I –
AUTOR:
Ariano Suassuna (1927 - 2014) foi um escritor brasileiro.
"O Auto da Compadecida", sua obra-prima, foi adaptada para a
televisão e para o cinema. Sua obra reúne, além da capacidade imaginativa, seus
conhecimentos sobre o folclore nordestino. Foi poeta, romancista, ensaísta,
dramaturgo, professor e advogado. Em 1989, foi eleito para a cadeira nº 32 da
Academia Brasileira de Letras. Em 1993, foi eleito para a cadeira nº 18 da
Academia Pernambucana de Letra e em 2000, ocupou a cadeira nº 35 da Academia
Paraibana de Letras.
Ariano Vilar Suassuna (1927-2014) nasceu na cidade de Nossa
Senhora das Neves, hoje João Pessoa, capital da Paraíba, em 16 de junho de
1927. Filho de João Suassuna, ex-governador da Paraíba, e Rita de Cássia Villar
passou os primeiros anos de sua infância na fazenda Acauham, no sertão do
Estado. Durante a Revolução de 1930, por motivos políticos, seu pai foi
assassinado. A família mudou-se para Taperoá, interior do estado, onde morou
entre 1933 e 1937 e lá iniciou seus estudos. Teve os primeiros contatos com a
cultura regional assistindo uma apresentação de mamulengos e um desafio de
viola.
Em 1938, a família muda-se para a cidade do Recife,
Pernambuco, onde Ariano entra para o Colégio Americano Batista. Em seguida
estuda no Ginásio Pernambucano, importante colégio do Recife. Ingressou na
Faculdade de Direito, onde fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco. Em 1947,
escreve sua primeira peça "Uma Mulher Vestida de Sol". No ano
seguinte escreve "Cantam as Harpas de Sião".
Em 1950, conclui o curso de Direito. Dedicou-se à advocacia
e ao teatro. Em 1955, escreveu a peça "O Auto da Compadecida". A
partir de 1956, passou a dar aulas de Estética na Universidade Federal de
Pernambuco. Em 1970 cria e dirige o Movimento Armorial, com o objetivo de
valorizar os vários aspectos da cultura do Nordeste brasileiro, como a
literatura de cordel, a música, a dança, teatro, entre outros.
Ariano Suassuna iniciou em 1971, sua trilogia com o
"Romance d'a Pedra do Reino" e o "Príncipe do Sangue que
Vai-e-Volta", tendo por subtítulo "Romance Armorial - Popular
Brasileiro", que teria sequência em 1976, com a "História d'o Rei
Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana". Em 1994, se
aposenta pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi Secretário de Cultura
(PE) no governo de Eduardo Campos.
Se sua poesia teve modesta repercussão, o teatro, com a
força do humor, o consagrou. Ariano recebia inúmeros convites para realizar
"aulas-espetáculos" em várias partes do país onde, com seu estilo
próprio e seus "causos" imaginativos, deixava o público encantado.
Ariano Suassuna faleceu no Recife, no dia 23 de julho de
2014, decorrente das complicações de um AVC hemorrágico.
OBRAS LETERÁRIAS DE ARIANO SUASSUNA:
Uma Mulher Vestida de Sol, 1947
Cantam as Harpas de Sião (ou o Despertar da Princesa), 1948
Os Homens de Barro, 1949
Auto de João da Cruz, 1950 (Prêmio Martins Pena)
Torturas de um Coração, 1951
O Arco Desolado, 1952
O Castigo da Soberana, 1953
O Rico Avarento, 1954
Ode, 1955 (poesia)
O Auto da Compadecida, 1955
O Casamento Suspeito, 1956
Fernando e Isaura, 1956
O Santo e a Porca, 1958
O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna, 1958
A Pena e a Lei, 1959
A Farsa da Boa Preguiça, 1960
A Caseira e a Catarina, 1962
O Pasto Incendiado, 1970 (poesia)
Romance d'a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta, 1971 (partes
da trilogia)
Iniciação à Estética, 1975
A Onça Castanha e a Ilha Brasil, 1976 (Tese de Livre Docência)
História d'o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana, 1976
(parte da trilogia)
Sonetos Com Mote Alheio, 1980 (poesia)
Poemas, 1990 (Antologia)
Almanaque Armorial, 2008
II - CONTEXTO
HISTÓRICO-SOCIAL:
Quando “Auto da Compadecida” foi escrita, em 1955, o clima
era de atenção naquele momento. A Segunda Guerra Mundial terminara havia menos
de 10 anos, e uma nova configuração mundial se estabelecia tendo como polos
distintos os Estados Unidos da América e a União Soviética. Era o início da
Guerra Fria, com muita ação das redes de espionagem universal: de um lado, CIA
(USA); do outro, KGB (URSS). Esse período também foi marcado pela corrida
armamentista e pela explosão da primeira bomba de Hidrogênio (bomba H), em
1952. A década de 1950, portanto, marcou a transição entre o período das
grandes guerras e o período do desenvolvimento tecnológico da segunda metade
daquele século.
No Brasil, esse período também foi de turbulência na
política externa. Com a vitória dos aliados, o país teve que decidir de qual
lado ficaria. Optou pelos EUA e rompeu relações diplomáticas com a União Soviética
em 1947. Por sua vez, na política interna
foi um período de instabilidade.
Ocupando a presidência da República o Brasil teve Getúlio Vargas (PTB), cujo
mandato foi de 31 de janeiro de 1951 até 24 de agosto de 1954, quando diante de
uma forte crise política cometeu suicídio. Assumiu o comando do país o
vice-presidente João Café de 24 de agosto de 1954 a 9 de novembro de 1955.
Depois, interinamente, Carlos Coimbra da Luz, de 9 a 11 de novembro de 1955 e
Nereu de Oliveira Ramos, de 11 de novembro de 1955 a 31 de janeiro de 1956. Em
31 de janeiro de 1956 assumiu a presidência Juscelino Kubitschek, permanecendo
no cargo até 31 de janeiro de 1961. Com o forte desenvolvimento industrial
impulsionado pelos governos de Vargas e de Kubitschek, o êxodo rural atingiu
níveis nunca vistos antes. A construção de Brasília atraiu muita gente, de
todas as partes do país. A cidade de São Paulo, apenas nessa década, passou de
2,2 para 3,8 milhões de habitantes.
