“No mundo ordinário do fato, os maus não eram punidos, e nem os bons recompensados. O sucesso era lançado sobre os fortes e o fracasso, sobre os fracos. Eis tudo.” (Oscar Wilde)
“O homem que consegue superar-se é o Super-homem (Úbermensch, expressão alemã que significa “além-do-homem”, “sobre-humano”, “que transpõe os limites do humano”). (Nietzsche)HISTÓRICO:
“Festim Diabólico”, de 1948, pode ser considerado um marco na filmografia do diretor britânico Hitchcock (1899-1980), pelo seu experimentalismo e ousadia. Com ele, Hitchcock estreou como produtor e também foi o seu primeiro filme colorido.
A história do filme é baseada num caso real de um assassinato a sangue frio, ocorrido em 1924, em Chicago, por dois jovens intelectuais e abastados.
“Dois amigos universitários, Leopold (19 anos) e Loeb (18 anos), raptaram e assassinaram Bob, um garoto de 14 anos. O caso teve grande repercussão pela imprensa na época.
Os assassinos foram capturados, presos, mas conseguiram escapar da pena de morte.
Loeb morreu na prisão, e Leopold foi libertado dela após 45 anos, morrendo no início dos anos 70. Dados da época, confirmaram que ambos eram homossexuais.”
Hitchcock utilizou-se da temática do caso verídico e baseou-se na peça de igual mote, montada em um só cenário e em tempo contínuo, chamada “Rope’s End”, de Patrick Hamilton. “Festim Diabólico” foi filmado em apenas 10 tomadas de oito minutos cada uma. Na época, era o máximo que um rolo de película podia suportar; portanto, ele estava limitado pela quantidade de filme que podia ser carregado na câmera.
Alfred Hitchcock afirmou que estava abandonando o cinema puro “num esforço para tomar móvel a peça de teatro”.
Realizando todas as filmagens deste filme num único estúdio de som da Warner Brothers, Hitchcock, declarou em uma das suas entrevistas concedidas ao cineasta François Truffaut, que em “Festim Diabólico” prendeu-se muito mais à parte técnica que à trama em si.
“Rope” foi o primeiro filme a cores do Hitchcock e também o seu primeiro filme como produtor-diretor independente. Inicialmente indicou Cary Grand como o protagonista do filme. Mas, no seu lugar, convidou James Stewart apesar dos protestos dos empresários do filme, que não viam nesse ator, um bom retorno de bilheteria.
TÉCNICA E MONTAGEM:
A parte técnica do filme representa a experiência mais ousada e radical de Hitchcock, e talvez do mundo, no uso de tempo real no cinema.
A noção de tempo dramático está presente em cada partícula, em cada fragmento da estrutura e, consequentemente, também no produto audiovisual final. Por conseguinte, pode-se afirmar que existe um tempo dramático total e um tempo dramático parcial, que é aquilo que acontece dentro de cada cena.
O tempo dramático total é a soma de todos os tempos parciais, e, embora o filme possa ter uma duração de uma hora e vinte minutos de tempo real, quando vemos outro tempo, que, evidentemente, não é real, mas sim mágico, de ficção, que nos condensa em apenas alguns minutos toda uma noite, uma vida inteira ou até séculos.
Em “Festim Diabólico” o tempo dramático coincide com o real e onde a ação dramática decorre durante oitenta minutos.
Sobre essa técnica, Hitchcock fez o seguinte comentário:
“A peça teatral desenrolava-se ao mesmo tempo que a ação; esta era contínua, desde o levantar até o baixar do pano. Eu fiz a mim mesmo a seguinte pergunta: como posso rodá-lo de maneira semelhante? A resposta era evidente: a técnica do filme seria igualmente contínua e não haveria nenhuma interrupção no decorrer de uma história que começa às 19:30 e termina às 21:45. Então ocorreu-me a ideia louca de fazer um filme que constasse de um único plano. Atualmente, quando penso nisso me dou conta de que era completamente estúpido, porque rompia com as minhas traições e renegava as minhas teorias sobre a fragmentação do filme e as possibilidades da montagem para contar visualmente uma história”.
Para ressaltar ainda mais essa inovação, o diretor se privou de mudar os cenários e de utilizar vários cortes no filme. Durante “Festim Diabólico”, somente os dois primeiros cortes são rodados fora do cenário do apartamento, enquadrando uma rua nova-iorquina onde Hitchcock aproveitou para fazer sua aparição.
