fundo monocromático. Apenas algumas manchas equilibram a monocromia dominante.
A mulher é representada pelos elementos colocados nos extremos dos dois eixos lineares oblíquos, o que garante a esta composição maior agilidade quando comparada às outras da série.
Um desses eixos une a cabeça, semelhante à de um manequim com cabelos de serpentina, a um grande esquadro arredondado, que simboliza o ventre e o sexo feminino.
O outro eixo liga um seio desenhado de perfil e escuro com outro visto frontalmente, um disco perfeito, branco e de contorno pontilhado.
Uma forma sinuosa e visceral amarela e vermelha representa os órgãos internos femininos. Próximo de cada seio aparece duas figuras diminutas: no canto inferior esquerdo encontra-se um pictograma de aspecto masculino, enquanto na porção superior direita observa-se um de aspecto feminino.
Utilizando poucos elementos, Miró transmitiu a ideia de maternidade em um dos maiores desafios de redução simbólica de toda sua obra.

Em 1925, aproximou-se do Surrealismo. Depois da publicação do primeiro “Manifesto surrealista”, o vínculo de Miró com essa corrente artística cresceu até o ponto em que Breton, o líder do grupo, qualificou Miró como o “mais surrealista de todos nós”. Porém, a arte de MIRÓ não contém as profundezas das questões psicanalistas surrealistas.
A falta de envolvimento real com os postulados do grupo, especialmente nas questões estéticas e políticas, gerou desconfiança mútua entre Breton e Miró, que acusava o artista catalão de “infantilismo”.

A plenitude da infância no Surrealismo; o caso extraordinário de Miro”.

Em 1926, Ernst e Miró trabalharam na preparação da decoração e do figurino do balé “Romeu e Julieta”, produzido pelo Ballet Russo de Sergei Diaghilev. Na estréia do balé, Breton e Aragon promoveram uma ação de protesto pelo fato de Ernst e Miró terem colaborado com os “interesses burgueses”.

Em contato com os poetas surrealistas compreendi uma coisa e isso é o que conta para mim: a necessidade de transcender a pintura”, afirmou Miró.

O artista abandonou a figuração fantástica e aprofundou-se ainda mais na simplicidade da pintura e da abstração, superando o real e o imaginário. Os especialistas catalogaram as obras pintadas entre 1925 e 1927 como pinturas oníricas.

“O nascimento do mundo” inaugurou uma centena de obras, a maioria sem título, em que predomina uma atmosfera onírica, a tendência à monocromia, a onipotência do fundo e a inclusão de elementos isolados, como manchas, círculos de cor, figuras, arabescos ou simples ou simples pinceladas.


Em seguida, Miró passou introduzir em seus quadros quase vazios, palavras e frases poéticas, com as quais inaugurou suas pinturas-poemas.


Durante os verões de 1926 e 1927, em Mont-roig, Miró deixou a pintura onírica para retornar às paisagens. Assim, aproveitou para consolidar as composições nas quais a linha do horizonte delimitava o céu e a terra, um recurso muito utilizado pelos pintores surrealistas. Pertencem a esse período as chamadas “paisagens imaginárias”: “Personagem atirando uma pedra em uma ave”; “Cão ladrando para a lua” e “Paisagem da serpente”, que obtiveram grande sucesso em abril de 1928 em Paris.


“Cão ladrando para a lua” (1926)


Assim surge a grande festa mironiana com a qual se enche, da mais alegre e desejável puerícia, as salas de exposições. Primeiro, com muita surpresa e depois, com reprovação, dizendo que a pintura de MIRÓ pode ser feita por qualquer criança; sem saber que uma coisa é a plena vivência e tensão do infantil num caso tão excepcional como o de MIRÓ e outra muito diferente da arte infantil em si própria.

MIRÓ não ficou estancado na infância, mas teve que recuperá-la e se liberar de tudo que culturalmente alheio se sobrepusesse como se sobrepõe a todo ser humano. E o Surrealismo não abandonou a pouco conhecida e utilizada energia da infância para a arte e muito do restante da vida imaginativa, inventora ou criadora.
MIRÓ se pôs a fazer trinar os intensíssimos vermelhos, azuis, verdes, amarelos; a maioria das vezes sem disfarce nem mistura nenhuma, direta desde a integridade ao consumidor; pelos amplos fundos e frequentemente planos, uniformes, com muito cuidado; por alegres e bem delineadas ilhotas, em saltitantes espécies de células, como globos de cores no ar, triângulos e qualquer outra inesperada e alegre invenção formal.
O artista movia o pincel em guinadas sobre a tela num estado semelhante ao transe ou jogava a tinta na tela num frenesi criativo, intensificado pela fome, pois só podia se permitir uma refeição ao dia. Dizia que seu objetivo “era expressar com precisão todas as fagulhas douradas que a alma solta”.
Entretanto, é preciso muitas vezes compreender o que deseja o autor para poder visualizar melhor a pintura.

