domingo, 12 de agosto de 2012

CINDY SHERMAN (1954): MELODRAMA EM FOTOGRAFIAS



Cindy Sherman nasceu em 19 de janeiro de 1954, em Glen Ridge.  Logo após o seu nascimento, sua família se transferiu para a cidade de Huntington, Long Island.
Estudou no Buffalo State College entre 1972 e 1976, onde despertou o gosto pela pintura. No entanto, sua limitação com essa arte, levou-a ao campo da fotografia, que considerava como o meio de expressão apropriado à sociedade, dominada pelos meios de comunicação.

Não havia mais nada a dizer – sobre a pintura”, ela relembrou mais tarde. “Eu estava meticulosamente copiando a arte de outros e então eu me dei conta que eu poderia somente usar uma câmera e colocar em prática uma ideia instantânea.

Em 1976, formou-se em Fotografia, iniciando sua carreira em Nova York, tornou-se uma das grandes expoentes da arte contemporânea.
Nos anos setenta Cindy Sherman começou a desenvolver seu percurso artístico em torno da fotografia como suporte das muitas figuras passíveis de ser retratada a partir de sua própria pessoa, assim, a artista realiza, por meio dela, uma denúncia dos lugares estereotipados de sujeição destinados à mulher em nossa sociedade.
Ainda que, esses auto-retratos assemelham-se a uma atitude narcisista, introspectiva e de sensualidade, a artista esclarece que: “são retratos da emoção personificada e não retrato meus. Tento fazer as pessoas reconhecerem alguma coisa delas mesmas, e não minhas”.
Cindy Sherman empresta seu corpo em prol da arte e trabalha em séries temáticas.

“Tento sempre distanciar-me o mais que posso nas fotografias. Embora, quem sabe, seja precisamente fazendo isso que eu crio um auto-retrato, fazendo essas coisas totalmente loucas com esses personagens, diz, mas seria possível?”

A partir dessas obras, Sherman levantou questões sobre a feminilidade na sociedade, na mídia e na arte. Para criar suas fotografias, Sherman assume várias funções: fotógrafa, modelo, maquiadora, estilista, cabeleireira e com esses apetrechos cria uma diversidade de quadros vivos e personagens perturbadoras.
Uma de suas séries mais famosas, “Untitled Film Stills”, desenvolvida de 1977 a 1980, contém 69 fotografias em preto e branco ou colorido, de personagens femininas sempre representadas pela própria artista. Essas imagens nos lembram de forma indireta as divas cinematográficas hollywoodianas ou pinturas de grandes mestres, dos anos 40 e 50, capturadas em cenas de filmes “noir”, ou então em momentos de descontração na intimidade de suas casas.


Essas figuras aparecem sempre solitárias e nos remetem à sensualidade, ao luxo, bem como ao suspense, a solidão e ao conflito promovido pelas circunstâncias nas quais se encontram.


Cindy Sherman, com essa série, denúncia de forma irônica os diversos estereótipos reservados às mulheres que povoam o imaginário de nossa época, marcado pela influência midiática, dos filmes às propagandas televisivas.
O reconhecimento da artista veio com essa primeira série, como também, a sua popularidade junto ao movimento feminista e prolongou-se durante toda sua carreira.
A força dessas imagens e sua influência na construção das identidades são retratadas sem mencionar de quem se trata, ou em que circunstância. Além de dispor suas personagens em posições nas quais elas parecem estar sendo olhadas e isso implica a co-participação do espectador da obra, encerrando a imagem em si mesma ou se abre para o espectador através do artifício do olhar.
Em suas séries subsequentes, como as “Rear Screen Projections” e as “Centerfolds or Horizontals”, o absurdo atinge o ápice do horror. A artista passa a se utilizar de revelações em grande formato, inspiradas ora nas emissões televisivas com seus cenários visivelmente falsos ora confinadas a um movimento da câmera que as coloca nos ângulos e posições frequentemente utilizados em revistas pornográficas.
Na série “Fashion Photos” encontra-se fotografias inspiradas pelos editoriais de moda, em personagens apavorantes, grotescas, estranhas, loucas e sinistras. É como se retratasse um desfile de horror e a decadência da mulher, destituída de todas as glamourosas imagens.


 Nas séries “Fairy Tales”, “Disasters”, “Civil War”, “Sex Pictures”, “Horror and Surrealist Pictures”, “Masks” e “Broken Dolls” a ironia dá lugar ao horror e atinge à completa dissolução da figura humana, relegados aos dejetos, às excrescências, à carne, ao sangue, à sujeira, ao informe.


Utilizando-se de uma iluminação sombria e da visão de figuras burlescas, criadas com o uso de máscaras sobrepostas em camadas e próteses, aproximou o feminino do grotesco como absurdo, simulacro, revelação da farsa da revelação, automatismo, inumanidade mascarada de humano e tudo o mais que seu desfile de horrores e decadência é capaz de produzir.
Dessa forma, somos reenviados aos cenários e personagens desprovidos de sentido da alusão aos contos de fada em seu viés aterrorizante, de amontoado de bonecos, de monstros e combinação de pedaços de manequins colocadas em poses sexuais, que remetem ao estranho.  



Em “Masks” e “Broken Dolls” o inumano de máscaras distorcidas e mutiladas não esconde mais nada detrás de si. A própria máscara tem vida do mesmo modo como as bonecas despedaçadas e colocadas em posições obscenas também soam absurdas, desligadas de qualquer possibilidade de vinculação com algo da esfera do humano.


Nessas séries não há mais a sedução da figura com seu olhar perdido nas fotografias anteriores. Mantém-se, no entanto, um desconforto, que é aumentado pela artificialidade da composição tão explicitamente revelada quanto o sexo das figuras fotografadas.
Na série “Bus Riders”, a artista apresenta seus personagens com suas vestimentas, sentados em um barquinho, com um disparador da câmera fotográfica nas mãos. O irônico está em que aquelas figuras jovens, velhas, homens e mulheres se desconstroem ante os olhos do espectador desde que constatemos o disparador da máquina.


A ironia em Sherman está em apresentar uma cena e simultaneamente a construção da cena como farsa da composição artística.
Já em “History Portraits” ou “Old Masters”, a artista presta tributo aos grandes mestres da pintura, reproduzindo em suas criações fotográficas aquilo que parecem ser telas de pintores dos séculos precedentes, que aparecem como referência nas formas da composição, no uso das cores e da luz, e principalmente nos motivos ou temas de cada obra: madonas, personagens mitológicos ou nobres com suas ricas vestimentas e adornos.



