sexta-feira, 18 de março de 2011

BOTTICELLI E A ESCOLA FLORENTINA DO RENASCIMENTO

Auto-retrato (1445 – 1510)

“O pincel um tanto pesado de Lippi torna-se, em suas mãos, mais nítido e sutil, a tensão cruel dos corpos de Pollaiolo se amacia, a vibração quase metálica dos planos de Verrocchio se transforma em límpidas extensões de cores, percorridas por um indefinível frêmito luminoso.”

Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi ou simplesmente Sandro Botticelli foi um célebre pintor italiano da Escola Florentina do Renascimento, embora tenha vivido na clandestinidade durante anos.

Sua reputação, alvo de um curto reavivar de interesse no século XVI, logo, esvaiu-se, e somente com o reaparecimento de uma crescente curiosidade pelo Renascimento, registrada no século XIX, e, em particular, pela interpretação filosófica de suas obras, é que sua arte volta a adquirir o êxito e a fama que mantém até hoje.
Nem mesmo Vasari, o famoso historiador testemunha da Renascença, em sua obra “Vite” (traduzida como "As Vidas dos Artistas") reserva-lhe a simpatia humana ou a admiração que sente por seus mestres preferidos.
Nascido em Florença foi discípulo do Fra. Filippo Lippi, ambos da região da Toscana, e desenvolveu um estilo local.
A arte de Sandro Botticelli começa aparecer por volta de 1465. Sua primeiras obras não renegam a paternidade artística de Filippo Lippi, seu mestre na série de virgens que, por muito tempo, levaram o nome do mestre. No entanto, o Lippi formador de Botticelli, que sai de Florença para terminar sua obra e sua vida em Spoleto, já não é mais o vulgarizador fácil da árdua linguagem de Masaccio.
Suas pesadas obras de juventude transformaram-se em um jogo linear cada vez mais expressivo em que revive, às vezes, a sua simpatia por Masaccio.
De resto, a pintura florentina já havia enveredado, há algum tempo, no caminho da pesquisa linear. Os irmãos Pollaiolo e Verrocchio tentaram explorar essa trilha, e o jovem Sandro não deixou de estudar seus trabalhos, determinado a só se interessar pelos elementos que tinham afinidade com seu gênero nascente. Desde o início, seu senso da linha mostrou-se diferente do de seu professor ou de seus contemporâneos.
Estudou com Andrea del Verrocchio, entre 1467 e 1470, na mesma época em que, com ele estudava Leonardo da Vinci.
Enquanto Donatello e Masaccio lançavam as bases do realismo tridimensional, Botticelli se movia na direção oposta, seguindo os preceitos da perspectiva central e estudou as esculturas da Antiguidade, evoluindo posteriormente para a acentuação das formas decorativas e da atenção dispensada à harmonia linear do traçado e ao vigor e pureza do colorido. As “suas” louras donzelas flutuantes eram mais um retrocesso à arte bizantina. Por outro lado, “seus” nus sintetizam a Renascença.
Botticelli através de sua linha sugere ritmo suave e beleza, buscando na Antiguidade grega ou na tradição cristã, o ideal de beleza.
Para ele, a beleza estava associada ao ideal cristão da graça divina. Por isso, as figuras humanas de seus quadros são belas porque manifestam a graça divina, e ao mesmo tempo, melancólicas porque supõem que perderam esse dom de Deus.
Suas obras tardias revelariam ainda um expressionismo trágico, de agitação visionária.
Em 1470, abriu seu próprio estúdio independente. Nesse ano, pintou “Fortaleza”, obra executada para terminar o ciclo das “Virtudes”, de Pietro Pollaiolo, e “São Sebastião”, destinada à Igreja de Santa Maria Maggiore.

“Fortaleza”, 1470


Nesse quadro, Botticelli mostra uma evidente atração por Pollaiolo, mas transpõe a tensão desse pintor num registro quase elegíaco, de tal forma que a Fortaleza segura a sua clava com um ar cansado.

“São Sebastião”, 1470.


O artista retrata São Sebastião, apoiado no flanco, descreve seu corpo com uma curva suave, pateticamente acentuada pela inclinação da cabeça, desprovida de qualquer expressão dolorosa.

