I –
INTRODUÇÃO:
Performance é uma forma de arte difícil de definir. Entre os seus
ancestrais estão os ritos tribais, o teatro grego de improvisação e, mais
recentemente, as noitadas futuristas (as chamadas serate) realizadas a partir
de 1910, em que poesia e manifestos eram apresentados num ambiente explosivo e
de nonsense. Essas noitadas estão na origem do Dadá, Surrealismo, Teatro do
absurdo, das instalações e performance surgidas nas décadas de 1960-70, que
introduziram a noção de que espaço e tempo (no sentido de duração mais do que
da noção abstrata de tempo) constituem material de arte.
Mas a performance de hoje nasceu de uma integração entre os happenings e a Arte conceitual que ocorreu na década de 1970.
O performance geralmente é um artista plástico e a performance pode
se realizar por meio de gestos intimistas ou numa grande apresentação de cunho
teatral. Sua duração pode variar de alguns minutos a várias horas, acontecer
apenas uma vez ou repetir-se em inúmeras ocasiões, realizando-se com ou sem um
roteiro, improvisada na hora ou ensaiada durantes meses.
Sintetizando, a performance é a execução de um trabalho de arte diante
de uma audiência viva, embora possa acontecer também como integração a outros
meios, como vídeo, cinema, trabalhos de rua.
No Brasil, as performances tiveram como iniciador Flávio de Carvalho,
em 1931.
A partir da década de 1960, atuaram José Roberto Aguilar, Marcello
Nitsche, Tunga, Artur Barrio, Cildo Meireles e Otavio Donasci, que se destaca
pelas singulares performances com suas videocriaturas.
II –
PERFORMANCE NO BRASIL:
As ações artísticas de Flávio de Carvalho, desde sempre envolvidas em
provocações, polêmicas e escândalos, já são consideradas como representativas
dos primeiros movimentos da arte da performance no cenário artístico
nacional.
No fim dos anos 30, o fluminense Flávio de Carvalho, que desde a Semana
de Arte Moderna de 1922 morava em São Paulo, circulava pela cidade com uns
desenhos debaixo do braço. À menor possibilidade de uma conversa mais
duradoura, tratava logo de desenrolar os papéis e mostrava orgulhoso o que
tinha certeza que se tornaria em breve uma invenção revolucionária: uma
veneziana baratíssima, que ele projetara para ser vendida nas favelas
brasileiras. Embriagado pelo engenho de sua recente criação, o artista
provavelmente nem percebia as reações nada favoráveis à sua ideia que, claro,
provou-se um fisco pouco tempo depois.
Engenheiro, arquiteto, pintor expressionista de grande reconhecimento,
sociólogo, escritor e artista experimental do corpo, Flávio de Carvalho nunca
hesitava em colocar em prática o que passava em sua cabeça.
Flávio de Carvalho divide-se entre o personagem de deliciosas anedotas da
São Paulo das décadas de 1930, 1940 e 1950, e o grande artista, autor de
retratos e nus femininos que figuram entre as melhores obras de arte de seu
tempo.
Ao lado dessas duas facetas existem ainda muitas outras porque, de fato,
ele fez de tudo um pouco na vida: de projetos de arquitetura a ensaios sobre
moda, de cenários para teatro a pinturas, de criações de design a performances,
desafiando a todo instante os teóricos até então bastante afeitos a
classificações.
Em uma tarde de junho de 1931, durante uma procissão de Corpus Christi
que tomava a rua Direita, no centro da capital paulistana, Flávio caminhou em
direção contrária ao da multidão, utilizando um acessório diferente durante
todo o trajeto: um boné verde, em um sinal de total desrespeito ao ato
religioso. Não satisfeito, ainda mexeu com as filhas de Maria. Só não foi
linchado pela multidão em fúria porque conseguiu se refugiar em uma leiteria na
rua São Bento, onde a polícia deu-lhe proteção. Com essa atitude, denominada
“Experiência nº 2”, o artista concebeu um estudo de psicologia das multidões,
analisando a reação dos fiéis enfurecidos frente àquela situação inusitada.
Como um registro da ação, foi publicado posteriormente um livro de título
homônimo e uma série de desenhos, em que explorou o jogo do preto-e-branco para
enfatizar a ira despertada nos católicos.
Em seu relato, Flávio de Carvalho recorda-se de ter imaginado a própria
morte enquanto se escondia, e a representa em seu livro por uma ilustração
identificada pela legenda “assistia emocionado ao meu desmanchar”. Pela
interpretação do episódio proposta pelo artista, inspirada em Frazer, “Origem
da família e do clã” e Freud, “Psicologia das massas e análise do eu e Totem e
tabu”, sua atitude desafiadora o transformara, aos olhos dos fiéis, num
prolongamento do velho Deus pai e apenas seu assassinato poderia saciar o
desejo de totemização do cortejo.