Em 2004, o brilho irrecuperável das primeiras séries reaparece aqui como cru e franca decadência na série “Clowns”. Nela encontramos figuras mais grotescas do que ridículas, com seus sorrisos assustadores, imagens fantasmagóricas frente a um fundo de cores fortes e marcantes, excesso de vivacidade de onde brotam como máscaras da morte, satirizando uma suposta felicidade.


Os clowns retornam os objetivos principais da arte de Sherman: personificação do grotesco e da ironia, que sorriem para o espectador de forma terrível e ameaçadora.


Em 2011, uma de suas fotos foi vendida na casa de leilões Christie’s por 3,9 milhões de dólares, tornando-se, na época, a mais cara fotografia vendida em um leilão de arte. 









domingo, 8 de julho de 2012

CONSTRUÇÃO, CHICO BUARQUE DE HOLLANDA: ANÁLISE LITERÁRIA



Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
 
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
 
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
 
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
 
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
 
Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
 
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo como tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
 
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
 
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
 
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio público
 
Morreu na contramão atrapalhando o público
 
Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
 
Morreu na contramão atrapalhando o sábado.

“Construção”, 1971, que, junto com “Pedro Pedreiro”, é uma das canções emblemáticas da vertente crítica, podendo-se enquadrar como um testemunho doloroso das relações aviltantes entre o capital e o trabalho.
Com efeito, “Construção” retoma o filão inaugurado precocemente por Chico Buarque: o da crítica social, tendo como personagem um elemento do proletariado – no caso, coincidentemente, um pedreiro. Pois o protagonista de “Construção”, que não é nomeado, é apenas o sujeito oculto dos verbos na terceira pessoa, parece ser o “Pedro Pedreiro” que esperava o trem nos velhos tempos – nos idos de 1965, talvez um pouco antes - e que agora cai dos “andaimes pingentes” e se despedaça.
Trata-se de um dos textos mais rigorosamente “construídos” do compositor, de estrito rigor formal e apuro técnico. Significativo, aliás, que uma de suas canções mais “engajadas” seja, ao mesmo tempo, a de mais rigoroso travejamento formal.
É interessante ressaltar que “Construção” situa-se no bojo da maré de experimentalismo formal que, vestido das roupagens de “Estruturalismo”, “Construtivismo” e outros ismos vários, predominou entre nós no início da década de 70, tanto no pensamento crítico quanto na produção literária.
Mesmo tendo sido basicamente como o autor de “Construção” que Chico se criou um lugar de cantor dos oprimidos na Música Popular Brasileira, ele recusa, terminantemente, qualquer intencionalidade social no ato de compor essa canção. Em entrevista concedida à revista Status, por exemplo, faz declarações bastante interessantes para se abrir o debate das relações entre “Lírica” e “Sociedade”. Depois de declarar que “problema pessoal não dá samba”, Chico diz que “Construção” não era, dentro dele, uma música de denúncia ou de “protesto”.

Segue um trecho da entrevista:

CHICO: Não passava de experiência formal, jogo de tijolos. Não tinha nada a ver com o problema dos operários – evidente, aliás, sempre que se abre a janela.

STATUS: Portanto, não havia nenhuma intenção na música.

CHICO: Exatamente. Na hora em que componho, não há intenção – só emoção. Em “Construção”, a emoção estava no jogo de palavras (todas proparoxítonas). Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse...um tijolo – acaba mexendo com a emoção das pessoas.

STATUS: Então não se liga com intenção?

CHICO: Tudo é ligado. Mas há diferença entre fazer a coisa com intenção ou – no meu caso – fazer sem a preocupação do significado. Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio, a Patagônia, talvez, que não tem nada a ver com nada. Em resumo, eu não colocaria na letra um ser humano. Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir a futebol. Tudo entra na cabeça em tumulto e sai em silêncio. Porém resultado de uma vivência não solitária, que contrabalança o jogo mental e garante o pé no chão. A vivência dá a carga oposta à solidão e vem da solidariedade – é o conteúdo social. Mas trata-se de uma coisa intuitiva, não intencional: faz parte da minha formação que compreende – igual aos outros da mesma geração – jogar bola e brigar na rua, ler histórias em quadrinhos, colar, aos seis anos, cartazes a favor do Brigadeiro por causa dos meus pais, contrários ao Estado Novo.

Há nessa fala alguns pontos a serem ressaltados. Em primeiro lugar, há que se equacionar devidamente a afirmação segundo a qual não existe “intenção” na hora de criar. Pode não haver a intencionalidade de uma denúncia, de um recado político, mas, conforme o próprio Chico diz, há o artesanato verbal. E só com “emoção” dificilmente ele encontraria as proparoxítonas certas para ser desenho lógico, que, transfigurado pela poesia, se transformará em “desenho mágico”.