Em “Judith”, percebe-se no primeiro painel a cruel determinação da heroína bíblica, pela forma lenta como a silhueta se move, sem que suas esvoaçantes vestimentas consigam conferir-lhe ritmo dramático. Quanto à sequência, Botticelli evita retratar o momento culminante e inevitavelmente sangrento do drama e escolhe o da descoberta do cadáver decapitado.

“História de Judith – A descoberta do corpo de Holofernes”, 1470


“O retorno de Judith”


O encontro com os Medicis rendeu-lhe admiração marcando uma virada decisiva na carreira do pintor, que obteve proteção, patronato e condições para que produzisse várias de suas obras-primas.
Dedicou-se, também ao retratismo, especialmente da Família Médici, e seu talento excepcional de transpor para a linguagem formal as concepções de seus clientes o tornou um dos pintores mais disputados de seu tempo.

Em “Adoração dos Magos”, 1475, os Médicis e seu familiares emprestaram seus traços aos reis magos e a seu séquito. Botticelli, talvez, tenha executado, nesse quadro, a mais viva galeria de retratos de sua carreira; representou até mesmo a si próprio, na extrema direita, coberto com um manto amarelo.

“Adoração dos Magos”, 1475.


Nesse quadro, as fisionomias dos Médicis, e a sua própria, nos personagens bíblicos, exalta a ideia de que a arte traduz uma visão atual do mundo.
No fundo, mal esboçadas com a ponta do pincel, arquiteturas clássicas de estilo greco-romano, parecem emergir de um delicado véu de cores, a grande distância; mais sugeridas do que representadas, não estão íntegras e sim num estado frágil e, por assim dizer; romântico, de ruínas.
Botticelli ignorou a perspectiva real para atingir a perfeição da beleza ideal.

“Retrato de Giuliano de Medici”, 1475-76.


O idealismo platônico e a influência do neoplatonismo cristão do círculo intelectual e artistístico com o qual entrou em contato exasperou a sua sensibilidade e conciliou-o com o ideal clássico, o que deixará, mais tarde, desamparado diante do drama político e religioso que se desenrolou em Florença, na última década do século XV.
Tal síntese expressa-se em “Primavera” e “O Nascimento de Vênus”, ambas realizadas sob encomenda para enfeitar uma residência dos Médici e que hoje estão expostas na Galeria Uffizi, em Florença, na Itália. Até hoje não há consenso na interpretação dessas pinturas, embora creia-se que Vênus pode ser vista como símbolo do amor tanto cristão como pagão.

“Primavera”, nome dado por Vasari, pintado entre 1476 e 1480, para decorar a mansão de um dos membros da família Médicis, Lorenzo di Pierfrancesco, de Florença, traduz em imagens, com extrema acuidade, a atmosfera contida e rarefeita do círculo dos Médicis e sua exigência de que se conciliem o espírito e a beleza terrena com uma elegância discreta e aristocrática.

Nota-se no quadro um forte caráter mitológico e decorativo, que lembra uma tapeçaria flamenca, por seus incríveis e intricados detalhes. Isso se dá por Botticelli ter tido uma formação de ourives, e suas habilidades decorativas e ornamentais foram acentuadas e trazidas para seu trabalho como pintor.

“Primavera”, 1476-1480.


A figura central, Vênus, deusa da Beleza e do Amor, prende primeiramente nossa atenção e parece controlar toda a situação, apesar de possuir um ar despreocupado e distante próprio de uma deusa, que tudo sabe, porém com nada se preocupa.


Soberana no bosque, Vênus está um pouco atrás das demais figuras, como se deixasse passar seu séquito. Por cima dela, as laranjeiras se fecham em semicírculo como uma auréola que circunda a deusa, principal personagem do quadro. Acima de sua cabeça, Cupido dispara suas setas que despertam o amor.

É tido que qualquer ser atingido por suas flechas se apaixonará perdidamente pela primeira figura que encontrar não importando quem seja, posto que o amor é cego, já que Cupido possui os olhos vendados.


A chama de suas flechas é um símbolo da paixão que vive no sentimento que ela provocará.

A partir de Vênus e ao seu redor, surgem outras figuras, aparentemente entretidas em suas próprias e independentes ações.
À direita estão Zéfiros, o vento do oeste na mitologia grega e, com um ramo de flor nos lábios, a ninfa Cloris, que ele captura e transforma em Flora, mãe das flores – a jovem de vestes floridas.