No quadro "Personagem atirando pedras em um pássaro" o personagem tem de alguma maneira, a forma de um pássaro, mas sabe-se que o pássaro é a outra entidade porque voa.


O mar negro, em contraste com as cores fortes do céu e da terra mostra que o artista não se limitava pela naturalidade das cores. O efeito é de grande profundidade e vigor e a terra parece movimentar-se em seu amarelo marcante. A pedra, no meio do caminho, não define por si mesmo em que direção faz o percurso.

O uso de frases quase explicativas nos títulos das obras é bem interessante e às vezes muito facilitador.
O título de "personagem" é também muito comum e identifica exatamente isso: alguma entidade não muito definida e que exerce uma ação. A mente de Miró mostrou-se muito criativa ao longo de sua vida. Durante os seus estudos de arte treinava, por orientação dos seus professores, a desenhar objetos que conhecia apenas através do tato. De olhos vendados, lhe era dado um objeto e depois então o desenhava para libertar-se da aparência real das coisas. Também treinava pintando paisagens gravadas na mente. Ia a um lugar, observava e depois voltava para o atelier para começar a trabalhar. Talvez esses exercícios, somados a uma tendência natural, tenham feito de Miró uma mente privilegiada.

Na primavera de 1928, Miró viajou para a Bélgica e a Holanda, onde visitou os museus mais importantes. A viagem gerou a série de “Interiores holandeses”, baseada em obras dos maiores pintores dos Países Baixos.

“Interior holandês I” (1928)


O realismo intimista dos mestres holandeses do século XVII despertou profundo interesse em Miró, que reanimou seu gosto pelo detalhismo.

Em “Interior holandês I”, Muro recriou o quadro “O tocador de alaúde” (1661), de Hendrick Maertens Sorgh, transformando as personagens e incluindo figuras alheias à obra original.


Com tamanho descomunal, a figura do tocador de alaúde e seu instrumento dominam a superfície da tela e são os elementos centrais da composição. A cabeça do músico se prolonga pela mesa branca. Forma, assim, um eixo que cruza a tela diagonalmente dividindo os espaços do interior (chão, paredes e teto) e destaca a paisagem exterior.

O rosto do personagem domina o ponto para o qual convergem os diferentes planos.
No chão, um cachorro rói um osso, uma grande faca triangular descasca uma maçã, uma rã persegue um inseto e um gato descansa sob uma banqueta. Ao fundo, nota-se na parede a figura de um morcego e de duas pinturas, enquanto duas aves parecem ter construído um ninho entre a imensa cabeça do tocador de alaúde e o teto. Pela janela se observam os canais de Amsterdã, com peixes, cisnes, embarcações e casas ao longe.
Em contraste à grandiosidade do homem, a diminuta figura da mulher parece reduzida a uma protuberância branca que culmina em um ponto: a cabeça. Apenas a forma negra de um sapato ao final do conjunto branco e a silhueta de um pé fazem referência de forma simbólica à mulher, enraizada a terra.

“Interior holandês II” (1928)


Neste quadro, MIRÓ improvisou formas geométricas e biomórficas em lúdicas imagens de sonho.


Entre 1929 e 1931, Miró passou por um conturbado período de introspecção que culminou em uma crise de expressão artística denominado por ele mesmo de “assassinato da pintura”. Durante essa fase, a pintura foi praticamente substituída por desenhos, papiers collés e colagens. Assim. Miró anexou às telas objetos reais (chaves, conchas, lixas e cordas, entre outros).
A crise expressiva de Miró coincidiu com a do surrealismo. Diante do avanço do autoritarismo fascista na Europa, o grupo liderado por Breton propôs adotar uma postura política.
Miró era contrário a qualquer ato de militância por considerar que a conduta supriia a liberdade do artista.
No início dos anos de 1930, a crise econômica mundial afetava profundamente o mercado da arte e a situação econômica de Miró em Paris não era confortável. Desse modo, Miró resolveu voltar a Barcelona em 1932.
Seis anos após a estréia de “Romeu e Julieta”, o Ballet Russo de Montecarlo fez nova encomenda a Miró. “Brincadeira de criança”, que estreou em 1932, no Teatro de Montecarlo, com música de Georges Bizet.