É nesse cenário de agitação política e de mudanças sociais
que “Auto da Compadecida” é escrita. As dificuldades da vida no sertão
nordestino por causa do clima adverso e da falta de investimentos
governamentais são retratadas na obra. Ariano Suassuna, criado no sertão da
Paraíba, na Fazenda Acauhan, município de Taperoá, conheceu bem a vida
sertaneja e imprimiu de forma vívida este conhecimento em suas obras. Em uma
entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, em julho de 2012,
questionado sobre a importância do sertão em sua obra, ele respondeu: “Todo
universo de um escritor se forma na infância e na adolescência. E tudo na minha
obra se passa dentro dos valores, das histórias e das personagens que conheci
até os 20 anos. ” Em outra entrevista, ele declarou: “... foi a infância que me
deu, digamos assim, o território poético no qual toda a minha obra se
desenvolve. Todos os livros que escrevi até hoje são passados no sertão, onde
passei a infância. ”
III – TEMÁTICA:
A peça teatral “Auto da
Compadecida” foi escrita por Ariano Vilar Suassuna em 1955 e encenada pela
primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, na capital
pernambucana, pelo grupo “Teatro Adolescente do Recife. ” Em janeiro de
1957 o mesmo grupo representou a peça no 1º Festival de Amadores Nacionais, no
Teatro Dulcina, Rio de Janeiro, sob a direção de Clênio Wanderlei. Vinte grupos
de teatro de todo o Brasil concorreram à medalha de ouro, mas “Auto da
Compadecida” venceu o festival e ganhou o primeiro lugar do espetáculo.
A
obra foi baseada em romances e histórias populares do Nordeste e o estilo de
apresentação sugerido pelo autor, aos futuros diretores, foi o da simplicidade,
em atmosfera circense.
A
primeira peripécia narrativa da peça, o enterro do cachorro, pode ser
encontrada em diversas obras anteriores, como no cordel "O Dinheiro",
de Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Nesse cordel, um cachorro também
deixara uma soma em dinheiro no testamento com a condição de que fosse
“enterrado em latim”.
As duas próximas peripécias, ambas encontradas na segunda parte da peça (que
pode ser dividida em três atos), apresentam um gato que supostamente “descome”
dinheiro e de um instrumento musical que seria capaz de ressuscitar os mortos.
Essas duas estruturas narrativas estão no romance de cordel "História do
Cavalo que Defecava Dinheiro", também de Leandro Gomes de Barros.
Na peça, porém, Suassuna substituiu o cavalo por um gato, certamente para
facilitar a encenação. Esse é um exemplo de como uma necessidade prática pode
influir na narrativa, obrigando o autor a transformá-la conforme as
necessidades impostas pela forma de apresentação.
A apropriação da tradição, ao contrário de ser facilitada pela tematização
prévia, é dificultada, pois, ao imitar, é preciso fazer jus a quem se imita,
superando-o ou pelo menos igualando-se a ele em qualidade e inventividade. No
texto de Leandro Gomes, o instrumento musical capaz de levantar defuntos era
uma rabeca e, em Suassuna, passa a ser uma gaita, provavelmente também por
causa de uma necessidade cênica.
Nessa obra, Ariano Suassuna consegue realizar uma magnífica síntese de
duas tradições: a dos autos da era medieval e a da literatura picaresca
espanhola. Na era medieval, a cultura era indissociável da religião, mesmo
porque a Igreja controlava tudo com mão de ferro. A Igreja cultivava os autos
dramáticos de devoção aos santos para doutrinar e tolerava os autos cômicos
para divertir o povo. A tradição da literatura picaresca espanhola vem da
cultura popular e chega ao ápice no Dom Quixote, de Cervantes.
Segundo o autor, a peça nasceu da fusão de três folhetos de cordel: O
enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo
da soberba.
A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne
claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento
religioso, e da Igreja Católica.
Abordando temas universais como a
avareza humana e suas amargas consequências, por meio de personagens populares,
Suassuna, nesta obra, prepara o espectador para um desfecho moralizante
conforme os preceitos do cristianismo católico.
A visão cristã da vida presente no Auto traz uma concepção da religião como
algo simples, agradável, doce e não como uma coisa formal e solene, difícil e
mesmo penosa. Essa intimidade com Deus, e a ideia de simplicidade nas relações
dele com os homens, essa compreensão da vida e fé na misericórdia, parecem
aspectos primordiais no sentido religioso da obra: a compreensão das faltas
humanas, atribuída à Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo,
explica-as e pede para elas a compaixão divina.
A obra trata-se de uma farsa que é igualmente uma reflexão sobre as relações
entre Deus e os homens: um milagre de Nossa Senhora, como os medievais,
apresentado sob a forma de uma pantomima de circo. Até o seu catolicismo é
popular, favorecendo os humildes contra os ricos, menos por influência política
do que por uma profunda simpatia cristã pelos fracos e desprotegidos.
Assim, o que Suassuna passa é que o homem do sertão deve ser perdoado, de seus
pecados, por experimentar inúmeras dificuldades, tanto de ordem climática,
quanto social. O sofrimento passado em vida já é capaz, por si só, de absolver
todos os pecados – consequências de seu cotidiano exigente e de sua luta por
sobreviver. O sertão é terra de ninguém, deserto ameaçador donde emergem deuses
e diabos, sob a égide do acaso, do caos e da fatalidade. Esses
seres-ameaçadores espreitam o homem por dentro e por fora. Em meio ao caos que
os alimentam, estabelecem continuamente a recriação da ordem, num processo
infinito de auto-eco-organização.
