quinta-feira, 15 de junho de 2017

“O OVO APUNHALADO", CAIO FERNANDO ABREU - CONTO: GRAVATA



A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de que havia sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la. Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque. Disfarçado, observou o preço e, em seguida, retomou o caminho. Cara demais, pensou, e enquanto pensava decidiu não pensar mais no assunto.
Quase conseguiu — até o dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia.
Pelo vidro da janela analisou sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras. Em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar — mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão, surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la.
Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais. Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume. Na manhã seguinte, tomou a decisão: dentro de um mês, ela seria sua. Passou na loja, mandou reservá-la, quase envergonhado por fazê-la esperar tanto. Que ela, sabia, também ansiava por ele.
Trinta dias depois ela estava em suas mãos. Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela — o trivial não seria suficientemente expressivo, nem mesmo o meramente correto seria capaz de atingi-la: metafísicas, budismos, antropologias.
Permaneceu deitado durante muito tempo, a observá-la sobre a colcha azul. Dos mais variados ângulos, ela continuava a mesma, terrivelmente bela, vaga e inatingível — mesmo ali, sobre a cama dele, mesmo com a nota de compra e o talão de cheques um pouco mais magro ao lado. Olhava os sapatos, as meias, a calça, a camisa — e não conseguia evitar uma espécie de sentimento de inferioridade: nada era digno dela. Um pouco mais tarde abriu o guarda-roupa e então deixou que um soluço comprimisse subitamente seu peito de coração ardente, como duas mãos que apertassem para depois libertá-lo em algumas lágrimas desiludidas. Não era possível. Não podia obrigá-la, tão nobre, a servir de companhia àqueles ternos, sapatos e camisas antigos, gastos, vulgares, cinzentos. Foi depois de olhar perdido para o assoalho que teve como um repente de lucidez. Então encarou agressivo a impassibilidade da gravata e disse:
– Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la à hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma. Você...
Não conseguiu ir adiante. A voz dele estremeceu e falhou bem no meio de uma palavra dura, exatamente como se estivesse blasfemando e Deus o houvesse castigado.
Um Deus de plástico, talvez de acrílico ou néon. Olhou desamparado para o sábado acontecendo por trás das janelas entreabertas e, sem cessar, para a colcha azul sobre a cama, logo abaixo da janela e, mais uma vez, para a gravata exposta em seu suporte de veludo pesado, vermelho.
Ele enxugou os olhos, encaminhou-se para a estante. Abriu um dicionário. Leu em voz alta:

Gravata S. f: lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço. Golpe no pescoço, em algumas lutas esportivas. Golpe sufocante, aplicado com o braço no pescoço da vítima, enquanto um comparsa lhe saqueia as algibeiras.

Suspirou, tranquilizado. Não havia mistério. Colocou o dicionário de volta na estante e voltou-se para encará-la novamente. E tremeu. Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se chocassem de repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:
– Você não passa de um substantivo feminino — disse, e quase sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.
Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada. Admitia que não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não conseguisse controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo daquela zona que alguns haviam convencionado chamar loucura. E essa era a primeira vez que se descobria assim, tão perto dessas coisas incompreensíveis que sempre julgara acontecerem aos outros — àqueles outros distanciados, melancólicos e enigmáticos, que costumava chamar de os-sensíveis — jamais a ele. Pois se sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas.
Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes de fazê-lo já se sabia temendo, já se sabia perdendo-se dentro dele — finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela.
Todo enleado nesse pensamento, tomou-a entre os dedos de pontas arredondadas e colocou-a em volta do pescoço. Os dez dedos esmeraram-se em laçadas: segurou as duas pontas com extremo cuidado, cruzou a ponta esquerda com a direita, passou a direita por cima e introduziu a ponta entre um lado esquerdo e um lado direito. Abriu a porta do guarda-roupa, onde havia o espelho grande, olhou-se de corpo inteiro, as duas mãos atarefadas em meio às pontas de pano. Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou viver uma madrugada de domingo — disse para dentro, num sussurro. — Basta apertar. Mas antes de apertar uma coisa qualquer começou a acontecer independente de seus movimentos. Sentiu o pescoço sendo lentamente esmagado, introduziu os dedos entre os dois pedaços de pano de cor vagamente indefinível, entremeado por pequenas formas coloridas, mas eles queimavam feito fogo.
Levou os dedos à boca, lambeu-os devagar, mas seu ritmo lento opunha-se ao ritmo acelerado da gravata, apertando cada vez mais. Ainda tentou desvencilhar-se duas, três, quatro vezes, dizendo-se baixinho do impossível de tudo aquilo, o pescoço queimava e inchava, os olhos inundados de sangue, quase saltando das órbitas. Quando tentou gritar é que ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, boca aberta revelando algumas obturações e falhas nos dentes, inúmeras rugas na testa, escassos cabelos despenteados, duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito, uma das mãos cerradas com força e a outra estendida em direção ao espelho — como se pedisse socorro a qualquer coisa muito próxima, mas inteiramente desconhecida.

