quarta-feira, 20 de novembro de 2024

PNEUMOTÓRAX, MANUEL BANDEIRA

 

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

 

Mandou chamar o médico:

- Diga trinta e três.

- Trinta e três...trinta e três...trinta e três...

Respire.

.................................................................

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.


Vocabulário:

 

Pneumotórax – forma de tratamento da tuberculose.

Hemoptise – tosse sanguinolenta.

Dispneia – dificuldade de respiração.


A linha pontilhada é do próprio original: ela marca uma quebra na narrativa e na respiração (do doente e do leitor).

Segue algumas considerações do engenho da construção musical do poema.


1.  No 1º verso, cujo tema é objetivo – a “doença” (as palavras são todas do vocabulário técnico da medicina), o ritmo apresenta-se quebrado, entrecortado, feito da superposição de sequências breves, com vogais tônicas “claras” (e, i: “fEbre / hemoptIse / dispnéIA”), seguidas de um segmento mais longo, de vogais tônicas “escuras” (o, u: “suOres notUrnos”), tudo compondo uma descrição bastante sugestiva das aflições do tuberculoso.

2.  O 2º verso, cujo tema é subjetivo – o “sonho frustrado” contrasta com o primeiro, pois se constitui de uma frase melódica inteiriça, cantante, que melancolicamente lamenta a vida perdida;

3.  No 3º verso, cujo tema é de novo a “doença”, volta o ritmo espasmódico, com aliteração do “t”, imitando a tosse;

4.  Desde o início do poema, arma-se uma aliteração de consoantes dentais (“t” e “d”) que criam um ritmo de fundo, fazendo sempre lembrar as aflições da doença. Essa aliteração combina-se com a grotesca repetição do ditongo “ão” quando o médico apresenta seu diagnóstico: “O senhor Tem uma escavaçÃO no pulmÃO esquerDO e o pulmÃO DireiTO infilTraDO”, intensifica-se quando o doente tosse ou fala “EnTÃO, DouTor, não é possível TenTar o pneumoTórax?”, desaparece quando o médico inicia sua resposta, em tom grave “NÃO. A única coisa a fazer”, e surpreendentemente retorna, realçando comicamente o macabro da situação, quando se introduz a nota de absurdo humor negro “Tocar um Tango argenTino”.

5.  É importante ressaltar que o tango argentino possui um ritmo envolvente e melancólico.

6.  Outras características são: incorporação da prosa à poesia; versos brancos e livres; utilização de sinais gráficos; linguagem dialógica que dá caráter dramático; presença de vocábulos considerados “não poéticos” etc.


quarta-feira, 13 de novembro de 2024

BENEDITO CALUNGA, POEMAS NEGROS, DE JORGE DE LIMA

 BENEDITO CALUNGA, Jorge de Lima


Benedito calunga
Calunga-ê
Não pertence ao papo –fumo,
Nem ao quibungo,
Nem ao pé de garrafa,
Nem ao minhocão.

Benedito Calunga
Calunga-ê
Não pertence a nenhuma ocaia a nenhum tati,
Nem mesmo a Iemanjá,
Nem mesmo a Iemanjá.

Benedito Calunga
Calunga-ê
Não pertence ao Senhor
Que o lanhou de surra
E o marcou com ferro de gado
E o prendeu com lubambo nos pés.

Benedito Calunga
Pertence ao banzo
Que o libertou,

Pertence ao banzo
Que o amuxilou,
Que o alforriou
Para sempre
Em Xangô
Hum-Hum.

SOBRE O TÍTULO, TEMOS:

SÃO BENEDITO: CONHECIDO TAMBÉM COMO BENEDITO, O NEGRO OU BENEDITO, O AFRICANO É UM SANTO CATÓLICO QUE, SEGUNDO ALGUMAS VERSÕES DE SUA HISTÓRIA, NASCEU NA SICÍLIA, SUL DA ITÁLIA, EM 1524, NO SEIO DE FAMÍLIA POBRE E ERA DESCENDENTE DE ESCRAVOS ORIUNDOS DA ETIÓPIA.