O autor mostra um povo religioso, de pé no chão, acuado pela seca, atormentado
pelo fantasma da fome e em constante luta contra a miséria. Traça o perfil dos
sertanejos nordestinos que estão submetidos à opressão a que foram, e ainda
hoje são, subjugados por famílias de poderosos coronéis que possuem terras e
almas por vastas áreas do Brasil.
Dentro desse contexto, João Grilo é a figura que representa os pobres
oprimidos, é o homem do povo, é o típico nordestino amarelo que tenta viver no
sertão de forma imaginosa, utilizando a única arma do pobre, a astúcia, para
conseguir sobreviver.
Suassuna leva a julgamento almas, diante do tribunal, dirigido por Deus e o
diabo, que são pecadoras devido às condições sociais existenciais, que se
apresentam mais fortes que os valores morais. São acusados o bispo e o padre
João, por se utilizarem da autoridade religiosa para enriquecerem. No entanto,
com a intercessão de Nossa Senhora, a sentença é atenuada e eles se encaminham
para o purgatório. O padeiro, por ser sovina, e sua mulher, por adultério,
também recebem a sentença final de ocuparem, juntamente com o padre, o bispo e
o sacristão, os cinco lugares vagos do purgatório. São acusados também o
cangaceiro Severino e o cabra dele, por tirarem a vida das pessoas sem
autorização divina.
A oposição bem x mal, tipicamente da visão maniqueísta cristã, que consequentemente
divide o mundo em céu e inferno, é característica que consta na peça. O
julgamento é moral, portanto condenam-se os vícios e as vaidades e glorifica-se
a modéstia e a humildade.
Se encontra também uma severa crítica aos maus costumes dos representantes da
Igreja, que abusam de seu poder, contribuindo para a corrupção da instituição,
uma vez que favorecem os ricos e têm hábitos que são condenados pela própria
Igreja.
IV - TÍTULO:
O título da obra remete à noção de que o homem é um ser passível de erro, mas é
possível que seja perdoado, por intermédio da “Compadecida”, Nossa Senhora,
que, na Igreja Católica, é considerada pelos fiéis a advogada capaz de
interceder pelos pecadores junto a Jesus Cristo.
Dessa forma, em diversas passagens da obra, podem-se interpretar tanto o
comportamento de Manuel, como o da Compadecida, como mais humanizados e
condescendentes com as falhas humanas, retratados, às vezes, até com uma boa
dose humor.
O autor permite-se o exercício de um diálogo simultaneamente complementar e
antagônico entre morte e vida. Por meio dele abre-se uma brecha, que introduz a
dimensão da imortalidade desvelada, por exemplo, na ressurreição do personagem
João Grilo.
No título, a designação “auto”
refere-se a uma peça de teatro com apenas um ato, de tema religioso e caráter
alegórico. Os autos foram muito comuns na Idade Média. Um autor que se destacou
nesse gênero foi o português Gil Vicente, tendo escrito, entre outros, o “Auto
da Barca do Inferno. ” Quanto ao “Compadecida”, que completa o nome,
refere-se à Maria, mãe de Jesus, conhecida no Catolicismo Romano como “Nossa
Senhora”.
V - ESPAÇO:
A
peça se embasa em determinadas tradições localistas e regionalistas do folclore
nordestino, com vistas à sua sublimação como instrumento pitoresco de
comunicação com o público.
O
autor não pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela
moralizar os homens, isto é, dinamizar nas suas consciências a noção do dever
humano e da responsabilidade de cada um em relação a seus semelhantes e em
relação a Deus, onisciente e onipresente.
A
criação desses personagens possibilita que se enxergue a sociedade de uma
cidadezinha do Nordeste. É por isso que a peça pode ser chamada sátira social,
pois procura reformar os costumes, moralizar e salvar as instituições de sua
vulgarização. Com isso, nota-se que a realidade regional brasileira,
especificamente a realidade nordestina, está presente através de seus
instrumentos culturais mais significativos, as crenças e a literatura de
cordel.
VI - LINGUAGEM:
Ariano Suassuna procura definir a forma final de seu texto através dos
seguintes elementos:
1- O autor não propõe, nas indicações que servem de base para a representação,
nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista.
2- O autor busca encontrar uma
expressão uniforme para todas a personagens, na presunção de que a diferença
entre os atores estabeleça a diferença nos chamados registros da fala.
3- A composição da linguagem é a
mais próxima possível da oralização, isto, é, o texto serve de caminho para uma
via oral de expressão.
4- Os únicos registros diferentes
ocorrem, como indicados no próprio texto:
a) do Bispo, "personagem medíocre, profundamente enfatuado" (p.72),
como se nota nesta passagem: Deixemos isso, passons, como dizem os franceses
(p.74).
b) de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras
desataviadas, embora divinas, porque são concebidas como encarnadas em pessoas
comuns, como o próprio João Grilo:
MANUEL: Foi isso mesmo, João.
Esse é um dos meus nomes, mas você pode me chamar de Jesus, de Senhor, de
Deus... Ele / isto é, o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou
Emanuel, porque pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas você, se
quiser, pode me chamar de Jesus. (p.147)
A COMPADECIDA: Não, João, por que iria eu me zangar? Aquele é o versinho que
Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração,
uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que
eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo (p.171).
5- Quatro denominações de
personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: João Grilo,
Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chicó. Quanto ao Encourado, o
autor dá a seguinte explicação:
Este é o diabo, que,
segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste
como um vaqueiro. (p.140)
6- Na estrutura da peça, isto é, na forma final do texto é que se revela o
estilo do Autor, concebido com o a linguagem através da qual ele cria e
comunica sua mensagem fundamental.
VII - ESTRUTURA:
A peça não se apresenta
dividida
Aqui o espetáculo pode
ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E
pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço
(p.71).
Se se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará a
aqui a cena do Julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando (p.137).
Do ponto de vista
técnico, o autor concebe a peça como uma representação dentro de outra
representação.
/.../ o Autor gostaria de
deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da
tradição popular do que do teatro moderno (p.22).