ANÁLISE LITERÁRIA:

“[...] podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela”.
Caio Fernando Abreu

No conto “Gravata”, de Caio Fernando Abreu, há uma clara referência ao fator econômico na construção do enredo e na estruturação das personagens, em um contexto marcado por intensas transformações políticas e sociais.
O texto de Abreu apresenta uma metáfora do indivíduo que é dominado e sufocado pela sociedade, como uma crítica ao mercado, ao consumo excessivo que impera na sociedade capitalista. A solidão do sujeito e a busca do amor em um objeto retratam uma sociedade pautada na lógica do mercado.
Este sufocamento se dá a partir da submissão da identidade individual do sujeito aos padrões de consumo estimulados pelo sistema capitalista.
No conto, a subjetividade do protagonista eleva-se em oposição à objetividade do mercado consumidor, reproduzindo os dilemas mais íntimos dos sujeitos que viviam no ambiente urbano e integravam a força produtiva da época.

O conto “Gravata” apresenta um narrador onisciente que nos expõe a conturbada relação entre um homem e um objeto (a gravata).

Desde seu início, este conto revela-se como uma reflexão acerca da repressão imposta pelo brutalismo característico da sociedade brasileira da década de 1970, entusiasmada com uma promessa de progresso e cada vez mais desumana.
Como afirma Ana Paula Ohe (2009):

O “milagre econômico” brasileiro proporcionou ao país um crescimento da economia em ritmo acelerado. O ingresso maciço de capitais e empresas estrangeiras possibilitara a ampliação do mercado interno e externo. É nesse período, que pela primeira vez, a produção brasileira encontrara um mercado consumidor significativo em outros países, fazendo com que a transitoriedade dos modismos rompesse os limites territoriais para inscrever-se num âmbito global, tornando visível as mudanças nos padrões tanto de produção como de consumo. (OHE, 2009, p. 7)

Este contexto, regido pela lógica do consumo, é refletido no conto a partir da busca do personagem por se sentir incluído socialmente, através da aquisição de um bem material capaz de diferenciá-lo dos demais:

“No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia” (ABREU, 2008, p. 24).

A percepção de que a vida de algumas pessoas em sociedade se tornou efêmera e corriqueira pode ser relacionada com o consumismo, com o acúmulo de bens materiais e, consequentemente, de trabalho e de informação.

Assim, o indivíduo busca sentir-se melhor por meio da aderência a modismos, no caso do conto em análise, através da compra de uma gravata, que além de ser capaz de destacá-lo entre seus iguais – outros homens com o mesmo padrão de vestimenta e, que assim como ele, utilizam transporte coletivo –, também, por si só se constitui em um símbolo de marcação de status.

Pouco sabemos sobre o protagonista: trata-se de uma alegoria do homem comum. Desconhecemos seu nome, somos informados sobre algumas de suas características físicas (apresenta obturações e falhas nos dentes, rugas na testa e escassos cabelos) somente no último parágrafo, até então o destaque era dado apenas à gravata) e sobre parte de sua rotina de trabalho repetido por ele diariamente (trajeto de casa de ônibus para ir ao trabalho, vive sozinho, prepara o próprio jantar, fuma) e a cada saída para o trabalho ele passa pelos mesmos lugares.
A construção desta personagem oferece pistas substanciais para reflexão do distanciamento nas relações pessoais, do sentimento de solidão e perda de identidade que o homem experimenta nas situações características da vida urbana, que aglomera os seres, mas não os aproxima.
A racionalidade predomina em suas ações e torna suas posturas mecânicas, repetitivas.
A personagem está conectada com o mundo através dos meios de comunicação de massa, o que o torna presa fácil de campanhas publicitárias e ideológicas, que como ainda hoje, empurram os indivíduos para um consumo desenfreado e inconsequente, como pode ser constatado em trechos:

Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume” (Id. p. 25) e “em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar – mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão [...]” (Id., p. 24).
Não há no texto referência aos sujeitos que o protagonista possa conhecer ou encontrar ao repetir diariamente o mesmo trajeto. Quando o narrador menciona os demais homens que viajam no mesmo ônibus, estes surgem sem rostos, sem traços físicos, sendo identificados apenas pelas roupas que portam. As roupas, assim, são o elemento que equipara todos os homens, enquanto que, suas características físicas e psicológicas não são levadas em consideração.
As marcas urbanas, como as ruas, os ônibus, o asfalto e as lojas, são sobrepostas aos aspectos humanos no texto.

No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia. Pelo vidro da janela analisou a sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras” (ABREU, 2001, p. 26).

Sua rotina de trabalho estabelece certa “objetividade” em sua vida. Essa objetividade, no entanto, é abalada pelo encantamento que ele passa a sentir em relação a um objeto (uma gravata). Almejar um objeto novo, supostamente superior ao que possuía, converte o protagonista em apenas mais um dos tantos sujeitos que vivem na urbe, que fazem parte do sistema capitalista que nela impera.

Após ver a gravata pela primeira vez em uma vitrine, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus, delineia-se uma relação sentimental entre o homem e o objeto que se torna alvo de seu desejo e tem certeza de que ela havia sido feita apenas para ele e que não poderia mais esquecê-la, então, passou a organizar sua vida objetivando adquiri-la.

“No dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela” (ABREU, 2001, p. 26).

O que surge como diferencial no texto é o fato do protagonista devotar um sentimento tão forte para a gravata (denominado por ele de “amor”), dando ao objeto um status único, equiparando-o a uma pessoa numa espécie de amor platônico:

“No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la” (ABREU, 2008, p. 24).

“[...] voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. [...] surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais (ABREU, 2008, p. 24-25).

Nesse momento, a gravata ganha vida no texto, assume superioridade como pode constatar no título do conto. Ocupa o espaço dos demais indivíduos nas relações pessoais (objeto humanizado de um lado e sujeito coisificado de outro). Enquanto a ausência de uma precisão na caracterização do protagonista remete a uma equiparação entre todos os “homens”, entre todos os indivíduos que possuem rotinas de trabalho, que tomam ônibus e vivem sozinhos, convertendo-o em apenas mais um sujeito no meio da multidão, a impossibilidade de descrever com precisão a gravata devido à complexidade com que se apresenta para o personagem dá ao objeto um lugar de maior destaque do que o que é conferido ao sujeito. O desejo, a necessidade pelo objeto se apodera do indivíduo de tal forma, que este se vê absolutamente seduzido pela imagem da mesma:

“Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque” (ABREU, 2001, p. 24), tanto é, que mesmo após concluir que não dispunha de meios para pagá-la, não conseguiu desistir de comprá-la.

Recorrendo ao conceito apresentado no próprio conto, uma gravata é um “lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço” (ABREU, 2008, p. 26), ou seja, algo inapropriado, ou ainda, improvável para um sujeito que em seu trabalho realize atividades que envolvam esforço físico – as quais são desvalorizadas e até vistas com preconceito pela sociedade.

A gravata é usada, comumente, em conjunto com um terno e com sapatos, sendo associada a um traje mais formal e pertencente a ambientes de trabalho que requerem o emprego da razão em oposição à força física. Vinculada ao ambiente urbano, a gravata erige-se como uma marca da rotina de trabalho do protagonista na urbe.
Quando, enfim, consegue adquiri-la, o protagonista se vê em meio a sentimentos opostos: ao mesmo tempo em que busca racionalizar o que sente na tentativa de perceber a gravata como um objeto e, então, fazer uso dela, ele percebe a impossibilidade de controlar suas emoções: o protagonista debate-se entre o objetivo (a lógica do mercado) e o subjetivo (seus sentimentos).