À esquerda estão as Três Graças, damas de companhia de Vênus e associadas à primavera. Eram elas: Aglaé (luminosa, representa a ação de doar), Eufrosina (alegre, representa a ação de receber) e Tália (a que traz as flores, representa a ação de devolver) que formam um ciclo repetido eternamente.







Ao lado delas está Mercúrio, mensageiro dos deuses. A mitologia antiga conta que Mercúrio separou com uma vara duas serpentes que lutavam, fazendo do caduceu o símbolo da paz. Afastando as nuvens de Vênus, ele se torna o protetor do jardim, onde não deve existir nenhuma nuvem ou perturbação, onde reinará a paz eterna.


O que une as figuras são o ritmo suave do desenho e a sugestiva paisagem pânica, seja pelo o amor com que expressa à natureza, seja pelo senso de mistério que ela sugere em tons escuros que favorecem a impressão de relevo das figuras claras em primeiro plano.

Dir-se-ia que esta obra é uma afirmação de um paganismo “romântico” em virtude de sua doçura sensual por seu senso de abandono, pela melancólica saciedade dos protagonistas e pela indefinida e inebriante entrega do espírito ao abraço da natureza.
Como Botticelli apreciava Alegorias e muitas interpretações podem ser atribuídas a essa obra.

Em “O nascimento de Vênus”, primeira tela a representar a mitologia pagã na Itália, Botticelli transforma Vênus, a deusa do Amor, numa alegoria com grande carga simbólica da pureza e verdade.
Desde os tempos da Roma clássica não se tinha voltado a representar uma deusa pagã nua e de tais dimensões, afinal o nu feminino era considerado pecaminoso na arte medieval cristão. Vênus, assim, veio substituir à Virgem pura.
Vênus não é Vênus.
Alguns especialistas argumentam que a deusa nua não representa a paixão terrena, carnal, e, sim, a paixão espiritual, pois representa o amor contemplativo e não a sedução.
A deusa tem a atitude de uma Vênus púdica: uma mão sobre o peito e outra sobre o sexo e cobre com seus longos e loiros cabelos suas partes íntimas como uma delicada caricia.

”O nascimento de Vênus”, 1482-83.


Segundo Wind (1968), a postura da deusa sintetiza, ainda, a natureza dual do amor, ao mesmo tempo sensual e casto. Interpretada à luz do neoplatonismo, Vênus representaria a união de qualidades espirituais e instintivas, a transcendental "união de contrários".


A cena retratada na pintura mostra Vênus, que nasce de uma enorme concha, cujo simbolismo pode evocar as qualidades fecundantes e criadoras da água.

A concha lembra o cordão umbilical; simboliza o feminino; representa o “novo nascimento” ou o nascimento na vida espiritual; fundindo, dessa forma, o profano em seu erotismo e o espiritual.
Vênus é conduzida pelos ventos, os Zéfiros, aqui representados por dois amantes.

 
Um deles é Céfiro (Deus do vento do oeste) e ao seu lado está sua esposa Cloris, ninfa da Brisa (que significa pálido) ou Flora para os romanos. Céfiro e Cloris, fortemente abraçados simbolizam a união da matéria e o espírito que exalam o sopro, o espírito da paixão, materializado nas rosas que segundo a lenda converter-se-ão em seres.