A representação dentro da representação
caracteriza-se:
a) pela apresentação do Auto da Compadecida como parte de um espetáculo
circense, espetáculo esse simbolizado no Palhaço, que faz a apresentação da
peça e dos atores.
b) pela apresentação do Auto propriamente dito, com suas personagens. Como a
representação ocorre num circo, o Palhaço marca as situações técnicas e
estabelece a ligação entre o circo e a representação no circo.
c) Ariano Suassuna dá plena liberdade ao diretor, no que respeita à definição
do cenário, que poderá "apresentar uma entrada de igreja à direita, com
um apequena balaustrada ao funda /../. Mas tudo isso fica a critério do
ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenários /.../”
(p.21).
d) Percebe-se, portanto, que a técnica de composição da peça segue uma linha
simplista, solicitada pelo próprio autor, o que faz residir a importância da
mesma apenas na proposição dos diálogos e no decurso da ação consequente.
O Auto
da Compadecida apresenta os seguintes elementos que permitem a
identificação de sua participação num determinado estilo de época da evolução
cultural brasileira:
1- O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua
portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é
basicamente religioso. Assim o entendeu Paula Vicente, filha de Gil Vicente,
quando publicou os textos de seu pai, no século XVI, ordenando-os
principalmente em termos de autos e farsas.
Essa proposta conduz a que a primeira intenção do texto está em moldá-lo dentro
de um enquadramento do teatro medieval português, ou mais precisamente dentro
das perspectivas do teatro de Gil de Vicente, que realizou o ideal do teatro
medieval um século mais tarde, isso no século XVI, portanto, em plano
Quinhentismo [estilo de época].
2- O texto propõe-se como resultado de uma pesquisa sobre a tradição oral dor a
romanceiros e narrativas nordestinas, fixados ou não em termos de literatura de
cordel. Propõe, portanto, um enfoque regionalista ou, pelo menos, organiza um
acervo regional com vistas a uma comunicação estética mais trabalhada.
3- A síntese de um modelo medieval com um modelo regional resulta, na peça,
como concebida pelo Autor. Se verificarmos que as tendências mais importantes
do Modernismo se definem no esforço por uma síntese nacional dos processos
estáticos, poderemos concluir que o texto do “Auto da Compadecida” se insere
nas preocupações gerais desse estilo de época, deflagrado a partir de 1922, com
a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Um modelo característico dessa síntese
se encontra em “Macunaíma”, de Mário de Andrade, de 1927, e em “Grande Sertão:
Veredas”, de Guimarães Rosa [1956], entre outros.
VIII – PERSONAGENS:
As
personagens de Auto da Compadecida são alegóricas, ou seja,
não representam indivíduos, mas tipos que devem ser compreendidos de acordo com
a posição estrutural que ocupam. A peça apresenta quinze personagens de cena e
uma personagem de ligação e comando do espetáculo. As personagens assumem uma
posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância do texto.
JOÃO GRILO é a
personagem principal porque atua como criador de tosa as situações da peça. Ele
é o protagonista, personagem pobre e franzino, que usa de sua infinita astúcia
para garantir a sobrevivência. Já foi comparado a Macunaíma, o herói sem
caráter. Tal comparação, no entanto, revela-se inadequada, já que João Grilo,
ao contrário do personagem criado por Mário de Andrade, trabalha de forma dura,
ajuda seu grande amigo Chicó e tem como justificativa de suas traquinagens ser
assolado por uma pobreza absoluta. O mais acertado seria compará-lo ao
personagem picaresco, encontrado no romance medieval Lazarilho de
Tormes. Mas nem é preciso ir tão longe, pois Pedro Malazarte – cuja origem
ibérica está em Pedro Urdemalas – é o personagem popular mais próximo de João
Grilo.
A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as
personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens
se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a
Compadecida, e João Grilo.
JOÃO GRILO: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos
julgados pela justiça, toda a nação seria condenada" [p.24].
Mas a
importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do
fato de que as situações do Auto da
Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem:
1. A benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais. JOÃO
GRILO: "Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da
riqueza do major que se pela. Não viu a diferença? Antes era " Que
maluquice, que besteira!", agora "Não veja mal nenhum em se abençoar as
criaturas de Deus!" [p.33].
2. A loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais. JOÃO
GRILO: /.../ "É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar
espantado: o padre está meio doido". [p.40]. "Não sei, é a mania dele
agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro"[p.41].
3. O testamento do cachorro. JOÃO GRILO: "Esse era um cachorro
inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino
batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem
compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão
entendeu, coma a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoada e morrer
como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse
que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em
latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de
réis para o padre e três para o sacristão" [p.63-64].
4. O gato que "descome dinheiro". JOÃO GRILO: "Pois vou vender a
ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descomo
dinheiro" [p.38]. "Então tiro. [Passa a mão no traseiro do gato e
tira uma prata de cinco tostões]. Está aí, cinco tostões que o gato lhe dá de
presente"[p.96].
5. A gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOÃO GRILO: "Mas cura. Essa
gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer" [p.122].
6. A "visita" ao Padre Cícero. JOÃO GRILO: "Seu cabra lhe dá um
tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta"
[p.127].
Essa situação decorre da anterior, mas pode ser considerada com o
independente.
7. O julgamento pelo Diabo [o Encourado]. JOÃO GRILO: "Sai daí pai da
mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser
ouvida!"[p.144].
8. O apelo à misericórdia [à Virgem Maria]. JOÃO GRILO: "Ah, isso é
comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem
ver?" [p.169].
PALHAÇO: O
Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua
intervenção corresponde à parábase da comédia clássica – trecho fora do enredo
dramático em que as ideias e as intenções ficam claramente expressas:
PALHAÇO:
“Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor
quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que
ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele
não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito
popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem
direito a certas intimidades” (p.23-24).
...
Espero que os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas
vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns
verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem
maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros,
generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos
e pacientes (p.137).
