terça-feira, 27 de julho de 2010

Cartas

Olha que preciosidade! Divido com vocês:

"As duas cartas abaixo foram cedidas por Chico Buarque de Holanda
a Caique Botkay que as publicou no livro "Achados", uma coletânea de coisas
que jamais seriam publicadas. Todos os "achados" são inéditos.
Eis o processo de criação e de elaboração poética ao vivo e a cores - no
caso da letra de "Valsinha", composição de Chico que faz sucesso até hoje.”




DE VINICIUS DE MORAES PARA CHICO BUARQUE


Mar del Plata, 24 de janeiro de 1971

Chiquérrimo,

Dei uma apertada linda na sua letra, depois que você partiu, porque achei
que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela, sobre aqueles hiatos
que havia, adicionando duas ou três idéias que tive. Mandei-a em carta a
você, mas Toquinho, com a cara mais séria do mundo, me disse que Sérgio
[Buarque de Hollanda] morava em Buri, 11, e lá se foi a carta para Buri, 11.

Mas, como você me disse no telefone que não tinha recebido, estou mandando
outra para ver se você concorda com as modificações feitas.
Claro que a letra é sua, e eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral.
Às vezes o cara de fora vê melhor essas coisas.
Enfim, porra, aí vai ela. Dei-lhe o nome de "Valsa hippie", porque parece-me
que tua letra tem esse elemento hippie que dá um encanto todo moderno à
valsa, brasileira e antigona. Que é que você acha? O pessoal aqui, no
princípio, estranhou um pouco, mas depois se amarrou na idéia. Escreva logo,
dizendo o que você achou.

"Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito mais quente do que comumente costumava olhar
E não falou mal da poesia como mania sua de falar
E nem deixou-a só num canto; pra seu grande espanto disse: vamos nos amar...

Aí ela se recordou do tempo em que saíam para namorar
E pôs seu vestido dourado cheirando a guardado de tanto esperar

Depois os dois deram-se os braços como a gente antiga costumava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a bailar...
E logo toda a vizinhança ao som daquela dança foi e despertou
E veio para a praça escura, e muita gente jura que se iluminou

E foram tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouviam mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu em paz".


DE CHICO BUARQUE PARA VINÍCIUS DE MORAES



Caro poeta,

Recebi as duas cartas e fiquei meio embananado. É que eu já estava cantando
aquela letra, com hiato e tudo, gostando e me acostumando a ela. Também
porque, como você já sabe, o público tem recebido a valsinha com o maior
entusiasmo, pedindo bis e tudo. Sem exagero, ela é o ponto alto do show,
junto com o "Apesar de você". Então dá um certo medo de mudar demais. Enfim,
a música é sua e a discussão continua aberta. Vou tentar defender, por
pontos, a minha opinião. Estude o meu caso, exponha-o a Toquinho e Gesse, e
se não gostar foda-se, ou fodo-me eu.
"Valsa hippie" é um título forte. É bonito, mas pode parecer forçação de
barra, com tudo que há de hippie por aí. "Valsa hippie" ligado à filosofia
hippie como você a ligou, é um título perfeito. Mas hippie, para o grande
público, já deixou de ser filosofia para ser a moda pra frente de se usar
roupa e cabelo. Aí já não tem nada a ver. Pela mesma razão eu prefiro que o
nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar
mal da poesia. A sua solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela
diminui o efeito do que se segue. Esse homem da primeira estrofe é o
anti-hippy. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está
com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer,
neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou "xingou" mesmo) a vida
tanto e convidou-a pra rodar.
"Convidou-a pra rodar" eu gosto muito, poeta, deixa ficar. Rodar que é dar
um passeio e é dançar. Depois eu acho que, se ele já for convidando a
coitada para amar, perde-se o suspense do vestido no armário e a tesão da
trepada final. "Pra seu grande espanto", você tem razão, é melhor que "para
seu espanto". Só que eu esqueci que ia por itens.
Vamos lá:
* Apesar do Orestes (vestido de dourado é lindo), eu gosto muito do som do
vestido decotado. É gostoso de cantar “vestidodecotado”. E para ficar dourado,
o vestido fica com o acento tendendo para a primeira sílaba. Não chega a ser
um acento, mas é quase. Esse verso é, aliás, o que mais agrada, em geral. E
eu também gosto do decotado ligado ao "ousar" que ela não queria por causa
do marido chato e quadrado. Escuta, ô poeta, não leva a mal a minha
impertinência, mas você precisava estar aqui para ver como a turma gosta, e
o jeito dela gostar dessa valsa, assim à primeira vista. É por isso que
estou puxando a sardinha mais para o lado da minha letra, que é mais
simplória, do que pelas suas modificações que, enriquecendo os versos,
talvez dificultem um pouco a compreensão imediata. E essa valsinha tem um
apelo popular que nós não suspeitávamos.
* Ainda baseado no argumento acima, prefiro o "abraçar" ao "bailar". Em
suma, eu não mexeria na segunda estrofe.
* A terceira é a que mais me preocupa. Você está certo quanto ao "o mundo"
em vez de "a gente". Ah, voltando à estrofe anterior, gostei do último
versos onde você diz "e cheios de ternura e graça" em vez de "e foram-se
cheios de graça". Agora, estou pensando em retomar uma ideia anterior,
quando eu pensava em colocá-los em estado de graça. Aproveitando a sua
ternura, poderíamos fazer "Em estado de ternura e graça foram para a praça e
começaram a se abraçar". Só tem o probleminha da junção "em-estado", o
"em-e" numa sílaba só. Que é o mesmo problema do "começaram-a". Mas você
mesmo disse que o probleminha desaparece dependendo da maneira de se cantar.
E eu tenho cantado "começaram a se abraçar" sem maiores danos. Enfim, veja
aí o que você acha de tudo isso, desculpe a encheção de saco e responda
urgente.
* Há um outro problema: o pessoal do MPB-4 está querendo gravar essa valsa
na marra. Eu disse que depende de sua autorização e eles estão aqui
esperando. Eu também gostaria de gravar, se o senhor me permitisse, por que
deu bolo com o "Apesar de você", tenho sido perturbado e o disco deixou de
ser prensado. Mas deu para tirar um sarro. É claro que não vendeu tanto
quanto a "Tonga", mas a "Banda" vendeu mais que o disco do Toquinho solando
"Primavera".
Dê um abraço na Gesse, um beijo no Toquinho e peça à Silvana
para mandar notícias sobre shows etc. Vou escrever a letra como me parece
melhor. Veja aí e, se for o caso, enfie-a no ralo da banheira ou noutro
buraco que você tiver à mão.

"Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar
Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar
E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar
E nem deixou-a só num canto, pra seu grande espanto convidou-a pra rodar

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar
Com seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar
Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar
E cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar

E ali dançaram tanta dança que a vizinhança toda despertou
E foi tanta felicidade que toda a cidade enfim se iluminou
E foram tantos beijos loucos
Tantos gritos roucos como não se ouvia mais
Que o mundo compreendeu
E o dia amanheceu
Em paz."

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