Em todo o filme, esse primeiro corte é o único que apresenta uma mudança de espaço. No decorrer da história, acontecerão apenas outros nove cortes, e em todos eles será preservada a continuidade do tempo.
Essas interrupções só estão na fita devido a uma limitação técnica da época. Em 1948, uma câmera de cinema só permitia uma filmagem com, no máximo, dez minutos de duração. A partir daí, era necessário trocar o chassi com um novo rolo de filme. Para contornar o problema, deixando claro que os cortes não significariam ruptura no tempo, Hitchcock programou a filmagem para que as trocas dos rolos acontecessem no momento em que houvesse áreas escuras diante da câmera.
Além do mais, boa parte dos cortes presentes entre essas tomadas são imperceptíveis, tornando a técnica ainda mais ousada.
Hitchcock utilizou truques de edição para tentar disfarçar o máximo possível a passagem entre os poucos rolos de filme utilizados, aproveitando momentos de maior dramaticidade na história. Por exemplo, aproximando o foco de um local escuro para, no próximo rolo, filmar em zoom out a partir daquele local.
Outra dificuldade técnica dizia respeito aos projetores de cinema: eles estavam limitados a suportar rolos com o máximo 20 minutos.
Para os atores o uso de tal técnica também foi complicado. Atualmente, o cinema é marcado por tomadas rápidas, que permitem ao diretor refazê-las sem muita perda de tempo caso ocorra algum problema, mas o diretor insistiu e conseguiu o trabalho de filmar uma cena de oito minutos.
Para filmar tomadas longas, todos os movimentos da câmera e dos atores tinham de ser calculados em sessões com um enorme quadro-negro.
“Até o chão era marcado e assinalado com círculos numerados para os 25 a 30 movimentos da câmera em cada tomada de 10 minutos. Paredes completas do apartamento tinham de ser afastadas para permitir que a câmera seguisse os atores de portas estreitas”, explicou Hitchcock
Para que a ação pudesse acontecer sem problemas, o elenco ensaiou durante dez dias, e nos 18 de filmagem, para a câmera poder trabalhar livremente, paredes e móveis foram montados sobre rodas que tinham que ser constantemente reorganizadas pelos cenógrafos.
“Um dos meus maiores problemas, consistia em ter de confiar que, quando me sentasse, haveria uma cadeira colocada estrategicamente a tempo pelo contra-regra”, disse Farley Franger
“Era difícil imaginar como o filme iria sair, mesmo durante as filmagens”, disse Stewart. “Os ruídos provocados pela movimentação das paredes era um problema constante e tínhamos de repetir cenas apenas por motivos sonoros, utilizando apenas microfones, como em radionovela”.
O perfeccionismo e a maestria do diretor permitiram que “Festim Diabólico” fosse, antes de tudo, uma obra de cinema.
Uma série de angulações e alterações de campos focais, enquadramentos de expressões faciais, recorte do que interessa e exclusão do supérfluo são as provas de que se trata de um teatro filmado: tudo bem coreografado, através de ensaios e repetições, até que a cena saísse com maestria. Para se ter uma ideia, durante as filmagens, apenas um segmento por dia era finalizado e o diretor buscando a perfeição, repetiu a filmagem cinco ou seis segmentos por não estar de acordo com a cor da luz do sol nessas tomadas.
O problema era que Hitchcock preparou uma surpresa visual para reforçar a passagem do tempo. O cenário do apartamento contava com uma enorme janela curva onde se podia ver uma alvorada cenográfica. Enquanto o tempo ia passando, as luzes dos edifícios se acendiam e as nuvens se moviam em um céu que mudava de cor, do azul até um tom avermelhado. Em uma determinada tomada, essa passagem de cor não foi aprovada pelo perfeccionismo do diretor, o que levou toda uma sequência de dez minutos para a lixeira do estúdio.
Seria muito mais simples utilizar um relógio para simular o efeito como fizeram filmes posteriores que tinham propostas parecidas, mas menos ousadas.
Mais tarde, Stewart afirmou que o “Festim Diabólico”, “não foi um êxito total, pois o público na realidade, não queria ser os olhos de uma câmera móvel”.
Durante a sua histórica entrevista com Hitchcock, o diretor Truffaut ressaltou que o filme não podia ser considerado como uma experiência insensata.
“O realizador é tentado pelo sonho de ligar todos os componentes de um filme numa única ação contínua. Neste sentido, trata-se de um passo positivo na sua evolução”, disse ele a Hitchcock.