O efeito causado pelo quadro, no entanto, foi de paganismo, já que foi pintado em época em que a maioria da produção artística se atinha a temas católicos.
A deusa tem a seu lado direito, vinda do continente, a casta Hora (as Horas eram as deusas das Estações), trazendo um manto florido para cobrir a sua nudez e a sexualidade como sinal de que os mistérios de Vênus, como os do conhecimento, se encontram ocultos. Seu vestido, assim como o manto que carrega, ambos cobertos de flores, podem ser ainda uma alusão à primavera.
Vênus não teria condições de ficar em pé; sua musculatura é rígida, como uma pedra; seus braços são fortes, como de um trabalhador; sua cabeça é pequena em relação ao seu corpo; mas traduz graça pela beleza dos cabelos soltos ao vento, sugerindo leveza e seus dedinhos abertos. Porém, a sua expressão não comunica, não é provocativa, mas invoca sensualidade. Esse contraposto, com todo o peso na perna esquerda e o pé direito um pouco atrasado e ligeiramente levantado, pode ser considerado uma atitude inspirada nas estátuas antigas em particular as do helenismo.
Sua postura curvilínea segue sendo própria da gótico.
O rosto recorda ao das virgens de Botticelli: muito jovem, de boca fechada e olhos claros, porém sua expressão melancólica é imprópria da Antiguidade.
Com relação ao nascimento da deusa, duas versões podem ser destacadas. A primeira, mais antiga, mencionada em Apeles, presente no relato de criação de Hesíodo, a Teogonia. Nesta versão, Vênus/Afrodite nasce das espumas do mar, que são, na verdade, a mistura do sêmen e do sangue derramados de Urano (o Céu), castrado por seu filho Cronos/Saturno numa disputa de poder. Em outra versão, encontrada na Ilíada, a deusa do amor nasce da união de Zeus e Dione.
O título da obra não é, portanto, exato, já que o quadro não representa o momento do nascimento da deusa e nem referências explícitas no quadro ao mito teogônico da castração.
A paisagem não recebe especial interesse pelo pintor. Atrás, observam-se quatro troncos de árvores fracos e não se distingue perfeitamente o mar e a floresta.

Em “Marte e Vênus” retrata mais uma interpretação simbólica, bem a gosto dos intelectuais neoplatônicos florentinos.
O abandono em que se encontra a personagem de Marte traduz a influência apaziguadora de Vênus, símbolo da humanidade.

“Marte e Vênus”, 1483.


Durante esses mesmos anos, Pollaiolo, Verrocchio e o jovem Leonardo da Vinci procuraram desvendar o mistério do corpo, detalhando os segredos com um cuidado que haveria de reflorir, um século mais tarde, revestido de vigor científico. Ghirlandaio começa a exibir, nas paredes das igrejas florentinas, a prosa fácil de suas histórias sacras para agradar à vaidade de uma burguesia rica, mas pouco refinada.
Botticelli, baseando-se nas “Estrofes” de Poliziano, transpõe em imagens a maravilhosa evocação do prado que floresce como por encanto à passagem das ninfas, decrevendo com toques muito leves os seus vestidos semeados de flores.
A posição de Botticelli em relação ao mundo clássico é singular: não tenta redescobrir as leis da Antiguidade, nem a razão secreta de suas harmonias e da perfeição de suas formas, a exemplo dos “pais” da Renascença, que examinavam e mediam monumentos e esculturas. Prefere evocar, por intermédio de um verso, de um rosto esculpido num túmulo ou um fragmento de arquitetura , a ardente marca deixada por um mundo esplêndido, mas há muito tempo inacessível.
Pode-se afirmar que a arte de Botticelli resume-se no leve arabesco das “Graças”, em sua dança aérea cujo ritmo parece escondido pelo preciosismo do movimento das mãos, pelas volutas que as vestimentas descrevem em torno das silhuetas, pela insistência do pintor em levar adiante os fios de suas linhas entrelaçando-os sem cessar.
O colorido fluido, transparente, sem sombra densa, não passa de vibrações sutis da luz sobre carnações pálidas, de dobras transparentes. Não há fuga da perspectiva em direção ao horizonte, até os limites consentidos pelo olho humano, e sim uma breve ruptura indicada na paisagem por mão muito leve.
Na mesma época, Leonardo dissolve o fundo mais longínquo no véu da atmosfera e critica as paisagens em que a natureza, as aldeias, os edifícios são reproduzidos nitidamente, como se estivessem por trás de uma esfera de cristal.

A viagem a Roma, para onde Botticelli foi em 1481, chamado pelo papa Sisto IV, juntamente com outros artistas, para pintar a Capela Sistina, não parece ter marcado profundamente o seu espírito.
O arco de Constantino, que aparece no fundo do “Castigo dos Filhos de Kora”, dá a impressão de homenagem inevitável à cidade que o recebia e não possuia o poder de evocação das ruínas da “Adoração dos Magos”.

“Castigo dos Filhos de Kora”, 1481-82.


Talvez o ambiente lhe parecesse hostil e agressivo. Ciumentos e invejosos certamente não faltavam. Aliás, Botticelli, mais habituado a evocar e a imaginar do que a seguir o desenvolvimento lógico e rigoroso de uma narrativa, podia sentir-se desconcertado diante das vastas paredes da Sistina sobre as quais se desenrolavam as “Atas do Cristo”, as de “Moisés” ou o “Castigo dos filhos de Kora”. Todas essas cenas, ricas em episódios e movimentos, exigiam a gradação, em planos distintos, de numerosas circunstâncias que constituem a narração completa. É por isso que os melhores trechos de seus afrescos para a Sistina são os detalhes: certos retratos específicos que dão animação a cada cena, figuras infantis como as das “Filhas de Jétero”, nas “As provocações de Moisés”, ou “A Moça com o Feixe de Lenha”, nas “Atas de Cristo”, em que o mestre se entrega, com toda a felicidade, à sua preferência pelos ritmos lineares.

“As provocações de Moisés”


“O castigo dos rebeldes”


“As tentações de Cristo”


Nesta linha pagã, destacam-se também a série de quatro quadros “Nastagio Degli Onesti”, produzidos em 1483, nos quais o artista recria uma das histórias do Decameron, de Boccaccio.

“Nastagio Degli Onesti”, 1483.


“Palas e o Centauro” foi pintada para a mansão de Lorenzo di Pierfrancesco di Médici e interpretada como uma composição de circunstância, alusão à sabedoria política de Lorenzo, o Magníifico ou como uma alegoria da Sabedoria dominando o Instinto.

“Palas e Centauro”, 1482.

“Palas e o Centauro” (detalhe)


Na década de 1490, quando os Médicis foram expulsos de Florença, Botticelli passou por uma crise religiosa e tornou-se discípulo do monge beneditino Girolamo Savonarola, que pregava uma austera repressão à vida mundana.
O monge beneditino chegou a transformar o carnaval em festa de caridade em que se destruíram livros julgados licenciosos. Seus desafios acabaram por levá-lo à fogueira, acusado de heresia.mas Botticelli não tomou partido na questão.
Botticelli foi afetado por essa transformação, entretanto não tomou partido.
O artista que antes homenageara o heroísmo como superação da adversidade material e triunfo sobre o destino, passou a concebê-lo como virtude espiritual, essencialmente cristã.
O artista retoma a sua linguagem predileta e pinta os famosos “tondo”. Para ele, o “tondo” não é apenas o tipo do quadro que estava na moda, em Florença, pelo fim do século XV, destinado a servir de imagem de devoção para as orações particulares, mas condiciona a própria concepção da obra.
Botticelli populariza sua obra antes destinada à elite, o que traduz uma fidelidade às lições de Savonarola, segundo o qual o povo simples e virtuoso de Florença salvaria aquela sociedade da decadência de nobres e ricos.

Na “Virgem escrevendo”, a composição se desenvolve de acordo com uma harmonia circular até o arco formado pelo braço dos anjos que seguram a coroa acima da cabeça da Virgem.
O mestre se adapta a um outro formato e segue o corte vertical do quadro ao descrever um quarto silencioso em que as silhuetas alongadas das personagens santas se apóiam na moldura luminosa da janela.
A própria inclinação do rosto, contrabalançando a cabeça dos anjos, lembra o ritmo da moldura, enquanto, em sua parte inferior, o círculo se fecha com a curva do corpo de menino que descansa nos braços da mãe.

“A Virgem Escrevendo”, 1485.


“A Virgem com a Romã”, 1487.

“A Virgem com a romã” (detalhe)

“Coroação da Virgem”, 1490.


A tez alva de seu corpo se alia ao verde muito pálido das ondas que se distinguem do azul transparente do céu. Mais do que servir para limitar o espaço, a costa parece se retirar formando, sob o impulso dos ventos, baías e golfos que acompanham o movimento evoaçante do manto. O poder expressivo da linha melódica botticelliana atinge o máximo aqui. Começa a fazer-se sentir uma tensão insólita na fluidez da linha.

No “Retábulo de São Barnabé”, 1482-85, na “Coroação da Virgem”, 1490 da Igreja de São Marcos, e principalmente na “Anunciação” para os monges de Castello, a linha se torna tensa, a cor vibra, os corpos dobram-se dolorosamente e, nos rostos, aflora a ansiedade interior.