“Ao observar a combinação das formas e das cores em sua pintura, desperta-se a alegria e o desejo de dançar”, afirmou o coreógrafo Léonide Massine.

Miró desenhou a cortina, o palco, os figurinos e os objetos.

O triunfo da direita espanhola nas eleições de 1933 marcou o início do “biênio negro”, período em que os conservadores tentaram destruir as reformas sociais implementadas pelo governo anterior.
Pouco antes, como prenúncio da situação político-social da Espanha, Miró havia iniciado uma série de obras de seres monstruosos e disformes chamadas “pinturas selvagens”

Vivia uma atmosfera de mal-estar. Era um mal-estar mais físico do que moral. Pressentia uma catástrofe e não sabia qual seria. Sucederam-se a Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial. Tentei representar esse ambiente trágico que me torturava e que percebia dentro de mim”, informou Miró.

Em 1936, Miró e sua família refugiaram-se em Paris. Ali pintou, entre janeiro e maio de 1937, “Natureza-morta com sapato velho”, obra de grande intensidade dramática que descreve a tensão dos anos anteriores à Segunda Guerra Mundial.

“Natureza-morta com sapato velho”(1937)


Vou pintar naturezas-mortas completamente realistas. Quero expressar à realidade a realidade poética das coisas; o que não posso assegurar é se conseguirei na medida desejada. Vivemos um drama horrível; o que está ocorrendo na Espanha supera o imaginável”, escreveu Miró.


Baseando-se no temor da guerra, pôs na mesa uma garrafa quebrada de gim envolvida em papel amarrado com barbante, uma maçã espetada com garfo, um pedaço de pão e um sapato velho.
Com esses objetos transmitiu sentimentos de pobreza, abandono, desorientação e raiva. A cor é essencial. O preto e o verde pressionam os objetos, que, graças a uma coloração incandescente, parecem arder na escuridão. Esse efeito, sublinhado pela linha do horizonte, evoca um incêndio apocalíptico.
O biógrafo Jacques Dupin chamou a obra de “Guernica de Miró”.

Miró com “O ceifeiro” e o cartaz “Ajudem a Espanha” demonstrou seu posicionamento a favor da liberdade em meio a um ambiente político de vertentes extremas. Sob uma atmosfera de angústia, Miró executou “Auto-retrato I”, uma obra definida como “realismo trágico” e a única inacabada.

“Ajudem a Espanha” (1937)


Ainda em 1937, trabalhou em pinturas-mural e, anos depois, em 1940, inspirado pelo mundo celeste, o efeito das marés e a paisagem aberta empreendeu com entusiasmo a série de aquarelas “Constelações”, interrompida pelo avanço das tropas alemãs.

A série “Constelações” foi composta de 23 guaches de pequenas dimensões pintados entre 1940-1941. O conjunto resultante da introspecção iniciada em Varengeville representou uma nova etapa na inquietação característica de Miró.


Personagens estranhos e animais convivem com planetas, estrelas, cometas, o sol a lua e outros corpos celestes em um firmamento vivo e dinâmico, que se inter-relacionam por uma espécie de rede que ordena toda a composição. É um universo próprio que serviu para Miró consolidar uma linguagem pictórica singular e que rendeu a ele fama universal.

No aspecto técnico, o artista iniciava o trabalho pela preparação do papel que serviria de suporte à pintura, a partir do sentido tátil. Molhava a folha e a esfregava de leve a fim de criar uma superfície rugosa. Em seguida, aplicava as cores do fundo, cuja gradação dependia tanto do tratamento específico como do estado do suporte.
Esse emaranhado de linhas é acompanhado de grande economia cromática: verde, amarelo, azul, vermelho e preto. Além de criar os grafismos, o preto serve de elo entre as formas.
Miró adicionou novas formas de estrelas à clássica figura das cinco pontas: o asterisco, dois pontos unidos por uma linha, dois triângulos invertidos unidos pelo vértice e uma cruz com ou sem pontos ao final de seus braços.
Os atributos femininos aparecem na feição de um felino é composta de atributos sexuais da mulher. O que parecem olhos do animal são os seios e o objeto com forma de amêndoa, pintada em metades de vermelho e preto e rodeada de pêlos pubianos.

