- Há na obra uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as;
- O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha
de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos
traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do
protagonista.... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que
ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma
nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução;
- O livro Os ratos inicia com
a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não
receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno
sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que
presenciam o ultimato. O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do
romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que
amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças
para o chefe de família e novos olhares reprovadores. Mistura-se a essa luta a
ansiedade, o desespero, a sensação de fragilidade e inutilidade do ser humano
que não tem recursos sequer para garantir o sustento digno da família;
- A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma
brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do
protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta
na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e
percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos
movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de
permanecer próximo do protagonista do escrito literário;
- O passado, principalmente a infância, mistura-se ao presente de Naziazeno Barbosa.
O enredo é arquitetado numa superposição de planos: os pensamentos e
reminiscências do herói em confronto com a crueza da realidade citadina.
Presente e passado alternam-se na composição da história;
- O drama principal do romance não se concentra no leiteiro, nem nos ratos ou
no dinheiro: concentra-se na dificuldade para conseguir a quantia desejada,
respeitando-se o limite de tempo e espaço;
- Durante
a sua via-sacra, Naziazeno encontra pessoas solidárias a sua situação. “- Eu já lhe disse: eu simpatizo muito com a
situação dele. Simpatizo muito...” (p.87). Mas nenhuma dessas pessoas é
capaz de questionar que estrutura social é esta que leva um pai de família não
ter nem o dinheiro para comprar leite para o seu filho. É um livro que acaba
questionando a realidade brasileira, onde a diferença social faz com que muitos
assalariados, vivam como nossa personagem com dívidas para quitar. E por serem
tão habituados a essa situação acham muito natural, sobrevivem assim... com o
compadecimento de algumas pessoas;
- A obra Os
Ratos desmascara as relações desumanas criadas pelo capitalismo: a
causa geral da deformação das personagens. Dyonélio vai buscar essa deformação
naquilo em que, com toda obviedade, ela parece não estar: nos gestos miúdos,
quase imperceptíveis, como sacudir moedinhas dentro do bolso, cortar
nervosamente um pedaço de pão em migalhas, espantar-se com as fisionomias
dentro do bonde, estudar longas horas a melhor maneira de falar com um
superior, perder o jeito diante de um credor. Enfim, como bom psicanalista,
Dyonélio vê a chave humana no fragmentário; o homem de hoje é uma constelação
de feridas, cicatrizes, contrações opacas;
- Em
uma entrevista concedida ao jornal Movimento (24/11/1975), Dyonélio Machado
fala sobre a angústia, principalmente, infantil:
“Se nos prolongássemos às angústias infantis,
não chegaríamos à idade adulta”; sendo assim, pode-se encontrar na infância
um possível “berço” das angústias, muitas vezes inexplicáveis, que se acometem
nos adultos.
O filósofo
italiano Gianni Vattimo, autor do livro O
fim da modernidade (editora Martins Fonte, 2000), ressalta um dos
principais pensamentos de Heidegger sobre as reflexões existencialistas
voltadas para o conhecimento, à consciência da liberdade do homem em poder
fazer escolhas em que o limite será a “morte vivida a cada dia”, chamada
angústia. Sendo assim, o pressentimento, a angústia é uma espécie de “morte
dosada” do ser humano diante da sua “coisificação”, imposta pela Modernidade
(Capra, O ponto de mutação e Harvey, O
fim da modernidade).
Naziazeno, personagem principal do romance,
enfrenta um dia inteiro, entre o medo e a angústia. O medo para Heidegger é
sempre transitório e, quando fortificado por uma razão externa (no caso do
romance, os ratos, a dívida) transforma-se em angústia e o referencial (a
razão) se desvanece e fica o sentimento sufocante, inexplicável e profundo. No
livro, o medo de não conseguir o dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro
se torna “a morte vivida a cada dia, cada minuto” (angústia) e acesso ao nada.
Por isso, Naziazeno, em certa altura do
romance (diante de todas as suas tentativas fracassadas), não pensa mais, não
discute mais, perde as esperanças;
- Para Freud, o pensamento obsessivo aparece como uma ligação do inconsciente a certas vontades, não satisfeitas, que levam ao estado de ansiedade ou angústia; o pensamento obsessivo de Naziazeno é a dívida. Em detrimento dela, e por ela, ele é capaz de se sacrificar: ficar sem almoço, pedir dinheiro para desconhecidos, não trabalhar, voltar tarde para casa, não dormir – tornando o ato de saldar uma dívida em um “calvário” (como se o empréstimo fosse a sua única salvação);
Os ratos, em certo momento da obra,
perturbam o sono da personagem, prendem sua atenção, eles incomodam, parecem
continuação do dia cansativo, parecem o inconsciente que procura nos detalhes
dos barulhos algo para prolongar uma tarefa inacabada: Naziazeno ainda não
pagou a dívida, sua vontade ainda não foi satisfeita; o subconsciente trabalha
e não o deixa dormir, como se faltasse algum pedaço para juntar o
quebra-cabeça. O pensamento obsessivo, a angústia e o inconsciente só param ou
descansam com a chegada do leiteiro e a dívida aniquilada: um êxtase toma conta
do corpo e da alma de Naziazeno que dorme, agora, tranquilamente; o pensamento
obsessivo passa, o medo passa, a angústia desaparece;