[in Jornal OPOVO, 07.04.2005]
Iracema vista de fora, d'além Ceará. Em entrevista por e-mail, a professora paulistana Marisa Lajolo discorre sobre a obra-prima de José de Alencar
O POVO - Distante do contexto em que foi elaborado, Iracema ganha as ressalvas de ''um nacionalismo idealizador, indianista e ufanista da Independência e do Romantismo''. Mas o que significou, à sua época, a história poética da colonização nacional, contada por José de Alencar a partir do amor entre o branco e o índio? Gostaria que a senhora considerasse também o fato de Iracema ter recebido críticas, por exemplo, de Franklin Távora, José Castilho e Joaquim Nabuco (o romance, apesar de ser a obra mais popular de José de Alencar, não foi ''unanimidade nacional'').
Marisa Lajolo - Não creio que ser ou deixar de ser ''unanimidade nacional'' define a importância de um romance. Talvez até seja o contrário: a polêmica é o que de mais interessante uma obra pode causar. E um dos críticos que você cita - o Castilho - é personagem de um caso curioso de política literária mais do que de crítica literária: português e irmão do famoso escritor português que participou da Questão Coimbrã (em síntese, uma polêmica literária, em 1865, envolvendo nomes como António Feliciano de Castilho e Antero de Quental e que abriu portas para o Realismo português), talvez lesse os escritores brasileiros com olhos - digamos - ''lusitanizantes''. Acho que não podia gostar mesmo do que lia...
OP - O ''indianismo romântico'' (não só de José de Alencar; lembremo-nos também de Gonçalves Dias) mantinha a fidelidade com um País há pouco liberto. Era necessária a invenção de ''um passado heróico, mítico, lendário'', a construção de ''arquétipos de nacionalidade'' (aspas de estudiosos). A quem servia José de Alencar, escritor e político, naquele momento: ao povo, ou à pátria?
Marisa - A questão está colocada de forma um pouco retumbante: pátria versus povo é artilharia demais para mim. E também não saberia usar o verbo ''servir'' para discutir escritores e literatura. Não acho que a literatura ''sirva'' a um ou a outro segmento social, exceto em casos mais raros e explícitos de literatura militante - como a de Castro Alves, que pretendia servir (e efetivamente serviu!) à causa abolicionista. Mas penso que um escritor escreve sempre para alguém, para um grupo de pessoas. E não creio que, ao tempo de Alencar, houvesse muitos leitores disponíveis entre o que hoje consideramos as classes populares.
OP - Antes de Iracema, José de Alencar tinha escrito os romances Cinco Minutos (1856), O Guarani e A Viuvinha (1857), Lucíola (1862) e Diva (1864). Depois, viriam tantos outros (O Gaúcho, O Tronco do Ipê, Senhora, O Sertanejo...). Há uma linha-mestra entre eles, influências recíprocas/intra-literárias -atentando-se para o fato de que foi em Iracema que Alencar mesmo explicitou o objetivo de uma literatura nacional? Iracema é a sua maior obra, aliás? Um divisor de águas em sua literatura?
Marisa - Iracema é a melhor obra de José de Alencar. Creio que ela expressa muito bem o caráter mestiço de nossa cultura em seus vários níveis: começa pelo o enredo, com a união de Iracema e Martim; prossegue na tentativa de criação de uma língua literária brasileira com elementos portugueses e elementos indígenas; e arremata-se no forte substrato de oralidade com que Alencar torna cearense, brasileira e latino americana as matrizes do gênero romance que importamos da Europa e que foi preciso transculturar.
OP - Ao preparar esta entrevista, deparei-me com a informação de que Iracema teria inspiração direta do livro Atala e Renée (escrito pelo francês Chateaubriand, em 1801). Na obra estrangeira, tem-se, justamente, a construção dessa imagem do ''bom selvagem''. A senhora percebe ligações entre Alencar e Chateaubriand, por exemplo? Ou entre Alencar e outros autores com quem se acostumou a fazer o diálogo (Alexandre Dumas, Alfredo de Vigny, Victor Hugo, Walter Scott, o próprio Machado de Assis...)?
Marisa - Um autor sempre escreve um pouco daquilo que lê... E Alencar, com certeza, leu seus contemporâneos d'além mar. Mas sua Iracema é originalíssima, tropical e brasileira.
OP - À época da publicação de Iracema, 1865, qual era o contexto literário mundial e como José de Alencar atuava nesse cenário maior? Ele e Iracema tinha/tiveram projeção e influência noutros países?