Mais tarde, em 1944, iniciou-se em cerâmica e escultura. Em suas obras, principalmente nas esculturas, utiliza materiais surpreendentes, como a sucata. Miró considerava essa forma de trabalho muito gratificante, pois lhe possibilitava tocar e mexer com os objetos, vasos, pratos, que usava como suporte para o seu talento. Passou longos anos dedicando-se a isso e o resultado são trabalhos importantes dentro do contexto de sua vida, embora menos valorizados no universo dos museus e menos conhecidos do público.


Criador de novas técnicas nos trabalhos de cerâmica e de uma maneira peculiar de exercer o ofício de pintor, Miró foi premiado, agraciado com títulos e homenageado nos 4 cantos do mundo, superando amplamente todas as dificuldades iniciais encontradas na juventude e no início da idade adulta. Na última fase de sua carreira foi regiamente pago por trabalhos encomendados e colocado na galeria dos grandes artistas da humanidade.


Realizou a sua primeira viagem aos Estados Unidos e trabalhou no mural em Cincinnati, no ano de 1947; em 1950 num mural para a Universidade de Harvard; em 1958 em dois murais de cerâmica: “O Mur du Soleil le Mur de la Lune” , edifício da UNECO, em Paris. Diversificado, versátil, criativo, Joan Miró deixou um legado inesgotável para estudo e deleite. Neste período envolveu-se, também, com litografia e com projetos de vitrais, já com 80 anos.

“Mural em Cincinnati” (1947)




Já nos anos seguintes; durante um período muito produtivo, trabalhou entre Paris e Barcelona. No fim da sua vida reduziu os elementos de sua linguagem artística a pontos, linhas, alguns símbolos e reduziu a cor, passando a usar basicamente o branco e o preto, ficando esta ainda mais “naïf”, nem por isso fez arte “naïf”; dado que o “naïf” é verista e narrativo ao máximo e a criatividade pura quase não serve para nada.


Miró foi prolífero até a sua morte em 1983, entregando-se não apenas à pintura de cavalete; mas, também, à cerâmica e realizando grandes murais, praticando a escultura e multiplificando-se em sua obra gráfica riquíssima.
Joan Miró morreu em 25 de dezembro de 1983, aos 90 anos, em Palma de Maiorca, na Espanha, ainda em atividade. Na última fase parecia predominar a ausência de cores em seus trabalhos, dedicando grande espaço ao preto e ao branco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

MIRÓ inventou signos biomórficos singulares para objetos da natureza, como o sol, a lua e os animais. Com o passar dos anos, essas formas foram sendo progressivamente simplificadas até chegar a uma estenografia em pictogramas de formas geométricas e gotas parecidas com amebas, uma mistura de fatos e fantasias.

As formas semi-abstratas de MIRÓ, embora estilizadas, aludiam ludicamente aos objetos reais. Em cores vivas e sempre extravagantes, parecem quadrinhos de outro planeta.

Joan Miró deixou-se prazerosamente influenciar por todas as correntes de arte com que tomou contato. Influências cubistas, surrealistas, abstracionistas são facilmente percebidas em seus trabalhos e a maneira de ver dos cubistas combina fortemente com a sua visão das coisas. A sua admiração pela pintura clássica encontrada desde cedo em sua origem na Catalunha mistura-se com a admiração pela escola flamenga e por fortes traços por onde foi passando. Aquilo tudo ia sendo absorvido, processado, misturado, temperado e apresentado, ao final, como uma maneira própria e extremamente rica de interpretar o mundo. Miró procurava mostrar a realidade de uma forma simplificada, quase infantil, simbólica, sem a complexidade e o mistério de um surrealismo tipo Salvador Dali ou René Magritte, mas isso era por si mesmo, cheio de uma profundidade que ele não enfatizou.

2 comentários:

Anônimo disse...

eu tenho dois quadros de Joan Miro eu nunca soube quem era o pintor, hoje eu me interessei em saber sobre ele gostei muito e conheci muitos quadros, achei muito interessante....

Quadros surrealistas disse...

Essa postagem é uma grande aula sobre quadros surrealistas e surrealismo. Obrigado por compartilhar!