RESUMO DO ENREDO:
A trama é extremamente simples. Dois estudantes, ricos, que, inspirados em palestras de um professor de filosofia sobre o “super-homem” de Nietzsche, resolvem cometer um assassinato, pelo simples fato de cometerem um crime perfeito e pôr em prática suas teorias sobre a superioridade de alguns humanos sobre outros.
O filme, assim, tem o crime como motivo intelectual, objetivo e racional. A ação ocorre na cidade de Nova York, onde Brandon (John Dall) e Philip (Farley Granger) assassinam seu amigo David, como objetivo de colocarem em prática a teoria da superioridade intelectual em relação a ele.
O assassinato, com uma corda (“Rope”, o titulo do filme) é a primeira cena. Com toda a frieza e arrogância possíveis, eles resolvem provar para eles mesmos sua habilidade e esperteza: decidem esconder o cadáver em um grande baú, que servirá como mesa e estará exposto no meio da sala de estar do apartamento deles, durante uma festa que realizarão logo em seguida.
A narrativa torna-se mais sinistra ao convidarem para o festim “diabólico” o pai, a noiva e a tia da vítima, além de outro pretendente de sua noiva, Kenneth.
Completando a lista dos convidados encontram-se a senhora Wilson; a empregada e Rupert Cadell (James Stewart), o professor de filosofia dos rapazes, cujas opiniões em sala de aula, aceitas e adquiridas de forma errônea por eles, acabaram motivando-lhes a cometerem o crime.
Indiretamente o filme fala sobre homossexualidade entre os dois rapazes, mas nunca o tema é tocado de forma explícita, tanto que muitos espectadores nem desconfiam quando assistem ao filme (lembre-se, o ano de lançamento foi 1948, e tal assunto não era discutido abertamente).
A trama do filme se desenrola na base de muito diálogo e em apenas um aposento: um apartamento, na verdade entre a sala de estar e a cozinha, com oito pessoas atuando.
A conversação é leve, sofisticada e animada. A certa altura, alguém sugere à namorada da vítima que deixe a revista de beleza feminina da qual era colunista para trabalhar numa editora de livros filosóficos.
Ela zomba da proposta e com um ar “blasé”, diz:
“ – Oh! Letras pequenas, grandes palavras! Isso não vende!”
A festa continua normalmente enquanto aguardam a chegada de David. Um dos assassinos começa a discursar sobre “a lei do mais forte” e sobre “o evolucionismo da espécie” e, em seguida, defende a ideia do direito que têm os “superiores” de eliminarem os “inferiores”.
O pai da vítima chocado com essas ideias filosóficas e preocupado com a ausência do filho pede a opinião de Rupert sobre o assunto.
O professor defende a ideia de modo sarcástico, justificando-se que, muitos problemas seriam resolvidos: o desemprego, pobreza, fila de teatro etc.
A tensão vai crescendo quando Brandon, em sua total arrogância, começa a insinuar pistas sutilmente para comprovar a si mesmo a sua intelectualidade em cometer um crime perfeito e testar as limitações de Rupert, chegando a comentar que:
“Esta festa merece ficar para a história”.
O professor começa a desconfiar das atitudes dos rapazes e como num quebra-cabeça, questiona-os até desgastá-los mentalmente.
Philip, nessa altura, desesperado de ser descoberto, fraqueja diante da situação. E o professor descobre horrorizado o que aconteceu e, transtornado, diz:
“Minhas próprias palavras voltam-se contra mim. Vocês deram a elas um sentido com o qual nunca sonhei”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Na visão deturpada dos assassinos (na realidade, somente um deles está realmente convencido disso), há duas classes de seres humanos, sendo que eles pertenceriam à superior. Por isso, poderiam planejar um crime perfeito, e zombar dos outros que estão ao seu lado, sem saber que o crime aconteceu ou quem o praticou.
A tese remete a discussão entre Raskolnikoff e Petrovitch em “Crime e castigo”, a respeito de um artigo publicado num jornal por Raskolnikoff, o perturbado assassino personagem da obra-prima de Dostoievsk.
Segundo o assassino, os grandes homens da humanidade (Sólon, Maomé, Napoleão), que revolucionam o mundo com sua influência, podem dar-se o direito de cometer crimes, em face dos objetivos que devem alcançar.