O PALHAÇO,
representando o autor, liga o circo à representação do Auto da Compadecida.
Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia.
Ele é o anunciador da peça e também o grande comentador das situações. Suas
falas apresentam muitas vezes um discurso mais direto, que dá a impressão de
vir do autor. Na verdade, o Palhaço exerce função metalinguística no
espetáculo, ao refletir sobre o próprio mecanismo mágico de produção da
imitação e ao suprimir a distância entre realidade e representação.
Outras:
Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o
Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju,
Demônio.
CHICÓ – é o
contador de causos, o mentiroso ingênuo que cria histórias apenas para
satisfazer um desejo inventivo. Chicó se aproxima do narrador popular, e suas
histórias revelam muito do prazer narrativo desinteressado da cultura popular.
Chicó e João Grilo são como a dupla de palhaços entre os quais a esperteza é
mal repartida — um sempre a tem de mais e o outro, de menos. Companheiro
constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos
expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por
convicção íntima. Mas é um amigo leal.
PADRE JOÃO, O BISPO e o SACRISTÃO: Essas
personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia
e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro.
PADRE JOÃO –
mau sacerdote local, preocupado apenas em angariar fundos para sua
aposentadoria.
SACRISTÃO –
outro exemplo de mau religioso.
BISPO – juntamente com o padre João e o sacristão, ajudará a compor
o quadro de representação da Igreja corrompida.
ANTÔNIO MORAES –
típico senhor de terras, truculento e poderoso, que se impõe pelo medo, pelo
dinheiro e pela força. É a autoridade decorrente do poder econômico,
resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes
e a gente miúda.
O PADEIRO e sua MULHER:
Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério.
PADEIRO –
representante da burguesia interessada apenas em acumular capital, explora seus
empregados e tem acordos com as autoridades da Igreja.
MULHER DO PADEIRO – esposa infiel e devassa, tem amor genuíno
apenas por seus animais de estimação.
FRADE –
bom sacerdote, serve, no enredo da peça, para salvaguardar a instituição Igreja
das críticas do autor.
SEVERINO
DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um
papel importante na sequência de número cinco, porque nessa sequência matam e
são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.
SEVERINO DO ARACAJU –
cangaceiro violento e ignorante.
CANGACEIRO – ajudante de Severino, seu papel é apenas puxar o
gatilho e executar outras personagens.
DEMÔNIO – ajudante do
Diabo, parece disposto a condenar todos os personagens mortos no final do
segundo ato.
O ENCOURADO (O DIABO) – segundo uma crença nordestina, o diabo
utiliza roupas de couro e veste-se como um boiadeiro. Funciona como uma espécie
de antagonista de João Grilo; como ele, também é astuto, mas acaba sendo
derrotado pelo herói. Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento
da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma
forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo).
O ENCOURADO é o acusador no Julgamento
Final. Suassuna diz que, “segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito
moreno, que se veste como um vaqueiro.”
Não
consegue olhar diretamente para Manuel (Jesus) e para a Compadecida (Maria). É
caracterizado por Suassuna como um sujeito sério. Em um momento do julgamento,
ele diz:
“Protesto
contra essas brincadeiras. Isso aqui é um lugar sério. ” Em outro
momento: “É, você está muito engraçado agora, mas Manuel é justo e quando ele
me entregar vocês, há de ver que com o diabo não se brinca. ” e “... tem
razão, porque o que vai lhe acontecer é coisa muito séria.” Duas vezes
ele pede respeito aos interlocutores: “Homem, dê-se a respeito! ” e “Vá
vendo a falta de respeito, viu?” E reclama da intercessão da Compadecida:
“Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina
desmoralizando tudo. ”
MANUEL (NOSSO SENHOR JESUS
CRISTO) – personagem que simboliza o bem, porém um bem
sem misericórdia. É representado por um ator negro, a fim de que isso produza
um efeito de estranhamento no público. É o Cristo negro, justo e
onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da
prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da
arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado
definido e analisado, com sabedoria e com prudência.
É quem
dirige o julgamento. É caracterizado por Suassuna como “um preto retinto, com
uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. ” Ao contrário do
Encourado, que é sério, Manuel tem certa irreverência. No julgamento ele faz
algumas piadas. Em um momento, quando João Grilo estranha o fato dele ser
negro, responde:
Vim
hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que
vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido
preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou
americano para ter preconceito de raça? ” Sobre a questão do racismo,
trataremos adiante. O que deve ser ressaltado aqui é a imagem de irreverência
atribuída a Jesus.
Eis outros momentos de piada, de Manuel: “É brincadeira minha, mas, depois que
João chamou minha atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito assim de
sacristão.” (...) “Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim, é um
lugar sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação do sacristão.” (...)
“Pois desanote. Não está vendo que é brincadeira? João sabe lá o que é livre
arbítrio, homem?” (...) “É besteira do demônio. Esse sujeito é meio
espírita e tem mania de fazer mágica.” (...) “Deixe de chicana, João,
você pensa que isso aqui é o palácio da justiça? Pode acusar.” (...)
“Esse respeito de que você fala, foi coisa que eu nunca soube impor, graças a
Deus.” (...) “Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que
fazer, meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou.” “Que é que eu
posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político...” (...)
“Não. Vou deixar que você volte, porque minha mãe me pediu, mas só deixo com
uma condição. Você me fazer uma pergunta a que eu não possa responder. Pode
ser?” (...) “Eu sei, mas para que você não fique cheio de si, vou lhe confessar
que já sabia que você ia-se sair bem. Minha mãe já tinha combinado tudo comigo,
mas você estava precisado de levar uns apertos. Estava ficando muito
saído.” (...) “Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos,
o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe
mas não funciona. ”
E, para
terminar: “JOÃO GRILO: Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante?
MANUEL: Sou não, João, sou católico.
Na avaliação de Oscar Henrique “esses e outros trechos do Cristo e de Nossa
Senhora dão uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não
como uma coisa formal, solene, difícil e mesmo penosa.”