“Retábulo de São Barnabé”, 1482-85.


“Anunciação”


A morte de Lorenzo, o Magnífico, em 1492, o banimento de seu filho Pietro dois anos mais tarde, o comportamento ambiguo de Lorenzo di Pierfrancesco em relação a Savonarola e, finalmente, a própria fuga de Botticelli, em 1497, perturbam o espírito já atormentado do mestre.
A crise religiosa, já latente em seu temperamento melancólico e introvertido, se desencadeia com a pregação, a condenação e a morte de Savonarola.
A arte de Botticelli carrega a marca disso, principalmente nas “Pietà”, de Munique e de Milão, em que as personagens, na sua aflição, parecem desfalecer sobre o cadáver de Cristo; as silhuetas pateticamente entrelaçadas são reforçadas por vestimenstas de tecidos rígidos, com dobras cortantes como lâminas.

“Pietá” – Munique, 1490-92.


Daí em diante, Botticelli recusa-se a tratar as alegorias profanas que tinham alimentado os “bruciamenti delle vanità” (“as fogueiras das vaidades”) nas praças de Florença. Só se interessa pelo mundo antigo no caso da “Calúnia” ou a conduta de Lucrécio e Virgínia.
O tema da “Calúnia” provém da descrição que o escritor grego Luciano faz de um quadro do mesmo nome, de Apeles, o pintor de Alexandre, o Grande. O próprio humanista e arquiteto Leon Battista Alberti retomara essa história em seu “Tratado da Pintura”.
O artista a pintouno momento em que a pregação de Savonarola chegava ao apogeu. O mestre se afasta das fábulas pagãs da Antiguidade, exceto quando elas contam alegorias morais.

“A Calúnia”, 1494-95.


As personagens se inclinam para o rei Midas num entrelaçamento patético, enquanto, do lado oposto, destaca-se, impávida em seu isolamento, a imagem muito bonita da Verdade nua em flagrante contraste com a Penitência vestida de luto.
Botticelli parece ter voltado à serena contemplação do corpo feminino, cujo esplendor ele tinha glorificado no “Nascimento de Vênus”.
Duas obras de espírito quase medieval abrem o século XVI: na “Crucificação”, o panorama de Forença aparece no fundo, entre nuvens tempestuosas, um anjo açoita uma raposa, um lobo foge das roupagens de Madalena, que se abraça à cruz; essa confusão nos deixa perceber uma alusão à “Divina Comédia”, que Botticelli ilustrara alguns anos antes para Lorenzo di Pierfrancesco.

Em “Natividade”, a alegoria do acontecimento místico é dominada pela inquietação que leva os anjos a se abraçarem ansiosos e São José a inclinar-se dolorosamente sobre si mesmo. No alto do quadro, uma inscrição grega sibilina, de tom profético, estaria, talvez, evocando as desordens da Itália e sua punição iminente.
Os acontecimentos dramáticos com os quais se relacionam a inscrição grega no alto do quadro parecem refletir-se no abraço convulsivo dos anjos e na atitude dolorosa das personagens.

“Natividade”, 1501.


Mas nesse esplêndido verão tardio da Renascença, que precede de pouco a tragédia das invasões estrangeiras e o drama da Reforma, Florença já esqueceu a crise religiosa aberta por Savonarola: a “maneira nova” triunfa com as obras-primas de Leonardo da Vinci, Michelangelo, Rafael. Botticelli não está mais na moda: desprezam a sua espiritualidade militante, que, por preocupação com a verdade, recusa as “novidades” da época naquilo em que elas se afastam da Igreja.

Suas “Histórias de São Zenóbio”, encomenda de uma confraria urbana devota desse santo, põem em cena personagens animadas por um impulso doloroso que converge para o centro do drama: a criança morta, menininho esmagado por uma carroça, gente endemoniada; a nitidez do desenho e a transparência da luz muito fria acentuam o caráter trágico das circunstâncias. Um retorno nostálgico aos ritmos rigorosos do início do Quatrocento e uma exasperação de sua própria sensibilidade fecham assim o círculo da evolução humana desse pintor refinado e melancólico.

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