Em segundo lugar, pode-se desentranhar daí uma reflexão (com toda a descontração de quem se propunha a ser publicado por “Status”) de como se faz a ligação entre o individual e o social (em termos hegelianos, a relação dialética entre a parte e o todo, entre o pessoal e o geral): aquilo que Adorno sistematizou de uma maneira definitiva no seu “Discurso sobre Lírica y Sociedad”, e que servirá de análise desse texto. Depois de declarar que “uma corrente coletiva subterrânea funda toda a lírica individual”, diz o pensador de Frankfurt que a participação da corrente subterrânea coletiva se faz graças à experiência histórica (Chico: “Se eu vivesse numa torre de marfim, isolado, talvez saísse um jogo de palavras com algo etéreo no meio...[...] Mas eu não vivo isolado. Gosto de entrar no botequim, jogar sinuca, ouvir conversa de rua, ir a futebol...”). Não é a experiência individual que vale nem a emoção individual, continua Adorno, “mas estas não chegam a ser nunca artísticas, a menos que consigam uma participação no geral por meio, precisamente, da especificação que é o seu estético tomar forma.
Assim, a dimensão social toma existência, na poesia, através da linguagem (o que é uma retomada de uma ideia do jovem Lukács, segundo a qual o social na literatura é a própria forma). Em outras palavras, a linguagem é uma mediação entre o homem e a sociedade. E aqui se toca num ponto de vital importância. É por isso que naquilo que nas palavras de Chico “não passava de uma experiência formal, jogo de tijolos” – o social emergiu com tamanha força. No que Chico declara não passar de um exercício lúdico com a linguagem, num jogo de palavras, transmite-se um tal recado social.
Mas vamos examinar as peças desse explícito jogo de palavras que é “Construção”, onde se mostra sua poderosa força artesanal. O essencial desse jogo consiste no caráter intercambiável dos termos (e, consequentemente, do ser humano aí em questão). As palavras finais de todos os versos, todas proparoxítonas, são substituíveis. Cabe em primeiro lugar perguntar por que proparoxítonas. Há algo de estranhamento numa proparoxítona, de rareza, que Chico tão bem soube capitalizar. Há nela quase que um soluço: a voz se alça e como se suspende lá em cima, caindo em dois tempos. Aliás, instituiu-se em Chico já quase uma “tradição” no manejo com as proparoxítonas.
Esse poema de versos rigorosamente dodecassílabos obedece a um rígido esquema estrutural: um bloco de 4 estrofes de 4 versos: 1 verso isolado (verso 17); um bloco de 4 estrofes de 4 versos (que repetem os 16 versos iniciais, com exceção da última palavra de cada verso, sempre uma proparoxítona); um verso isolado (verso 34); um bloco de uma estrofe de seis versos, constituída por versos retomados do primeiro bloco (com exceção da última palavra, sempre um proparoxítona), a saber: versos 1, 2, 6, 9, 14 e 15. Essa estrofe funciona como uma espécie de condensação ou resumo da canção inteira; um verso final isolado (verso 41).
Evidencia-se uma aflitiva repetitividade que, no limite, sugere o eterno retorno dos gestos sempre retomados, a mecanização do corpo e da vida. Dentro da simetria, da mesmice da estrutura sintática, das regularidades morfológicas, métricas, rítmicas e fônicas que desenham a circularidade do todo, mudam só as últimas palavras, todas proparoxítonas.
Mas os versos isolados, que falam de morte, a saber:

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego (v. 17)
Morreu na contramão atrapalhando público (v. 34)
Morreu na contramão atrapalhando o sábado (v. 41)

Pontuam o texto, introduzindo aí um movimento alterado (e aqui se pode tatear muito bem o parentesco da ironia com a morte, ou melhor a ironia enquanto jogo com o instinto de morte). Pois a partir do verso 17, a linguagem sofre uma desarticulação – como que imitando o despedaçamento que sofre o pedreiro com a queda.
Na realidade, a morte atrapalha. Desorganiza o mundo, perturba o tráfego, o público, o sábado. É a grande dissonância que transforma duplamente: pelo trombolho físico que um cadáver representa, fazendo, por exemplo, com que o tráfego tenha que ser desviado e que os carros andem na contramão (embora o texto desloque para o corpo o fato de ter caído na contramão); e ainda por um segundo aspecto: a necessidade não apenas de sobrevivência, mas também da reprodução da mão-de-obra desqualificada, sem o que o sistema entraria em colapso. Mas se a morte atrapalha, no entanto ela é o limite para o qual tende a reificação provocada pelo trabalho alienado. De “homem” o indivíduo passa a “máquina” (mundo reificado, mas com movimento) e logo a pacote (objeto, mas desprovido de movimento). E interessa ao público antes a máquina que o pacote.
Há assim dois grandes movimentos no texto: no primeiro deles, que compreende as quatro primeiras estrofes mais o verso 17, há uma pertinência quase impecável dos adjetivos em relação a seus substantivos, das orações subordinadas (no caso, comparativas) em relação a seus referentes. Do verso 18 em diante – isto é, depois que a morte foi introduzida no texto – a pertinência se perturba, se embaralha, revelando desarticulação. Compare-se, á guisa de ilustração, os diferentes graus de pertinência, por exemplo, entre:

a) Sentou pra descansar como se fosse sábado (v. 9) e

b) Sentou pra descansar como se fosse um pássaro (v. 38); ou

a) Dançou e gargalhou como se ouvisse música (v. 12) e

b) Dançou e gargalhou como se fosse o próximo (v. 29); ou ainda

a) E flutuou no ar como se fosse um pássaro (v. 14) e

b) E flutuou no ar como se fosse sábado (v. 31).

Em todos os versos a), os adjetivos ou termos comparativos são racionais, lógicos, pertinentes; nos b) o grau de pertinência diminui, quando não desaparece totalmente; embora o rígido esquema estrutural da canção continue o mesmo, em relação ao último termo de cada verso revela-se qualquer coisa de estranho, de desfocado, de incongruente, de inquietante – no limite, de desarticulado. É como se o corpo despedaçado do pedreiro – mimese do corpo social fragmentado, disperso e mutilado – contaminasse a linguagem do poema, desarticulando-a. Deflagra-se uma crise da linguagem.
O próprio caráter de coisa eminentemente “substituível” das proparoxítonas finais, manipuladas como tijolos, revela a sua pouca personificação. A mulher do pedreiro, tanto faz que seja a “única”, ou a “última”; o filho, “único”, ou “pródigo”, do mesmo jeito que as paredes, “sólidas”, “mágicas”, “flácidas”. As palavras são tão intercambiáveis quanto o ser humano reificado. E as alterações, ao fim de cada verso, são tão aleatórias que apenas reforçam a mesmice trágica daquela vida ou daquela morte? Além disso, o torneio sintático – irônico “como se” testemunha uma realidade vivida vicariamente: as personagens agem como se realizassem tais e tais gestos, quase que numa suposição.
Desse conjunto de realidades trocáveis, realçam-se umas tantas proparoxítonas, que aparecem com maior frequência (três vezes cada): último, máquina, sábado, príncipe, bêbado. Todas, extremamente significativas. Com efeito, “último(a)” revela a dramaticidade da cena fatal: a personagem é flagrada nos seus gestos rotineiros, cotidianos, repetitivos, mas executados pela última vez, porque depois sobrevirá a morte. “Último” torna-se assim uma proparoxítona patética, à altura da tragicidade que a cena exige. Por seu lado, “máquina” traduz um dos motivos mais importantes do poema, senão o mais importante, uma vez que o homem, reduzido a um desempenho de trabalho alienado, é desumanizado tanto no trabalho como no amor:

Subiu a construção como se fosse máquina
[...]
Amou daquela vez como se fosse máquina