Marisa - O contexto literário mundial, na segunda metade do século XIX, parece que já deixava para trás o clima romântico e as paisagens bucólicas, migrando para o que, depois, passou a ser conhecido como Realismo. Madame Bovary, de Flaubert, é de 1857. Mas o gosto pelo exótico, pelas paisagens distantes e misteriosas - como era a América para a Europa leitora daquela época - não desapareceu. Muito cedo, o livro de Alencar teve traduções para diferentes línguas e, portanto, parece ter circulado para além das fronteiras verde-amarelas (Lajolo se refere a traduções para o inglês e o espanhol, uma delas realizada pela esposa de Richard Burton - diplomata inglês que morou em Santos/SP, no século XIX).
OP - O escritor José de Alencar tinha um projeto de ''brasilidade'' para o teatro e a literatura. (Ao que parece, obteve êxito na sua empreitada; legou-nos os romances indianistas, históricos, regionalistas e urbanos apontados como sínteses possíveis dos vários ''Brasis''). Em Iracema, ele deixou claro: ''Verás realizadas nele minhas idéias a respeito da literatura nacional''. A prosa poética vinda da língua indígena é uma dessas idéias. O que mais pode ser visto, nesse sentido, em Iracema?
Marisa - A moldura do romance - representada pelas cartas que, respectivamente, o abrem e fecham -, a definição da obra como ''lenda'' e as constantes alusões a ter o livro sido inspirado por ''histórias ouvidas'' é a grande marca de brasilidade do livro. Marcas de oralidade numa cultura de uma tradição leitora tão rarefeita como a nossa têm uma importância muito grande.
OP - É possível separar linguagem e conteúdo (em uma obra como Iracema)? Porque - se são vistos, hoje, aspectos ''artificiais de nossas origens e o perfil europeizante e cavalheiresco de nosso índio'' (aspas de críticos modernistas) - a linguagem brasileira deste poema em prosa não é atingida pelos estilhaços (ainda hoje é ressaltada como original e moderna)...
Marisa - Não sei se entendi a pergunta. Ela parece apontar para uma perspectiva crítica negativa face ao conteúdo do livro e positiva face à linguagem dele. Se é isso mesmo, acho difícil defender a posição, já que para mim conteúdo e linguagem não se descolam um do outro.
OP - No prólogo da primeira edição de Iracema, José de Alencar oferece: ''O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul (...). Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os murmures do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros''. O que torna a ''lenda do Ceará'' universal?
Marisa - Depende do que se entende por universal. Posso fazer uma leitura política de Iracema na qual se leia a morte dela como expiação pela traição de seu povo. Ou como imagem da destruição de uma cultura nativa pela invasão estrangeira. Nesta última interpretação, Iracema faria parte de uma linhagem de mulheres indígenas que morrem no bojo de uma relação amorosa assimétrica: penso aqui em Moema e em Lindóia como antepassadas de Iracema. Ou seja, os traços de ''feminino'' e de ''invadido'' podem universalizá-la.
OP - Uma obra se torna clássica também por se tornar atemporal. Além de estar inserida na época determinada em que foi produzida (e refleti-la), ela vai adquirir, em tempos mais distantes, outros significados, novas leituras. Como a senhora transporta Iracema, hoje, para a sala de aula da Unicamp (São Paulo)?
Marisa - No curso de Romantismo brasileiro que me coube neste semestre, decidi privilegiar Iracema. Um pouco como homenagem aos 140 anos da obra, mas também porque a obra permite discutir bem a questão da formação de um sistema literário brasileiro. Para quem escrevia José de Alencar? Que rastros da leitura possível, no Brasil daquele tempo, podemos desentranhar do livro? O projeto literário que Alencar explicita na obra faz sentido para o Brasil de hoje? Para mim o curso está sendo uma chance de discutir estas questões, que considero importantes. Mas tem também o lance de preparar meus alunos, futuros professores, para trabalharem Iracema com seus futuros alunos de ensino fundamental e médio, para os quais a discussão acadêmica talvez não tenha importância nenhuma. Além de ser uma obra canônica, é uma obra muito musical, sonora e, portanto, ideal para leitura em voz alta, tentando resgatar, num curso de Letras, o prazer (e a competência) da leitura oral bem feita.