“Esses homens, certamente, não hesitaram em derramar sangue, assim que perceberam a vantagem de fazer isso. Deve até mesmo ser ressaltado que quase todos esses benfeitores e mestres da humanidade foram terrivelmente sedentos de sangue. Consequentemente, não somente todos os grandes homens, mas todos aqueles que, por qualquer meio, tenham se erigido acima da gente comum, homens que são capazes de dar origem a algo novo, devem ser, em virtude de seu poder inato, indubitavelmente, em algum nível, criminosos, diga-se. Caso contrário, eles não poderiam livrar-se dos obstáculos; e, quanto aos obstáculos, sua verdadeira missão os proibia de ser limitados por eles.” (“Crime and punishment”. Londres: Penguin Books, 1997. P. 194. Tradução livre).
A temática primordial da história é sobre o direito à vida e à dignidade moral, como um bem inalienável e devido a todos.
Outro ponto importante a ser observado é que, a barbárie humana, não vegeta somente nas periferias das grandes cidades e nem é resultante de pessoas atrasadas culturalmente ou pouco favorecidas, mas, também em meio a uma sociedade privilegiada, dita culturalmente esclarecida, entre perfumes caros, taças de champanhe, leviandades e cultura livresca.
O pseudo-intelectualismo dos grandes salões endinheirados, pela omissão e irresponsabilidade, pode ser tão duramente cruel quanto qualquer bandido de casaca, ou morador de um submundo. Basta acreditar que a proteção de que goza pode ser senhor da sua verdade e poupá-lo de consequências sobre suas ações.
Além do mais, o “mundo bárbaro, dito civilizado”, detentor do materialismo cultural e material, não se contenta em recitar a arrogante máxima “letras pequenas, grandes palavras, não vende!”, ultrapassa a autoridade, o poder e a aparência; transformando “vidas” em produtos sensacionalistas, vendáveis e anunciáveis como objetos de ostentação e fonte de frustração para os menos afortunados, “os inferiores”.
O sentimento de artificialismo e de sexo reprimido percorre toda a obra. Marcados por recalques e com personalidade conturbada atentam-se a intimidades alheias, buscando o erotismo e de orientação homossexual, enquanto são perseguidos por símbolos fálicos. (Importante ressaltar que os dois assassinos optam por matar o amigo com uma corda).
Herman Melville, autor de “Moby Dick” (1851) reproduz com rigorosa perfeição o fluxo da vida em toda a sua complexidade, ao defrontar Moby Dick, uma baleia invencível e o desejo de vingança do personagem Ahab.
A revolta de Ahab contra o destino; contra a submissão do homem às forças da natureza; contra a raça superior e a inferior e, principalmente contra o Bem e o Mal, remete às ideias nietschieanas dos dois rapazes de “Festim Diabólico”.
Ahab em seu delírio de vencer a baleia e provar a sua superioridade, como um homem nobre e bom, não representa o “Bem” ou “Deus”, como a baleia não é o “Mal” ou “diabo”.
No final do livro, inclusive, o valente capitão Ahab, morre enforcado pela corda de cânhamo presa a um arpão atirado contra Moby Dick, provocando-nos uma grande confusão: afinal, quem é o herói? Quem representa o Bem? Quem é superior?
Segundo Nietzsche, a origem do conceito bom está no pathos da distância, ou seja, no sentimento de superioridade e plenitude dos nobres "em posição e pensamento" em relação aos escravos. Foram os bons que nomearam a si mesmos e aos seus atos como bons e que assumiram a tarefa de criação de valores, de estabelecimento de hierarquias. Para chegar a essa conclusão, Nietzsche procedeu a uma investigação etimológica sobre a palavra “bom”, nas mais diversas línguas. Descobriu, assim:
“que em toda parte "nobre", "aristocrático", no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu "bom" no sentido de "espiritualmente bem nascido", "espiritualmente privilegiado": um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz "plebeu", "comum", “baixo", transmutar-se finalmente em "ruim". Os homens não são, de acordo com Nietzsche, iguais. Em cada um deles há uma quantidade de vontade diferente e um arranjo interno de instintos pode-se mesmo dizer uma luta de instintos na qual o mais forte, "o tirano em nós", vence, suplantando até mesmo nossa razão e nossa consciência, que para Nietzsche nada mais é do que um órgão como o estômago. Consciência, espírito têm para ele o mesmo estatuto de um órgão do corpo.”
A análise feita por Nietzsche da má consciência revela o quanto à consciência pode ser "impura". Não é no corpo nem na matéria que está á sujeira; mas, sim, no pensamento que as acompanha. O corpo do asceta é sujo porque ele assim o considera, assim como o corpo do super-homem, que tem o sentido da terra, tem a inocência de um corpo de uma criança.