Aqui mais uma vez uma equivalência entre o afetivo e o social (Marcuse: “Seu desempenho erótico é posto em alinhamento com seu desempenho social”), funcionando o trabalho alienado como instrumento anti-sexual privilegiado. Efetivamente, a compulsão ao trabalho dessensibiliza, embota o indivíduo (cf. “Seus olhos embotados de cimento e lágrima”; “Seus olhos embotados de cimento e tráfego”) e, no limite, o robotiza. Como pode amar um homem “embotado”, isto é, que perdeu o fio, o gume, o corte – o poder de penetração?
Por isso é que “sábado” – símbolo do fim de semana e, portanto, do lazer, aparece também insistentemente. Pois sábado – que significaria a possibilidade da liberação do trabalho compulsivo – surge pela primeira vez no poema pertinentemente, como metáfora de descanso. Mas no caso de pedreiro, trata-se do lazer negado, roubado, que é reservado ao...príncipe. Assim “príncipe” aparece para ressaltar o seu contrário. É referência indispensável numa sociedade de classes, marcando o grotesco da comparação.
Por seu lado, “bêbado” se remete diretamente à desarticulação. Há uma ligação eventual, sugerida, entre a bebedeira e a queda (sentou-comeu-bebeu e soluçou-dançou e gargalhou-tropeçou-flutuou-se acabou), assim como há uma ligação entre a bebedeira e o poder inebriante do ritmo. Do ritmo do trabalho mecânico, repetitivo, alienado, e que é mimetizado pelo ritmo do poema na sua repetividade. A desarticulação a que me referi pode ser figurada como uma “pertinência bêbada”.
Existe nesse poema a construção de uma queda e de uma morte, e devemos estar atentos ao realismo psicológico contido nessa metáfora. A ressonância emotiva do desfecho, no leitor, é demoradamente construída: a personagem é apresentada e ganha movimento, vida e densidade ao longo das estrofes. Suas entidade afetivas são convocadas: a mulher, os filhos. Revelam-se seus hábitos, modos de vida: basicamente os gestos no trabalho (pois todos sabemos que, na classe operária, é este o principal vínculo do indivíduo com a realidade); a hora do descanso; o que come; suas características físicas: “passo tímido”, “olhos embotados de cimento e lágrimas” – a deformação corporal devida ao trabalho. “Cimento e lágrimas”: junção de dois termos tão disparatados entre si, mas que formam a argamassa duma vida de pedreiro. E a queda em si é preparada, através de uma sequência quase cinematográfica: subiu-dançou-tropeçou-flutuou-se acabou-agonizou-morreu.
O pedreiro sobre para cair: é essa a única “ascensão” que a vida lhe permite.
Em “Construção” pode-se decodificar não apenas o “problema social” do operário não-qualificado, que se expõe à morte pela precariedade das condições de segurança no trabalho, mas, alargando-se o campo, pode-se ver aí a alegoria do corpo social fragmentado, de uma sociedade desintegrada e mutiladora, que isola os indivíduos.







segunda-feira, 2 de julho de 2012

CHRIS BURDEN: BODY ART E PERFORMANCE


Artista norte-americano, Chris Burden nasceu em 1946, em Boston, nos Estados Unidos da América. Estudou arquitetura no Pomona College de Clairmont, frequentando depois a Universidade da Califórnia. A partir dos anos 70, desenvolveu uma série de ações nas quais utilizou o próprio corpo como material de trabalho e de comunicação, assumindo-se como um dos protagonistas do movimento da Body Art nos Estados Unidos. A sua primeira apresentação pública data de 1971. Nas suas performances, era evidente a tendência para as ações mais extremas e radicais (quase suicidárias), através das quais procurava questionar algumas práticas sociais e tabus ligados à cultura contemporânea e, simultaneamente, colocar em causa a função da arte e a responsabilidade ética do artista. Nestas ações, Chris Burden sujeitou-se frequentemente a certo número de situações de grande violência e impacto sobre o próprio corpo, como forma a provocar reações na audiência e de abordar alguns medos e tabus íntimos, de caráter individual ou coletivo.
Noutros projetos conceptuais, desenvolvidos na década de 80, Burden abordou a problemática da comunicação de massas através da utilização da rádio ou da televisão. Estas propostas assumem-se menos radicais e violentas e dispensam muitas vezes o uso do próprio corpo enquanto veículo de expressão. Permitem-lhe também introduzir em seu trabalho, temáticas ligadas a questões políticas e sociais como, por exemplo, a Guerra Fria e a ecologia.
Nos anos 90, o artista revelou preferência pela realização de instalações através das quais procura relacionar-se de forma direta com o lugar onde estas se encontram, como se verifica, por exemplo, na peça La Tour des Trois-Museaux, de 1994.

Na performance “Shoot”, 1971, Burden é baleado no braço esquerdo por um assistente num manifesto à Guerra do Vietnã e à indústria de armas, quando “milhares de garotos da minha idade eram alvo de disparos”, lembra Burden. Tornou-se aí um dos precursores do body art.
Para “explorar” a violência, ele fez com que um amigo atirasse em seu braço diante dos convidados numa galeria de Los Angeles. O artista ao contratar alguém para lhe dar um tiro no braço consegue atiçar a curiosidade de quem adquire as fotos desse momento, despertando o modismo.

“Planejei tudo: era para a bala passar de raspão e fazer rolar só uma gota de sangue”, mais tarde explicou. Mas, o que era para ser um tiro de raspão atravessou o braço do artista. E ele passou por meses de terapia após o episódio.

Ainda em 1971, apresentou “Five Day Locker Piece”. O artista se trancou em um armário de 60 cm de largura X 60 cm de altura X 90 cm de profundidade, por cinco dias. Parou de comer vários dias antes de se trancar, tendo acesso apenas a garrafas de água no armário de cima. 


Em “Doorway to Heaven” (“Umbral do Céu”), de 1973, BURDEN ligou dois fios elétricos em seu peito nu, batendo o recorde de cintilação da aura numa impressionante fotografia. 






Uma das mais famosas peças de Burden, "Trans-fixed" teve lugar em 1974, no Autódromo Avenue, em Venice, na Califórnia. Neesta performance Burden deitou-se sobre um fusca e martelou pregos em ambas as mãos, como se ele estivesse sendo crucificado no carro.
O carro foi empurrado para fora da garagem e o motor ligado por dois minutos antes de ser empurrado de volta para a garagem.

Ainda em 1974, Burden apresentou “White Light / White Heat” na Galeria Ronald Feldman, em Nova York. Para este trabalho experimental do desempenho e do perigo de auto-infligir, Burden passou vinte e dois dias deitado em uma plataforma triangular no canto da galeria. Ele estava fora da vista de todos os espectadores que não podiam vê-los também.