OP - E o que pode nos dizer sobre a recepção desse clássico, atualmente, pelos alunos? O que tem sido explorado, por exemplo, em trabalhos de pesquisa sobre Iracema, hoje?
Marisa - Não conheço muito extensamente a atual produção sobre a obra dele. Alguns trabalhos que discutem, por exemplo, o protagonismo de Iracema são interessantes. Feminismo avant la lettre? Acho que não, mas não deixa de ser interessante a observação de que todas as iniciativas amorosas, no livro, são tomadas por Iracema. Por outro lado, a discussão dos efeitos de sentido dos rodapés de Alencar também sugerem que ele próprio tinha consciência dos riscos da recepção do livro e tomava todas as providências a seu alcance para que esta recepção fosse a que ele desejava. Neste sentido, tanto as cartas ao Dr. Jaguaribe quanto os rodapés são caminhos promissores para os tão necessários estudos da recepção pretendida por Alencar para esta sua obra.
OP - Há quem defenda os 140 anos da publicação de Iracema como data importante também ''por reafirmar a dimensão de um mito num País que confere pouco valor aos seus heróis''. Mito e herói não são patamares que mais afastam do que aproximam? Como torná-los (os mitos e os heróis do passado nacional) presentes?
Marisa - No caso de Iracema, acho que a questão de afastamento não se coloca. Iracema não ameaça nada nem ninguém. O leitor solidariza-se, sofre com ela e chora sua morte. Iracema é simultaneamente forte e frágil. Até certo ponto, é dona de sua vontade. Mas essa autonomia tem limites e termina por conduzi-la à morte. Mas parece que muitos leitores se identificam positivamente com ela. É assim, pelo menos, que se pode interpretar o grande números de meninas que recebem seu nome, talvez por via de lembranças de leitura de seus pais - o mais das vezes, aliás, de suas mães... Essa popularidade do nome, e as constantes re-escrituras da história em diferentes linguagens, tornam Iracema uma figura muito familiar, muito presente na cultura brasileira. Imagino que uma forma original e instigante de celebrarmos seus 140 anos seria presentificá-la de forma radical. Através, por exemplo, da construção de um belo hipertexto do romance. Com todas as possibilidades de cruzamentos e referências entre diferentes linguagens, que o meio eletrônico permite, um hipertexto traria Iracema definitivamente para o século XXI!
Iracema vista de fora, d'além Ceará. Em entrevista por e-mail, a professora paulistana Marisa Lajolo discorre sobre a obra-prima de José de Alencar
O POVO - Distante do contexto em que foi elaborado, Iracema ganha as ressalvas de ''um nacionalismo idealizador, indianista e ufanista da Independência e do Romantismo''. Mas o que significou, à sua época, a história poética da colonização nacional, contada por José de Alencar a partir do amor entre o branco e o índio? Gostaria que a senhora considerasse também o fato de Iracema ter recebido críticas, por exemplo, de Franklin Távora, José Castilho e Joaquim Nabuco (o romance, apesar de ser a obra mais popular de José de Alencar, não foi ''unanimidade nacional'').
Marisa Lajolo - Não creio que ser ou deixar de ser ''unanimidade nacional'' define a importância de um romance. Talvez até seja o contrário: a polêmica é o que de mais interessante uma obra pode causar. E um dos críticos que você cita - o Castilho - é personagem de um caso curioso de política literária mais do que de crítica literária: português e irmão do famoso escritor português que participou da Questão Coimbrã (em síntese, uma polêmica literária, em 1865, envolvendo nomes como António Feliciano de Castilho e Antero de Quental e que abriu portas para o Realismo português), talvez lesse os escritores brasileiros com olhos - digamos - ''lusitanizantes''. Acho que não podia gostar mesmo do que lia...
OP - O ''indianismo romântico'' (não só de José de Alencar; lembremo-nos também de Gonçalves Dias) mantinha a fidelidade com um País há pouco liberto. Era necessária a invenção de ''um passado heróico, mítico, lendário'', a construção de ''arquétipos de nacionalidade'' (aspas de estudiosos). A quem servia José de Alencar, escritor e político, naquele momento: ao povo, ou à pátria?
Marisa - A questão está colocada de forma um pouco retumbante: pátria versus povo é artilharia demais para mim. E também não saberia usar o verbo ''servir'' para discutir escritores e literatura. Não acho que a literatura ''sirva'' a um ou a outro segmento social, exceto em casos mais raros e explícitos de literatura militante - como a de Castro Alves, que pretendia servir (e efetivamente serviu!) à causa abolicionista. Mas penso que um escritor escreve sempre para alguém, para um grupo de pessoas. E não creio que, ao tempo de Alencar, houvesse muitos leitores disponíveis entre o que hoje consideramos as classes populares.