A “Experiência nº 2” pode ser vista como um eco da adesão do artista à
Antropofagia, bem como uma aproximação ao surrealismo na qual à primeira
provocação dirigida aos fiéis do cortejo se acrescenta uma segunda, dirigida à
hierarquia da Igreja Católica, a dedicatória ao papa Pio XI e ao cardeal de São
Paulo, D. Duarte Leopoldo, que abre o volume.
Uma breve descrição do episódio é apresentada por Antonio Carlos Robert
Moraes (1986, p.31-33):
A grande procissão de Corpus Christi se arrasta lentamente pela Rua
Direita em direção à Praça do Patriarca. Divide-se em alas – das velhas, dos pretos,
das filhas-de-Maria, dos jovens burgueses – que avançam cantando. Um vulto se
insurge contra ela, andando no sentido contrário. [...] Avança ameaçadoramente,
sem tirar o chapéu. O clima começa a se tornar cada vez mais hostil. A ala dos
pretos olha submissa, as velhas comentam indignadas. Alguém grita:
"Tira o chapéu!". [...] Lincha, lincha! É o grito que ecoa
unânime entre a massa. Flávio sai em fuga, "atropelando freiras".
Mais tarde, em
1956, também em São Paulo ,
o artista realizou a "Experiência nº 3", estudo da psicologia de
massas, obra elaborada e desenvolvida como uma passeata no Viaduto do Chá. Na
época, ele assinava uma coluna no jornal “Diário de São Paulo”, intitulada “A
Moda e o Novo Homem”. Nela, o artista defendia associações no mínimo
interessantes. Escreveu que os colarinhos altos começaram a ser usados pouco
antes da Revolução Francesa e que, portanto, os castigos na guilhotina teriam
influência das roupas do período. Ou ainda que os colares e pulseiras seriam
reminiscências das correntes dos escravos. Quando o jornal pediu-lhe para
desenhar uma indumentária masculina, Flávio não se contentou em mostrar o
croqui. Resolveu promovê-lo pela cidade. O artista desfilou com saia e blusa de
mangas curtas e bufantes o "Traje Tropical" – uma crítica ao
vestuário de modelo europeu adotado em países de clima tropical como o nosso.
Com essa atitude de "antropofagia cultural", o artista apontou
para as questões relacionadas ao olhar do estrangeiro sobre as ditas culturas
"exóticas" e antecipou as discussões propostas pela vertente
pós-colonial da performance muito explorada por artistas como Guillermo
Gómez-Peña e Coco Fusco.
Grande parte de
seus projetos de arquitetura também não foi para frente. Só dois acabaram
realizados: em 1936, construiu-se o conjunto de 17 casas na esquina das
alamedas Lorena e Ministro Rocha Azevedo, em São Paulo (apenas uma delas
continua em pé hoje, mas muito modificada de seu desenho original); e, dois
anos depois, sua fazenda Capuava, em Valinhos, atual patrimônio da família.
Mesmo assim, os amigos caçoavam que as casas eram "frias no inverno,
quentes no verão". Ainda nessa linha de lendas em torno de Flávio, colegas
contavam que, do dia para a noite, o artista que não recusava um bom bife
acompanhado de uma generosa dose de uísque anunciou-se vegetariano e passou a
comer só coisas verdes e a beber limonada. Muito provavelmente, se alguém na época tivesse questionado a razão,
ele responderia com outra pergunta: "Por que não?" Era assim que
encarava o mundo. E isso incluía naturalmente a arte.
Para
o bem da arte, seu espírito inventivo e irrequieto deixou pinturas capazes de
fazer calar qualquer roda social empenhada em apenas se divertir ás custas de
sua figura singular. O ponto alto de seu legado nas telas centra-se na forma
como explorava as cores, com forte herança do expressionismo alemão, a ponto de
desdenhar os pintores monocromáticos:
"São
indivíduos dogmatizados dentro de um claustro e condenados ao cinzento da
eternidade", escreveu certa vez.
Sem
riscar esboços, Flávio trabalhava diretamente na tela e começava cada peça de
um jeito, sempre em busca de captar algo além da aparência do modelo.
O
escritor Mário de Andrade (1893-1945) foi um dos que reconheceu essa sua
capacidade: "Quando defronto o retrato feito pelo Flávio, sinto-me
assustado, pois nele vejo o lado tenebroso da minha pessoa, o lado que eu
escondo dos outros",
Outro
momento importante de sua carreira nessa área está em sua “Série Trágica”, feitos em 1947, os nove desenhos
registram sua mãe à beira do leito de morte. As obras comovem porque nelas,
além da técnica, Flávio voltou a ser quase um menino que, diante de uma cena
sobre a qual não tinha o menor controle, pôs-se a desenhar.
Mas
nem mesmo o maior crítico de arte brasileira de todos os tempos entendeu o
artista. Em um texto de maio de 1957, no “Jornal do Brasil”, Mário Pedrosa
escreveu:
"Flávio
paga aqui o preço de um permanente amadorismo. O seu mal é a pluralidade de
seus talentos, que vão desde os literários aos plásticos. O pior é que nenhum
deles vive e isso o torna um diletante, um diletante genial em tudo, inclusive
no senso de publicidade".
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