Outro aspecto a ser notado é que, na cabeça de Suassuna, Jesus não é tão
humano, tão próximo quanto Maria:
MANUEL: E por quem eles iriam gritar? JOÃO GRILO: Por alguém que está mais
perto de nós, por gente que é gente mesmo. MANUEL: E eu não sou gente, João?
Sou homem, judeu, nascido em Belém, criado em Nazaré, fui ajudante de
carpinteiro... Tudo isso vale alguma coisa. JOÃO GRILO: O senhor quer saber de
uma coisa? Eu vou lhe ser franco: o senhor é gente, mas não muito não. É gente
e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande. Meu negócio é com
outro. (...) “Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o
Senhor é muito grande. Não é por nada não, mas sua mãe é gente como eu, só que
gente muito boa, enquanto que eu não valho nada.
A COMPADECIDA (NOSSA SENHORA) – heroína da peça, funciona como uma
advogada de João Grilo e de seus conterrâneos, derrotando com seus argumentos
cheios de misericórdia os planos do Encourado de levar todos ao inferno. É
Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda
oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de
misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo.
É a
intercessora que defende todos os acusados. Sua característica predominante é a
misericórdia. Na segunda fala da peça, o Palhaço anuncia: “A intervenção de
Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. ” De
mesma forma que Manuel, a Compadecida aprecia a alegria, ao contrário do
Encourado. Respondendo a um gracejo de João Grilo ela diz: “Tem umas graças,
mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de
tristeza é o diabo. ” Esta crítica à formalidade e à reverência também
ficam evidentes nesta fala da Compadecida ao Encourado: “É máscara dele, João.
Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu
consumado.”
Ela é chamada também, por João Grilo de “mãe da justiça” e “grande
advogada.” Na concepção de Suassuna, Maria tem tanto poder (ou mais) que
Jesus Cristo. No roteiro da peça, nas anotações ao diretor, encontramos estas
instruções: “O Encourado, furioso, volta-se para João, mas nesse momento, ou dá
um grande grito e corre para o inferno, ou deita-se no chão e rasteja até onde
está a Virgem para que ela lhe ponha o pé sobre a nuca (cf. Gênesis, 3, 15),
saindo após. ” Suassuna atribui o pisar na cabeça da serpente a Maria e
não à semente da mulher, Jesus, como é claramente descrito na Escritura. Quanto
à defesa que Maria faz de todos os acusados no Julgamento Final, veremos
adiante.
IX - CONSIDERAÇÕES FINAIS:
1. Crítica moralizante:
Fica
patente o cunho de sátira moralizante da peça, que assume uma posição cujo foco
está na base da pirâmide social, a melhor maneira de desvelar os discursos
mentirosos das autoridades e integrar os homens e mulheres por meio da
compaixão, a qual só os desprendidos podem desenvolver. Nesse aspecto, a moral
que se depreende da peça é muito semelhante à do cristianismo primitivo, que se
baseava no preceito “amai-vos uns aos outros”.
2. Compaixão pelos que sofrem:
A ambientação da peça no sertão nordestino, tendo como personagens principais
João Grilo e Chicó, dois jovens sofredores que passam fome e necessidade por
causa das condições difíceis da sua região revelam um traço bem humanístico na
obra de Suassuna. Embora o autor tenha tido dificuldades em sua vida com a
morte de seu pai aos 3 anos de idade, não se verifica na bibliografia dele
algum tipo de sofrimento com relação ao dinheiro. Sua mãe, viúva de um político
influente, governador do Estado da Paraíba, com ligação direta ao presidente
Getúlio Vargas, dificilmente teria ficado desamparada, do ponto de vista
financeiro. Na ocasião, ela vendeu as terras e o gado do marido e arrendou uma
fazenda para ter recursos para criar os filhos. Isso aumenta o mérito de
Suassuna, ao retratar as condições de pobreza de seus conterrâneos sem
experimentar na pele essas condições.
3. Repudio à opressão:
Assim como é perceptível a compaixão de Suassuna pelos pobres, é evidente a
crítica feita em “Auto da Compadecida” aos ricos opressores. Estes opressores
aparecem nas personagens do padeiro e sua mulher, do major Antônio Morais e na
figura dos religiosos, o bispo, o padre e o sacristão.
A mulher do padeiro, por exemplo, gosta mais de bichos de estimação do que de
pessoas: “Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, João,
já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá gosto.
” E trata melhor os animais do que os pobres. Em certo momento da peça
João Grilo se queixa dela a Chicó:
Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno?
Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a
raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma
cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne
passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu
me vingo.68
4. Crítica ao racismo:
O tema do racismo é levantado em “Auto da Compadecida”. Manuel, o Jesus da peça,
é negro. Depois da admiração de João Grilo e de todos por sua cor, ele explica:
Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de
raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar
comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como
podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você
pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?69
Na opinião de Henrique Oscar, que prefacia a edição aqui utilizada, a frase se
deve ao contato que brasileiros tiveram com os americanos quando, na segunda
Guerra Mundial, estabeleceram bases no Nordeste:
Ora, em primeiro lugar, durante a guerra houve bases americanas no Nordeste,
cujo ambiente e mentalidade a peça evoca. Possivelmente seus ocupantes, com a
inabilidade característica que manifestam no trato com outros povos, deram
abundantes provas desse seu lamentável sentimento. Portanto, a repulsa pode ali
ser suficientemente forte, para que o autor se sentisse levado a trazê-la para
sua peça.70
Muito tempo depois, o próprio Suassuna arrependeu-se de ter incluído esta fala
na peça. Ele explicou o porquê em uma entrevista a alunos do departamento de
Jornalismo Impresso da Universidade Federal do Ceará:
Tem um protesto lá contra o preconceito de raça, contra a discriminação racial.
E tem uma frase que o Cristo diz assim, o Cristo reclamando contra João Grilo
diz a ele: “Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça? ”
Olhe, isso mostra de minha parte uma visão totalmente falsa do Brasil, eu
estava certo naquele tempo que nós estávamos muito na frente dos Estados Unidos
nisso, e não é verdade, o preconceito de raça no Brasil é profundamente
enraizado, só que disfarçado. Então isso é um dos erros que cometi no decorrer
da minha obra.71
5. A morte:
No Auto
da Compadecida, a narrativa adquire um sentido preciso ao se consumar a
morte das personagens. Nas longas sequências iniciais da obra, são retratadas
em detalhes as idiossincrasias, qualidades morais, sentimentos e respostas às
injunções do cotidiano de cada uma das personagens; o pobre esperto e
atrapalhado, a mulher adúltera, o marido avarento, o padre pusilânime, o bispo
político, o sacristão cúpido, o cangaceiro implacável têm os significados
plenos de suas identidades substancializadas no momento do julgamento final. Os
embates anteriores à morte surgiam em função das vicissitudes estruturais,
existenciais ou políticas das personagens; eram expressos pelas máscaras da
inocência, da dissimulação, do exercício do poder, da ignorância ou da manipulação.
Finados, as máscaras se desintegram diante da percepção essencial de cada
indivíduo perpetrada por Deus, pela Compadecida e pelo Diabo. A própria
Compadecida reduz os comportamentos apresentados em vida por cada suplicante a
manifestações de medo, ao que o bispo retruca ser medo da morte.
Vimos
que “Auto da Compadecida” relativiza a moral e a ética ao justificar pecados e
suavizar suas consequências. Vimos também a condenação bíblica de Deus sobre os
pecados, tendo o seu ápice na cruz de Cristo. Agora, tendo verificado o
ensino bíblico sobre a questão, podemos analisar um pouco a origem cultural
dessa tendência pecaminosa.
6. Desigualdade social:
Considerações
sobre a morte servem de pretexto também para estabelecer os critérios de
desigualdade entre pessoas através da observação do comportamento; Chicó - um
dos pobres do Auto - diz que "esse povo rico é cheio de
agonia com os mortos. Eu, às vezes, chego a pensar que só quem morre
completamente é pobre, porque com os ricos a agonia continua por tanto tempo
depois da morte, que chega a parecer que ou eles não morrem direito ou a morte
deles é outra". Mas, como na Idade Média, a morte também
todos igualam; o mesmo Chicó fala:" encontrou-se com o único mal
irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra,
aquele fato sem explicação que iguala tudo que é vivo num só rebanho de
condenados, porque tudo o que é vivo morre".
As
mesmas atitudes dissonantes entre a prática popular e o entendimento do clero
sobre os animais fazem deslanchar a trama do Auto; afigura-se o
problema da benção do cachorro da mulher do padeiro; a conversa entre Chicó e
João Grilo, no intento de mostrar a naturalidade do fato alude a outros animais
bentos como o cavalo bento de Chicó. O problema do enterro do
cachorro e de seu testamento é também pretexto para toda a sequência em que o
clero é desmoralizado pela sua avareza. O cachorro morto, por ter deixado em
testamento dinheiro para o padre, o sacristão e o bispo, é considerado por
estes como inteligente, possuidor de nobres sentimentos e mesmo de uma alma, ou
de algo semelhante passível de provocar assombrações.
7. Personagens e seus pecados:
A peça
“Auto da Compadecida” revela uma moral relativa, circunstancial e tolerante. As
personagens são praticantes de vários pecados do Decálogo e estes pecados são
evidentes na peça. O de João Grilo, a falsidade, um herói do sertão nordestino,
trapaceiro; o de Chicó, a mentira; o do Padeiro, a avareza; o da sua Mulher, o
adultério; os pecados do Padre, a cobiça e a preguiça; do Sacristão, a cobiça;
do Bispo, a cobiça e orgulho; o pecado de Severino e seu amigo Cangaceiro, o
furto e o homicídio. Porém, se há apontamento de pecados há também tolerância e
justificativa para os delitos.
Laivos
de heresia também no Auto; a questão da identidade entre Jesus e
Cristo e da dualidade divindade-humanidade do Cristo parecem muito complexas e
duvidosas para João Grilo; Cristo afirma ser homem, mas Grilo retruca que:
"o senhor é gente, mas não muito não. É gente e ao mesmo tempo é Deus, é
uma misturada muito grande. Meu negócio é com outro".
Sem o saber, João Grilo reaviva uma discussão candente dos primeiros tempos do
cristianismo, quando facções teológicas disputavam na teoria e na prática,
através de massacres, as questões da consubstanciação ou da transubstanciação
do Cristo. O próprio Cristo, por sua vez, acusa o diabo de desvios religiosos;
considera-o "meio espírita", alguém que "tem mania de fazer
mágica". A magia, de fato, associava-se ao demo nos
tempos medievais, mas o espiritismo é uma herança do século XIX, aliás
fortemente arraigada nas crenças do povo brasileiro.
X –
CONCLUSÃO:
A Compadecida deve
ser entendida dentro do espírito que guiava as montagens do TEP e as criações
de Suassuna na década de 40 e início de 50:" despertar o povo, fazê-lo
sentir que era a origem e era o fim, que a arte dramática brasileira encontrava
nele seu filão criador (...) fazer uma arte popular total, fundamentada na
tradição e na dramaturgia do Nordeste".
No
entanto, devemos notar que este despertar do povo - cultural,
portanto político - reveste-se de muita prudência e ambiguidade; a intenção de
Suassuna de realizar um teatro de conscientização nem sempre segue as próprias
tradições.