Várias outras peças do desempenho de encargos foram consideradas um tanto controverso na época, por exemplo: Burden ficou parado em uma galeria de um museu em uma folha de vidro inclinada, com um relógio correndo nas proximidades. Sem o conhecimento dos proprietários museu, Chris estava preparado para ficar nessa posição até que alguém interferiu de alguma forma com a peça. Quarenta e cinco horas depois, um guarda do museu colocou um cântaro de água em uma curta distância a Burden, que, em seguida, quebrou o vidro, e tomou um martelo para o relógio, terminando assim a peça.

Em “Sem título”, 1974, o artista pegou o ônibus para ir trabalhar, mas como não tinha feito as unhas, furou com prego as próprias mãos. A foto é das mãos de Burden retratando as chagas de Cristo.


Em 1975 Burden criou o plenamente operacional “B-Car”, um carro para um passageiro, que ele descreveu como sendo "capaz de viajar 100 milhas por hora e atingir 100 milhas por galão". Tentou atravessar a fronteira da Holanda com a França dirigindo o veículo, mas foi impedido por policiais. Por não ter placa, a performance foi concluída com o carrinho sendo transportado de caminhão para o território francês, o que, para ele, tirava o sentido da obra.


Alguns de seus outros trabalhos desse período são “Diecimila” (1977), uma falsificação de uma nota italiana de 10.000 liras, possivelmente o primeiro trabalho de “fine arts” impresso de ambos os lados e a instalação CBTV (1977), uma reconstrução do primeiro feito televisão mecânica.

Em 1978 tornou-se professor na Universidade da Califórnia, Los Angeles, mas se demitiu em 2005 devido a uma controvérsia sobre a universidade, que alegou utilização incorreta de um estudante em sala de aula que ecoava um do próprio desempenho de peças Burden.

Em “The Speed of Light Machine” (1983), reconstruiu uma experiência científica para "ver" a velocidade da luz.

Em 1984, substituiu o corpo pela escultura. “Beam Drop” foi uma reação ao yuppismo ascendente, a ética do progresso individualista sob Ronald Reagan, e à especulação imobiliária que terminou de cobrir Manhattan de arranha-céus.
Burden compara sua escultura a um jogo de palitinhos e afirma “zombar da arquitetura”. “Estou sendo subversivo”, resume.
“É infantil jogar vigas de aço sem propósito dentro de um buraco, é brincar com a idéia de prédio moderno.”

“A bala que penetra a carne e as vigas que rasgam o concreto molhado parecem se mover à base de testosterona. (...) Você vê que algo muito violento aconteceu, onde entraram as vigas, os respingos de concreto, os arranhões", diz Burden. "É um evento catastrófico que ficou petrificado."


Nas palavras do curador de Inhotim, Rodrigo Moura, "cada viga que cai é como o corpo do artista". Burden vai além. "Se eu fosse Deus, faria todas as vigas caírem ao mesmo tempo", delira. "Eu prefiro sempre o caos."

"É como fazer sexo." Lançar mais de 70 vigas de aço de uma altura de 40 metros numa piscina de concreto molhado foi uma experiência quase erótica para o artista Chris Burden.

A obra teve mostras temporárias e permanentes. Burden havia montado a obra em 1984, no Art Park, em Nova York. Destruída alguns anos depois, refez em 2008 sua “Beam Drop” (queda de viga), em Inhotim. O resultado é uma mega escultura que ao mesmo tempo contrasta e se integra à paisagem, dá o seu recado, e por dentro cria efeitos e sensações que dependem do espectador.
O original foi destruído quando o governo do Estado americano viu que não podia bancar a manutenção do parque onde estava a escultura e limpou o terreno para oferecer aulas de pintura a dedo.


No topo do monte, as vigas tortas apontam para o céu. E o emaranhado de aço que parece brotar da terra vermelha desfaz qualquer noção de progresso associada à verticalidade. Sobre a mancha verde que abraça os pavilhões de Inhotim, Burden fez uma antiarquitetura disforme, espécie de monumento ao caos.
Em sua última passagem pelo Brasil, Burden remontou a escultura performática “Beam Drop”. O americano subiu uma montanha de Brumadinho, no interior mineiro, com caminhões, guindastes, ambulâncias, carro de bombeiro, uma equipe de assistentes e toneladas de vigas metálicas. Sob uma tenda de plástico, passou 12 horas vendo cada uma despencar no momento certo, repetindo uma escultura que fez há 25 anos em Nova York.


“Medusa’s Head” (1990): a cabeça da medusa; 426,7 cm de diâmetro; feito de cimento; trilho de trem; pedra, que apresenta dificuldade para transportar e necessita de um local apropriado para expor.


Em 1996, expôs seus encargos “Fist of Light” na Bienal de Whitney, em Nova York. Ela consistia de uma caixa de metal de tamanho de uma cozinha com centenas de lâmpadas de halogênio queimando por dentro. Foi necessária mais de uma dúzia de aparelhos de ar condicionado industrial para resfriar o quarto.

“Urban light” é um aceno: “isso soa piegas, mas quando você anda através das luzes para o museu, é como um caminho para a iluminação. É simbólico”.


São 202 postes da antiga rede de iluminação da cidade de Los Angeles, adquiridos ao longe de sete anos e restaurados por Burden em um longo processo, que culminou com a aquisição da obra pelo LACMA, o Los Angeles Country Museum.
As bases de exibição elaboram padrões florais e geométricos; os eixos de pregas e globos de vidro foram meticulosamente restaurados, pintados e remodelados para criar um brilho exuberante, dispostas de modo que o visitante possa caminhar entre eles.


Dispostos em formação cerrada, com o pé mais alto cerca de 30 metros no centro na parte de trás, ladeado por outros de diversas alturas e formas, com o menor pé cerca de 20 metros de altura, as luzes parecem com um pelotão de soldados prontos para marchar.

“Samson”, 1985, trata-se de um grande macaco-hidráulico colocado entre duas paredes da galeria, afastadas por uns 15 metros.


Na estrada da galeria, cada pessoa, para se aproximar da obra deveria passar por uma roleta que estava conectada ao mecanismo que a cada passagem pressionava um pouco mais o macaco contra a parede da galeria.
Um trabalho incrível que coloca o espectador como participante da destruição da obra e da galeria, ou se preferirmos, da transformação da obra.