OP - Antes de Iracema, José de Alencar tinha escrito os romances Cinco Minutos (1856), O Guarani e A Viuvinha (1857), Lucíola (1862) e Diva (1864). Depois, viriam tantos outros (O Gaúcho, O Tronco do Ipê, Senhora, O Sertanejo...). Há uma linha-mestra entre eles, influências recíprocas/intra-literárias -atentando-se para o fato de que foi em Iracema que Alencar mesmo explicitou o objetivo de uma literatura nacional? Iracema é a sua maior obra, aliás? Um divisor de águas em sua literatura?
Marisa - Iracema é a melhor obra de José de Alencar. Creio que ela expressa muito bem o caráter mestiço de nossa cultura em seus vários níveis: começa pelo o enredo, com a união de Iracema e Martim; prossegue na tentativa de criação de uma língua literária brasileira com elementos portugueses e elementos indígenas; e arremata-se no forte substrato de oralidade com que Alencar torna cearense, brasileira e latino americana as matrizes do gênero romance que importamos da Europa e que foi preciso transculturar.
OP - Ao preparar esta entrevista, deparei-me com a informação de que Iracema teria inspiração direta do livro Atala e Renée (escrito pelo francês Chateaubriand, em 1801). Na obra estrangeira, tem-se, justamente, a construção dessa imagem do ''bom selvagem''. A senhora percebe ligações entre Alencar e Chateaubriand, por exemplo? Ou entre Alencar e outros autores com quem se acostumou a fazer o diálogo (Alexandre Dumas, Alfredo de Vigny, Victor Hugo, Walter Scott, o próprio Machado de Assis...)?
Marisa - Um autor sempre escreve um pouco daquilo que lê... E Alencar, com certeza, leu seus contemporâneos d'além mar. Mas sua Iracema é originalíssima, tropical e brasileira.
OP - À época da publicação de Iracema, 1865, qual era o contexto literário mundial e como José de Alencar atuava nesse cenário maior? Ele e Iracema tinha/tiveram projeção e influência noutros países?
Marisa - O contexto literário mundial, na segunda metade do século XIX, parece que já deixava para trás o clima romântico e as paisagens bucólicas, migrando para o que, depois, passou a ser conhecido como Realismo. Madame Bovary, de Flaubert, é de 1857. Mas o gosto pelo exótico, pelas paisagens distantes e misteriosas - como era a América para a Europa leitora daquela época - não desapareceu. Muito cedo, o livro de Alencar teve traduções para diferentes línguas e, portanto, parece ter circulado para além das fronteiras verde-amarelas (Lajolo se refere a traduções para o inglês e o espanhol, uma delas realizada pela esposa de Richard Burton - diplomata inglês que morou em Santos/SP, no século XIX).
OP - O escritor José de Alencar tinha um projeto de ''brasilidade'' para o teatro e a literatura. (Ao que parece, obteve êxito na sua empreitada; legou-nos os romances indianistas, históricos, regionalistas e urbanos apontados como sínteses possíveis dos vários ''Brasis''). Em Iracema, ele deixou claro: ''Verás realizadas nele minhas idéias a respeito da literatura nacional''. A prosa poética vinda da língua indígena é uma dessas idéias. O que mais pode ser visto, nesse sentido, em Iracema?
Marisa - A moldura do romance - representada pelas cartas que, respectivamente, o abrem e fecham -, a definição da obra como ''lenda'' e as constantes alusões a ter o livro sido inspirado por ''histórias ouvidas'' é a grande marca de brasilidade do livro. Marcas de oralidade numa cultura de uma tradição leitora tão rarefeita como a nossa têm uma importância muito grande.
OP - É possível separar linguagem e conteúdo (em uma obra como Iracema)? Porque - se são vistos, hoje, aspectos ''artificiais de nossas origens e o perfil europeizante e cavalheiresco de nosso índio'' (aspas de críticos modernistas) - a linguagem brasileira deste poema em prosa não é atingida pelos estilhaços (ainda hoje é ressaltada como original e moderna)...
Marisa - Não sei se entendi a pergunta. Ela parece apontar para uma perspectiva crítica negativa face ao conteúdo do livro e positiva face à linguagem dele. Se é isso mesmo, acho difícil defender a posição, já que para mim conteúdo e linguagem não se descolam um do outro.
OP - No prólogo da primeira edição de Iracema, José de Alencar oferece: ''O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul (...). Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os murmures do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros''. O que torna a ''lenda do Ceará'' universal?
Marisa - Depende do que se entende por universal. Posso fazer uma leitura política de Iracema na qual se leia a morte dela como expiação pela traição de seu povo. Ou como imagem da destruição de uma cultura nativa pela invasão estrangeira. Nesta última interpretação, Iracema faria parte de uma linhagem de mulheres indígenas que morrem no bojo de uma relação amorosa assimétrica: penso aqui em Moema e em Lindóia como antepassadas de Iracema. Ou seja, os traços de ''feminino'' e de ''invadido'' podem universalizá-la.
OP - Uma obra se torna clássica também por se tornar atemporal. Além de estar inserida na época determinada em que foi produzida (e refleti-la), ela vai adquirir, em tempos mais distantes, outros significados, novas leituras. Como a senhora transporta Iracema, hoje, para a sala de aula da Unicamp (São Paulo)?
Marisa - No curso de Romantismo brasileiro que me coube neste semestre, decidi privilegiar Iracema. Um pouco como homenagem aos 140 anos da obra, mas também porque a obra permite discutir bem a questão da formação de um sistema literário brasileiro. Para quem escrevia José de Alencar? Que rastros da leitura possível, no Brasil daquele tempo, podemos desentranhar do livro? O projeto literário que Alencar explicita na obra faz sentido para o Brasil de hoje? Para mim o curso está sendo uma chance de discutir estas questões, que considero importantes. Mas tem também o lance de preparar meus alunos, futuros professores, para trabalharem Iracema com seus futuros alunos de ensino fundamental e médio, para os quais a discussão acadêmica talvez não tenha importância nenhuma. Além de ser uma obra canônica, é uma obra muito musical, sonora e, portanto, ideal para leitura em voz alta, tentando resgatar, num curso de Letras, o prazer (e a competência) da leitura oral bem feita.
OP - E o que pode nos dizer sobre a recepção desse clássico, atualmente, pelos alunos? O que tem sido explorado, por exemplo, em trabalhos de pesquisa sobre Iracema, hoje?
Marisa - Não conheço muito extensamente a atual produção sobre a obra dele. Alguns trabalhos que discutem, por exemplo, o protagonismo de Iracema são interessantes. Feminismo avant la lettre? Acho que não, mas não deixa de ser interessante a observação de que todas as iniciativas amorosas, no livro, são tomadas por Iracema. Por outro lado, a discussão dos efeitos de sentido dos rodapés de Alencar também sugerem que ele próprio tinha consciência dos riscos da recepção do livro e tomava todas as providências a seu alcance para que esta recepção fosse a que ele desejava. Neste sentido, tanto as cartas ao Dr. Jaguaribe quanto os rodapés são caminhos promissores para os tão necessários estudos da recepção pretendida por Alencar para esta sua obra.
OP - Há quem defenda os 140 anos da publicação de Iracema como data importante também ''por reafirmar a dimensão de um mito num País que confere pouco valor aos seus heróis''. Mito e herói não são patamares que mais afastam do que aproximam? Como torná-los (os mitos e os heróis do passado nacional) presentes?
Marisa - No caso de Iracema, acho que a questão de afastamento não se coloca. Iracema não ameaça nada nem ninguém. O leitor solidariza-se, sofre com ela e chora sua morte. Iracema é simultaneamente forte e frágil. Até certo ponto, é dona de sua vontade. Mas essa autonomia tem limites e termina por conduzi-la à morte. Mas parece que muitos leitores se identificam positivamente com ela. É assim, pelo menos, que se pode interpretar o grande números de meninas que recebem seu nome, talvez por via de lembranças de leitura de seus pais - o mais das vezes, aliás, de suas mães... Essa popularidade do nome, e as constantes re-escrituras da história em diferentes linguagens, tornam Iracema uma figura muito familiar, muito presente na cultura brasileira. Imagino que uma forma original e instigante de celebrarmos seus 140 anos seria presentificá-la de forma radical. Através, por exemplo, da construção de um belo hipertexto do romance. Com todas as possibilidades de cruzamentos e referências entre diferentes linguagens, que o meio eletrônico permite, um hipertexto traria Iracema definitivamente para o século XXI!
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