OUTRAS VERSÕES DIZEM QUE ELE ERA UM ESCRAVO CAPTURADO NO NORTE DA ÁFRICA, O QUE ERA MUITO COMUM NO SUL DA ITÁLIA NESTA ÉPOCA. NESTE CASO, ELE SERIA DE ORIGEM MOURA, E NÃO ETÍOPE. DE QUALQUER MODO, TODOS CONTAM QUE ELE TINHA O APELIDO DE “MOURO” PELA COR DE SUA PELE.

BENEDITO: HOMEM BENDITO E BENTO COMO O SANTO LENDÁRIO, PADRINHO CELESTE DE BATISMO DE TANTOS E TANTOS CATIVOS E SEUS DESCENDENTES.

CALUNGA: PALAVRA DE VÁRIAS DENOTAÇÕES, AQUI PROVAVELMENTE DESIGNANDO O NEGRO POBRE, O FIEL SEM EIRA NEM BEIRA, EM GERAL, PERTENCENTE À FALANGE DE IEMANJÁ (CALUNGA TAMBÉM SIGNIFICA “MAR”).

NO POEMA, A FIGURA DE BENEDITO CALUNGA REMETE AO CATIVO SEM AMPARO, FOI SEVICIADO PELO SENHOR BRANCO QUE O FERROU COMO GADO E O ATOU AO LUMBAMBO.

SIGNIFICAMENTE, O CALUNGA BENEDITO NÃO SE ENTREGOU À SEDUTORA IEMANJÁ, MAS TÃO SOMENTE A XANGÔ, REI POTENTE DE RAIOS E TEMPESTADES, CUJO BANZO (MAIS QUE TRISTEZA, PAIXÃO) O ALFORRIOU PARA SEMPRE.

NA POESIA “BENEDITO CALUNGA” ENCONTRAMOS UM VOCABULÁRIO AFRICANO PRÓPRIO NAS PALAVRAS COMO “LUBAMBO”, “BANZO”, “QUIBUMBO”.

A BUSCA POR UM VOCABULÁRIO MAIS POPULAR E BRASILEIRO, TAMBÉM FOI UMA PREOCUPAÇÃO CONSTANTE DOS MODERNISTAS, O QUE RESULTOU NA SALIENTAÇÃO DA ORALIDADE DENTRO DA LITERATURA ESCRITA.

A VOZ DA PERSONAGEM NÃO FOI NEGLIGENCIADA, AO CONTRÁRIO, ELA ESTÁ VIVA NAS EXPRESSÕES QUE O POETA FEZ QUESTÃO DE EVIDENCIAR COMO: “CALUNGA-Ê” E “HUM-HUM”, AS QUAIS TAMBÉM PODEM SER PROFERIDAS POR OUTRO NEGRO, POR OUTRO ESCRAVO AO NOMEAR E COMPARTILHAR COM BENEDITO CALUNGA DE SEU SOFRIMENTO.

ALÉM DO VOCABULÁRIO AFRICANO, QUE É VALORIZADO NESTA POESIA, TEMOS OS ELEMENTOS DA RELIGIÃO AFRICANA REPRESENTADOS NA FIGURA DE IEMANJÁ E DE XANGÔ, O QUE MOSTRA UMA TENDÊNCIA À PERSPECTIVA DO PRÓPRIO NEGRO DENTRO DO POEMA, E NÃO DO AUTOR.

EMBORA SEJA O EU-LÍRICO CRIADO PELO AUTOR QUE ESTEJA SE TRAVESTINDO DE NEGRO.

SOBRE A QUESTÃO POLÍTICA, OBSERVAMOS QUE O AUTOR CONSTRÓI O POEMA DE FORMA A SUSCITAR UMA REFLEXÃO SOBRE A CONDIÇÃO DOS ESCRAVOS, POIS PELA REPETIÇÃO DO VERSO “NÃO PERTENCE ...” O POETA CRIA A SENSAÇÃO DE DESRAIZAMENTO E DE NÃO IDENTIDADE DA PERSONAGEM, PRINCIPALMENTE COM O LUGAR, COM OS OBJETOS E COM AS PESSOAS QUE O TORNAM ESCRAVO.

ELE SE IDENTIFICARÁ E SE PERTENCERÁ COM AQUILO QUE O LIBERTARA DE SUA CONDIÇÃO QUE É SENÃO A MORTE POR DEPRESSÃO NOMEADA PELOS NEGROS DE BANZO.

DESSA FORMA, O BANZO CONOTA UM ESTADO DE CORPO E DE ALMA QUE ARRASTA AO DELÍRIO, Á AUTODESTRUIÇÃO, À LUXÚRIA DESENFREADA. TRISTEZA TURVA QUE SE ASSEMELHA Á PERDA DA GRAÇA, TENTAÇÃO DE PECADO MORTAL, EM TERMOS DE DEVOÇÃO CRISTÃ, PELA CEGA VIOLÊNCIA QUE DESENCADEIA NOS SENTIMENTOS E ATOS DOS QUE A EXPERIMENTAM.

EM “BENEDITO CALUNGA” HÁ SUGESTÃO DE UMA VOLTA DO CATIVO AO SEU REINO DE ORIGEM, MUNDO DE ENTIDADES PROTETORAS, ÀS QUAIS ELE PERTENCE OU PELA ENTREGA À MORTE OU PELA PAIXÃO DA SAUDADE, O BANZO.

 

 

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA DE "OS RATOS", DYONÉLIO MACHADO

- Há na obra uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as;

- O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista.... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução;

- O livro Os ratos inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato. O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores. Mistura-se a essa luta a ansiedade, o desespero, a sensação de fragilidade e inutilidade do ser humano que não tem recursos sequer para garantir o sustento digno da família;

- A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário;

- O passado, principalmente a infância, mistura-se ao presente de Naziazeno Barbosa. O enredo é arquitetado numa superposição de planos: os pensamentos e reminiscências do herói em confronto com a crueza da realidade citadina. Presente e passado alternam-se na composição da história;


- O drama principal do romance não se concentra no leiteiro, nem nos ratos ou no dinheiro: concentra-se na dificuldade para conseguir a quantia desejada, respeitando-se o limite de tempo e espaço;

- Durante a sua via-sacra, Naziazeno encontra pessoas solidárias a sua situação. “- Eu já lhe disse: eu simpatizo muito com a situação dele. Simpatizo muito...” (p.87). Mas nenhuma dessas pessoas é capaz de questionar que estrutura social é esta que leva um pai de família não ter nem o dinheiro para comprar leite para o seu filho. É um livro que acaba questionando a realidade brasileira, onde a diferença social faz com que muitos assalariados, vivam como nossa personagem com dívidas para quitar. E por serem tão habituados a essa situação acham muito natural, sobrevivem assim... com o compadecimento de algumas pessoas;

- A obra Os Ratos desmascara as relações desumanas criadas pelo capitalismo: a causa geral da deformação das personagens. Dyonélio vai buscar essa deformação naquilo em que, com toda obviedade, ela parece não estar: nos gestos miúdos, quase imperceptíveis, como sacudir moedinhas dentro do bolso, cortar nervosamente um pedaço de pão em migalhas, espantar-se com as fisionomias dentro do bonde, estudar longas horas a melhor maneira de falar com um superior, perder o jeito diante de um credor. Enfim, como bom psicanalista, Dyonélio vê a chave humana no fragmentário; o homem de hoje é uma constelação de feridas, cicatrizes, contrações opacas;

- Em uma entrevista concedida ao jornal Movimento (24/11/1975), Dyonélio Machado fala sobre a angústia, principalmente, infantil:   

 Se nos prolongássemos às angústias infantis, não chegaríamos à idade adulta”; sendo assim, pode-se encontrar na infância um possível “berço” das angústias, muitas vezes inexplicáveis, que se acometem nos adultos.

   O filósofo italiano Gianni Vattimo, autor do livro O fim da modernidade (editora Martins Fonte, 2000), ressalta um dos principais pensamentos de Heidegger sobre as reflexões existencialistas voltadas para o conhecimento, à consciência da liberdade do homem em poder fazer escolhas em que o limite será a “morte vivida a cada dia”, chamada angústia. Sendo assim, o pressentimento, a angústia é uma espécie de “morte dosada” do ser humano diante da sua “coisificação”, imposta pela Modernidade (Capra, O ponto de mutação e Harvey, O fim da modernidade).

   Naziazeno, personagem principal do romance, enfrenta um dia inteiro, entre o medo e a angústia. O medo para Heidegger é sempre transitório e, quando fortificado por uma razão externa (no caso do romance, os ratos, a dívida) transforma-se em angústia e o referencial (a razão) se desvanece e fica o sentimento sufocante, inexplicável e profundo. No livro, o medo de não conseguir o dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro se torna “a morte vivida a cada dia, cada minuto” (angústia) e acesso ao nada.

   Por isso, Naziazeno, em certa altura do romance (diante de todas as suas tentativas fracassadas), não pensa mais, não discute mais, perde as esperanças;

 - Para Freud, o pensamento obsessivo aparece como uma ligação do inconsciente a certas vontades, não satisfeitas, que levam ao estado de ansiedade ou angústia; o pensamento obsessivo de Naziazeno é a dívida. Em detrimento dela, e por ela, ele é capaz de se sacrificar: ficar sem almoço, pedir dinheiro para desconhecidos, não trabalhar, voltar tarde para casa, não dormir – tornando o ato de saldar uma dívida em um “calvário” (como se o empréstimo fosse a sua única salvação);

 - Dyonélio Machado dedica o título da obra e dois capítulos aos ratos. Pelo menos aos olhos do convencional, os ratos (animais de hábitos noturnos que sobrevivem de restos de alimentos e vivem em lixos, sótãos, etc.) causam repugnância, medo, pavor, agonia, angústia, nojo e outros. Qual seria então a possível relação metafórica desse animal com Naziazeno ou com sua condição momentânea? Primeiramente, os ratos, normalmente, são animais indesejados em qualquer residência, ao contrário de gatos, cachorros, peixes ou pássaros, pode-se dizer, então, que os ratos vivem à margem da preferência humana, de uma sociedade. Naziazeno também vive à margem da sociedade, de uma sociedade que normalmente não abdica, por exemplo, do leite, da manteiga, do gelo (no caso particular de Naziazeno), do almoço (nem que esse seja simplesmente uma sopa com pão) de produtos ou condições essenciais para uma qualidade de vida. Esses animais são “desprezíveis”, bem como Naziazeno no início da obra, no momento que nega a necessidade do leite para seu filho. E é também em favor de seu filho que Naziazeno procura saldar sua dívida.

   Os ratos, em certo momento da obra, perturbam o sono da personagem, prendem sua atenção, eles incomodam, parecem continuação do dia cansativo, parecem o inconsciente que procura nos detalhes dos barulhos algo para prolongar uma tarefa inacabada: Naziazeno ainda não pagou a dívida, sua vontade ainda não foi satisfeita; o subconsciente trabalha e não o deixa dormir, como se faltasse algum pedaço para juntar o quebra-cabeça. O pensamento obsessivo, a angústia e o inconsciente só param ou descansam com a chegada do leiteiro e a dívida aniquilada: um êxtase toma conta do corpo e da alma de Naziazeno que dorme, agora, tranquilamente; o pensamento obsessivo passa, o medo passa, a angústia desaparece;

 - O discurso indireto livre é um recurso, relativamente, recente. Surgiu com os romancistas inovadores do século XX e tem como característica o misto dos discursos direto e indireto. Outro item abordado pelo autor e que remete ao modernismo é o linguajar simples, coloquial, direto, não há “rodeios” nem sentimentalismo exacerbado nas palavras ou pensamentos. A idéia da modernidade e a incorporação das “conquistas” do progresso são destacadas através da citação do “bonde”, da “fábrica”; elementos que também exemplificam coisas do cotidiano, bem como a descrição do café da manhã de Naziazeno, a dívida, o trabalho, as conversas banais em cafés são demonstrações de fatos ligados ao cotidiano e a realidade brasileira. Outra inovação modernista é relacionada ao tempo de ação: na obra de Dyonélio Machado toda a ação se passa em um dia, “interminável” e exaustivo dia que o narrador-observador acompanha entremeando o pensamento de Naziazeno e suas atitudes;

 - Conclui-se que o romance Os Ratos possui uma complexidade de temas imperceptíveis em uma primeira leitura. Como se a obra fosse à mente humana: repleta de abismos escondidos em sorrisos e olhares superficiais, sendo necessária uma observação detalhada, com outros prismas, com um novo olhar.