quinta-feira, 7 de novembro de 2024

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA DE "OS RATOS", DYONÉLIO MACHADO

- Há na obra uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as;

- O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista.... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução;

- O livro Os ratos inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato. O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores. Mistura-se a essa luta a ansiedade, o desespero, a sensação de fragilidade e inutilidade do ser humano que não tem recursos sequer para garantir o sustento digno da família;

- A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário;

- O passado, principalmente a infância, mistura-se ao presente de Naziazeno Barbosa. O enredo é arquitetado numa superposição de planos: os pensamentos e reminiscências do herói em confronto com a crueza da realidade citadina. Presente e passado alternam-se na composição da história;


- O drama principal do romance não se concentra no leiteiro, nem nos ratos ou no dinheiro: concentra-se na dificuldade para conseguir a quantia desejada, respeitando-se o limite de tempo e espaço;

- Durante a sua via-sacra, Naziazeno encontra pessoas solidárias a sua situação. “- Eu já lhe disse: eu simpatizo muito com a situação dele. Simpatizo muito...” (p.87). Mas nenhuma dessas pessoas é capaz de questionar que estrutura social é esta que leva um pai de família não ter nem o dinheiro para comprar leite para o seu filho. É um livro que acaba questionando a realidade brasileira, onde a diferença social faz com que muitos assalariados, vivam como nossa personagem com dívidas para quitar. E por serem tão habituados a essa situação acham muito natural, sobrevivem assim... com o compadecimento de algumas pessoas;

- A obra Os Ratos desmascara as relações desumanas criadas pelo capitalismo: a causa geral da deformação das personagens. Dyonélio vai buscar essa deformação naquilo em que, com toda obviedade, ela parece não estar: nos gestos miúdos, quase imperceptíveis, como sacudir moedinhas dentro do bolso, cortar nervosamente um pedaço de pão em migalhas, espantar-se com as fisionomias dentro do bonde, estudar longas horas a melhor maneira de falar com um superior, perder o jeito diante de um credor. Enfim, como bom psicanalista, Dyonélio vê a chave humana no fragmentário; o homem de hoje é uma constelação de feridas, cicatrizes, contrações opacas;

- Em uma entrevista concedida ao jornal Movimento (24/11/1975), Dyonélio Machado fala sobre a angústia, principalmente, infantil:   

 Se nos prolongássemos às angústias infantis, não chegaríamos à idade adulta”; sendo assim, pode-se encontrar na infância um possível “berço” das angústias, muitas vezes inexplicáveis, que se acometem nos adultos.

   O filósofo italiano Gianni Vattimo, autor do livro O fim da modernidade (editora Martins Fonte, 2000), ressalta um dos principais pensamentos de Heidegger sobre as reflexões existencialistas voltadas para o conhecimento, à consciência da liberdade do homem em poder fazer escolhas em que o limite será a “morte vivida a cada dia”, chamada angústia. Sendo assim, o pressentimento, a angústia é uma espécie de “morte dosada” do ser humano diante da sua “coisificação”, imposta pela Modernidade (Capra, O ponto de mutação e Harvey, O fim da modernidade).

   Naziazeno, personagem principal do romance, enfrenta um dia inteiro, entre o medo e a angústia. O medo para Heidegger é sempre transitório e, quando fortificado por uma razão externa (no caso do romance, os ratos, a dívida) transforma-se em angústia e o referencial (a razão) se desvanece e fica o sentimento sufocante, inexplicável e profundo. No livro, o medo de não conseguir o dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro se torna “a morte vivida a cada dia, cada minuto” (angústia) e acesso ao nada.

   Por isso, Naziazeno, em certa altura do romance (diante de todas as suas tentativas fracassadas), não pensa mais, não discute mais, perde as esperanças;

 - Para Freud, o pensamento obsessivo aparece como uma ligação do inconsciente a certas vontades, não satisfeitas, que levam ao estado de ansiedade ou angústia; o pensamento obsessivo de Naziazeno é a dívida. Em detrimento dela, e por ela, ele é capaz de se sacrificar: ficar sem almoço, pedir dinheiro para desconhecidos, não trabalhar, voltar tarde para casa, não dormir – tornando o ato de saldar uma dívida em um “calvário” (como se o empréstimo fosse a sua única salvação);

 - Dyonélio Machado dedica o título da obra e dois capítulos aos ratos. Pelo menos aos olhos do convencional, os ratos (animais de hábitos noturnos que sobrevivem de restos de alimentos e vivem em lixos, sótãos, etc.) causam repugnância, medo, pavor, agonia, angústia, nojo e outros. Qual seria então a possível relação metafórica desse animal com Naziazeno ou com sua condição momentânea? Primeiramente, os ratos, normalmente, são animais indesejados em qualquer residência, ao contrário de gatos, cachorros, peixes ou pássaros, pode-se dizer, então, que os ratos vivem à margem da preferência humana, de uma sociedade. Naziazeno também vive à margem da sociedade, de uma sociedade que normalmente não abdica, por exemplo, do leite, da manteiga, do gelo (no caso particular de Naziazeno), do almoço (nem que esse seja simplesmente uma sopa com pão) de produtos ou condições essenciais para uma qualidade de vida. Esses animais são “desprezíveis”, bem como Naziazeno no início da obra, no momento que nega a necessidade do leite para seu filho. E é também em favor de seu filho que Naziazeno procura saldar sua dívida.

   Os ratos, em certo momento da obra, perturbam o sono da personagem, prendem sua atenção, eles incomodam, parecem continuação do dia cansativo, parecem o inconsciente que procura nos detalhes dos barulhos algo para prolongar uma tarefa inacabada: Naziazeno ainda não pagou a dívida, sua vontade ainda não foi satisfeita; o subconsciente trabalha e não o deixa dormir, como se faltasse algum pedaço para juntar o quebra-cabeça. O pensamento obsessivo, a angústia e o inconsciente só param ou descansam com a chegada do leiteiro e a dívida aniquilada: um êxtase toma conta do corpo e da alma de Naziazeno que dorme, agora, tranquilamente; o pensamento obsessivo passa, o medo passa, a angústia desaparece;

 - O discurso indireto livre é um recurso, relativamente, recente. Surgiu com os romancistas inovadores do século XX e tem como característica o misto dos discursos direto e indireto. Outro item abordado pelo autor e que remete ao modernismo é o linguajar simples, coloquial, direto, não há “rodeios” nem sentimentalismo exacerbado nas palavras ou pensamentos. A idéia da modernidade e a incorporação das “conquistas” do progresso são destacadas através da citação do “bonde”, da “fábrica”; elementos que também exemplificam coisas do cotidiano, bem como a descrição do café da manhã de Naziazeno, a dívida, o trabalho, as conversas banais em cafés são demonstrações de fatos ligados ao cotidiano e a realidade brasileira. Outra inovação modernista é relacionada ao tempo de ação: na obra de Dyonélio Machado toda a ação se passa em um dia, “interminável” e exaustivo dia que o narrador-observador acompanha entremeando o pensamento de Naziazeno e suas atitudes;

 - Conclui-se que o romance Os Ratos possui uma complexidade de temas imperceptíveis em uma primeira leitura. Como se a obra fosse à mente humana: repleta de abismos escondidos em sorrisos e olhares superficiais, sendo necessária uma observação detalhada, com outros prismas, com um novo olhar.