Chris Burden é casado com a artista multimídia Nancy Rubins. Atualmente vive e trabalha em Los Angeles.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

VENCIDOS DA VIDA


“Os Vencidos da Vida”, quando juntos, o que pretendem é jantar, depois de jantar o que intentam é digerir, e, digestão finda, se alguma coisa ao longe miram, tanto pode ser um ideal como um water-closet. Não há aqui portanto razões para sobressaltos. Que “Os Vencidos da Vida” jantem em paz...”
                                                                                                                                    Fialho de Almeida.

O nome do grupo teve origem numa obra da biblioteca de Ramalho "La vie à Paris", de Jules Clareti, onde, a propósito dos jantares de intelectuais franceses, se falava em " battus de la vie".
Na Lisboa oitocentista, mais precisamente entre 1887 e 1889, um grupo de onze amigos desiludidos com a política dominante, e com a tentativa da sua reabilitação através do movimento surgido no Porto em 1885 com o nome de “Vida Nova”, passou a reunir-se semanalmente em jantares, no Restaurante Tavares, no Hotel Braganza ou na residência de um dos participantes que eram:

ABÍLIO MANUEL DE GUERRA JUNQUEIRO: formou-se em Direito na Universidade de Coimbra, seguindo depois a carreira administrativa, sendo deputado entre 1878 e 1891. Após a implantação da República, a cujo ideário há muito aderira, foi ministro de Portugal, na Suíça. Sendo um dos mais famosos e populares poetas do seu tempo, deixou obra que ainda hoje tem leitores fiéis, quer dos seus versos mais panfletários, quer dos mais líricos carregados de um humanismo panteísta.

ANTÔNIO CÂNDIDO RIBEIRO DA COSTA: sacerdote, formou-se em Teologia e Direito em Coimbra, onde depois foi professor. Chamado à capital, foi ministro, conselheiro de Estado, presidente da Câmara dos Pares e procurador geral da Coroa. Foi o maior orador do seu tempo, conhecido como “Àguia do Marão”, por ser natural de Amarante.

ANTÓNIO MARIA JOSÉ DE MELO SILVA CÉSAR E MENESES: também formado em Direito por Coimbra, seguiu a carreira diplomática, chegando a ministro plenipotenciário. Dedicou-se também à literatura, nomeadamente ao romance histórico e à descrição artística de monumentos. Foi 5º conde de Sabugosa desde 1879, representante do título de marquês do mesmo nome, além de conde de S. Lourenço.

BERNARDO PINHEIRO CORREIA DE MELO: filho do visconde de Pindela (Vila Nova de Famalicão), foi oficial de engenharia, tendo atingido o posto de general. Mas ficou mais conhecido como autor de peças de teatro de sucesso na época. Foi secretário de D. Carlos, que em 1895 o faz conde de Arnoso. Foi também grande amigo de Eça de Queirós.

CARLOS LIMA MAYER: frequentou a Universidade de Coimbra, depois a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, acabando o seu curso de Medicina na Bélgica e em Paris. Trocou depois a clínica pela gestão de empresas financeiras em Moçambique, Angola, Açores e Algarve. Suicidou-se em 1910.

CARLOS LOBO D’ÁVILA: formou-se em Direito em Coimbra, tendo-se depois dedicado ao jornalismo e à atividade política. Foi ministro das Obras Públicas e dos Negócios Estrangeiros. Em 1894 fundou a Câmara de Comércio e Indústria de Lisboa, morrendo no ano seguinte apenas com trinta e cinco anos.

FRANCISCO MANUEL DE MELO BREYNER: frequentou a Escola Politécnica de Lisboa, onde depois foi professor de Botânica, área em que se notabilizou com a publicação de diversos estudos sobre a flora portuguesa e ultramarina. Dirigiu a Instituto Agrícola e o Jardim Botânico de Lisboa. Foi feito conde de Ficalho.

JOAQUIM PEDRO DE OLIVEIRA MARTINS: foi administrador das minas de Almadén (Córdova, Espanha) e, a partir de 1874, diretor da construção da linha de caminho de ferro Porto-Póvoa de Varzim e depois diretor da sua exploração até 1888. No ano seguinte assumiu a direção da Administração Geral dos Tabacos, em Lisboa, tendo entretanto, recusado ser ministro da Fazenda, o que mais tarde, em 1892, vem a aceitar a pedido de D. Carlos, demitindo-se porém quatro meses depois por não ter apoio assegurado para a sua tentativa de equilibrar as contas do Estado. Em 1894 morre de tuberculose, aos quarenta e nove anos de idade. Deixou inúmeras obras publicadas no âmbito da Sociologia, da Economia e da Literatura historicista, as quais, ainda hoje, são lidas e reeditadas.

JOSÉ DUARTE RAMALHO ORTIGÃO: formou-se também em Direito na Universidade de Coimbra, tendo sido depois professor de francês no Colégio da Lapa, no Porto, dirigido por seu pai, onde conhece Eça de Queirós que aí foi seu aluno. Em 1870 está em Lisboa como oficial da secretaria da Academia das Ciências, tendo sido um dos mentores do Centenário de Camões, em 1880. Foi jornalista e escritor e um dos primeiros críticos de Arte em Portugal. Para além das obras que escreveu com Eça de Queirós (“O Mistério da Estrada de Sintra”, 1870; “As Farpas”, 1871, que prosseguiu sozinho de 1872 a 1887), publicou notáveis livros de viagens que ainda hoje se podem ler com agrado.

JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS: formou-se igualmente em Direito em Coimbra, tendo iniciado a sua vida profissional em 1867, como jornalista de “O Distrito”, de Évora. Em 1869 parte para o Egito e Palestina com o 5º conde de Resende, assistindo à inauguração do Canal de Suez. Em 1870 foi administrador do Concelho de Leiria, seguindo depois a carreira consular, que o levaria a Havana, onde protege os chineses contratados para trabalharem nas plantações da cana de açúcar, tendo em seguida visitado os Estados Unidos da América e o Canadá. Depois parte para Newcastle, Bristol e Paris, além de outras cidades. Além de jornalista, escreveu crônicas, contos, e sobretudo, notáveis romances em que o pitoresco e os localismos rapidamente se transformam em caricaturas universais, permanecendo os seus traços vivos até aos dias de hoje, em que continua a ser lido e apreciado em inúmeras traduções por todo o mundo.