Para Nietzsche, o nobre seria uma afirmação de senhor, de forte, de criador de valores, de guerreiro. A vontade do senhor é imperiosa. Um nobre emana luz, ajunta nuvens, e naturalmente não se dobra a vontades alheias. Antes são estas que a ele se submetem, sem grandes protestos. Há, no nobre uma "insustentável leveza" que não passa despercebida. O forte assume algumas vezes um ar "blasé". O fraco também. A diferença aqui se dá pelo fato de que, no forte, isto é sinal de extremo bem estar físico e psíquico.
Nietzsche defende que "foram ás raças nobres que deixaram na sua esteira a noção de “bárbaro”; em toda parte aonde foram". Para o nobre não se coloca a questão da própria bondade, do próprio valor. Ele é aquele que está antes da pergunta, aquele que já disse, desde sempre, um imenso sim a si mesmo e à vida.
É preciso que tudo o que ele faça seja acompanhado desse sentimento, que todas as suas atividades sejam prazerosas; porque é esse prazer que as torna necessárias ao espírito. Para o nobre, o “ruim” não é pleno, não é forte, não está "de bem" consigo, o que lhe é inferior, vulgar, baixo. Fundamentalmente algo de menor importância e que não deve ser levado em conta. O juízo de valor “ruim” do nobre é um juízo de contraste. O escravo, por sua vez, também chamará de “mau” o que não é ele, precisamente o nobre, o bom da moral nobre. Aparentemente “mau” e “ruim” são sinônimos por se oporem ao mesmo conceito bom. Mas, “bom” não é algo que existe por si mesmo, mas sim como um segundo momento de “mau”, como uma consequência inevitável.
O escravo depende do “mau” para ser “bom”.
"Se eles são fortes, belos, cruéis, maliciosos, violentos, seguros de si, se nos causam dano, são maus. Por isso nós que somos fracos, suaves, que não cometemos violências, que perdoamos tudo, somos bons".
Dessa forma, o bom da moral nobre é justamente o mau da moral escrava e vice-versa. Por isso Nietzsche ressalta ao fim da primeira dissertação da “Genealogia da moral” que o título “Além do bem e do mal” não significa além do bom e do ruim, posicionando se ao lado do nobre. Quanto a impulsos e sentimentos ditos maus (segundo a tradição judaica cristã), os impulsos de destruição, de exploração, de ataque e expansão de poder dos nobres e escravos não se diferenciam por possuí-los ou não. Ambos os possuem e, segundo Nietzsche, estes são impulsos vitais, inevitáveis e necessários. A diferença reside no modo como cada um deles, o nobre e o escravo, lida e principalmente direciona esses impulsos. O senhor age e “reage” ao que lhe acontece. Já o escravo padece de uma confusão nos seus sentimentos; ao invés de agir, “sente”, ao invés de reagir, “ressente”. A partir daí cria-se a má consciência, a consciência voltada contra si mesmo; ou seja, sentimento de culpa e o ressentimento voltado para os outros. O ressentimento é fruto da incapacidade de extravasar os sentimentos de modo contundente.
Esta ideia acaba com os julgamentos morais baseados na diferença entre a intenção e a ação realizada concretamente, argumentos que já livraram muitos covardes de responsabilidades. Discute-se em dois planos: o das intenções e o dos feitos e suas consequências, quase como se duas pessoas tivessem agido em vez de uma. Neste ponto preciso, Nietzsche e Kant se encontram: não se pode saber exatamente o que move uma ação porque só tem-se acesso á seu aspecto exterior.
Já que não há uma justiça inerente à natureza, uma harmonia entre os homens ou um mundo ideal que recompensasse as perdas e danos deste mundo, e até mesmo o que se chama, habitualmente, de justiça não reflete mais do que certo arranjo de forças sempre provisório, um campo de batalha fotografado na hora da trégua. Através de Nietzsche, conclui-se que "a medida de todas as coisas" é a força sutil ou violenta. É ela que se encontra por detrás da ideia exposta no “Assim falou Zaratustra” de que "não há paga nem pagador" (e que desmente o dito popular: "Aqui se faz, aqui se paga"). Nietzsche chama atenção para os mecanismos de violência psicológica e os considera uma contrapartida necessária da repressão da violência física. A violência, para ele, é algo intrínseco não somente ao ser humano, mas à vida. Isto é apenas para lembrar que não há em Nietzsche nada como o “Mundo das Idéias”, de Platão; que nele toda tipologia ou universalização tem sua encarnação terrena que não é como uma cópia de um modelo puro e sim um compósito de singularidade histórica com abstração psicológica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário