quinta-feira, 29 de julho de 2010

Vidas Secas - Graciliano Ramos

II GERAÇÃO MODERNISTA NO BRASIL – PROSA (1930 – 1945)

“Nós, no Brasil, queremos, acima de tudo, nos encontrar com o povo, que andava perdido. E podemos dizer que encontramos este povo fabuloso, espalhado nos mais distantes recantos de nossa terra. O romance de nossos dias está todo batido nesta massa, está todo composto com a carne e o sangue de nossa gente. O mestre Manuel Antônio de Almeida, em 1850, nos dera o roteiro. O segredo era chegar até o povo. Ele tinha todo o oiro, toda a alma, todo o sangue para nos dar a verdadeira grandeza. Sem ele não haveria eternidade. Sem o povo não haveria eternidade. O nosso romance tem um século. Justamente em 1843 publicava-se no Brasil o primeiro romance. Levamos uns anos para chegar ao povo. Hoje podemos dizer, já podemos afirmar: o povo é em nossos dias heróis de nossos livros. Isto equivale a dizer que temos uma literatura.” (José Lins do Rego, Tendências do Romance Brasileiro)

1– LOCALIZAÇÃO:

A prosa modernista da segunda geração modernista brasileira, a fase da “consolidação”, inicia-se em 1928, com a publicação da obra A Bagaceira, de José Américo de Almeida, verdadeiro marco na estória literária do Brasil. Sua importância deve-se mais à temática (a seca, os retirantes, o engenho), e ao caráter social do romance, do que aos valores estéticos e irá se desenvolver até 1945, com a Segunda Guerra Mundial e a eufórica democracia, após Getúlio Vargas ter sido deposto. Nessa busca do homem brasileiro "espalhado nos mais distantes recantos de nossa terra", no dizer de José Lins do Rego, o regionalismo ganha uma importância até então não alcançada na literatura brasileira, levando ao extremo as relações da personagem com o meio natural e social. O primeiro romance representativo do regionalismo nordestino, que teve seu ponto de partida no Manifesto Regionalista de 1926, este manifesto, elaborado pelo Centro Regionalista do Nordeste, procura desenvolver o sentimento de unidade do Nordeste dentro dos novos valores modernistas. Propõe trabalhar em prol dos interesses da região nos seus aspectos diversos: sociais, econômicos e culturais.

2 – CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:

“Até 1930, o Brasil ainda era governado pela oligarquia café-com-leite, que monopolizava o poder desde 1894. Outrora muito poderosa, a aristocracia cafeeira viu seu poder econômico e político declinar durante a década de 1920”. (Nicolina Luiza de Petta e Eduardo Aparício Baez Ojeda, História – uma abordagem integrada).
“A situação política no Brasil em 1928 e 1929 revelou que, ultrapassando a simples disputa entre forças conservadoras diferentes, estava em curso uma luta de classes que opunha irredutivelmente as classes dominantes, fossem elas ligadas à agricultura ou à indústria, e as classes trabalhadoras, do campo e da cidade” (Edgar de Decca, O silêncio dos vencidos).




O PERÍODO DE 1930 a 1945 E OS EFEITOS DA CRISE
PANORAMA MUNDIAL:

O período que vai de 1930 a 1945 talvez tenha testemunhado as maiores transformações ocorridas neste século. A década de 1930 começa sob o forte impacto da crise iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, seguida pelo colapso do sistema financeiro internacional: é a Grande Depressão, caracterizada por paralisações de fábricas, rupturas nas relações comerciais, falências bancárias, altíssimo índice de desemprego, fome e miséria generalizada. Assim, cada país procura solucionar internamente a crise, mediante a intervenção do Estado na organização econômica. Ao mesmo tempo, a Depressão leva ao agravamento das questões sociais e ao avanço dos partidos socialistas e comunistas, provocando choques ideológicos, principalmente com as burguesias nacionais, que passam a defender um Estado autoritário, pautado por um nacionalismo conservador, por um militarismo crescente c por uma postura anticomunista e antiparlamentar - ou seja, um Estado fascista. É o que ocorre na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco e no Portugal de Salazar. O desenvolvimento do nazifascismo e de sua vocação expansionista, o crescente militarismo e armamentismo, somados às frustrações geradas pelas derrotas na I Guerra Mundial: este é, em linhas gerais, o quadro que levaria o mundo à II Guerra Mundial (1939-1945) e ao horror atômico de Hiroxima e Nagasáqui (agosto de 1945).

PANORAMA BRASILEIRO:

No Brasil, 1930 marca o ponto máximo do processo revolucionário, ou seja, é o fim da República Velha, do domínio das velhas oligarquias ligadas ao café e o início do longo período em que Vargas permaneceu no poder.
A eleição de 1º de março de 1930 para a sucessão de Washington Luís representava a disputa entre o candidato Getúlio Vargas, em nome da Aliança Liberal, que reunia Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, e o candidato oficial Júlio Prestes, paulista, que contava com o apoio das demais unidades da Federação. O resultado da eleição foi favorável a Júlio Prestes; entretanto, entre a eleição e a posse, que se daria em novembro, estoura a Revolução de 30, em 3 de outubro, ao mesmo tempo que a economia cafeeira sente os primeiros efeitos da crise econômica mundial.
A Revolução de 30, que levou Getúlio Vargas a um governo provisório, contava com o apoio da burguesia industrial, dos setores médios e dos tenentes responsáveis pelas revoltas na década de 1920 (exceção feita a Luís Carlos Prestes, que, no exílio, havia optado claramente pelo comunismo). Desenvolve-se, assim, uma política de incentivo à industrialização e à entrada de capital norte-americano, em substituição ao capital inglês.
Uma tentativa contra-revolucionária partiu de São Paulo, em 1932, como resultado da frustração dos paulistas com a Revolução de 30: a oligarquia cafeeira sentia-se prejudicada pela política econômica de Vargas; as classes médias e a burguesia temiam as agitações sociais; e, para coroar o descontentamento, Vargas havia nomeado um interventor pernambucano para São Paulo. A chamada Revolução Constitucionalista explodiu em 9 de julho, mas não logrou êxito. Se Guilherme de Almeida foi o poeta da Revolução paulista, tendo produzido vários textos ufanistas, Oswald de Andrade foi seu romancista crítico, como atesta seu livro Marco zero - a revolução melancólica.
Ainda em 32, a ideologia fascista encontra ressonância no nacionalismo exacerbado do Grupo Verde-Amarelo, liderado por Plínio Salgado, fundador da Ação Integralista Brasileira. Ao mesmo tempo crescem no Brasil as forças de esquerda. Em 1934, elas formam uma frente única: a ANL - Aliança Nacional Libertadora. Tornam-se frequentes os choques entre a extrema-direita e os membros da ANL, até que o governo federal manda fechá-la, por "atividade subversiva de ordem política e social", em julho de 1935. Entretanto, na clandestinidade, a ANL tenta uma revolução, em novembro desse mesmo ano, "contra o imperialismo e o fascismo" e "por um governo popular nacional revolucionário". Os revoltosos previam uma rebelião militar imediatamente acompanhada por revoltas populares, mas o movimento não foi além de três unidades militares, logo derrotadas; milhares de pessoas foram aprisionadas, e o governo obteve um pretexto para endurecer o regime.
Getúlio Vargas, auxiliado pelos integralistas, inicia sua ditadura em 10 de novembro de 1937. O chamado Estado Novo será um longo período antidemocrático, anticomunista, baseado num nacionalismo conservador e na idolatria de um chefe único: Getúlio Vargas. Essa situação se prolongará até 29 de outubro de 1945, quando, pressionado, Getúlio renuncia.
Tudo isso, formou um campo propício ao desenvolvimento de um romance caracterizado pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo um elevado grau de tensão nas relações do indivíduo com o mundo. Como relata os historiadores acima citados, o painel brasileiro dos anos 30, passava por uma transformação político-social, dando espaço para uma literatura engajada, de denúncia social e documental do verdadeiro retrato do Brasil.

3 – CARACTERÍSTICAS:

Envolvidos com a crise econômica e política da época, a Segunda Geração Modernista, ocupou-se com a discussão e a retratação da realidade brasileira gerada pela ditadura que se instalou no Brasil com Getúlio Vargas e as relações entre o homem e o mundo.
“Em 30 nós vivemos o problema do realismo, ou neo-realismo, socialista ou não, bem como a incorporação daquilo que as vanguardas do decênio anterior tinham proposto como inovação. Vivemos um grande surto do romance, ligado aos pontos de vista opostos na moda pela sociologia e a antropologia, como um triunfo do social contraposto às tendências espiritualistas e religiosas. Houve dilaceramentos e disputas, com a formação de um antipólo metafísico e as mais rasgadas polêmicas que marcaram todos nós.”
Antonio Candido, Companhia das Letras, 1993

A prosa de 1930 é chamada de Neo-Realismo pela retomada de alguns aspectos do Realismo- Naturalismo, contudo, com características particulares preservadas.
A literatura estava voltada para a realidade brasileira como forma de manifestar as recentes crises sociais e inquietações da implantação do Estado Novo do governo Vargas e da Primeira Guerra Mundial.
Os romancistas observam com olhos críticos a realidade brasileira, as relações entre o homem e a sociedade. Pelo fato dos romancistas deste período adotar como componente o lado emocional das personagens, faz com que esta fase se diferencie do Naturalismo, onde este item foi descartado.
O segundo tempo modernista é marcado pela consolidação das propostas da fase heróica (1922) ao mesmo tempo pelo afastamento do seu radicalismo.
Os autores dessa época adotaram um modernismo mais moderado, voltado para a realidade social e espiritual do Brasil.
A prosa modernista da segunda geração desenvolveu-se em duas tendências: o romance regionalista do Nordeste e o romance psicológico ou intimista.
Nesse clima de denúncia da realidade brasileira, os escritores nordestinos se destacaram porque presenciaram a passagem de um Nordeste medieval para um nordeste inserido na nova realidade capitalista e imperialista. Graciliano Ramos não seria exceção. Engajado nesse clima de denúncia e vivenciando essa nova realidade, procurou exprimir em seus romances toda essa gama de mudanças sociais e psicológicas pelas quais passava o nordeste. Apesar de ser bem viajado e de conhecer costumes de outras terras, foi no Nordeste que encontrou solo propício ao desenvolvimento dos seus romances. Ele respirava nordeste. Comia nordeste. Vivia o nordeste. Tal constatação se explica em suas linhas romanescas, nas quais procurou imprimir sua marca registrada – o cotidiano da psicologia nordestina.

4-AUTOR:

"Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social, mas, nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer"


GRACILIANO RAMOS
(Quebrângulo, Alagoas, 1892 – Rio de Janeiro, 1953)

“Graciliano Ramos é um retratista sem fundo. Tudo nele se concentra no que é o homem, no que é a tragédia de ser homem. Os seus romances, por esta maneira, ganharam em profundidade, em análise sem piedade, sem síntese desesperada.”
José Lins do Rego

Nasceu em Quebrângulo (Alagoas) e mudou-se para Maceió, onde concluiu seus estudos secundários. Transfere-se para o Rio de Janeiro e em seguida, retorna a Palmeiras dos Índios, Alagoas, dedicando-se ao jornalismo e à política.
Em 1928, foi eleito prefeito da cidade e em 1933, nomeado diretor de Instrução Pública, sendo demitido por motivos políticos.
Preso por atividades subversivas sem, contudo, ter sido acusado formalmente, percorreu vários presídios durante um ano, sofrendo muitas humilhações.
Em 1945, filiou-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1952 viaja para os países socialistas do Leste Europeu.
Faleceu no Rio de Janeiro.

OBRAS:

Romance: Caetés
São Bernardo
Angústia
Vidas Secas
Conto: Insônia
Memória: Infância
Memórias do Cárcere
Viagem
Linhas Tortas
Viventes das Alagoas
Literatura Infantil: Histórias de Alexandre
Dois Dedos
Histórias Incompletas

“Representa, em termos de romance moderno brasileiro, o ponto mais alto da tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou. Cada personagem projeta as faces angulosas da opressão e da dor, cada obra é uma ruptura. Escrevendo sobre o signo dialético por excelência do conflito, Graciliano Ramos compôs uma série de romances cuja descontinuidade é sintoma de um espírito pronto à indagação, à fratura, ao problema. Isso explica a disparidade da linguagem. Cada romance é um questionamento novo, que propõe uma linguagem adequada.” (Alfredo Bosi)

“O realismo de Graciliano não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível. E o romancista encontra no trato analítico dessa máscara a melhor fórmula de fixar as tensões sociais como primeiro motor de todos os comportamentos”. (Alfredo Bosi)



5 – OBRA: “VIDAS SECAS” (1938)

“O que me interessa é o homem, e homem daquela região aspérrima. Julgo que é a primeira vez que esse sertanejo aparece em literatura. (...) Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e da injustiça humana. Por pouco que o selvagem pense – e os meus personagens são quase selvagens – o que ele pensa merece anotação. (...) A minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda. As pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não têm tempo de abraçar-se. Até a cachorra é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos”.
Vale à pena lembrarmos, da diferença existente entre este sertanejo e o sertanejo romântico, o herói, de José de Alencar.

5.1. ESTRUTURA E TEMÁTICA:

Curiosa foi à escolha do título. A gráfica chegaria a compor O mundo coberto de penas, o mesmo nome do nono capítulo. Mas acabaria mudando. Um dos amigos sugerira Vidas amargas; Graciliano pensara em Fuga, nome de outro capítulo, mas seria de Daniel Pereira , irmão de José Olympio o palpite vencedor: Graciliano, esse título , O mundo coberto de penas, não tem nada a ver com seu romance . Tinha que ser alguma coisa que retratasse melhor esses seus personagens, que têm umas vidas secas ... (O velho Graça , p. 165)
"Vidas Secas" é, sem dúvida alguma, uma obra de arte incomparável. No romance ajustam-se perfeitamente:- linguagem, tema, desenvolvimento e objetivos. O fato dos capítulos serem quase independentes não prejudica a unidade da obra. Ao contrário. A vida, a realidade, a própria verdade também são fragmentadas. A ordem dos fatos, das coisas é uma ilusão, fruto de uma convenção (como a própria língua), de maneira que ao escrever um romance fragmentado que pretende retratar ou recriar a "realidade fragmentada" do sertanejo, Graciliano Ramos não fez mais do que adequar a vida à arte.
A obra é comporta por treze capítulos autônomos, que se encaixam de forma descontínua, com um raro talento artístico. Para alguns, “Vidas Secas” pertence a um gênero intermediário entre romance e livro de contos; é formado de cenas e episódios mais ou menos isolados; mas de tal forma solidários que só no contexto adquirem sentido pleno. A continuidade textual explícita somente se opera entre os capítulos 10 /11 e 12/13.
A idéia de escrever os capítulos como se fossem contos era um artifício utilizado pelo escritor pra ganhar mais dinheiro, publicando-os isoladamente em jornais e revistas à medida que os produzia.
Francisco de Assis Barbosa ao vasculhar os originais, comprovaria a ausência de seguimento na narrativa. “Baleia”, o nono capítulo, foi escrito em 4 de maio de 1937. Um mês depois escreveria “Sinha Vitória”, o quarto capítulo. E “Mudança”, o primeiro na ordem de apresentação, só seria escrito em 16 de julho do mesmo ano. Depois de todos os episódios reunidos, Graciliano ordenou-os para a publicação. Por isso, alguns acham Vidas Secas um romance “desmontável”. O sentimento da terra nordestina é o fio condutor da narrativa, materializado nos ásperos e cruéis embates do homem com a natureza da região. Para tanto se encaminhou para descrição e o estudo das relações humanas em sociedade, lugares, paisagens, cenas, épocas, acontecimentos, personagens-padrão, tipos sociais, convenções, usos e costumes do país, criando assim uma tradição literária de mostrar o Brasil, ou seja, ampliar a visão da terra e do homem brasileiro.
Entretanto, face a desejada e imposta exigência da verossimilhança nos temas regionais era muito difícil atingi-la, pois “a língua e os costumes descritos eram próximos aos da cidade, apresentando difícil problema de estilização: de respeito a uma realidade que não se podia fantasiar” (Antonio Candido, j.c., p 116), pelo que restou certo artificialismo no gênero.
Assim, na década de 30, “o panorama literário apresentava em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaísmo social”.
”A sua paisagem nos é familiar: o Nordeste decadente, as agruras das classes médias no começo da fase urbanizadora, os conflitos internos da burguesia provinciana e cosmopolita”. (Alfredo Bossi, j. c., p. 434/435).
Neste panorama, se faz a contextualização de Vidas Secas no quadro da literatura de 30, vez que, a obra com as matizes do regionalismo, faz um retrato real, cruel e brutal das relações sociais, nitidamente, feudais imperantes no Nordeste do Brasil na época, servindo para demonstrar de forma violenta, com traços do realismo, que aqueles fatos embora até aceitos pela sociedade local, causavam graves lesões ao tecido da pessoa humana, por isto há menos tipos, espaços e condições exóticas, todas inerentes e exigidas pela tradição regionalista do século XIX, que assim, ganha novos contornos, onde a realidade sócio-econômica, também passa a ter grande e quiçá maior relevo.
Por tais motivos, Vidas Secas é uma obra pela sua formação e conteúdo singular na literatura, embora faça uma análise das condições sociais do Nordeste do Brasil o que é inerente ao contexto da literatura da época.
Graciliano Ramos penetra no pensamento, na carne e na alma de cada um dos membros da família de Fabiano, visando mostrar de forma brutal a discriminação, a cultura e a realidade do sertanejo nordestino.
O “sentido da vida” ou os porquês de tantas desgraças são os temas pelos quais tudo de desenrola, aliás o próprio título da obra endossa esta tese, vez que seca, na linguagem popular, segundo o Aurélio, tem o significado de “má sorte” ou azar, portanto Vidas Secas tem a inteligência de Vidas sem sorte, o que reporta à razão e ao sentido desta existência desafortunada.

5.2. FOCO NARRATIVO E LINGUAGEM:

“Vidas Secas” é o último romance de Graciliano Ramos e o único narrado em terceira pessoa.
“O narrador não quer identificar-se com o personagem, e por isso há na sua voz uma certa objetividade de relatar. Mas quer fazer às vezes do personagem, de modo que, sem perder a própria identidade, sugere a dele. É como se o narrador fosse, não um intérprete mimético, mas alguém que institui a humanidade de seres que a sociedade põe à margem, empurrando-os para a fronteira da animalidade. Aqui, a animalidade reage e penetra pelo universo reservado, em geral, ao adulto civilizado.” (Antônio Cândido)

Não se trata de um narrador onisciente; mas, de um narrador que relata com objetividade, clareza e precisão, ao mesmo tempo, humanizando as personagens e traduzindo o silêncio que as caracteriza. Utilizando-se do uso do discurso indireto livre, de monólogos interiores e do fluxo de consciência das personagens, o narrador converte o silêncio em palavras que elas não sabem dizer.

“Estão presentes a correção de escrita e a suprema expressividade da linguagem, assim como a secura da visão de mundo e o acentuado pessimismo, tudo marcado pela ausência de qualquer chantagem sentimental ou estilística. (...) E o de encher linguiça é um dos motivos de sua eminência, de escritor que só dizia o essencial e, quanto ao resto, preferia o silêncio. (...) Entre o nada primordial anterior ao texto, e o risco de acabar em nada devido à insatisfação posterior, se equilibra a sua obra essencial, uma das poucas em nossa literatura que parece melhor com a passagem do tempo, porque mais válida à medida que a lemos de novo”, afirma Antônio Cândido.

A obra de Graciliano Ramos destoa dos outros modernistas, por criar um estilo próprio: uma linguagem direta, concisa e de economia vocabular; um “herói” problemático, onde o regionalismo da paisagem, só é relevante na medida em que interage com o psicológico.

Outra característica marcante é a falta de diálogo entre os membros da família, o narrador substitui os diálogos, por pensamentos, pensamentos estes em que ele ocupa o lugar da personagem, seja ele humano ou animal, mesmo assim, se utiliza de expressões regionais, adequando-os à sintaxe tradicional. A ausência de diálogos se faz presente devido a uma ausência vocabular por parte das personagens, que se comunicam através de onomatopéias, exclamações, resmungos e gestos, enfatizando a animalização das personagens e a solidão, marcante da vida de todos os membros da família, que são marginalizados também pelo fator lingüístico. Assim, há a predominância do discurso indireto livre ou através de monólogos interiores, onde o narrador ordena logicamente os discursos e pensamentos das personagens.
Deste modo, foi resolvido o gargalo literário do nível de linguagem, pois a tradição do regionalismo dá um tom caricatural à linguagem culta de um pretenso personagem que por sua condição jamais poderia possuir.
A linguagem empregada é próxima do coloquial. O uso constante de expressões próprias do cotidiano nordestino dá uma maior verossimilhança à estória, transportando o leitor para o universo criado pela obra. Como recurso expressivo predomina as prosopopéias e as metáforas. As questões linguísticas levantadas ao longo da obra dão uma idéia clara do drama das personagens, isolados, confinados a um grupo reduzido de pessoas em virtude da precária comunicação.

“Linguagem: o uso da palavra articulada (na voz) ou escrita como meio de expressão e de comunicação entre pessoas” (Aurélio: 2001, 35). Eis nestas duas definições o argumento que nos permite afirmar que os indivíduos retratados nos romances em análise “não possuem linguagem” e estão sempre envoltos numa conflituosa busca pela mesma. Se a interação entre interlocutores é o princípio fundador da linguagem, é evidente que no mundo de “Vidas Secas” não há condições para tal realização, portanto, essa linguagem não se desenvolveria, visto que presenciamos indivíduos calados por natureza, reinando entre os mesmos uma comunicação rudimentar, muitas vezes metaforizando a linguagem de animais, entes rudes, mergulhados num silêncio constante, que só se permitiam o diálogo em situações extremas e ainda assim, de forma muito grotesca: “Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos calados, raramente soltavam palavras curtas. (Vidas Secas: 2004, 11)”. “[Fabiano] Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais. (...) E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro [cavalo] entendia”. (Vidas Secas: 2004,19).
Eis aqui nestes trechos a prova de que as situações, instituições e ambientes, como escola, família e seca (que pressupõe fome), não constituem condições propensas ao desenvolvimento da fala, dos discursos. A escola cala, a família cala, a seca cala. O silêncio é o todo poderoso, só ele reina, absoluto.
É perceptível no decorrer da leitura de Vidas Secas, a existência de sujeitos de certa forma insatisfeitos com a situação de obscuridade em que viviam. O uso reforça o mergulho no mundo interior, no universo mental fragmentado das personagens. Os questionamentos são inevitáveis: Fabiano admira a inteligência de seu Tomás da Bolandeira, queria ser como ele, ter habilidade com as palavras. Sem dúvida algo lhes faltava, e é com Lacan (1988, 45) que chegamos a essa conclusão, visto que já dizia o autor: “A existência humana está determinada pela busca inconsciente de um ‘objeto absoluto’, cuja falta nos priva da sensação de plenitude supostamente experimentada num período de pré-consciência”. Ora, Fabiano, Sinhá Vitória, O Menino Mais Velho, O Menino Mais Novo, seres “ensimesmados”, semimudos, fechados na ignorância e no analfabetismo, vivem de ruminar o mundo incompreensível a sua volta, as palavras sem sentido. De certa forma empreendem uma conflituosa busca por uma linguagem (o objeto de desejo), intuindo que somente o domínio desta pode levá-los a compreender a natureza hostil e a enfrentar de modo menos desigual na luta diária com os falantes da cidade, o patrão, a autoridade injusta do soldado. Ainda segundo Lacan, é como linguagem que o inconsciente se estrutura. A busca pelo objeto (linguagem) seria inevitável, visto que, pressupõe a consciência de uma “falta”, no mínimo incômoda para os que a experimentam. Advém desta concepção, refletir que: a busca por algo, quase sempre implica tropeços, desencontros e frustrações inevitáveis. Para qualquer tentativa de realização, cabe ao ser humano ter consciência da necessidade de enfrentar grandes obstáculos e ainda trabalhar com a hipótese de não concretização de seus desejos. É neste ponto que caminhamos com Freud, que nos obriga a repensar à questão da satisfação da pulsão, que muitas vezes pode desembocar numa sublimação.
“Como defesa contra o sofrimento decorrente da não saciedade das pulsões, a sublimação é das mais eficientes, além de ser extremamente flexível de possibilitar satisfações substitutas” (FREUD:1980,153). Ora, se como já foi dito, o inconsciente busca pela linguagem em Vidas Secas e esta busca é conflituosa, pois as condições são nada favoráveis, o caminho é cheio de “pedras”, implica-se a necessidade de substituição do objeto absoluto de desejo por outro, mesmo que esse não ofereça satisfação plena. É o que vemos em Sinhá Vitória. Aquela dispensa horas de seus dias, sonhos de suas noites, avultando a possibilidade de adquirir uma cama mais confortável do que a que possuía. Essa linguagem minimalista utilizada por Graciliano também é predominante em sua descrição do ambiente e de suas personagens. "As vestes, as falas e o espaço onde estão inseridos são descritos com quase nenhum detalhe que prenda a atenção do leitor. O mais interessante é reservado para seus pensamentos, sempre evocados pela narrativa de Graciliano."
As frases curtas; a pontuação precisa; o uso do futuro do pretérito nas passagens em que o discurso indireto livre, permite que sejam expressos os sonhos das personagens; a inexistência de diálogos; a abundância de interjeições; exclamações; sons onomatopaicos, substituindo a fala das personagens e mostrando-lhes a animalidade, constituem alguns dos elementos enriquecedores da obra. Além da dimensão visual e sonora explorada na descrição da natureza. A linguagem é constituída basicamente por monólogo interior e a personagem dialógica é construída por um processo de comunicação interativa.
Nosso objeto de estudo - a personagem Fabiano, segundo Bakhtin - trava um conflito interior, questionando-se sobre sua identidade e sua atuação no mundo. Um aspecto da personagem dialógica, porque, para Bakhtin, onde começa a consciência inicia-se o diálogo. Além disso, Fabiano não é um intérprete do autor, tem independência e liberdade para expor suas opiniões e para tomar decisões. Como ocorrerá a construção da autoconsciência de Fabiano? Entendemos que o narrador se pauta pelo discurso indireto livre para encenar os pensamentos da personagem de forma autêntica, já que por meio dessa palavra bivocal foi possível dar voz a quem não tinha, porém, marcando a diferença tonal entre o ponto de vista do narrador, detentor da palavra, e o da personagem, que não a possui. Durante todo o romance, nos defrontamos com esse discurso ambivalente e dialogal no qual ouvimos o ressoar de duas vozes - a de Fabiano e a do narrador que tecem relações dialógicas entre si ora por consonância, ora por dissonância, fazendo de Vidas Secas um verdadeiro espetáculo plurilíngue.


5.3. TEMPO E ESPAÇO:

“Vidas Secas” começa por uma fuga e acaba com outra. Decorre entre duas situações idênticas, de tal modo que o fim, encontrando com o princípio, fechando a ação num círculo. Entre a seca e as águas, a vida do sertanejo se organiza do berço à sepultura, a modo de retorno perpétuo. Como os animais atrelados ao moinho, Fabiano voltará sempre sobre seus passos, sufocado pelo meio físico. É um determinismo semelhante ao de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, pois retoma o problema dos “dois brasis”: o Brasil sertanejo, miserável e abandonado à própria sorte cujas condições climáticas ajudam a piorar, e o Brasil civilizado e cosmopolita, o Sul.
O tempo na obra está mais voltado ao psicológico, já que não se estabelecem cronologicamente datas. O período da ação narrativa é determinado entre duas secas.
O espaço da obra é o sertão nordestino, que entra aqui como elemento bem definido através de descrições e caracterizações minuciosas. O tempo e o espaço da obra também podem ser analisados a partir de duas contradições: seca/chuva e sertão/cidade.
O espaço da narrativa é, predominantemente, rural. São suas transformações que impulsionam as personagens. Estão fugindo da seca, estabelecem-se na fazenda, com a chegada da chuva conhecem a prosperidade por algum tempo, vêm com desânimo às arribações anunciarem nova seca e fogem novamente depois que o gado já morreu de sede. O espaço urbano aparece em dois capítulos; mas as personagens não se movem com desenvoltura na cidade.
Em toda narrativa o espaço funciona como uma espécie de antagonista de Fabiano e família. Como vimos, suas vidas dependem do regime da seca. A cidade também não é muito acolhedora. Lá, Fabiano encontra a prisão e Sinha Vitória é obrigada a fazer as necessidades na rua.
O tempo da narrativa é predominantemente psicológico. Predominam as reflexões das personagens sobre os fatos de suas vidas. Entretanto, isto não quer dizer que o autor não tenha se preocupado com o tempo cronológico. Em cada um dos capítulos e no conjunto da obra o desenrolar da ação dá uma idéia clara de tempo cronológico, que, às vezes, é ressaltado explicitamente no texto (...anos atrás antes da seca... - cap. 10). Além disto, as próprias transformações da natureza, (seca, chegada da chuva, enchente, a fuga das arribações e nova seca) são índices de tempo cronológico. Em algumas passagens o autor recorre à anacronia por retrospecção (como no episódio da morte do papagaio). A velocidade do tempo é variável ao longo do texto. Às vezes é acelerada, às vezes reduzida. No capítulo 9, temos um exemplo claro de narrativa que vai se desacelerando progressivamente até a ausência de movimento, correspondente à morte da cadela

5.4. PERSONAGENS:

Os romancistas do Nordeste têm pintado geralmente o homem do brejo. É o sertanejo que parece na obra de José Américo e José Lins. Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão, observar a reação desse espírito bronco ante o mundo exterior, isto é, a hostilidade do meio físico e da injustiça humana. Por pouco que o selvagem pense – e os meus personagens são quase selvagens – o que ele pensa merece anotação. Foi essa pesquisa psicológica que procurei fazer; pesquisa que os escritores regionalistas não fazem nem mesmo podem fazer; porque comumente não conheceram o sertão, não são familiares do ambiente que descrevem.
Na verdade, no contexto que as personagens se apresentam maiores traços do que se tem, seriam desnecessários, pois os membros da família de Fabiano são alegorias, entendendo-se como tal, meros símbolos típicos do sertanejo nordestino, que é impotente frente à natureza, a tradição social e econômica da região que lhe é cruel, bem como é ignorante e resignado aparentemente diante de sua realidade.

FABIANO: vaqueiro nordestino que tem a consciência de sua inferioridade em relação aos outros homens por sua dificuldade de comunicação e por considerar-se “bicho”, já que vivia “longe dos homens”. Em outro ponto, a tendência do regionalismo da década de 30, no sentido de um realismo brutal, uma verossimilhança cruel, foi seguida na construção das personagens de Vida Secas. Fabiano foi construído e se constituiu como uma personagem padrão de um camponês Nordestino, ou seja, concebido a luz de um modelo real e publicamente conhecido, ou seja, ignorante, resignado externamente, mas que intimamente lutava contra as desigualdades, tanto que sua luta sempre restava “resolvida” pelo único meio permitido pelo sistema, que era a fuga.
Tente-se apenas descrição sumária de ter barba ruiva e castigada pelo sol, mãos calejadas e grossas, pés duros, mostrando assim, um tipo exemplar de pessoa castigada pela rudeza da vida.
A expansão em imagem de Fabiano é realçada pela falta de sobrenome. Como um “cabra” que nem nome de família possuía. Não falava, pois achava que sequer sabia. Possuía poucos objetos rudimentares, como alpercatas que lhe cortavam os pés.

SINHA VITÓRIA: esposa de Fabiano. Ela é responsável pelos serviços domésticos e de cuidar dos filhos, com quem se mostra impaciente. É otimista e consegue acreditar em um futuro melhor para a família. Acredita nas forças sobrenaturais. Sinhá Vitória possui uma superioridade visível em relação ao marido: sabe fazer contas e toma as decisões mais importantes para a família.

O MENINO MAIS NOVO: filho do casal. Seu sonho é de ser igual ao pai quando crescer.

O MENINO MAIS VELHO: filho do casal. Sente-se sozinho e identifica-se com a Baleia, a única amizade possível. É esperto, curioso e gosta de perguntar, pelo que é sempre repreendido pelos pais.

BALEIA: cachorra da família. Ela possui sentimentos próprios e pensamentos humanos. Esse fato denuncia um processo contínuo que, mediado pela aspereza do ambiente, provoca de tal forma nivelamento entre homens e animais que, enquanto Baleia, dotada de uma interioridade própria, “humaniza-se”, as pessoas, por sua vez, “animalizam-se”. Observe-se que a cadela Baleia, como bicho tinha as mesmas reações e até a habitual visão de submissão e resignação em face ao mundo dos demais membros da família, na verdade agia e tinha as mesmas atitudes deles, na medida em que, era apenas mais um membro.

SOLDADO AMARELO: personalização de um Estado injusto. Simboliza autoridade do governo e a injustiça contra os mais fracos e humildes.

PATRÃO: representa o lado arbitrário que rege as relações humanas. Simboliza a opressão dos poderosos e o poder da exploração do trabalho alheio.

SEU TOMÁS DA BOLANDEIRA: velho bom e lido. Simboliza o desejo de ascensão social e econômica. A opressão representada por seu Tomás da bolandeira inferioriza Fabiano na medida em que significa o poder e o respeito adquiridos pela bondade e pela cultura, em oposição ao poder autoritário dos “outros brancos”, que vê como inimigos.

SINHA TERTA: benzedeira e conhecida da família.

SEU INÁCIO: dono do botequim onde Fabiano faz suas compras.


5.5 - RESUMO DA OBRA:


Ilustração de Vinícius Mattoso, em estilo da xilogravura usada nos cordéis, retrato de uma família em Vidas Secas.

“Vidas Secas” retrata a peregrinação de uma família-retirante que foge da seca nordestina. São eles: Fabiano, sua esposa Sinha Vitória, os dois filhos (Menino Mais Velho e Menino Mais Novo), o papagaio (que tiveram que matar e comer durante o caminho) e a cadelinha Baleia.
Os componentes dessa família são desumanizados, reduzidos à condição animalesca e levados a um constante lutar instintivo pela própria sobrevivência. Eles não possuem um teto que não seja provisório; não tem perspectiva de trabalho que não seja ocasional e mal remunerado; além, de sofrerem as péssimas condições climáticas do sertão do nordeste.

O primeiro capítulo: “Mudança” retrata a família abandonando tudo para fugirem da seca e o último, “Fuga”, retomada a problemática do primeiro e apresenta a família, novamente migrando em busca de sobrevivência.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira duma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto.
Já no capítulo 1, Graciliano Ramos, dá indicações precisas sobre a caracterização das personagens: Fabiano e família.
Trata-se de uma família de retirantes, de origem extremamente humilde. As únicas coisas que possuem são os objetos que carregam (a espingarda, o aió, a cuia de água o baú de folha pintada). A família é composta por Fabiano, Sinha Vitória e os dois filhos (o menino mais novo e o menino mais velho). A cachorra Baleia é tratada como membro da família, assim como o fora o papagaio antes de ser devorado. Ordinariamente a família fala pouco.
A descrição da paisagem, terra árida e seca, interage com o psicologismo das personagens.
Os retirantes caminham calados, cada um em seu pensamento e lembranças deixadas para trás. Às crianças não tem nomes, como se fossem “peças” insignificantes naquela vida mesquinha que levavam.

Fabiano é sombrio, tem o espírito atribulado, o coração duro, trata os filhos a pancada, mas sente pena deles. É cambaio, tem os calcanhares duros como cascos, a voz rouca e medonha, os dedos rachados e as bochechas cavadas. Era como a bolandeira (roda dentada dos engenhos açucareiros), movimentava-se de maneira regular, previsível. Enfrenta com segurança seu destino. A fome inibe seu raciocínio. Tem esperança, acredita que as coisas podem mudar. Como chefe da família carrega os símbolos de poder do nordestino:- a espingarda e o aió (bornal de caça).
Sinha Vitória fala guturalmente, tem a cara murcha e descolorida, as nádegas bambas e os joelhos ossudos. É triste, saudosista e astuta, não hesita em transformar o papagaio em alimento. Sinhá Vitória sonha em ter uma cama igual à do seu Tomás da bolandeira (antigo patrão) e Fabiano, com um lugar onde possa trabalhar decentemente, para garantir a educação de seus filhos e poder comprar uma saia de ramagens vistosas para a sua esposa.
O papagaio falava pouco (como a família). Andava furioso antes de alimentar seus donos. Imitava a cachorra baleia.
No trecho “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio [...]” o sujeito da enunciação faz um “flash-back” ao dia anterior e anuncia a morte do papagaio. É interessante notar que o enunciador sente pena do papagaio – “coitado” – por ter morrido. Mas ele não se compadece dos demais membros da família, só porque ainda estão vivos – “viventes” – embora sofressem muito mais que o pobre papagaio, cujo sofrimento já chegara ao fim.
O menino mais novo é carregado como um objeto pela mãe.
O menino mais velho acompanha a família a pé, é obstinado, frio como um defunto, sente vertigens e passa mal, despertando a cólera paterna.
A cachorra Baleia é uma das viventes, faz parte da família. É magra e arqueada. A ela cabem as sobras (do papagaio e do preá). Sabe qual seu lugar, por isto não devora a caça, mas entrega-a aos familiares. Estranha a ausência da gaiola do papagaio sobre o baú de folhas secas.
Seu Tomaz da bolandeira é referido, mas não é descrito.
Uma figura bem forte é o “obstáculo miúdo”, termo usado pelo enunciador para se referir ao filho mais velho, no momento em que Fabiano pensa em abandoná-lo aos bichos. O momento é de tensão. Fabiano, pensativo, “coça a barba ruiva e suja”, examina os arreadores. “Sinhá Vitória estira o beiço indicando vagamente uma direção”, isso dá à cena um tom de grande expectativa.
A ação de “estirar o beiço” simboliza a fala de sinhá Vitória, que pode ser assim interpretada: nem pense nisso, pegue-o, vamos, falta pouco. Volta, então, a figura simbólica dos juazeiros. “Sinha Vitória aprovou esse arranjo, [...] designou os juazeiros invisíveis”.
Eles são invisíveis, porque não existiam de verdade, só na imaginação, eles queriam muito que os juazeiros existissem, pois teriam a certeza de que haviam encontrado um bom lugar para ficar.
Na verdade, esses juazeiros existiam, tornaram a aparecer, simbolizando uma mudança no estado do personagem: “Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos”. Surge, então, a figura da “cerca”, que “o encheu de esperança de achar comida”.
Depois de muito caminhar, localizam uma fazenda abandonada e lá, se alojam. Baleia consegue comida ao caçar um preá. A possibilidade de chuva e de poder ficar instalados naquela fazenda deram esperanças novas à família. “(..) a fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro.

É interessante notar, nesse capítulo, que a família de Fabiano desesperançosa em relação à vida, volta a ter um pouco de esperança ao encontrar uma fazenda abandonada. Nesse momento, o enunciador descreve a ressurreição da família.
“Sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-se com molambos”. O filho mais velho, debilitado, mal tinha forças para abrir os olhos e ver se havia sinais de mudanças. Cabe, então, à cachorra Baleia, o papel da humanização: ela se encarrega de sair à procura de comida. “Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto [...] e saiu correndo”.
Essa cena atribui à cachorra o papel de provedor da família. Baleia consegue comida ao caçar um preá. A possibilidade de chuva e de poder ficar instalados naquela fazenda deram esperanças novas à família. “(..) a fazenda renasceria – e ele, Fabiano, seria o vaqueiro.
Estava ali um resto de esperança que poderia mudar o destino daqueles viventes. Volta o plano do sonho. “As cores da saúde voltariam à cara triste de sinhá Vitória [...] a catinga ficaria verde”. Até a cachorra Baleia manifesta sua esperança: “Baleia agitava o rabo [...], sonhando com dias melhores.”

O tempo da narrativa é cronológico. Os retirantes já estão caminhando há algum tempo. Não se sabe há quanto tempo. Após um dia inteiro de marcha chegam à fazenda abandonada. Na véspera alimentaram-se do papagaio. Entretanto, não se sabe em que mês e ano transcorrem os fatos narrados. Ao tratar o tempo de maneira imprecisa, o autor pretende demonstrar como ele é vivenciado pelos retirantes. Submetidos à luta pela vida, não têm como se preocupar com outras coisas.
Ao tempo cronológico, é superposto outro:- o tempo psicológico. Sinha Vitória é saudosista. Lembra-se de acontecimentos antigos, até ser despertada pelo grito da ave e ter a idéia de transformá-la em alimento. Porém, este fato é uma recordação da véspera.
O espaço: O espaço da narrativa é o sertão nordestino. A catinga é a vegetação predominante. O sol escaldante, o céu sem nuvens e o rio seco dão uma idéia clara da seca. A fazenda, abandonada, sem vida, reforça a natureza rude do espaço da narrativa.

ANÁLISE LITERÁRIA DO CAPÍTULO I:

- A animalização/humanização: Já no primeiro capítulo Graciliano Ramos animaliza as personagens. A família é composta por Fabiano, sua esposa, dois filhos e a cachorra Baleia e o papagaio. As relações familiares são animalescas.
“- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatros cantos, zangado, praguejando baixo.”
Fabiano trata o filho a pancada, fustiga-o com a bainha da faca de ponta, deseja matá-lo, abandoná-lo no descampado. Mas tem pena, tal como um animal em relação à cria. Apesar de ser da família, o papagaio acaba sendo morto e comido. A antropofagia é praticada sem culpa (como entre os animais). A comunicação entre os membros da família não é verbal (falam pouco).
Fabiano tem os pé duros como cascos, cava o fundo do rio seco com as unhas e consome a água do bebedouro dos animais debruçado no chão (como se fosse um animal). Só depois de saciado lembra que a família tem sede.
Sinha Vitória beija o focinho da cachorra e lambe o sangue do preá tirando proveito do beijo.
O garoto dorme encolhido sobre as folhas secas, junto dele a cachorra Baleia.
A cachorra Baleia é paciente.
Há de se destacar a presença de outras figuras que adquirem sentidos. No momento em que Fabiano decide não abandonar o filho mais velho aos bichos, o enunciador descreve assim: “Entregou a espingarda a sinhá Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se [...]”. Essa cena se assemelha ao momento em que um caçador, após abater sua caça, põe-na sobre os ombros e a carrega, como um prêmio. Notam-se, mais uma vez, o processo de animalização do ser humano, presente em grande parte da obra. O filho mais velho é a caça abatida.

- A linguagem: A linguagem é fluente, próxima ao coloquial, marcada pelo uso de expressões próprias do universo nordestino (juazeiros, caatinga rala, aió, cuia, ossadas, aligeirou, embira, macambira, bolandeira, xiquexiques e mandacarus) e rica em recursos expressivos e matafóricos. Os diálogos diretos são inexistentes. Em duas oportunidades Fabiano dirige-se de maneira rude ao filho, como se ele fosse um animal. Mais adiante, desiste de falar e da voz lhe sair rouca e medonha. A esposa comunica-se através de grunidos. Portanto, é enfatizada a ausência ou dificuldade de comunicação verbal entre os membros da família de retirantes.
- Oposições claras no capítulo: vivência x sobrevivência, céu estrelado x terra seca, sonho x realidade e homem x bicho. Mas a oposição fundamental do capítulo, sem dúvida, é vida x morte.

A oposição vivência X sobrevivência manifesta-se, em especial, na caracterização dada pelo enunciador à família de Fabiano: “eram seis viventes, contando com o papagaio” e no presente que a cachorra Baleia deu à família: um preá que serviria para saciar a fome por algumas horas e seria dividido entre todos os membros, inclusive a própria cachorra. Embora “ainda” estivessem vivos, era muito grande a luta para se manterem nesse estado, diante da terra seca, da míngua vegetação e da falta de comida. Ainda nessa oposição, podemos destacar o papagaio, que até então era companheiro e passa a condição de alimento para o grupo, após sua morte.

Já a oposição céu estrelado X terra seca manifesta-se de fora concreta no momento em que Fabiano “cavou a terra seca em busca de água, esperou que ela marejasse e bebeu-a, depois deitou-se, saciado, e olhou as estrelas se formarem no céu”. Nesse momento, o narrador afirma que uma alegria doida encheu o coração de Fabiano. A partir desse fato, manifesta-se a oposição sonho X realidade: Fabiano fica deitado, observando as estrelas e sonhando que “a catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao normal, os meninos, gordos, brincariam no chiqueiro, sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas, as vacas povoariam o curral e a catinga ficaria toda verdade”.
Nota-se a presença marcante dos verbos no futuro do pretérito, responsáveis pelo plano do sonho em oposição ao contato dele com a terra seca, a realidade que o cercava.
Nessa oposição, podemos definir duas ordenações: realidade → não realidade → sonho e o percurso contrário, sonho → não sonho → realidade. Nessas ordenações, podemos associar a não realidade ao fato de Fabiano querer e não poder, e o não sonho ao fato de Fabiano lembrar-se de que sua família estava com sede, esperando que ele levasse a água. Pode-se dizer que esta oposição marca uma repentina transformação no estado do personagem.

A oposição homem X bicho aparece com frequência no capítulo: os membros da família, caminhando em busca de um lugar melhor, são como bichos à procura de alimento. “O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos”, nesse fragmento, os membros da família são os bichos moribundos, rodeados por urubus. A atitude de sinhá Vitória, descrita pelo narrador neste trecho “sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensanguentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo”, nota-se uma inversão de papéis: quem é o animal? Sinhá Vitória ou a Baleia? Nesta oposição, também podemos definir duas ordenações: homem → não homem → bicho e o percurso contrário, bicho → não bicho → homem. Nessas ordenações o não homem é representado por sinhá Vitória, enquanto que o não bicho, pela cachorra Baleia. A isso podemos chamar, respectivamente, de zoomorfismo e antropomorfismo.

Analisemos, então, a principal das oposições presentes nesse capítulo: vida X morte. A família de Fabiano, nesse momento, à procura de um lugar melhor, está muito perto da morte, embora ainda vivam. A morte os espreita o tempo todo, a cena descrita é rica em adjetivações tenebrosas, fúnebres: “[...] a catinga, onde avultavam as ossadas e o negrume dos urubus”, [...] pensou nas ossadas, nos urubus [...]”, são alguns exemplos. Mas o mais marcante, sem dúvida, é a descrição do filho mais velho de Fabiano, moribundo, assim feita pelo enunciador: “[...] pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto [...] agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos”. A cena aqui descrita é o ápice da oposição vida x morte: é um momento de grande tensão na narrativa: o filho mais velho, completamente debilitado, não conseguia mais andar e Fabiano pensou em abandoná-lo ali, largá-lo aos urubus. Fabiano, então, muda de idéia, pega o filho no colo e seguem viagem. Podemos definir, nesta oposição as seguintes ordenações: morte → não morte → vida, sendo a não morte representada pela decisão de Fabiano de levar o filho consigo.
- Categorias eufóricas ou positivas e disfóricas ou negativas: O nível fundamental do percurso gerativo de sentido ainda é determinado por categorias eufóricas ou positivas e disfóricas ou negativas. No capítulo em análise, isso é facilmente percebido. Há um predomínio muito grande dos aspectos negativos, marcados pela disforia da família de Fabiano. A caminhada desesperançosa através de paisagens marcadas pela seca, a fome constante, o sol ardente, a pele avermelhada, a sede, a debilidade do filho mais velho, a morte do papagaio e o desânimo total são os aspectos disfóricos desse trecho da narrativa.
No final do capítulo, “num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar”, a família de Fabiano chega a uma fazenda abandonada, com um curral deserto, o chiqueiro de cabras arruinado, a casa fechada, um deserto total, anunciando o abandono daquele lugar. Decidiram, então, ficar por ali. Entraram na casa, ajuntaram as poucas coisas no chão e assaram um preá caçado por Baleia. Ali seria a nova moradia deles. Renascia, assim, a esperança. Esse momento é descrito pelo narrador como uma ressurreição. Surgem, assim, os aspectos eufóricos e positivos desse capítulo da narrativa. É interessante notar que esses aspectos positivos são marcados exatamente pela descrição negativa da fazenda aonde os retirantes chegaram.
- Consciência versus destino trágico: No capítulo em análise, pode-se observar que o enunciador prioriza as descrições, para que seu enunciatário possa ter uma visão ampla do ambiente hostil provocado pela seca. Por isso, há poucas ações no capítulo. Essas ações não são determinadas pelas personagens, ou seja, tem-se a impressão de que eles são carregados pelo destino trágico e fatal e pela própria seca. Esta pode ser vista como a principal actante da narrativa, é ela que manipula as personagens, obriga-os à mudança, à caminhada pela paisagem árida e morta, em busca de vida. “A seca aparecia-lhe como um fato necessário – e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultada a marcha, e o vaqueiro precisava chegar, não sabia onde.”
Nesse capítulo, a única ação efetivamente praticada, conduzida pela própria personagem é o momento em que Fabiano se redime de um pensamento ruim, se refaz como homem e, em vez de abandonar o filho mais velho aos bichos do mato, pega-o no colo e segue viagem. Nota-se que é o único momento em que a personagem não é manipulada por forças exteriores, mas sim pela própria consciência, pois essa ação partiu dele mesmo. “Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena.”

A manipulação, dá-se de forma interessante: a natureza manipula as ações das personagens. Ela transforma seus estados, por isso pode ser vista como um sujeito das ações. Os “viventes” não são sujeitos do agir. Isso fica claro em várias passagens da história. “Levantaram-se todos gritando”, indica o momento em que a cachorra Baleia traz nos dentes um preá, que serviria de alimento ao grupo e adiaria a sua morte. No momento em que o preá está “chiando” no espeto, o enunciador afirma “eram todos felizes”. Esse estado, embora passageiro, é provocado pela ação da natureza. Até a cachorra, em estado de antropomorfização, age diante do fato: “Baleia agita o rabo, olhando as brasas.”

- Conjunção e disjunção: Os enunciados de estado marcam a relação de junção – conjunção e disjunção – de um sujeito em relação a um objeto. Da conjunção para a disjunção ocorre a narrativa mínima de privação: os “viventes” queriam uma terra fértil, comida, água, boas condições de vida, mas foram privados disso. Já da disjunção para a conjunção ocorre à narrativa mínima de aquisição: eles conseguem parte do que queriam, ocorre a ressurreição da família.
- Privação e de aquisição: Há, no capítulo, outros momentos de privação e de aquisição. De privação, quando o papagaio morre e priva a família de sua companhia. “Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, à beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida.”
Sentiam a falta da gaiola sobre o baú que sinhá Vitória carregava, mas não se sentiam culpados por terem se alimentado dele, já que justificam a decisão declarando que o papagaio era inútil e mudo.
E o outro momento de aquisição também é marcado por um animal: o preá caçado por Baleia e que também serviria de alimento para a família. “Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver.”
É interessante notar que esses momentos distintos – privação e aquisição – estão diretamente ligados a bichos que servem de alimento para os “viventes”. Alimentar-se do papagaio privou-lhes sua companhia; alimentar-se do preá, deu-lhes mais um tempo de vida.
- Mudança e transformação: A narrativa em análise não é complexa, por isso não se evidencia claramente o percurso canônico. Mas é possível notar algumas de suas partes, se considerarmos a transformação mais importante do capítulo em estudo, já que seu título é “Mudança”: o estado inicial de degradação e próximo da morte e o estado final de reencontro com a vida.
Para essa transformação, podemos destacar no nível da manipulação a “tentação”, já que os “viventes” ao partirem atrás de terras melhores, vão em busca de um prêmio: a vida. No nível da competência, o sujeito responsável por realizar a transformação é o próprio acaso, dotado de um poder natural, coloca à frente deles uma fazenda abandonada. No nível da performance, a principal parte da narrativa, ocorre a transformação: Fabiano decide hospedar ali a família e tornar-se o vaqueiro do lugar. E, por fim, no nível da sanção, a família recebe o prêmio: a vida.

- Modalização do ser versus Modalização do fazer:
– Modalização do ser: Essa modalização prevê o querer ser, o dever ser, o poder ser e o saber ser. No capítulo em análise de Vidas Secas, podemos notar a constante presença do “querer ser”, que se relaciona a Fabiano: ele quer ser como seu Tomás da Bolandeira, antigo patrão. Quer ter uma propriedade, um trabalho rentável e uma vida confortável. Mas ele não consegue. Surge, assim, a modalidade do não poder ser. A vida passa a ser o objeto de desejo de Fabiano, entretanto ele não a tem como queria.
Consequentemente insere-se no plano do sonho, só assim consegue o que quer. Volta, então, à realidade e ao não poder ser.

– Modalização do fazer: Essa modalização prevê o querer fazer, o dever fazer, o poder fazer e o saber fazer. Primeiramente, podemos afirmar que o saber fazer não faz parte da vida de Fabiano. Ele nunca sabe nada, nunca sabe o que fazer para melhorar suas condições de vida. Mas ele tem vontade, ele quer fazer, quer ressuscitar a catinga, plantar sementes no curral, quer fazer a velha e abandonada fazenda renascer. Entretanto, o que se nota é o não poder fazer. Fabiano sente-se incapaz de fazer o que quer. Assim, ele também fica sem saber o que deve fazer: esperar ou ir atrás de algo melhor.
- Sujeito versus objeto-valor: É possível notarmos a presença de algumas paixões na trajetória de Fabiano, em Vidas Secas, em especial no primeiro capítulo, objeto desta análise. Essas paixões decorrem da modalização pelo querer-ser, quando o sujeito quer o objeto-valor. Neste caso, Fabiano é o sujeito que quer um objeto-valor: uma vida melhor. Esse objeto-valor é a sua “cobiça”.
Caso o sujeito não a conquiste, ele passa a um estado de frustração ou decepção. Podemos notar que Fabiano não chega a experimentar esses estados, pois sua cobiça está muito além de ser alcançada. Ele tem consciência de que seu objeto-valor está muito distante. Isso por um lado é bom, pois não lhe traz sentimentos de decepção ou frustração. Ele passa ao tempo em estado de “espera”, já citado anteriormente.
Esse estado de “espera” parece ser permanente na vida de Fabiano. Ele espera, pacientemente, a chuva, a comida, o trabalho, a terra, a vida melhor, tudo o que lhe cabe de direito. Mas ele sabe que não conseguirá, embora manifeste, esporadicamente, sentimentos de esperança. Aliás, a esperança de Fabiano está ligada ao próprio radical da palavra: esperança vem de “esperar”. E assim, ele vai mantendo a esperança. Essa esperança fica bastante em evidência na cena final do capítulo em estudo, já que a velha fazenda abandonada poderia mudar a vida dos retirantes.
Sendo assim, temos em Fabiano um exemplo literal dessa paixão: ele quer algo, mas não faz nada para conquistá-lo, e ainda espera que outro sujeito – no caso a própria natureza ou até o acaso – lhe traga seu objeto-valor.
Entre as paixões simples, que decorrem da modalização pelo querer-ser, podemos, ainda destacar duas: a “aflição”, que é o querer-ser, mas o saber poder não ser, e a “felicidade”, que é o querer-ser e o saber poder ser. Esta última é passageira, já que esse estado surge com a esperança de uma vida nova na fazenda, tão desejada por Fabiano e sua família, mas que vai voltando ao estado inicial com o desenrolar dos próximos capítulos da narrativa.
- Objetos concretos: o colorido: No capítulo analisado de Vidas Secas, podemos observar uma série de figuras utilizadas pelo enunciador para criar os efeitos de ilusão e subjetividade. A primeira figura que merece destaque, logo no início do capítulo, são os juazeiros. Essas árvores simbolizam a esperança em encontrar um bom lugar para viver, “os juazeiros alargavam duas manchas verdes”. Eles são uma espécie de guia para os retirantes, pois assim que são vistos ao longe, os “viventes” se arrastam em direção a eles. Em seguida, essas figuras se compõem em forma degradativa “os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se”, simbolizando, novamente, a falta de esperança.
Esse capítulo é bastante colorido. ”A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.”
A catinga é vermelha, cheia de manchas brancas. O vermelho é caracterizado como “indeciso”, pois com tanta seca, a terra já não sabe mais qual é sua cor predominante. Já as manchas brancas são as ossadas dos animais mortos pela seca. Nesse momento, aparece uma sinestesia muito interessante “voando” sobre as “manchas brancas”: “o vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos”. É possível notar, nessa passagem, a presença da morte, figurada e representada pelos urubus.

Nesse momento, Fabiano é assim descrito pelo enunciador: “sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro”. É interessante notar, que essa mesma descrição é feita no último capítulo da obra, denominado “Fuga”, que narra à nova retirada da família. A repetição da descrição nos remonta ao fato de que, mesmo após tanto tempo naquele lugar, as coisas voltam a ser como eram no começo: sem trabalho, sem comida, sem água e sem saber o que fazer.
Outra figura bem forte é o “obstáculo miúdo”, termo usado pelo enunciador para se referir ao filho mais velho, no momento em que Fabiano pensa em abandoná-lo aos bichos. O obstáculo simboliza a dificuldade em continuar a marcha, o miúdo simboliza a fome, a debilidade e a morbidez da cena descrita. O momento é de tensão. Fabiano, pensativo, “coça a barba ruiva e suja”, examina os arreadores. “Sinhá Vitória estira o beiço indicando vagamente uma direção”, isso dá à cena um tom de grande expectativa. A ação de “estirar o beiço” simboliza a fala de sinhá Vitória, que pode ser assim interpretada: nem pense nisso, pegue-o, vamos, falta pouco. Volta, então, a figura simbólica dos juazeiros. “Sinhá Vitória aprovou esse arranjo, [...] designou os juazeiros invisíveis”. Eles queriam muito que os juazeiros existissem, pois teriam a certeza de que haviam encontrado um bom lugar para ficar.

Na verdade, esses juazeiros existiam, tornaram a aparecer, simbolizando uma mudança no estado do personagem: “Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os ferimentos”.
Surge, então, a figura da “cerca”, que “o encheu de esperança de achar comida”. A cerca, na cena, é sinal de comida, pois poderia indicar a presença de outros seres vivos que os pudessem ajudar. Ela, também, assume a função de "estrela-guia", já que os retirantes a acompanharam e, subindo uma ladeira, chegaram aos juazeiros. Agora, eles simbolizam o descanso merecido: “fazia tempo que não viam sombra”.

- A desumanização e a coisificação: Vem, então, um momento de “desumanização”: “sinhá Vitória acomodou os filhos, que arriaram como trouxas, cobriu-se com molambos”. Esses molambos, que são panos velhos, sujos e rasgados, envolveram os filhos, desumanizados como trouxas, figurando um incômodo necessário, aquilo que atrapalha, mas não tem como se livrar. O filho mais velho, debilitado, mal tinha forças para abrir os olhos e ver se havia sinais de mudanças. Cabe, então, à cachorra Baleia, o papel da humanização: ela se encarrega de sair à procura de comida. “Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto [...] e saiu correndo”. Essa cena atribui à cachorra o papel de provedor da família.

Com o “jantar” garantido por Baleia – ela capturou um preá e, incrivelmente não o devorou sozinha, levou-o para dividi-lo com a família – Fabiano se encarrega de conseguir água, para acompanhar. Nesse momento, figura-se uma ilusão muito interessante. Após cavar a areia com as unhas e encontrar um pouco de água, ele fica a observar as estrelas que iam nascendo. A princípio, isso deveria se configurar em um paradoxo, já que, embora belas e brilhando no céu, simbolizavam a falta de chuva e a sequência da seca. Mas uns cirros – nuvens escuras – se formaram no poente, enchendo Fabiano de alegria. Eis o paradoxo da seca.
Enquanto os cirros animavam Fabiano, fazendo-o crer que, em breve, choveria, ele recordou-se da bolandeira de seu Tomás, o antigo patrão. Imaginou que o ex-patrão também fugira da seca e abandonara a bolandeira. Essa passagem ganha uma conotação bem forte ao configurar-se Fabiano como sendo a própria bolandeira, parada, inútil, abandonada, sem serventia, perdida num deserto árido, esperando o fim. “E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porquê (sic), mas era”. O percurso figurativo, nessa passagem, caminha entre o querer e o ser. Fabiano queria ser seu Tomás, mas era apenas a bolandeira. A carga semântica atribuída à bolandeira coloca Fabiano na condição de “coisa”, ocorre o chamado processo de “coisificação”. E, o que é pior, uma coisa inútil, sem serventia, o que lhe tira, ainda mais, a condição de “homem”.
- Sinha Vitória e Fabiano: Dentro do plano figurativo sintático, cabe destacar a importância de duas repetições significativas: a do nome de sinha Vitória e dos verbos no futuro do pretérito do indicativo. “A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria, as nádegas bambas de sinha Vitória engrossariam, a roupa encarnada de sinhá Vitória provocaria inveja das outras caboclas”. Podemos centralizar essa repetição, inicialmente, em dois pontos básicos: o querer e o sonhar. Fabiano quer uma mulher diferente daquela que tem, mais bonita, mais feminina, mais sensual, objeto de desejo e de prazer, e ele insiste nessa idéia. Fabiano cria várias imagens de uma só mulher, aquela que sempre quis ter ao seu lado. Mas ele tem consciência, ao mesmo tempo, de que isso é apenas um sonho, mas que se realizará.

- Natureza negativa: Também merecem destaque, no percurso figurativo, os elementos da natureza. Vamos elencá-los conforme a descrição do próprio enunciador: o céu estrelado, a lua branca e grande, a catinga rala, a planície avermelhada, os galhos pelados dos juazeiros, as folhas secas, as plantas mortas, um bosque de catingueiras murchas, o sol quente, o poente vermelho, o deserto queimado, a fazenda morta e a noite clara. É interessante notar que há predominância das características negativas da natureza. Aquelas consideradas positivas pelo senso comum, como o céu estrelado, a lua branca e grande, o sol quente e a noite clara, assumem valores negativos. Para Fabiano, era sinal de que não choveria, a seca e a fome não iria dar uma trégua.
A situação vivida pela família de Fabiano é tão trágica, que até os elementos mais belos da natureza, deixam-no de ser, por simbolizarem a seca que os castigaria ainda mais. Vejamos esta passagem do capítulo: “aquele azul que deslumbrava e endoidecia a gente”. É possível notar a presença simultânea do aspecto positivo – deslumbrava – e do negativo – endoidecia.
- Sintaxe discursiva: O sujeito da enunciação no capítulo de abertura de “Vidas Secas” utiliza-se de vários mecanismos para projetar seu discurso. No entanto, são dois deles que merecem ser destacados: o uso acentuado do discurso indireto livre e o emprego repetitivo e sequencial de verbos no futuro do pretérito do indicativo.

O discurso indireto livre serve para criar a ilusão de verdade nos personagens. Vamos destacar algumas passagens em que ocorre esse tipo de discurso: “Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato”, discurso de Fabiano ao decidir levar o filho mais velho, na verdade não era isso que ele queria. “Não podia deixar de ser mudo”, discurso de sinha Vitória para justificar o fato de eles terem aproveitado o papagaio como alimento. “Fazia tempo que não viam sombra”, discurso de Fabiano ao encontrar os juazeiros, aquela sombra era apenas uma ilusão, ela não acalmaria os males. “Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido”, discurso de Fabiano ao vasculhar a fazenda a que chegaram e da qual pretendia tomar posse. Na verdade, ele queria que houvesse alguém por ali para oferecer-lhes comida. “Ia chover. Bem”, discurso introspectivo de Fabiano, após observar a lua cercada de um halo cor de leite. Na verdade, Fabiano queria que chovesse e queria muito acreditar nisso, criando-lhe a ilusão da verdade.

Esse último discurso citado de Fabiano vai iniciar o segundo mecanismo a que nos referimos anteriormente: o do uso dos verbos no futuro do pretérito. Após ter convicção de que choveria, ele começa a imaginar: “a catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao curral, [...] chocalhos de badalos de ossos animariam a solidão, os meninos, gordos, vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, sinhá Vitória vestiria saias de ramagens vistosas, as vacas povoariam o curral e a catinga ficaria toda verde”. A escolha desse tempo verbal pelo enunciador tem por objetivo introduzir o plano do sonho, que nessa passagem se confunde com delírio. Diante daquela dramática cena de miséria e fome, Fabiano apenas sonhou com dias melhores ou já estava delirando?
- Mudança versus Fuga: Ao analisarmos o capítulo inicial – “Mudança” – e associá-lo ao último – “Fuga” – podemos notar que o sujeito da enunciação utiliza alguns mecanismos interessantes de significação. Através do percurso figurativo, ele inverte os títulos atribuídos aos capítulos em questão. É possível notar que, no capítulo em que ele se propõe a anunciar a “mudança” da família de Fabiano, afirma o seguinte: “Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se [...]”, ou seja, eles são “fugitivos”, estão fugindo de algo ou de alguém. Já no capítulo final da obra, ao propor anunciar a “fuga” da família, o enunciador afirma: “Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente uma mudança”, ou seja, os retirantes estão de mudança para a cidade. Assim se procede, então, a inversão de títulos. Essa inversão, na verdade, tem por objetivo juntar o primeiro capítulo ao último e ratificar a condição de retirantes da família de Fabiano: por mais que queiram buscar uma vida melhor, o destino e as condições de vida sempre continuarão o mesmo.

- Baleia: Neste capítulo, em especial, ela protagoniza uma cena ímpar, digna de um ser humano que sabe conviver em uma sociedade grupal: dedica-se, preocupa-se com os outros, doa-se, compartilha e humaniza-se. Após caçar um preá, leva a “caça mesquinha, mas que adiaria a morte do grupo” para ser dividida entre os viventes, entre a sua família. Essa ação não é natural. E o mais interessante é que Baleia se contentaria com pouco. “Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.”

Essa cena é de grande sensibilidade poética. E assim encerra o capítulo: “Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de mastigar os ossos. Depois iria dormir.” A ação física é natural de um cachorro, mas a ação psicológica é puramente humana.
No segundo capítulo: “Fabiano”

Fabiano cura a bicheira da novilha raposa e, com a consciência tranquila marcha para casa. “A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário.”
Fabiano “apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro. Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado."
Vai satisfeito e exclama em voz alta: “ – Fabiano, você é um homem.” Mas, logo após, corrige, murmurando:"-Você é um bicho, Fabiano."
“Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.”
O capítulo apresenta Fabiano como um homem embrutecido, mas capaz de auto-análise. Tem consciência de suas limitações e admira quem sabe se expressar. Preocupa-se com a educação dos meninos que estavam ficando perguntadores insuportáveis (“necessitava falar com a mulher, afastar aquela perturbação...”).
Ao mesmo tempo em que pensa em seu antigo patrão, o seu Tomás da bolandeira, que lia muito, mas nem por isso ficou imune à seca; também, compara-o a seu atual patrão que “berrava sem precisão” e que “quase nunca vinha à fazenda” e “só botava os pés nela para achar tudo ruim”.
“Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.”
Enquanto isso, sinhá Vitória “desejava possuir uma cama igual à do seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? E estavam ali de passagem.”
“Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim desde que ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer, sucedera o mesmo – anos bons misturados com anos ruins. Talvez andasse perto. Nem valia a pena trabalhar.”

Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, à toa, como judeu errante, um vagabundo empurrado pela seca, hóspede que demorava demais, tomava amizade a casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava arquejando, a boca aberta.
Nietzsche nos fala do “medo do mal”. Mas o que seria o mal em Vidas Secas? O mal seria a consciência da impotência diante dos acontecimentos? Seria a aceitação da sina? Como se tudo retornasse como um merecido e eterno castigo?
Conceito de sabedoria para Fabiano era algo que atrapalha. Mesmo assim, seu Tomás representava para Fabiano e Sinhá Vitória, respectivamente, cultura e posse, isto é, “status” de sábio, conforto e bem estar. Fabiano compara-se aos bichos, ele é “duro, lerdo como tatu”. Não quer morrer, um dia seria um homem.
No terceiro capítulo: “Cadeia”, Fabiano vai à cidade fazer algumas compras (sal, farinha, feijão, rapadura, um corte de chita vermelha e uma garrafa de querosene). “Mas o querosene de seu Inácio estava misturado com água, e a chita da amostra era cara demais.”
Decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Grita com o seu Inácio, porque podia jurar que a cachaça tinha água. Em seguida, Fabiano foi sentar-se na calçada quando apareceu um soldado amarelo que o convida para jogar trinta e um. Fabiano “atentou na farda com respeito e gaguejou, procurando as palavras de seu Tomás.”
“Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava.”
Fabiano perde o dinheiro no jogo e retira-se sem se despedir. Na rua, fica pensando que desculpa iria apresentar a sinhá Vitória. “Atrapalhava-se; tinha imaginação fraca e não sabia mentir.”
Enquanto pensava, alguém lhe deu um empurrão e depois, outro que o desequilibrou. Era o soldado amarelo que o insultou porque ele tinha deixado a bodega sem autorização. Fabiano ofende a mãe do soldado e vai preso.
Na cadeia, Fabiano não entende o motivo que levou a sua prisão e estabelece uma relação entre a figura do soldado com a do Governo: “governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia consentir tão grande safadeza”.
Esse episódio simboliza que, além da problemática da seca, outros motivos levam Fabiano a sentir-se “homem-bicho”, o autoritarismo da polícia e a sua miséria linguística e cultural.

A realidade de Fabiano é narrada como se fosse um filme. Do primeiro para o segundo plano de cena (capitulo) há um corte. Do segundo para o terceiro também.
Caracterização das personagens:
Fabiano é corajoso (afronta verbalmente o dono da bodega), mas acovarda-se diante do Soldado Amarelo. Somente depois de dois empurrões e do pisão no pé começa a se incomodar e reage ofendendo o oficial. Tem o hábito de beber cachaça. Não sabe mentir para a esposa e é muito apegado à família, embora tenha perdido o dinheiro no jogo e flertado Rita louceira.
Sinha Vitória é mais esperta que ele, perceberia a mentira que pretende inventar para explicar o desaparecimento do dinheiro.
Inácio da bodega é o típico vendeiro desonesto. Batiza a cachaça com querosene e água.
Os vários tipos do bar não são descritos. São tipos...
Tomás da bolandeira é o paradigma evocado por Fabiano diante da adversidade.
Rita louceira é objeto de desejo de Fabiano.
Várias personagens não participam, assistem a desgraça do vaqueiro:- o homem da iluminação; o doutor juiz de direito; o cobrador da prefeitura; o vigário.
O destacamento da cidade é uma personagem coletiva. Age mediante impulso do policial amarelo. Não questiona o que está acontecendo, apenas leva Fabiano para a prisão.
Um bêbado incômoda com seus desvarios. Uma prostituta também. Os demais presos não interferem na ação.
Neste capítulo o autor faz uma dura crítica à estrutura política e social do nordeste, salientando:- 1º- o abuso de autoridade praticada pelo soldado amarelo; 2º- a passividade das autoridades diante da injustiça; 3º- a pobreza e a ignorância como fundamento da perseguição policial; 4º- a tortura como recurso empregado pela policia; 5º- a impossibilidade do sertanejo frequentar a escola.
Todo capítulo é uma metáfora de como a comunicação (ou ausência dela) engendra a ação/reação das pessoas diante dos fatos da vida ("... Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isto?”).
Por mor de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família. Pensou na mulher, nos filhos e na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que haviam caído no chão, certificou-se de que os objetos comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido alguma coisa na confusão. Lembrou-se de uma fazenda vista na última das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga, vermelha e com ramagens, exatamente o que sinha Vitória desejava. Encolhendo um tostão em côvado, por sovinice, acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes. Sinha Vitória devia estar desassossegada com a demora dele. A casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra Baleia vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da frente.
Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitória punha sal na comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se tinha perdido. Bem. Sinha Vitória provava o caldo na quenga de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um preá. Ia envelhecendo, coitada. Sinha Vitória, inquieta, com certeza fora muitas vezes escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam.
Pobre de sinha Vitória, cheia de cuidados, na escuridão. Os meninos sentados perto do lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saía da parede.
Agora Fabiano conseguia arranjar as idéias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a idéia que lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos, havia a cachorrinha.

O espaço: O espaço da narrativa é urbano. A bodega, a prisão e as ruas (sugeridas pela iluminação pública), compõem um universo estranho ao personagem. Fabiano não se sente seguro na cidade ("..Andava irresoluto, uma longa desconfiança ..”).
O tempo da narrativa: Novamente o tempo cronológico é superposto ao psicológico. Até o momento da prisão a narrativa é ágil, rápida. Depois, torna-se lenta, exatamente como o questionamento de Fabiano. Não se sabe há quanto tempo a personagem estava na cidade, ficou jogando e apanhou dos soldados. Aliás, não se sabe nem mesmo quanto tempo se passou desde que chegou a fazenda.

Para Fabiano, Baleia é "...como uma pessoa da família, sabida como gente." Espera-o em casa. Esta passagem é ambígua. Afinal, Baleia é como gente porque tem qualidades humanas ou porque os membros da família de Fabiano têm qualidades animais?
Na catinga Fabiano canta de galo, na prisão rosna num canto. Seus olhos brilham como olhos de gato. Sua condição animal também é enfatizada pela expressão:- "Vivia trabalhando como um escravo." Durante a vigência da escravatura o escravo não era considerado um ser humano, tinha o mesmo status que as bestas no pasto.
O soldado amarelo tem a cara enferrujada.
A linguagem: Segue o mesmo padrão dos capítulos anteriores. Continua em terceira pessoa com narrador onisciente. O discurso direto apresenta-se 18 vezes. Também neste capítulo não há diálogo. Ao indagar o vendeiro, Fabiano fica sem resposta verbal. Em 7 oportunidades fala sozinho. O "diálogo" do sertanejo com o soldado amarelo não implica em troca de informação, cada personagem limita-se a exprimir o que pensa e sente de maneira lacônica. Em 5 oportunidades ("-Hum! Hum!"; "-Bem, bem"; "- An!"), Fabiano volta a manifestar-se numa linguagem que lembra o grunido dos animais. Os discursos indiretos livres também aparecem no texto ("- Tenha paciência. Apanhar...").


No quarto capítulo: “Sinhá Vitória”
“Acocorada junto às pedras que serviam de trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas, sinhá Vitória soprava o fogo.” briga com Fabiano, dá um pontapé em Baleia e pensa no seu desejo de possuir uma cama real, igual a do seu Tomás da bolandeira. Mas, em seguida, conforma-se, afinal “iam vivendo, graças a Deus, o patrão confiava neles e eram quase felizes”.
“ Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos, Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos, ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas sinha Vitória não queria saber de elogios.
-Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com sentimentos revolucionários.
Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhira: — "Hum! hum! E amunhecara, porque realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na rede e pegara no sono. Sinha Vitória andara para cima e para baixo—, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia, dando-lhe um pontapé.”
Sinhá encontrou assim, em Baleia, alguém para desabafar da bronca que alimentava por Fabiano por este não lhe ter dado atenção a respeito da cama de couro que desejava.
Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. A lembrança do papagaio sacrificado e a cama de couro substituiem a tristeza anterior pela esperança de realização de seu sonho. “Venderia as galinhas e as marrã (porca nova que deixou de mamar), deixaria de comprar querosene para realizar seu sonho.”

Novo corte. Fabiano já está em casa. Quem entra em cena é Sinha Vitória. A situação da família já é bem melhor. Comem e engordam. As mantas de carne no jirau indicam a prosperidade do casal.
Fabiano ronca. Ao longo da narrativa percebe-se que não conseguiu esconder da esposa que bebeu cachaça e perdeu o dinheiro no jogo.
Sinha Vitória pita cachimbo. Tem o rosto moreno, os olhos pretos, os pés chatos, largos e dedos separados. Entre uma ocupação e outra (cuidar da comida, consertar a cerca, dar água às galinhas e regar os craveiros) fica cogitando sobre seu objeto de desejo (a cama). Procura uma solução para o problema, um jeito de satisfazer sua vontade. É religiosa, obstinada, supersticiosa (episódio do cuspe) e vaidosa (usa sapatos de verniz que a incomodam). Além dos afazeres domésticos, também se preocupa com o trabalho do esposo ("- É capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.").

O espaço da narrativa é a casa e adjacências. O ambiente doméstico, enfim. Fica claro que o universo de Sinha Vitória é diferente do marido. Fabiano é focalizado em ação ao ar livre e na cidade, no recolhimento da casa dorme enquanto a esposa age. No caso dele o espaço exterior domina o interior (obrigando-o a retrair-se). Com a esposa ocorre o inverso. O espaço interior domina o exterior, tanto que ela organiza tudo à sua volta enquanto cogita obter seu objeto de desejo.

Neste capítulo o tempo é predominantemente psicológico. Sinha Vitória está imersa em suas cogitações. Por isto não segue uma ordem ao realizar as tarefas rotineiras. Apesar disto, fica-se sabendo que já se passou um ano desde que a família chegou à fazenda.

A animalização/humanização
Baleia aprova a atitude de Sinha Vitória, expressa sua admiração por ela. Entretanto, recebe um pontapé e sai com sentimentos revolucionários. Ao contrário do esposo, ela não considera a cachorra como sendo da família.
Repreende os filhos por se comportarem como animais ("-Safadinhos! porcos! sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.").
Fica evidente que a animalização não é vista como um valor positivo pela personagem. Neste particular, ela difere muito de Fabiano, que assume exteriormente uma imagem animalesca ("-Você é um bicho, Fabiano.” - capítulo 2)

A linguagem
Segue o mesmo padrão dos capítulos anteriores. Com uma pequena diferença. São poucas as metáforas indicando a animalização de seres humanos e humanização de animais. Isto ocorre porque a personagem é contrária a este tipo de procedimento.

Foco Narrativo
Continua em terceira pessoa com narrador onisciente. O discurso direto apresenta-se 6 vezes. Também neste capítulo não há diálogo. Mas ocorre uma inovação. A referência a briga do casal deixa transparecer que houve um diálogo, onde várias questões vieram à tona. Em apenas 1 oportunidade Sinha Vitória manifesta-se verbalmente de maneira quase ininteligível ("-Ixe!"). Os discursos indiretos livres também aparecem no texto (" Não é que ia deixando a comida esturrar.").

Observações
É interessante notar como o autor expõe os contrastes entre Sinha vitória e Fabiano. Ele dorme, ela cuida da casa e cogita soluções para seus problemas.
Sinha Vitória acredita que o marido se entusiasma e esfria com facilidade. Ela não desiste da idéia de conseguir seu objeto de desejo. Entretanto, como vimos anteriormente, Fabiano acredita que a esposa é maluca por querer uma cama, mas a tolera (capítulo 2). Assim, fica claro que a esposa está enganada no julgamento que faz do marido.
O espaço de ambos não é só diferente, é vivenciado de maneira diferente. Fabiano deixa-se dominar pelo espaço exterior, Sinha Vitória pretende configurá-lo à sua vontade.
A personagem é um pouco dispersiva. Seus pensamentos seguem um curso que às vezes não consegue determinar ("... Mas o sonho se ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço pra isolar o objeto do seu desejo".). O ronco de Fabiano é visto como índice de segurança, mas logo depois se torna insuportável.
Fabiano encara a animalização de seres humanos e humanização de animais como algo natural e desejável, por isto acostumou-se a cama de varas. A esposa repudia a maneira de pensar do marido, deseja uma cama mais confortável. A importância que a cama assume na narrativa é, portanto, bem maior que o leitor pode imaginar. A cama não é um simples objeto, reflete visões de mundo antagônicas, expõe as diferenças das personagens.
É digno de nota um detalhe interessante. Ao longo deste capitulo, o numero de metáforas indicando animalização de seres humanos/humanização de animais é muito pequena comparativamente aos capítulos anteriores (onde Fabino é o protagonista). Isto provavelmente ocorreu porque o centro de atenções neste capítulo é Sinha Vitória, a qual é contrária a ideologia do marido.
A estória é narrada predominantemente em terceira pessoa, o que teoricamente implica um distanciamento entre as personagens e narrador.

O quinto capítulo: “O Menino Mais Novo”, identifica-se com o pai e sonha ser vaqueiro.
A idéia surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios na égua alazã e entrou a amansá-la. Não era propriamente idéia: era o desejo vago de realizar qualquer ação notável que espantasse o irmão e a cachorra Baleia. “Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração.”

Sinha Vitória cachimbava tranqüila no banco do copiar, catando lêndeas no filho mais velho. Não se conformando com semelhante indiferença depois da façanha do pai, o menino foi acordar Baleia, que preguiçava, a barriguinha vermelha descoberta, sem-vergonha. A cachorra abriu um olho, encostou a cabeça à pedra de amolar, bocejou e pegou no sono de novo. Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, e foi puxar a manga do vestido da mãe e, como o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.
O Menino Mais Novo dormiu e sonhou. No dia seguinte, aproximou-se do chiqueiro das cabras, viu o bode velho e lembrou-se do acontecimento da véspera.
“Pôs-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão e a cachorra. Não obtendo resultado, indignou-se. Ia mostrar aos dois uma proeza, voltariam para casa espantados”.
Subiu no bode velho, imitando assim o pai e acaba caindo numa ribanceira e vira alvo de risos por parte do irmão mais velho, além de ganhar um olhar de censura da cachorra.

“Olhou com raiva o irmão e a cachorra. Deviam tê-lo prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade: o irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas, coices e marradas.
Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim, pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar, apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim torto, de perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados.”

Seguindo o mesmo modelo dos capítulos anteriores, o plano de cena é deslocado. Focaliza-se agora outra personagem.
Fabiano vestido de vaqueiro é a pessoa mais importante do mundo. Cavalga cavalo bravo e cai sem perder a honra. O garoto considera-o terrível.
O menino mais novo tem o peito magro, as pernas finas e veste-se com trapos. É dominado por alegria e medo. Vê o pai como um herói, como um exemplo a ser seguido. Imita o pai, mas fica irritado quando cai do bode. Tem medo de ser repreendido. É expansivo e seguro (o bastante para montar no bode).
O filho mais velho tem piolho. Tange as cabras até o bebedouro.
Sinha Vitória é perspicaz, repreende o filho intuindo que ele vai aprontar alguma.

A animalização/humanização
A cachorra Baleia é julgada sem vergonha, estúpida e egoísta pelo menino. A mascote desaprova sua conduta. Fabiano andava direitinho como um urubu. O menino berra imitando as cabras.
Observações
O menino mais novo é focalizado em ambiente aberto, exatamente como o pai. Imita-o e compartilha de sua visão de mundo. Vê-se como a figura paterna desempenha uma importância grande na vida da personagem, enfatizando a natureza patriarcal da família.
As semelhanças entre o garoto e a mãe são pequenas, ambos depositam suas esperanças de alegria num objeto distante.

No sexto capítulo “O Menino Mais Velho”, queria saber o nome das coisas e ter um amigo e ficou intrigado com o significado da palavra “inferno” que ouvira de sinhá Terta. Sinhá Vitória explicou que inferno era “um certo lugar ruim de mais” com “espetos quentes e fogueiras”; em seguida, dá-lhe um cocorote. Indignado com a reação e a explicação da mãe, pois era impossível “que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim”. Então, o menino mais velho foi compartilhar a sua indignação com Baleia. Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Baleia não gostava de ser apertada. O menino continuava a abraçá-la. Baleia encolhia-se para não magoá-lo, mas sofria com a carícia excessiva. Ela estava mais interessada num osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne, cujo cheiro vinha da cozinha.


A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os desejos moderados. Às vezes recebia pontapés sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a imagem do osso.
Naquele dia a voz estridente de sinha Vitória e o cascudo no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a janela baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé de turco, topou o camarada, chorando, muito infeliz, à sombra das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando em roda e balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva. E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegando, chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o procedimento dele era inútil.
O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o contato agradável, experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza do borralho.
Continuou a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara enlameada, olhou bem no fundo os olhos tranqüilos.
Todos os lugares conhecidos eram bons, o chiqueiro das cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro — mundo onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quase imperceptíveis na catinga, moitas e capões de mato, impenetráveis bancos de macambira — e aí fervilhava uma população de pedras vivas e plantas que procediam como gente. Esses mundos viviam em paz, às vezes desapareciam as fronteiras, habitantes dos dois lados entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos.
Nem sempre as relações entre as criaturas haviam sido amáveis. Antigamente os homens tinham fugido à toa, cansados e famintos. Sinha Vitória, com o filho mais novo escanchado no quarto, equilibrava o baú de folha na cabeça; Fabiano levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as costelas através do pêlo escasso. Ele, o menino mais velho, caíra no chão que lhe torrava os pés. Escurecera de repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido. Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta.

Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a idéia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de sinha Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.
— Inferno, inferno.
Não acreditava que um nome tão bonito servisse para designar coisa ruim. E resolvera discutir com sinha Vitória. Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-la dando-lhe um cocorote, e isto lhe parecia absurdo. Achava as pancadas naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes de orelhas. Esta convicção tornava-o desconfiado, fazia-o observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a interrogar sinha Vitória porque ela estava bem-disposta. Explicou isto à cachorrinha com abundância de gritos e gestos.
Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e necessários. Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro — saía latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se. Efetivamente a exaltação do amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou de novo. Seria bom dormir.
O menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele pôs-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos de macambira. Fabiano dizia que na serra havia tocas de suçuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de espinhos, surgiam cabeças chatas de jararacas.
A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as mãos e acomodou-se.
Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou. Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se. Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo. Esta imagem consoladora não a deixava.
O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era bom, mas estava misturado com emanações que vinham da cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e com alguma carne.”

Caracterização das personagens:
Sinha Terta, a curandeira banguela, não é descrita.
Fabiano confecciona a alpercata do filho.
O menino mais velho tem as mãos finais, dedos magros e unhas sujas. É supersticioso, acredita que uma entidade segura o pai na sela do cavalo. Não sabe falar direito, imita os animais e sons natureza. Tenciona ser como Sinha Terta. Acha as pancadas dos pais naturais. É retraído e inseguro.
O tempo da narrativa:
Neste capitulo o tempo é predominantemente psicológico. O menino mais velho escarafuncha os fatos de sua vida seca sentado a um canto da casa.
A animalização/humanização:
Baleia escuta a história contada pelo menino, responde com o rabo. O vocabulário do garoto é minguado como o do papagaio. As plantas parecem gente. Na serra azul há uma população de pedras.

A linguagem mantém as características dos capítulos anteriores, mas assume um caráter terno ("... Esses mundos viviam em paz, habitantes dos dois lados entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças eram sempre vencidas. Fabiano amansava brabo, evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela, indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos espinhos e dos galhos."). A linguagem parece refletir o estado de espírito do garoto imerso em suas recordações.
A narrativa é em terceira pessoa. O narrador onisciente. Só há 4 discursos diretos e como nos capítulos anteriores não existem diálogos. Os discursos indiretos aparecem na forma de indagações do garoto ("...Como era possível haver estrelas na terra?").
Observações:
Ao contrário do irmão, o garoto mais novo é focalizado em ambiente doméstico. É mais reflexivo que o irmão. Apesar de pastorear as cabras (capitulo anterior), pretende mesmo é imitar a rezadeira. Fala pouco como o pai e partilha o universo da mãe. As semelhanças entre eles são muito grandes. Ambos são supersticiosos e vivenciam o tempo da mesma forma.
As questões referentes à comunicação são retomadas. O garoto tem dificuldade de expressar-se verbalmente e tem consciência disto.
O narrador refere-se novamente ao episódio das pancadas e das espetadas que o pai deu no filho (capitulo 1), deixando ainda mais claras as variações na narrativa. Vejamos dois fragmentos representativos:-
"Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos . Fabino ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele levantasse. Como isto não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo." (capítulo 1)
"Nem sempre as relações entre as criaturas haviam sido amáveis. Antigamente os homens haviam fugido à toa, cansados e famintos. Sinha Vitória, com o filho mais novo escanchado no quarto, equilibrava o baú de folha seca na cabeça; Fabiano levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava as costelas através do pêlo escasso. Ele, o menino mais velho, caíra no chão que lhe torrava os pés. Escurecera de repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido. Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da faca de ponta." (capítulo 4)
Os dois fragmentos indicam claramente como o narrador é atraído para o universo de cada personagem. Ao focalizar a cena nos dois momentos percebem-se diferenças claras. No primeiro fragmento é enfatizada a cólera e a ação de Fabiano, no segundo o desfalecimento e a ausência de dor do garoto. É como se Fabiano estivesse narrando a primeira passagem e o garoto a segunda. Entretanto, em ambos os casos o narrador em terceira pessoa é o mesmo. Ao retratar o espaço e o tempo em que se movem a mãe e o filho mais velho o narrador é obrigado a lançar mão de recursos bem diferentes dos empregados para caracterizar o espaço de Fabiano. A oposição entre tempo cronológico/tempo psicológico, espaço doméstico/espaço aberto, obriga-o a estratégias diferentes em cada capítulo.

O poder da palavra
No capítulo “O menino mais velho”, Sinhá Vitória surge como um poderoso ser de linguagem para o menino que tenta decifrar o significado da palavra “inferno”. Trata-se de um trecho quase idêntico ao do capítulo “O inferno”, de Infância. Neste último, ao perturbar a mãe com perguntas a que ela não dá respostas, preferindo permanecer nas generalidades e nos subentendidos, o menino duvida e nega a linguagem materna segundo a qual “as coisas se passavam daquela forma diversa”. É também às avessas que Fabiano aprende a decifrar a linguagem. A metáfora de Sinhá Vitória (de que as arribações querem matar o gado por beberem a água que resta nos poços) perturba e revolta o vaqueiro. Ele acha a frase extravagante (do avesso, digamos) e fica dias matutando no significado daquilo. Como podem aves matar gado, bois e cabras? Até que, num surto, entende o significado do raciocínio tortuoso da mulher. Orgulha-se da inteligência dela neste momento de vislumbre linguístico.

No sétimo capítulo retrata quando vem a chuva em “Inverno”, arrastando tudo e quase inundando a casa, o medo aterroriza a todos. A família estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado no pilão caído, sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as brasas que se cobriam de cinza.
Eram as chuvas de inverno. Fabiano está de bom humor e não pensa no futuro. Conta façanhas e exagera. Acha que não havia o perigo da seca imediata, que aterrorizava a família durante meses. Sinha Vitória, porém, teme a enchente. Fabiano passava semanas fantasiando vinganças. Se a seca chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, mataria o soldado amarelo, depois o juiz, o promotor e filhos.
O menino mais velho estava descontente. O herói tinha-se tornado humano e contraditório.
Baleia se enjoava, cochilava e não podia dormir. Pensa nos bichos miúdos e sem dono que iriam visitá-la.

As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria, Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez sinha Vitória adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se espichavam era incômodo. As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria, Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a cachorra Baleia. Talvez sinha Vitória adquirisse uma cama de lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se espichavam era incômodo.

Baleia, imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que a família se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano fazia. No campo, seguindo uma rês, ele se esgoelava demais. Natural. Mas ali, à beira do fogo, para que tanto grito? Fabiano estava-se cansando à toa. Baleia se enjoava, cochilava e não podia dormir. Sinha Vitória devia retirar os carvões e a cinza, varrer o chão-, deitar-se na cama de varas com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo do caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia todo espiava os movimentos das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensíveis. Agora precisava dormir, livrar-se das pulgas e daquela vigilância a que a tinham habituado. Varrido o chão com vassourinha, escorregaria entre as pedras, enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o tique-taque das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la.

A mudança operada neste capítulo é mais significativa. Nos capítulos anteriores (capítulos 2 a 5) cada personagem é enfocado individualmente, refletindo sua visão dos demais e do mundo. Aqui são focalizados em conjunto.
Caracterização dos personagens:
Neste capítulo, a personagem central é a família. Ao iniciar o capitulo Graciliano Ramos deixa isto claro (" A família..."). O vocábulo família é empregado pelo menos 5 vezes. Além disto, recorre às expressões que indicam a unidade familiar ("...Engordariam todos.").
Pobreza material e dificuldade de comunicação são as principais características da família.

A animalização/humanização:
Sinha Vitória ruge. Se a água subisse iriam para o morro como preás. Fabiano tem um jeito de bicho lerdo. A toada dos sapos é lamentosa.
Foco narrativo:
Terceira pessoa, narrador onisciente. O discurso direto ocorre em 6 oportunidades, mas em 4 delas a fala assemelha-se a um grunido ("-An!"). Os discursos indiretos livres também estão presentes na forma de questionamentos dos membros da família ("-Que estariam fazendo?).
Observações:
Ao contrário dos capítulos anteriores, há um distanciamento maior do narrador em relação aos fatos narrados. Em vez de contradizer, este fato comprova nossa teoria.
A questão da comunicação retoma importância neste capitulo. Não há diálogo entre Fabiano e Sinha Vitória ("- Não era propriamente um diálogo, eram frases soltas..."). O filho mais velho não entende a estória contada por Fabiano e fica mais confuso quando ele a repete com outras palavras ("...Teria sido melhor a repetição das palavras."). O mais novo parece entender a estória porque presta atenção aos gestos do pai ("Fabiano gesticulava..."/ "O menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano, que se agitavam por cima das labaredas..."). As palavras são consideradas pelo garoto mais velho concretamente, por isto ele aferra-se à repetição dos sons. Não percebe o sentido das palavras, o conteúdo que elas veiculam. É natural que os garotos briguem por não se entenderem. A comunicação de um é visual a do outro é sonora, não partilham o mesmo universo simbólico.
O capítulo sugere diversas indagações de natureza linguistica. O isolamento da família transforma-a em um grupo sociolinguístico com características bem definidas. Até que ponto as limitações de seus membros poderiam ser superadas através do contato com o mundo exterior?
No capítulo “Inverno”, temos o meio do romance, e ao que indica o meio do ciclo, com as chuvas torrenciais. De acordo com a simbologia, sete é o número da perfeição. Fabiano, Sinha Vitória, os meninos e Baleia vivem momentos de glória, apesar dos contratempos trazidos pelas chuvas . Assim diz o narrador.
Dentro em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano não pensava no futuro. Por enquanto a inundação crescia, matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo muito bem. E Fabiano esfregava as mãos. Não havia perigo da seca imediata, que aterrorizava a família durante meses. A seca demoraria mais um pouco, porém, certamente, viria como um fantasma a persegui-los.
No oitavo capítulo “Festa”, a família tem necessidade de se aproximar das pessoas e ter um contato social. Preparam-se para irem à cidade, participarem da missa e desfrutarem a festa popular.
As roupas ficaram curtas e apertadas. Fabiano comprara tecido em quantidade insuficiente.
“A cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo. Se ela tivesse chegado antes, provavelmente Fabiano a teria enxotado. E Baleia passaria a festa junto às cabras que sujavam o copiar. Mas com a gravata e o colarinho machucados no bolso, o paletó no ombro e as botinas enfiadas num pau, o vaqueiro achou-se perto dela e acolheu-a.
Retomou a posição natural: andou cambaio, a cabeça inclinada. Sinha Vitória, os dois meninos e Baleia acompanharam-no. A tarde foi comida facilmente e ao cair da noite estavam na beira do riacho, à entrada da rua.”

Lá, sentem-se ridículos, humilhados, inferiorizados e surpresos com a quantidade de casas da cidade, como também a quantidade de pessoas.
“Chegaram à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na calçada, olhando a rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia estar no escuro, porque era noite, e a gente que andava rio quadro precisava deitar-se. Levantou o focinho, sentiu um cheiro que lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali perto e havia luzes em abundância, mas o que a incomodava era aquele cheiro de fumaça.”

Chegaram à igreja, entraram. Fabiano comparando-se aos tipos da cidade reconhece-se inferior. Desconfiava que todos caçoando dele. Pensa no soldado amarelo. Fabiano convidou a mulher e filhos para os cavalinhos e ficou vendo-os rodar. Foi beber cachaça na bodega.
Fabiano fica bêbado, lembra do soldado amarelo e desafia a todos “numa fala atrapalhada, com o vago receio de ser ouvido”. Ninguém responde às suas provocações.
“Os meninos trocavam impressões cochichando, aflitos com o desaparecimento da cachorra. Puxaram a manga da mãe. Que fim teria levado Baleia? Sinha Vitória levantou o braço num gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o canudo do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a cachorrinha? Indiferentes à igreja, às lanternas de papel, aos bazares, às mesas de jogo e aos foguetes, só se importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava por aí perdida agüentando pontapés.
De repente Baleia apareceu. Trepou-se na calçada, mergulhou entre as saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e chegou-se aos amigos, manifestando com a língua e com o rabo um vivo contentamento. O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Tentaram explicar-lhe que tido susto enorme por causa dela, mas Baleia não ligou importância à explicação. Achava é que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus donos.”

Os meninos estavam preocupados com Baleia que havia desaparecido. De repente Baleia apareceu. O menino mais velho agarrou-a. Estava segura. Sinhá Vitória pensa na cama de seu Tomás; Fabiano bêbado sonhava agoniado com muitos soldados amarelos que lhe pisavam os pés e o ameaçavam com facões horríveis.

Caracterização das personagens:
Sinha Terta é costureira e sabe comunicar-se bem.
Fabiano, Sinha Vitória e os garotos estão usando roupas novas, que são curtas e cheias de emendas. As botas incomodam Fabino, os sapatos altos dificultam o caminhar de sua esposa. Sinha Vitória ainda não esqueceu seu objeto de desejo (a cama).

O espaço:
O caminho que leva a cidade, a Igreja e as ruas da cidade onde funciona um parque e barracas de jogo. A multidão altera a percepção de espaço das personagens.
O tempo da narrativa:
O tempo é cronológico (saem de casa, presenciam a cerimônia e participam da festa). Ao lado do tempo cronológico, temos o tempo psicológico vivenciado por Fabiano no interior da Igreja.
A animalização/humanização:
As botinas resistem como virgens. Baleia forma uma opinião. Vestido de vaqueiro Fabiano é como um tatu dá coices no chão. Os matutos e ele são cachorros. O formigueiro (de gente) circulava a praça. Os meninos tentam explicar, mas Baleia não lhes dá atenção. Os meninos e ela compartilham a mesma opinião.
Observações:
A família, apesar de ser focalizada no meio urbano, não há interação entre seus membros e as outras pessoas. A multidão presente na Igreja e na festa constitui um universo que não é partilhado por Fabiano, esposa e filhos.
Os meninos percebem como seu pai e sua mãe, ficam diminuídos na multidão ("...No mundo subitamente alargado, viam Fabiano e Sinha vitória muito reduzidos.").
Entretanto, apesar de terem a noção da limitação de seu grupo não se integram ao grupo maior.
Novamente as questões linguisticas são debatidas no texto. O menino mais velho acredita que todas aquelas coisas tem nomes e não entende como os homens podem guardar tantas palavras. "Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas." Seu nível de abstração é limitado como seu universo verbal, não consegue interação com outra comunidade sociolinguistica porque não partilha os mesmos signos (exatamente como o pai e a mãe).
É interessante notar a religiosidade de Fabiano. Sua participação na cerimônia é estritamente formal, pois são outros os assuntos que lhe chamam a atenção no interior da Igreja. Aliás, o sagrado e o profano coexistem naquela comunidade (ao lado do templo estão as barracas de jogo).
As mulheres fazem suas necessidades na rua. O espaço urbano é partilhado entre elas como o pasto o é pelos animais. O grau de sociabilidade enfatizado pela passagem revela o estágio de desenvolvimento quase primitivo desta sociedade.
No nono capítulo temos a doença que toma conta da Baleia e a decisão de Fabiano em matá-la. Tinha emagrecido, o pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tensão de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de repetir a mesma pergunta:
“- Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras. Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinha Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinha Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais taludo e soltou uma praga:
— Capeta excomungado.”

Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinha Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco-, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono e desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinha Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.
Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar, as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinha Vitória retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochiles, numerosos preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinha Vitória tinha deixado o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

O espaço:
Sinha Vitória e os meninos ficam confinados ao espaço doméstico. Fabiano e Baleia nos arredores, onde a questão é resolvida.
A animalização/humanização:
Baleia é novamente caracterizada como uma pessoa da família. Após a cachorra ser alvejada, o narrador exprime suas sensações, emoções, pensamentos em termos humanos. Dominam as metáforas de humanização da cadela (desconfiança, temor, medo, desorientação, julgamento, dúvida, etc.).
Observações:
A grande questão deste capítulo é saber porque o narrador optou por narrar a execução predominantemente pelo ângulo de Baleia e não de Fabiano? Como vimos anteriormente, Fabiano identifica-se com Baleia. Ambos são bichos (capítulo 2), ambos são cachorros (capítulo 8). Quais seriam as emoções que dominavam Fabiano ao executar a cachorra?
Ao apanhar, limpar, carregar a espingarda e atirar na cachorra, Fabiano não faz qualquer consideração. Ora, como vimos Fabiano comporta-se como um bicho, mas tem consciência de que é um homem. Sendo assim, as questões colocadas só podem ser respondidas nos seguintes termos:- 1º- o sacrifício faz parte do referencial de humanidade de Fabiano; 2º- não há necessidade de exprimir ao nível textual qualquer sentimento de culpa da personagem (a culpa é inexistente). O ritmo da narrativa é perfeito. No início é rápida. A descrição do estado de Baleia é dada logo no primeiro parágrafo do capítulo (2 parágrafos). Em seguida, a velocidade é reduzida. São detalhados todos os procedimentos de Fabiano do momento em que decide matá-la até disparar com êxito a espingarda (13 parágrafos). A partir daí a narrativa arrasta-se mais lentamente até o final (22 parágrafos). Assim o narrador consegue identificar o narratário com o drama da cadela, produzindo um misto de expectativa e piedade em torno do desfecho da estória.
A esperança de Baleia retratada no último parágrafo do capítulo deixa o leitor em suspenso entre a certeza de sua morte e o desejo de sua salvação. É impossível deixar de torcer pela recuperação de Baleia. Será que Fabiano não se arrependerá e cuidará dela? Tomado isoladamente, o capitulo poderia ser considerado um dos melhores e mais belos contos já escritos em língua portuguesa.
Existem dois outros aspectos interessantes neste capítulo:- 1º- a superstição medicinal de Fabiano (pendura um sabugo de milho no pescoço da cachorra); 2º- não há nenhuma manifestação de religiosidade diante da execução.
No décimo capítulo: “Contas”

Fabiano vai à cidade para acertar contas com o patrão por seus trabalhos. Analfabeto, sente-se roubado, mas não sabe se defender. Aconselha-se com sinhá Vitória, mais esperta que ele, que faz somas e diminuições distribuindo, no chão, semente de várias espécies.
Os cálculos de sinhá Vitória nunca são os mesmos do patrão de Fabiano. Fabiano sabendo que estava sendo roubado reclama com o patrão e recebe a explicação a habitual: a diferença era proveniente dos juros. Fabiano não se conformou e o patrão ameaça-o a demiti-lo, Fabiano se curva perante ele e resigna-se.
“Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher. Sinhá Vitória mandou os meninos para o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu no chão sementes de várias espécies, realizou somas e diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de sinha Vitória, como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.”
Fabiano recua. Pensou na mulher, nos filhos, na cachorra morta. Tem remorsos de ter matado Baleia, que era como uma pessoa da família.
Caracterização dos personagens:
O patrão, no entender de Fabiano, rouba-o nas contas. Além disto, é grosseiro e se aproveita de sua ignorância usando palavras difíceis. É ele que faz as contas do ajuste entre ambos.
Fabiano é bruto, mas sabe recorrer à gaveta do patrão (algo que acha natural), achar explicações plausíveis para não pagar imposto e burlar o fisco. Forja planos, endivida-se e ouve conselhos.
O fiscal se aborrece com a explicação de Fabiano e o insulta. Não lhe dá o direito de protestar.
O tempo da narrativa:
Predominantemente psicológico. Não se sabe quando Fabiano inicia suas cogitações. Já se passaram alguns anos desde a seca. O episódio com o fiscal ocorreu no passado, mas não é detalhado quando e onde.
A animalização/humanização:
Neste capítulo a animalização ocorre em termos:- Fabiano = escravo = animal = propriedade do "amo". O patrão é designado pelo vocábulo "amo" 3 vezes, pela expressão "o branco" 2. Fabiano tem a casca grossa, bate os cascos no chão, dorme como um porco e morreria de fome na caatinga (como gado).

Observações:

Novamente são exploradas as contradições entre o mundo e a personagem. Ela é obrigada a submeter-se às contingências, tem consciência de que apenas a transgressão é que lhe conferiria humanidade ("- Um dia um homem faz besteira e se desgraça.") É interessante notar como Fabiano não encara sua vida como uma desgraça, mas apenas como uma conseqüência da má sorte de seu nascimento. É fatalista, não faz nada para mudar.
O capítulo expõe várias características da estrutura social em que a personagem está inserida:- 1º- abuso de autoridade pelo fiscal; 2º- a impossibilidade do vaqueiro se defender e a inexistência do direito de protestar; 3º- a exploração da ignorância; 4º- a esperteza do sertanejo como arma contra este estado de coisas.
Novamente o autor destaca aspectos que podem ser entendidos em termos linguisticos. A dificuldade de comunicação confina Fabiano à sua família (só a mulher o compreende), o que ocorre porque ele não compartilha o mesmo código que os demais.
Logo de inicio é detalhado o regime de parceria entre Fabiano e o proprietário (cabe ao vaqueiro 1/4 dos bezerros e 1/3 dos cabritos), bem como os problemas de sua execução. Até os dias de hoje a estrutura econômica e fundiária do nordeste privilegia este tipo de relação feudal.
Apesar do romance ser narrado em terceira pessoa, neste capítulo o patrão é caracterizado somente a partir da visão do vaqueiro. Ao proceder como se o narrador fosse Fabiano, o autor cometeu um equívoco ou agiu propositalmente? Talvez esta questão nunca possa ser respondida. O que importa realmente é a constatação do fenômeno que apontamos anteriormente. Em "Vidas Secas", o narrador em terceira pessoa é atraído para o universo das personagens perdendo sua autonomia.

No décimo primeiro capítulo reaparece o Soldado Amarelo, perdido na mata frente a Fabiano. Um ano antes, o levara à cadeia, onde ele aguentara uma surra e passara a noite. O soldado estava perdido na caatinga. As condições são totalmente favoráveis ao vaqueiro que, agora, pode dar o troco. O soldado treme, mas Fabiano, nada faz contra o soldado que se mostra medroso e enfraquecido, afinal, ele representa o governo e o governo sempre tem razão. Fabiano, revelando nobreza de sentimentos, tem pena do inimigo e deixa-o partir, ensinando-lhe o caminho.

“O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os músculos afrouxavam...Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
- Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado Amarelo.”

Neste capítulo a ação segue rigorosamente a que ocorreu no anterior. No final do capítulo 9 Fabiano deixa a cidade, agora focalizado retornando para casa depois de ter feito compras.

Caracterização dos personagens:
Fabiano agiganta-se diante do soldado amarelo. Não se conforma por ter sido humilhado no episódio da prisão.
O soldado amarelo acovarda-se diante do vaqueiro.

O tempo da narrativa:
É simultaneamente cronológico (encontro, indicação do caminho) e psicológico (hesitação entre atacar ou não o soldado).

A animalização/humanização:
Fabiano é um cabra, um pato, um frango molhado, rosna, grunhi, um bicho. Para ele as mulheres são fêmeas. O soldado amarelo é um cachorro, um catitu.

Observações:

É digna de nota a inversão que se opera. Na cidade (capítulo 3) Fabiano se acovarda, aqui é o soldado amarelo que se encolhe. Está fora de seu ambiente, de seu circulo social. O meio condiciona a conduta das personagens, cada um é senhor de si apenas em seu espaço. Entretanto, Fabiano não agride o inimigo. Tem consciência que seu universo está submetido ao dele, que encarna o governo. Ao constatar que o governo tem que se valer de pessoas mofinas e baixas como o soldado amarelo, Fabiano formula uma verdadeira teoria:- o Estado existe para mantê-lo naquela condição, por isto tem que se servir da escória.
Novamente Fabiano levanta a hipótese de que somente a transgressão lhe conferiria humanidade ("Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que vadiava na feita e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força."). Mas é justamente ao renunciar a agressão que Fabiano se descobre um homem. Mesmo podendo, recusa-se a matá-lo. Não reage como um animal tolera os abusos do inimigo em benefício próprio e da família.
Este capítulo deixa transparecer a mudança operada em Fabiano desde o capitulo 2. Não é um personagem tipo, mas redondo.

No décimo segundo capítulo: “O Mundo Coberto de Penas” refere-se à anunciação que a seca está chegando e a preparação para o capítulo final: a Fuga.
Volta o fantasma da seca. As aves de arribação vinham em bandos e bebiam a água do gado. Fabiano, primitivo e rude, custa a perceber e a entender o raciocínio de sinhá.

“Desejou ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aio a tiracolo, foi buscar o chapéu de couro e a espingarda de pederneira. Desceu o copiar. atravessou o pátio, avizinhou-se da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinham-lhe aparecido aquelas coisas horríveis na boca, o pêlo caíra, e ele precisara matá-la. Teria procedido bem? Nunca havia refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor as crianças à hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeça para afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda que lhe trazia a imagem da cadelinha. A espingarda, sem dúvida. Virou o rosto defronte das pedras do fim do pátio, onde Baleia aparecera fria, inteiriçada, com os olhos comidos pelos urubus.”

Fabiano percebe que o bebedouro cobria-se de aves, a água logo começaria a escassear. “Mau sinal, provavelmente o sertão ia pegar fogo”. Preocupado, Fabiano, tenta matar as aves, mas era “impossível dar cabo daquela praga”; lembra de Baleia, pensa também no que significam o soldado amarelo e o patrão, e pensa na mulher, “coitada de sinhá Vitória, novamente nos descampados”. Era, portanto, “necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados”.
A revolta de Fabiano, por causa da sensação de impotência diante dos opressores. Sente medo, procura afastar as aves a tiros e acha que seu destino é semelhante ao de Baleia. Chega a casa, com medo. Precisava consultar sinhá, combinar a viagem, livrar-se das arribações, explicar-se, convencer-se de que não praticara injustiça matando a cachorra.
Era necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinhá Vitória pensaria como ele.

Caracterização dos personagens:

Fabiano tem as mãos grossas, cabeludas e descascadas. Questiona-se acerca da proximidade da seca, mas acredita que ela não virá se não pensar no assunto.
Sinha Vitória percebe que as arribações competem pela água com o gado antes que o esposo.
A animalização/humanização:
Fabiano enrosca-se como uma cascavel. É um cabra, tem o coração grosso como um cururu.

Observações:

O capitulo é dominado pela oposição:- costume x necessidade de partir. Fabiano sabe que a seca está chegando, que deve partir, mas não quer acreditar nisto, apega-se ao lugar onde fixou moradia.
A fala mais elaborada de Fabiano é uma profissão de fé contra o governo (representado pelo soldado amarelo). Uma vez mais Fabiano se convence de que só adquiria a humanidade através da transgressão ("Talvez estivesse preso e respeitado, um homem respeitado, um homem."). Somente agora é que descortina-se em toda sua extensão a pobre condição do retirante. Ele não é um cidadão, não é um homem, não merece a atenção do governo, a não ser se cometer um delito. O Estado existe para reprimir e não para auxiliar o sertanejo em sua luta contra a natureza. Pior é constatar que isto ainda é realidade.
A seca que afugenta o retirante, alimenta-o durante sua caminhada ("Tencionou aproveitá-los como alimento na viagem próxima."). A natureza não é encarada de maneira valorativa. Não é nem boa nem má, é apenas cíclica.
“Se a cachorra Baleia estivesse viva, iria regalar-se. Por que seria que o coração dele se apertava? Coitadinha da cadela. Matara-a forçado, por causa da moléstia. Depois voltara aos látegos, às cercas, às contas embaraçadas do patrão. Subiu a ladeira, avizinhou-se dos juazeiros. Junto à raiz de um deles a pobrezinha gostava de espojar-se, cobrir-se de garranchos e folhas secas. Fabiano suspirou, sentiu um peso enorme por dentro. Se tivesse cometido um erro? Olhou a planície torrada, o morro onde os preás saltavam, confessou às catingueiras e aos alastrados que o animal tivera hidrofobia, ameaçara as crianças. Matara-o por isso.”
Aqui as idéias de Fabiano atrapalharam-se: a cachorra misturou-se com as arribações, que não se distinguiam da seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinha Vitória tinha razão: era atilada e percebia as coisas de longe. Fabiano arregalava os olhos e desejava continuar a admirá-la. Mas o coração grosso, como um cururu, enchia-se com a lembrança da cadela. Coitadinha, magra, dura, inteiriçada, os olhos arrancados pelos urubus.
Diante dos juazeiros, Fabiano apressou-se. Sabia lá se a alma de Baleia andava por ali, fazendo visagem?
Chegou-se a casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora ele sentia sempre uns vagos terrores Ultimamente vivia esmorecido, mofino, porque as desgraças eram muitas. Precisava consultar sinhá Vitória, combinar a viagem, livrar-se das arribações, explicar-se, convencer-se de que não praticara injustiça matando a cachorra. Necessário abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinha Vitória pensaria como ele.

No décimo terceiro capítulo: “Fuga”
A vida na fazenda se tornara difícil. Fabiano resistia, pedindo a Deus um milagre. Com o despovoamento da fazenda, Fabiano viu que tudo estava perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro que possuíam, salgou a carne e partiu sem se despedir do patrão. Sem saber para onde irem e devendo ao patrão; a família foge. Saíram de madrugada. Na fuga, lembram-se de Baleia e começam a conversar. Alimentam a esperança de uma vida nova.
“Saíram de madrugada. Sinha Vitória meteu o braço pelo buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela. Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os meninos atiravam cobras mortas, sinha Vitória lembrou-se da cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém percebeu o choro.”
“As palavras de sinha Vitória encantavam-no. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de sinha Vitória, as palavras que sinha Vitória murmurava porque tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinha Vitória e os dois meninos.”
As palavras de sinhá encantavam-no, Fabiano ria. Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.

Caracterização dos personagens:

Sinha Vitória está taluda, rosto carnudo, pernas grossas, nádegas volumosas (mas logo estará magra, com os seios caidos). Reaviva sua religiosidade.
Fabiano ordena a partida.

O espaço:

O rio está seco, a catinga, os mandacarus, a vegetação seca domina a paisagem. O céu limpo, sem nuvens, é indício seguro da transformação operada no clima. A fazenda voltou a ser o que era no início do livro:- um cemitério.
A animalização/humanização:
Sinha vitória não quer ficar calada como um pé de mandacaru. Fabiano rosna. O menino rói um osso (como um animal). Novamente Fabiano comporta-se com um negro fugitivo (um bicho), novamente refere-se ao patrão como "amo".

Observações:

O livro termina como começou. Trata-se de uma narrativa circular. No início os retirantes encontram o fim para sua caminhada, no fim começam-na novamente. Tem-se conhecimento que já haviam feito isto antes ("E talvez esse lugar onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado.").
A esperança movimenta o casal. Fabiano e esposa acreditam que os filhos poderão ter uma vida melhor que a deles migrando, deixando o sertão ("Mudar-se-iam depois para uma cidade, e os meninos frequentariam escolas, seriam diferentes deles"/E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias."). O sertanejo tem consciência que as coisas não mudam, que não pode mudá-las, portanto, que deve se mudar. O fatalismo cede ao otimismo. Há uma solução, a educação.
É assim que a obra cumpre uma dupla finalidade pedagógica:- 1º-denuncia a realidade e; 2º- aponta a educação como única solução. Entretanto, de que adianta a educação se o sertanejo é forçado a obtê-la fora de seu meio social? Se sempre haverá Fabianos vagando pelo nordeste? Estas na verdade são as grandes questões colocadas pelo livro.
Fabiano e família chegam à fazenda através do leito do rio seco ("Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredia bem três léguas."/ "Deixaram a margem do rio..."). E é transpondo o rio seco que segue viagem no final do livro ("... atravessaram o rio seco e tomaram rumo para o sul."). Há uma sutil mudança no comportamento do casal. Não segue o rio seco, mas as arribações. A natureza indica o caminho.
O soldado amarelo é o antagonista de Fabiano. Aparece em duas oportunidades. Na primeira, na cidade, abusa de sua autoridade levando-o preso. Na segunda, em ambiente rural, acovarda-se diante do sertanejo. O próprio desenvolvimento da obra é um índice da ausência de neutralidade do romance. No princípio, as personagens são apresentadas como retirantes. Estão no meio rural. Alcançam alguma prosperidade, mas Fabiano é vítima de um abuso de autoridade na cidade. Logo que é apresentado, o meio urbano mostra-se mais agressivo que a natureza. O sertanejo pode até adaptar-se à natureza, mas estará sempre submetido à sociedade. A complicação alcança seu apogeu com o desejo de vingança de Fabiano. O soldado amarelo simboliza toda sua repulsa àquela forma de organização social, onde ele deve ser apenas um bicho. Note-se que Fabiano exterioriza seu ódio quando está bêbado. Sóbrio, controla-se e deixa em paz o soldado amarelo ao encontrá-lo na caatinga. É óbvio que o sertanejo sabe que nada pode diante de um Estado que somente o reconhece como cidadão quando está em questão puni-lo. A seca retorna e a família e obrigada novamente a colocar o pé na estrada. No final, só a educação evitará que seus filhos levem aquele tipo de vida.


Afinal “o mundo é grande” e seguiam “para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. (...) E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos”.

6. ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:

- “Vidas Secas” traduz o sofrimento da pequenez humana diante de uma natureza implacável e seca e diante da própria arbitrariedade que rege as relações humanas nesse meio.
- “Graciliano Ramos movimenta as suas figuras humanas com tamanha impassibilidade que logo indica o desencanto e a indiferença com que olha a humanidade”, afirma o crítico Álvaro Lins. Realmente, o livro atesta o caráter passivo com que esses personagens se entregam a um destino incerto. A secura do sertão vai trabalhando a personalidade bruta de cada um deles.
- Fabiano falava pouco e, apesar de admirar “as palavras compridas e difíceis da gente da cidade”, sabia que, no sertão, elas “eram inúteis e talvez perigosas”. A consciência de inferioridade de Fabiano está relacionada ao espaço urbano e seus habitantes letrados. Ser forte e bruto: traços marcantes do vaqueiro sertanejo, ganha um sentido positivo pelo fato de Fabiano sobreviver no sertão. Fabiano oscila entre a condição de homem e a condição de bicho, a revolta e a submissão, a esperança imprecisa e o determinismo teimoso.
- O desejo de sinhá Vitória por uma “cama real”, revela-nos que por trás da palavra cama há um desejo de estabilidade. Ela encarna a praticidade, o espírito de iniciativa, a fé em Deus e num destino melhor para a família.
- O fato de os dois meninos não possuírem um nome próprio, pode indicar certo grau de “animalidade” dos dois meninos ou, que os dois ainda não têm condições para suportarem, por si mesmos, a aspereza do sertão.
- Baleia é o elo de ligação, entre a sensibilidade ingênua e primitiva e a insensibilidade, reagindo através da fantasia, do sonho, da comunhão com a natureza da qual recorre a leveza poética e o encantamento.
- A descrição da natureza é feita de forma animizada, com contrastes cromáticos e uma dose de personificação. A paisagem é vista na obra não apenas como mero cenário referencial, mas como uma personagem a mais, integrada que está ao próprio homem, como uma lei natural da vida naquela região. Ela é enxuta, áspera e limitada ao necessário. Fabiano projeta em suas características físicas a própria aridez da paisagem: seu rosto crestado pelo sol, seus pés rachados pelo calor e pelas pedras, seu cabelo avermelhado como o solo, seus olhos azuis como céu de sol. Dessa forma pode ser considerado como uma alegoria do cenário, da região árida e seca em que vive. Podemos destacar a integração natural de três elementos na composição da obra: o homem, os animais e a natureza. O homem submetido a um sofrimento secular, reagindo, portanto, por reflexos condicionados, tendo sua consciência enfraquecida por suas relações com a paisagem e seu nivelamento com o mundo animal. Aceita passivamente o mando dos mais poderosos, o sentimento do trágico, o destino fatalista a ele reservado há gerações e não tem autonomia ou força moral para lutar contra essa sina de miséria e exploração. Assim, há uma investigação do homem nas suas ligações com uma determinada matriz regional, mas focalizado principalmente no drama irreproduzível de cada destino. Conferindo uma dimensão de universalidade à pesquisa regionalista nordestina, superando a atitude do simples depoimento ou relato.
- A oscilação de Fabiano entre ser sujeito e sentir-se objeto, entre a condição humana a que pertence e a situação de desumanização a que está exposto, é um dos aspectos fundamentais da obra.
- A estrutura não linear da obra reitera o isolamento das personagens e representa artisticamente a instabilidade de sua existência de retirantes.
- Do segundo ao décimo segundo capítulos, a família vive com agregada em uma fazenda. Trata-se de uma fase de descanso em relação ao nomadismo provocado pela seca. Nesse período, em vez de ação, o foco é o universo interior das personagens.
- No capítulo “Inverno” em virtude das chuvas, as pessoas se dão ao luxo de sonhar e relatar histórias. Acompanhadas por um misto de calor e frio, de luz e sombra, ambos provocados pela fogueira que se mantém acesa, mas não aquece nem ilumina o suficiente, dando a impressão visual e tátil do gigantesco silêncio que isola as personagens.
- Não há saídas para as personagens, mas sim um eterno giro em torno do mesmo círculo vicioso. A miséria renova-se, bem como a esperança, para novamente surgirem às mágoas e descrenças, e assim sucessivamente. Dessa maneira, ao homem nordestino só resta caminhar obstinadamente, marcando seus passos sobre a terra árida que parece querer tomar sua alma e torná-lo tão seco por dentro quanto à paisagem que o cerca. Porém, há uma mensagem otimista, quase transcendental: Fabiano, sinhá Vitória e os meninos são mais poderosos que tudo isto, porque, apesar de tudo, ainda sonham; são, antes de tudo, criaturas fortes, eternas, no recomeçar – um cântico positivo de coragem, de resistência, de persistência e de vida.
- Migrar, portanto, tem sempre um sentido ambíguo – como uma imposição das condições econômicas e sociais ou ambientais – e, nesse caso, ela aparece no mais das vezes como um dos mais fortes elementos que explicariam uma destinação do ser nordestino, mas também como uma escolha contra a miséria e a pobreza da vida no sertão. Migrar é, em última instância, dizer não à situação em que se vive, é pegar o destino com as próprias mãos, resgatar sonhos e esperanças de vida melhor ou mesmo diferente. O problema está no fato de que numa vasta produção discursiva, retirou-se do migrante a sua condição de sujeito, como se migrar não fosse uma escolha, como se ele não tivesse vontade própria. Migrar pode ser entendido como estratégia não só para minimizar as penúrias do cotidiano, mas também para buscar um lugar social onde se possa driblar a exclusão pretendida pelas elites brasileiras através de seus projetos modernizantes.
- Migrar: destino do nordestino?
Quando se trata de migração nordestina, tudo se passa como se fosse uma decorrência econômica e social natural, levando-se em conta a construção imaginária do tripé Nordeste/ seca/ migração. Essa construção imaginária "destina" ao homem nordestino a condição e migrante, pobre e flagelado. De certo modo, essa representação social contribui para criar a invisibilidade histórica em torno do migrante, deslocando as questões para outros campos que não favoreciam o surgimento de uma história social que os incluísse. A discussão que proponho caminha em direção oposta, e se abre no sentido de entender que migrar não é uma via de mão única, e não há homogeneidade de objetivos entre os que migram, nem das condições sociais para migrar. Em suma, não há destinação. E tampouco migrar se constituiria necessariamente numa fatalidade.
- “O que dá o vetor à caminhada do homem é à procura da verdade sobre si próprio, é a busca do humano”. (MENESES: 1995,16). Nestes termos, sabemos que o ser humano nunca está satisfeito com o que conhece de si mesmo, não seria, portanto, diferente a busca pela linguagem em Vidas Secas e Infância, o objeto de desejo não seria alcançado em plenitude, visto que a satisfação da “coisa” é impossível. O que pode ocorrer é, em momentos de insight, os personagens reconhecerem os significados das palavras, o valor da linguagem em suas vidas. Essa não realização é justificável, porque em Graciliano Ramos ou em suas obras, não encontraremos um ambiente de festas e alegrias, mas fome, desespero e opressão. O objeto de desejo não pode ser alcançado pelos personagens, visto que não vemos finais felizes nas obras do autor, o que vemos é o constante interesse do autor por denunciar os problemas sociais que de certa forma também o cercavam.
- O próprio título da obra, se analisado corretamente, nos dará pistas importantes da mensagem que Graciliano quer passar: "Vidas" se opõe a "Secas”, pois a primeira tem sentido de abundância, enquanto, a segunda, de vazio, de falta, configurando um paradoxo (ou "oxímoro", oposição de ideias resultando em uma construção de sentido ilógico). Além disso, denotativamente, o adjetivo "secas" se refere a "vidas", e, dessa forma, teria o sentido de que a família sofre com a seca. Por outro lado, conotativamente, pode-se relacionar aquele adjetivo a uma vida privada, miserável.
- O romance originalmente se chamaria "O Mundo Coberto de Penas", título do penúltimo capítulo, em referências às penas negras dos corvos cobrindo o chão seco. O texto original está grafado assim. Porém o próprio Graciliano Ramos riscou o título
- Um dos fatores que nos faz afirmar que Vidas Secas não é um “ romance - desmontável” é a associação que pode ser feita entre o romance e o “ ciclo mitológico ”.
Todas as lendas da mitologia Grega e Latina relatavam cruzadas da raça humana, pois através de seus heróis as percebemos e interagimos com nossa própria consciência. Essas lendas, realizadas em forma de ciclo, são dividas em três etapas: Separação, Iniciação e Retorno.
No romance em questão, notamos que a Separação ocorrera antes do primeiro capítulo, Mudança. Temos a certeza de que ela existiu através de relatos das memórias das personagens, primorosamente utilizados por Graciliano. Nesta etapa o herói se desliga da “mãe terra”, que o protege e sustenta, para lançar-se ao mundo a procura de uma vida melhor. Após a Separação, dá-se início ao “rito iniciático”, caracterizado pela “energização” do herói: a família de Fabiano descansa sob um juazeiro, árvore similar ao salgueiro, símbolo detentor da fecundidade e imortalidade.
Esta recarga de energia será necessária para que Fabiano e sua família tenham esperança em continuar lutando pela sobrevivência. A partir daí seguem-se os capítulos que testam os nossos heróis: Fabiano, Cadeia, Sinhá Vitória, O menino mais novo, O menino mais velho, Inverno, Festa, Baleia, Contas e O soldado amarelo.
No penúltimo capítulo, O mundo coberto de penas, a premunição de que a seca voltará e o retorno àquela condição de incertezas os assombra. Nossos heróis atravessam o último capítulo, Fuga, e a última etapa do ciclo, o Retorno, que os levará novamente a primeira etapa, pois serão obrigados a peregrinar apenas com alguns de seus poucos sonhos, sem saber se completarão mais um ciclo de suas vidas.
Vale lembrar que Graciliano Ramos foi perseguido e preso, durante o Estado Novo. Quando saiu da prisão, não tinha mais nada. Ele vivia em casas de pensão no Rio de Janeiro e escrevia contos para os jornais para ganhar dinheiro. Um destes contos foi o da cachorra Baleia. Com o passar do tempo, ele passou a escrever outros contos que, integrados ao de Baleia, deram origem ao livro Vidas Secas. "É importante destacar que o autor faz essa junção tão bem que, embora você perceba que seus capítulos têm final bem demarcados, ao mesmo tempo, eles estão conectados como se tivessem sido escritos de uma única vez. Graciliano faz isso com maestria”.

OBRA LITERÁRIA VERSUS FILME:
Além de ser um dos clássicos da Literatura Brasileira, Vidas Secas também se consagrou como um dos clássicos do Cinema Nacional pelas mãos do diretor Nelson Pereira dos Santos, em 1963. Todo filmado em preto e branco, essa escolha estética permitiu-lhe que pudesse trabalhar as agruras do nordeste sob uma perspectiva de mostrar as dores internas das personagens, explorando a subjetividade em uma analogia ao romance, evidenciando a falta de vida e a falta de possibilidades. Comparando obra a literária à fílmica, Vidas Secas oferece diversas possibilidades de leitura e, dentre elas, a relação entre discurso indireto livre, a construção da imagem, a transposição de signo literário para fílmico e a representação do poder.
Na obra de Graciliano, o uso do discurso indireto livre conserva particularidades existentes na elocução da personagem, estilizando o efeito vívido e concreto da enunciação. Tal efeito recupera de modo mais direto a reação de Fabiano e de sua família à realidade que os cerca. Essas personagens são caracterizadas por um limitado desenvolvimento verbal, o que faz com que seus discursos precisem ser auxiliados pela narração sob pena de parecerem artificiais ou inconsistentes.
O discurso de Fabiano é perpassado pelo silêncio, por sua carência de palavras e por sua "querência": De pouca fala, mas de muito desejo, o sertanejo é incitado a olhar para longe, para além de si. Porém, quando seu discurso é colocado em estilo direto - sugerindo uma fala autônoma, não tutelada pelo narrador - revela-se mais limitado em termos de expor as idéias do que quando é expresso por meio do indireto livre.
A representação dessa carência de palavra foi conseguida por Nelson Pereira através de imagens focalizando o olhar e as expressões faciais dos personagens, com nítida influência do cinema expressionista alemão. A fim de demonstrar a importância do discurso indireto livre e das imagens para a exteriorização do que Fabiano sentia e ainda a relação entre discurso, imagem e representação de poder, passaremos agora a uma análise comparativa do capítulo "O soldado amarelo" e das cenas que o representam.
Na obra literária, Graciliano narra o encontro de Fabiano com o soldado amarelo da seguinte maneira:
“Seguiu a direção que a égua havia tomado. (...) Deteve-se percebendo o rumor de garranchos, voltou-se e deu de cara com o soldado amarelo, que, um ano antes, o levara à cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a noite. Baixou a arma, aquilo durou um segundo. Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais tempo, o amarelo teria caído esperneado na poeira, com o quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça do intruso, bem encima do boné vermelho. A princípio o vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa mais grave, uma autoridade.(...)
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
- Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.”


Após breve reflexão, Fabiano abaixa lentamente aquela arma, pois afinal, estava diante de um ser humano, uma autoridade. Nesse momento, o soldado passa da condição de "ser impotente" para "indivíduo", mudando o olhar e o comportamento.
Há novamente o recuo e o avanço de imagens para demonstrar a disputa pelo poder. Eles se entreolham em um nível linear e voltam seu olhar para o céu nordestino, numa relação de igualdade, por conta de serem ambos sertanejos.


Há novamente o movimento circular, Fabiano ouve o grunhido do gado, guarda o facão, passa as mãos sobre a barba e numa postura reflexiva olha para o gado.

Nesse momento, através do uso da palavra, símbolo maior de poder, o soldado amarelo retoma sua posição de poder em relação a Fabiano. O sertanejo abaixa olhar, tira o chapéu, balbucia a frase "governo é governo" e aceita sua posição de submissão frente à figura representativa de poder, dando a informação que o soldado havia exigido.

Antes de partir, o soldado lança um olhar de desdém e superioridade para aquele que havia deixado submeter-se.


Nesse capítulo, Fabiano levanta o facão instintivamente, pensando que fora um animal qualquer. Ao dar-se conta de que era o soldado, titubeia, amedronta-se, assume sua posição de dominado, permitindo que o soldado (símbolo do poder) seja novamente o detentor de poder. A atitude tomada por Fabiano e a frase proferida por ele (governo é governo) revela-se como uma constatação de que não há fuga diante as relações de poder. Ainda que se queira, que se sonhe, que se deseje o contrário, o poder deve ser respeitado e temido.

VIDAS SECAS VERSUS MORTE VIDA SEVERINA

Ambas as obras são curtas, mas apresentam algumas diferenças na estrutura: enquanto “Vidas secas” é apresentado em forma de prosa e o discurso é indireto livre, em “Morte e vida severina” o texto está em forma de poesia e o narrador em terceira pessoa, aparecendo apenas nas transições das partes do livro.
“Vidas secas” é dividido em capítulos, sem conexão direta entre si, como se cada um fosse um “quadro” diferente. Em estrutura circular, as personagens começam o livro e o terminam fugindo da seca. Há uma centelha de esperança quando as personagens se estabilizam na fazenda, mas ela é dissipada ao final da obra, e o que fica para o leitor é a dúvida do que vai acontecer com Fabiano e sua família e certo sentimento de que eles continuarão fugindo para sempre, andando em círculos.
Já em “Morte e vida severina”, a divisão é feita pelo aparecimento do narrador, conforme Severino muda de ambiente e/ou situação. A personagem principal começa o livro fugindo da seca, com pouca esperança ou esperança “mascarada”. Conforme ele caminha, a morte se apresenta cada vez mais cruel. Ele chega a considerar suicídio, mas se impede quando percebe que ainda há esperança em viver ao presenciar o nascimento de um menino (representando o nascimento de Jesus).

Linguagem: “Vidas secas”, assim como o clima, é seco. Sem adjetivações pesadas, a narrativa é baseada em substantivos e não há muitos detalhes. Com linguagem culta urbana, apresenta alguns poucos regionalismos e é sempre direta, “sem rodeios”. “Morte e vida severina” é mais “musicalizada”, em redondilha maior, na maioria das vezes. Com muitos adjetivos, João Cabral tenta, ao contrário do que Graciliano fez em “Vidas secas”, caracterizar o clima, o lugar e as personagens com o uso de adjetivos. Apesar disso, não deixa de ser simples e próxima da oralidade. O título, curioso, contrapõe dois antônimos, além de fazer com que um nome próprio se transforme em adjetivo.

Tema: Ambos abordam a seca e os retirantes, mas de formas diferentes.
“Vidas secas” é mais “negativo”. Como antes já dito, ao final do livro a impressão é de que Fabiano e sua família vão para sempre continuar a fugir da seca, que este é o destino deles. Além disso, mostra como o ambiente toma conta do homem e ele se torna menos humano a cada dia que passa, a ponto de seus filhos não terem nome.
“Morte e vida severina” mostra toda a degradação humana e ambiental em função da seca, discorre sobre a miséria, a morte e o triste destino de muitos. Entretanto, ao final a esperança surge e dá a entender que, apesar de todo o mal que a seca pode causar, ainda há espaço para a vida.

Personagens: Em “Vidas secas” há a antropomorfização e a zoomorfização das personagens. Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos vivem menos como uma família do que como um grupo de desconhecidos. A cachorra Baleia parece ser o elo entre os membros da família e a única que consegue ter objetivos e tentar alcançá-los.
Em “Morte e vida severina”, a personagem principal Severino caminha em direção ao Recife, pois acredita que lá a vida é menos “seca” e ele poderá, então, trabalhar e ser feliz. Ele chega a considerar trabalhar por certo período de tempo e interromper a jornada, mas decide continuar quando percebe que ele não pode fazer nada naquele lugar. Severino se considera um homem comum, tanto que, no início do livro, ele dá o máximo de detalhes sobre sua vida, para que as pessoas consigam diferenciá-lo dos demais “Severinos.” Ele se vê como um homem pobre, magro, vítima da seca.
As demais personagens do livro aparecem para contar um pouco de suas vidas e de sua situação no sertão a Severino.

Ambiente: Tanto em “Vidas secas” como em “Morte e vida severina”, o ambiente predominante é o árido.
Em “Vidas secas” há um período de chuvas e fertilidade, em que Fabiano e sua família ficam na fazenda cuidando do gado. Ao final do livro, entretanto, o período de seca volta, o que acarreta a nova fuga da família.
Em “Morte e vida severina”, Severino sai da Paraíba em direção a Recife. Conforme ele anda, o ambiente fica um pouco mais “verde” e mais fértil, mas ainda carrega traços de seca.
Período literário: “Vidas secas” pertence à segunda geração do Modernismo (1930-1945). Esta fase é a que apresenta características regionalistas e crítica social. Graciliano Ramos combina crítica com análise psicológica, assim como Machado de Assis, numa linguagem enxuta, objetiva. Não indica exatamente onde a história de “Vidas secas” se passa, para que a história não seja apenas regional, voltada para a seca, mas se torne uma história universal, sobre sofrimento e degradação humana.


CONCLUSÃO FINAL:

Há mais de sessenta anos, Graciliano Ramos escrevia Vidas Secas inspirado em imagens da infância somada à sua visão de adulto. O tempo passou, mas a cena ainda se repete: nuvens densas borram o céu, mas chuva que é bom, nada. E assim como as nuvens, as vidas seguem secas. Recentemente, por uma infeliz coincidência, vemos o retorno deste aterrorizante ciclo. Palmeira dos Índios, Alagoas, cidade da qual foi prefeito , bem como outras localidades do sertão nordestino, passa por uma das piores secas do século. Choveu menos da metade da média anual. Nenhum roçado vingou. O chão seco se abriu como ferida e vai virando areia, minando as vidas, espreitando a morte.
Não há feijão para colher, nem milho, nem nada. Mas o sertanejo é bravo, não se entrega jamais. Na terra ruim da seca, ele planta a palma, um cacto que serve para alimentar o gado, e que muita gente come também. A eterna capacidade de sonhar nos revela a dignidade do sertanejo. Ela é tudo o que eles mais precisam no meio de tantas atribulações. Sempre foi assim. Por isso dizemos que Vidas Secas é um romance atual. Qual a receita para se viver assim? A simples resposta vem destes mesmos personagens: contra a fome, a esperança. Contra o medo, a fé. Seguindo esta receita é que eles vão resistindo. Simples também é prever o seu destino: a seca sempre voltará. É um mal que parece não ter cura, transcendendo a atualidade de Vidas Secas e fazendo dele um romance eterno. Os 70 anos da obra-prima de Graciliano Ramos e os 80 de A Bagaceira, de José Américo de Almeida, celebrados com novas edições, trazem à tona o debate sobre literatura regionalista
Em 1948, dez anos após a publicação de Vidas Secas, Homero Sena perguntou a Graciliano Ramos, numa entrevista:
- Acredita na permanência de sua obra?
E ele, um pessimista que reagiu ao convencionalismo da linguagem e sempre brigou com as palavras, convencido de que essa era uma briga essencial, de vida ou morte, respondeu amargo e com sinceridade:
- Não vale nada; a rigor até já desapareceu...
Nos 70 anos de publicação de Vidas Secas, o mais sereno e otimista dos romances de Graciliano, escrito sob o signo do silêncio como se tudo nele estivesse apenas velado, é possível reconhecer a permanência dessa cartilha de concisão. Permanência atestada não apenas na escritura do livro, mas nos autores brasileiros que surgiram posteriormente a ele e que se beneficiaram dos seus experimentos, pois Graciliano era um experimentador. Cada uma de suas obras é um tipo diferente de romance, como chamou atenção Aurélio Buarque de Holanda. Todas num estilo próprio, a linguagem trabalhada até a última possibilidade de apuro, mas sem ser literária num modo antigo, luso-brasileiro. Graciliano reagiu à impostura do convencionalismo da linguagem, tornou-se romancista da modernidade brasileira, por mais que tentem vinculá-lo ao naturalismo. Moderno, mas não ?modernista?, na conotação que ganhou o termo com os modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Assumidamente avesso aos resultados da Semana de 22, Graciliano achava que os modernistas brasileiros confundiam o ambiente literário do País com a Academia e traçavam linhas divisórias, mas arbitrárias, entre o bom e o mau, querendo destruir tudo o que ficara para trás, condenando por ignorância ou safadeza muita coisa que merecia ser salva. Com a desconcertante franqueza de sempre, respondeu quando lhe perguntaram se era um ?modernista?: "Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão." Se o regionalismo criado por Gilberto Freyre em reação aos?modernistas? ajudou a polemizar a cena literária brasileira, também acentuou uma linha divisória que nunca se desfez, separando o Brasil em Nordeste e Sudeste.
Há quem se apegue ao uso que Graciliano faz de uma meia dúzia de vocábulos próprios do Nordeste - que não poderiam ser outros, pois falsificariam Vidas Secas -, para datar o romance ou classificá-lo como regionalista, num sentido que diminui sua grandeza. Desde o manifesto escrito por Gilberto Freyre, em que chama os modernistas de inimigos de toda espécie de tradicionalismo e de toda forma de regionalismo, confundem o movimento literário deflagrado por Freyre com regionalismo geográfico. Passaram a ser regionalistas, até os dias de hoje, os que escrevem fora da latitude sudeste, principalmente nordestinos, desde que refiram a linguagem e os cenários em que vivem. Uma danosa herança. Mesmo morando no Rio de Janeiro, a partir de 1937, Graciliano continuou emocionalmente vinculado à sua origem. Preferia o interior à cidade grande, e o contato íntimo com a terra e o povo. Reconhecia vir daí a força de escritores como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Jorge Amado.
Sendo um dos escritores modernos que melhor manejaram o nosso idioma, convencido de que não há talento que resista à ignorância da língua, deixou o exemplo de luta e querência pela palavra, a escrita como um difícil exercício de construção em meio ao silêncio. Preocupou-se com o estilo, mas não inventou um idioma, como Guimarães Rosa. Sem forçar comparações, pois acredito que os movimentos literários surgem como sintonias de um tempo em vários espaços do mundo, por afinidades estéticas, filosóficas e outras afinidades, reconheço nas obras de Graciliano e do francês Albert Camus um traçado que os aproxima. Essa analogia surpreendente ou evidente foi registrada por Lourival Holanda no seu livro Sob o Signo do Silêncio. Ele escreve: "Não cabe inquirir influências: o contato de Camus com o Brasil foi mínimo e tardio; Graciliano é já maduro quando conhece Camus." No entanto, ambos captam as ondas de seu tempo, escrevem obras em que reverbera o social, e antecipam mudanças no espírito literário.
Qual o legado de Vidas Secas para a literatura brasileira, nesses 70 anos? São muitas as respostas. Tornou-se quase estereótipo referir a exatidão, as frases curtas e limpas de excessos humanos, o ritmo dado às frases, a escolha certa das palavras, a eliminação de tudo o que não é essencial. Porém, o maior legado de Vidas Secas é o de uma escrita em que é possível reconhecer a linguagem no processo de tornar-se literatura.