Deste grupo dos “Vencidos da Vida” não fez parte Antero de Quental, que todos os que frequentaram a Universidade de Coimbra entre 1858 e 1864 conheciam pessoalmente e, por esse motivo, com ele se relacionaram várias das personalidades atrás referidas, tendo-se até batido em duelo com Ramalho Ortigão em 1865 por causa da “Questão Coimbrã”, reconciliando-se ambos mais tarde. Em 1873 regressa aos Açores, onde adoece de psicose maníaco-depressiva. Tendo voltado ao continente em 1881, pelo menos em 1884, convive na Granja (Vila Nova de Gaia) e no Porto, em 1884, com Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Oliveira Martins e Eça de Queirós.
Em 1890 dirige a Liga Patriótica do Norte e, perante o seu fracasso, regressa a Ponta Delgada, onde se suicida.
Também não fizeram parte do grupo Jaime Batalha Reis, Manuel de Arriaga, Teófilo Braga, José Fontana, Salomão Saragga, Adolfo Coelho, Augusto Soromenho, Germano Meireles e Guilherme de Azevedo, os quais, além de Antero, Eça e Oliveira Martins, participaram nas “Conferências do Casino”. Ou ainda: Andrade Corvo, António Enes, Alberto Sampaio, Fialho de Almeida e outros nomes incontornáveis na História da Cultura em Portugal, conhecidos como “Geração de 70”.
O grupo teve ainda um “confrade suplente” com quem os “efetivos” se encontravam no Paço de Belém: o príncipe D. Carlos, o qual era já então um esclarecido praticante de pintura e de estudos oceanográficos, que sobre ao trono, por morte do seu pai D. Luís, precisamente em 1889, o ano em que acabam os jantares do grupo todo; a partir daí muitos destes homens são chamados a por em prática as suas convicções e qualidades pessoais e os jantares tornam-se mais esporádicos e apenas entre alguns deles, até que acabaram de vez em 1893.
Para o Grupo dos Onze estar completo falta-nos apenas um confrade, de seu nome Luís Maria Pinto de Soveral, futuro marquês de Soveral.
Eça de Queirós, em resposta a Pinheiro Chagas, que satirizou o grupo, escreveu:

“(...) Onze sujeitos que há mais de um ano formam um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em pequenos grupos de direita e de esquerda; sem terem durante todo este tempo nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; (...); estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente para o futuro, na ordem das coisas morais, se falará dos Onze de Braganza, como na ordem das coisas heróicas se fala dos Doze de Inglaterra. Dissemos.”

Os principais motivos para essas reuniões jantantes, que chegaram a intrigar, e mesmo a preocupar, diversos setores da sociedade da época, eram, além da admiração e estima que tinham uns pelos outros, o patriótico desejo de colocar Portugal entre os países avançados da Europa de então. E para tal contavam por toda a sua inteligência e vontade ao serviço do príncipe D. Carlos, que em breve seria rei, com isso renascendo a esperança num país renovado e com uma política nova, onde a meritocracia fosse uma das bases. “Vencidos da Vida”, como a si próprios se denominaram, era assim um nome irônico que, se por um lado os identifica com a desilusão generalizada que grassava no país, por outro não os fazia desistir de vencerem para além do desengano. Surge, assim, a idealização vaga de uma aristocracia iluminada, contraponto do socialismo utópico.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

FLÁVIO DE CARVALHO E A "PERFORMANCE" NO BRASIL



I – INTRODUÇÃO:

Performance é uma forma de arte difícil de definir. Entre os seus ancestrais estão os ritos tribais, o teatro grego de improvisação e, mais recentemente, as noitadas futuristas (as chamadas serate) realizadas a partir de 1910, em que poesia e manifestos eram apresentados num ambiente explosivo e de nonsense. Essas noitadas estão na origem do Dadá, Surrealismo, Teatro do absurdo, das instalações e performance surgidas nas décadas de 1960-70, que introduziram a noção de que espaço e tempo (no sentido de duração mais do que da noção abstrata de tempo) constituem material de arte.
Mas a performance de hoje nasceu de uma integração entre os happenings e a Arte conceitual que ocorreu na década de 1970.
O performance geralmente é um artista plástico e a performance pode se realizar por meio de gestos intimistas ou numa grande apresentação de cunho teatral. Sua duração pode variar de alguns minutos a várias horas, acontecer apenas uma vez ou repetir-se em inúmeras ocasiões, realizando-se com ou sem um roteiro, improvisada na hora ou ensaiada durantes meses.
Sintetizando, a performance é a execução de um trabalho de arte diante de uma audiência viva, embora possa acontecer também como integração a outros meios, como vídeo, cinema, trabalhos de rua.
No Brasil, as performances tiveram como iniciador Flávio de Carvalho, em 1931.
A partir da década de 1960, atuaram José Roberto Aguilar, Marcello Nitsche, Tunga, Artur Barrio, Cildo Meireles e Otavio Donasci, que se destaca pelas singulares performances com suas videocriaturas.


II – PERFORMANCE NO BRASIL:


As ações artísticas de Flávio de Carvalho, desde sempre envolvidas em provocações, polêmicas e escândalos, já são consideradas como representativas dos primeiros movimentos da arte da performance no cenário artístico nacional.
No fim dos anos 30, o fluminense Flávio de Carvalho, que desde a Semana de Arte Moderna de 1922 morava em São Paulo, circulava pela cidade com uns desenhos debaixo do braço. À menor possibilidade de uma conversa mais duradoura, tratava logo de desenrolar os papéis e mostrava orgulhoso o que tinha certeza que se tornaria em breve uma invenção revolucionária: uma veneziana baratíssima, que ele projetara para ser vendida nas favelas brasileiras. Embriagado pelo engenho de sua recente criação, o artista provavelmente nem percebia as reações nada favoráveis à sua ideia que, claro, provou-se um fisco pouco tempo depois.  
Engenheiro, arquiteto, pintor expressionista de grande reconhecimento, sociólogo, escritor e artista experimental do corpo, Flávio de Carvalho nunca hesitava em colocar em prática o que passava em sua cabeça.
Flávio de Carvalho divide-se entre o personagem de deliciosas anedotas da São Paulo das décadas de 1930, 1940 e 1950, e o grande artista, autor de retratos e nus femininos que figuram entre as melhores obras de arte de seu tempo.
Ao lado dessas duas facetas existem ainda muitas outras porque, de fato, ele fez de tudo um pouco na vida: de projetos de arquitetura a ensaios sobre moda, de cenários para teatro a pinturas, de criações de design a performances, desafiando a todo instante os teóricos até então bastante afeitos a classificações.
Em uma tarde de junho de 1931, durante uma procissão de Corpus Christi que tomava a rua Direita, no centro da capital paulistana, Flávio caminhou em direção contrária ao da multidão, utilizando um acessório diferente durante todo o trajeto: um boné verde, em um sinal de total desrespeito ao ato religioso. Não satisfeito, ainda mexeu com as filhas de Maria. Só não foi linchado pela multidão em fúria porque conseguiu se refugiar em uma leiteria na rua São Bento, onde a polícia deu-lhe proteção. Com essa atitude, denominada “Experiência nº 2”, o artista concebeu um estudo de psicologia das multidões, analisando a reação dos fiéis enfurecidos frente àquela situação inusitada. Como um registro da ação, foi publicado posteriormente um livro de título homônimo e uma série de desenhos, em que explorou o jogo do preto-e-branco para enfatizar a ira despertada nos católicos.


Em seu relato, Flávio de Carvalho recorda-se de ter imaginado a própria morte enquanto se escondia, e a representa em seu livro por uma ilustração identificada pela legenda “assistia emocionado ao meu desmanchar”. Pela interpretação do episódio proposta pelo artista, inspirada em Frazer, “Origem da família e do clã” e Freud, “Psicologia das massas e análise do eu e Totem e tabu”, sua atitude desafiadora o transformara, aos olhos dos fiéis, num prolongamento do velho Deus pai e apenas seu assassinato poderia saciar o desejo de totemização do cortejo.
A “Experiência nº 2” pode ser vista como um eco da adesão do artista à Antropofagia, bem como uma aproximação ao surrealismo na qual à primeira provocação dirigida aos fiéis do cortejo se acrescenta uma segunda, dirigida à hierarquia da Igreja Católica, a dedicatória ao papa Pio XI e ao cardeal de São Paulo, D. Duarte Leopoldo, que abre o volume.

Uma breve descrição do episódio é apresentada por Antonio Carlos Robert Moraes (1986, p.31-33):

A grande procissão de Corpus Christi se arrasta lentamente pela Rua Direita em direção à Praça do Patriarca. Divide-se em alas – das velhas, dos pretos, das filhas-de-Maria, dos jovens burgueses – que avançam cantando. Um vulto se insurge contra ela, andando no sentido contrário. [...] Avança ameaçadoramente, sem tirar o chapéu. O clima começa a se tornar cada vez mais hostil. A ala dos pretos olha submissa, as velhas comentam indignadas. Alguém grita:

"Tira o chapéu!". [...] Lincha, lincha! É o grito que ecoa unânime entre a massa. Flávio sai em fuga, "atropelando freiras".

 Mais tarde, em 1956, também em São Paulo, o artista realizou a "Experiência nº 3", estudo da psicologia de massas, obra elaborada e desenvolvida como uma passeata no Viaduto do Chá. Na época, ele assinava uma coluna no jornal “Diário de São Paulo”, intitulada “A Moda e o Novo Homem”. Nela, o artista defendia associações no mínimo interessantes. Escreveu que os colarinhos altos começaram a ser usados pouco antes da Revolução Francesa e que, portanto, os castigos na guilhotina teriam influência das roupas do período. Ou ainda que os colares e pulseiras seriam reminiscências das correntes dos escravos. Quando o jornal pediu-lhe para desenhar uma indumentária masculina, Flávio não se contentou em mostrar o croqui. Resolveu promovê-lo pela cidade. O artista desfilou com saia e blusa de mangas curtas e bufantes o "Traje Tropical" – uma crítica ao vestuário de modelo europeu adotado em países de clima tropical como o nosso.
Com essa atitude de "antropofagia cultural", o artista apontou para as questões relacionadas ao olhar do estrangeiro sobre as ditas culturas "exóticas" e antecipou as discussões propostas pela vertente pós-colonial da performance muito explorada por artistas como Guillermo Gómez-Peña e Coco Fusco.






Grande parte de seus projetos de arquitetura também não foi para frente. Só dois acabaram realizados: em 1936, construiu-se o conjunto de 17 casas na esquina das alamedas Lorena e Ministro Rocha Azevedo, em São Paulo (apenas uma delas continua em pé hoje, mas muito modificada de seu desenho original); e, dois anos depois, sua fazenda Capuava, em Valinhos, atual patrimônio da família. Mesmo assim, os amigos caçoavam que as casas eram "frias no inverno, quentes no verão". Ainda nessa linha de lendas em torno de Flávio, colegas contavam que, do dia para a noite, o artista que não recusava um bom bife acompanhado de uma generosa dose de uísque anunciou-se vegetariano e passou a comer só coisas verdes e a beber limonada. Muito provavelmente, se alguém na época tivesse questionado a razão, ele responderia com outra pergunta: "Por que não?" Era assim que encarava o mundo. E isso incluía naturalmente a arte.
Para o bem da arte, seu espírito inventivo e irrequieto deixou pinturas capazes de fazer calar qualquer roda social empenhada em apenas se divertir ás custas de sua figura singular. O ponto alto de seu legado nas telas centra-se na forma como explorava as cores, com forte herança do expressionismo alemão, a ponto de desdenhar os pintores monocromáticos:

"São indivíduos dogmatizados dentro de um claustro e condenados ao cinzento da eternidade", escreveu certa vez.

Sem riscar esboços, Flávio trabalhava diretamente na tela e começava cada peça de um jeito, sempre em busca de captar algo além da aparência do modelo.
O escritor Mário de Andrade (1893-1945) foi um dos que reconheceu essa sua capacidade: "Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me assustado, pois nele vejo o lado tenebroso da minha pessoa, o lado que eu escondo dos outros",

Outro momento importante de sua carreira nessa área está em sua “Série Trágica”, feitos em 1947, os nove desenhos registram sua mãe à beira do leito de morte. As obras comovem porque nelas, além da técnica, Flávio voltou a ser quase um menino que, diante de uma cena sobre a qual não tinha o menor controle, pôs-se a desenhar.
Mas nem mesmo o maior crítico de arte brasileira de todos os tempos entendeu o artista. Em um texto de maio de 1957, no “Jornal do Brasil”, Mário Pedrosa escreveu:

"Flávio paga aqui o preço de um permanente amadorismo. O seu mal é a pluralidade de seus talentos, que vão desde os literários aos plásticos. O pior é que nenhum deles vive e isso o torna um diletante, um diletante genial em tudo, inclusive no senso de publicidade".