No Auto,
os poderosos, por exemplo, não acabam no inferno, como no imaginário popular, porque João Grilo deles se apieda e encontra uma solução
intermediária ao negociar a opção de um espaço também intermediário, o
Purgatório. A relação dos cangaceiros - heróis populares
nordestinos - com as demais personagens é complexa; o cangaceiro representa um
poder desestruturador da opressão cotidiana - Severino afugenta a polícia,
rouba dos representantes da Igreja e do padeiro, critica o comportamento da
mulher do padeiro - no entanto, na hora de matar não tem qualquer deferência
para com os pobres; poupa apenas o frade, mas por superstição - matar frade dá
azar. Outra ambiguidade transparece na relação entre o
discurso de busca das raízes brasileiras autênticas, populares, do passado
ibérico, e a ufania do major, uma personagem ociosa, detentora dos poderes
locais, ao se considerar um produto da mais pura cepa portuguesa: "Meu
nome todo é Antonio Noronha de Brito Morais e esse Noronha de Brito veio do
Conde dos Arcos, ouviu? Gente que veio nas caravelas, ouviu?".
A
consciência social está presente nas personagens divinas; o Cristo do Auto -
negro e de nome Manuel - discursa contra o bispo - "indigno de minha
Igreja, mundano, autoritário, soberbo. (...) Sua obrigação era ser humilde,
porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer" - e a favor da sinceridade do pobre João, apesar de seu
preconceito de raça, como se fora um americano. No Cristo de
Suassuna não há "contradição entre justiça e misericórdia". O Cristo de Buenaventura igualmente admira os pobres e
compreende suas fraquezas, como no caso da avidez de Peraltona.
Mas, no fundo, tratam-se de discursos morais.
A obra
começa com Chicó, amigo de João Grilo, contando a estória do “cavalo bento”, um
animal que correu atrás de uma garrota e um boi durante todo o dia, indo de Taperoá,
Paraíba, até Propriá, Sergipe. Depois, João Grilo e Chicó enganam o padre
para que ele benzesse o cachorro da mulher do padeiro. A seguir, Chicó conta a
estória do peixe pirarucu que o arrastou no rio Amazonas durante três dias e
três noites e, com a morte do cachorro da mulher do padeiro, João Grilo
convence o sacristão e o padre a fazerem o sepultamento do animal. Tal logo
morreu o cachorro, e João Grilo, por quinhentos mil réis, vende um gato que
“descome dinheiro” para a mulher do padeiro. Severino, o temido cangaceiro
entra em cena, acompanhado de outro cangaceiro, gerando pavor em todos.
Antes
do momento final da peça, o narrador, o Palhaço, torna explícito o tom da
crítica moral:
“Muito bem, com toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão
oportunidade de assistir seu julgamento. Espero que todos os presentes
aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu
tenha certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos,
praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem
mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem
avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes. E
basta, se bem que seja pouco. Música.”54
Severino, o cangaceiro, em pleno roubo, torna-se confrontador de pecados.
Primeiro do Padre:
PADRE: Tenho, não vou negar. Aqui estão dois contos, Senhor Severino. É o que
posso lhe dar, no momento. SEVERINO, irônico: É mesmo, padre? Não é possível!
Numa terra em que o bispo tem seis contos, o padre deve ter no mínimo uns três.
(Severo.) Deixe ver os bolsos. Olhe lá, eu não disse? Fazendo jogo sujo, hem,
padre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso é um fim de mundo.
Depois, Severino confronta o comportamento adúltero da mulher do padeiro:
MULHER sedutora: Então venha trabalhar comigo na padaria. Garanto que não se
arrepende. SEVERINO, severo: Mostre a mão esquerda. MULHER, cariciosa: Pois
não, com muito gosto. SEVERINO: É uma aliança? MULHER: É, sou casada com essa
desgraça aí, mas estou tão arrependida! Só gosto de homens valentes e esse é
uma vergonha. SEVERINO: Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer
desse jeito. Aliás, já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com
todo mundo.
Na sequência, confronta a avareza do padeiro:
PADEIRO: Não ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar
comigo na padaria. Não se ganha muito, mas dá para viver. SEVERINO: Então
ganha-se pouco na padaria? PADEIRO: Muito pouco, eu mesmo não tenho aqui, veja.
SEVERINO: Não preciso, eu acredito. O que você tinha deixou no cofre e eu tirei
tudo, de passagem por lá. PADEIRO: Ai!
Observe
que o autor anuncia a denúncia do pecado da Igreja, o mundanismo; reconhece seu
comportamento pecaminoso, na frase “sua alma é um velho catre, cheio de
insensatez e de solércia”; mas justifica estes comportamentos com base nas
crises existenciais do povo: “porque acredita que esse povo sofre, é um povo
salvo e tem direito a certas intimidades.”
Na cena do Julgamento Final, a Compadecida, justifica a todos os pecados:
A COMPADECIDA: É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa levar em
conta a língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por
isso era chamado de político e de mero administrador. Já com esses dois a
acusação é pelo outro lado. É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas
é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica
todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por
medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo,
coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.59
O elemento motivador e justificador do pecado é o medo:
ENCOURADO: Medo? Medo de quê? BISPO: Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da
morte... PADRE: Medo do sofrimento... SACRISTÃO: Medo da fome... PADEIRO: Medo
da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e porque
sempre tive um medo terrível da solidão. MANUEL: E é a mim que vocês vêm dizer
isso, a mim que morri abandonado até por meu pai! A COMPADECIDA: Era preciso e
eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que
você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue, como qualquer
outro e, como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do
sofrimento. JOÃO GRILO: Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou. MANUEL: É
verdade, João, mas você não sabe do que está falando. Só eu sei o que passei
naquela noite. A COMPADECIDA: Seja então compassivo com quem é fraco.
Esse medo e sofrimento são usados pela Compadecida para livrar a todos da
condenação. A Mulher do padeiro é justificada de seus adultérios por ter
sofrido nas mãos do marido, no início do casamento. Severino e o cangaceiro são
justificados por terem enlouquecido, depois que a polícia matou a família
deles. João Grilo, o de situação mais complicada no julgamento, recebe a chance
de voltar à vida, tendo seus pecados perdoados com base em seu sofrimento: “A
COMPADECIDA: João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores
dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João
ir para o purgatório.”
Na impossibilidade de ir ao purgatório, A Compadecida pede a Manuel outra
chance para João Grilo e lhe é concedido o direito de ele voltar à vida na
terra.
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