“A cama pareceu menos vazia que de costume” (ABREU, 2001, p. 27), fazendo as vezes de um par romântico:

“Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela” (ABREU, 2001, p. 27).

Mas, seus sentimentos não podem ser facilmente racionalizados. O sujeito do conto de Abreu vê-se perdido, atordoado, pois o fato da gravata ser um objeto não impede que ele a ame. No texto, o narrador nos mostra a gravata com traços humanos, atribuindo-lhe também sentimentos:

“Que ela, sabia, também ansiava por ele” (ABREU, 2001, p. 27).

Ao tentar racionalizar o que sente, busca na falta de humanidade da gravata uma justificativa para a impossibilidade de amá-la:

“Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la a hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma“ (ABREU, 2001, p. 28).

E essa relação intensifica-se: “eu te amo tanto, tanto” (ABREU, 2001, p. 29).

O ato de vivenciar algo desconhecido, algo que ele não consegue racionalizar “por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento” (ABREU, 2001, p. 29) coloca-o em conflito existencial, surge a loucura em oposição à razão.

“Pois sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas” (ABREU, 2001, p. 29).

Quando o protagonista assume seu medo, ele consegue ir além da objetividade que o mantinha atrelado a sua rotina, que o fazia medir suas ações, que o limitava: “sim, podia fazer qualquer coisa” (ABREU, 2001, p. 29).

A personagem ao reconquistar seu equilíbrio, restabelecer sua totalidade e sair do estado de alienação, no qual estava imersa, tenta lidar com o objeto. Há um respeito e uma veneração do sujeito para com o objeto, mas aquele rompe a barreira que os separava e assume o objeto como seu.

“Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo” (ABREU, 2001, p. 30).

Nesse momento, o objeto (gravata) que havia catalisado essa tomada de consciência assume vida e sufoca o protagonista: a vida presente na gravata tira a vida do protagonista.

“Ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, [...] duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito [...]” (ABREU, 2008, p. 28).

O final do conto parece conduzir para uma visão fatalista, retratando a impossibilidade do indivíduo de desvencilhar-se do contexto, do mercado, do capitalismo, acabando por ser aniquilado. Entretanto, em seu sentido menos aparente, encontramos um texto que alerta para as relações impessoais e superficiais estabelecidas pela sociedade capitalista.

A desintegração progressiva das ligações sociais, a crescente atomização da sociedade, a intensificação do isolamento dos indivíduos, uns em relação aos outros, e a solidão, necessariamente inerente a essas tendências, torna o sujeito o próprio produto da alienação.

Abreu faz uma crítica a esse modo de vida, no qual as identidades individuais entram em conflito diante dos padrões e papéis sociais que necessitam exercer. Dessa forma, a gravata, metáfora de “mercado”, impede que o indivíduo recobre sua humanidade, sua totalidade, anulando sua existência.

O conto, assim, mergulha na subjetividade do protagonista para mostrar-nos o debate entre o objetivo e o subjetivo e a necessidade de conciliá-los. O sujeito fragmentado, incompleto, surge alienado, como o reflexo do mercado. Sua ambição está no consumo do melhor produto, na aparência. Porém, o consumo continua mantendo-o incompleto.

Abreu nos apresenta uma sociedade automatizada nas relações de produção e consumo e mesmo nas relações sociais. Essa mudança teve como resultado sujeitos alienados que perderam a noção de totalidade (de dominantes passaram a dominados). Na sociedade capitalista moderna, o elemento subjetivo da realidade social surge separado do elemento objetivo, como se fossem duas substâncias independentes: subjetividade vazia de um lado e objetividade coisificada de outro; de um lado o automatismo da situação dada e de outro a psicologização e a passividade do sujeito.

A única forma de romper com essa automatização é através da reflexão de que o homem é o portador verdadeiro do movimento social, tanto no processo produtor e reprodutor de sua vida. 

quinta-feira, 18 de maio de 2017

O ENFERMEIRO, MACHADO DE ASSIS




O conto O Enfermeiro está, certamente, entre os melhores contos de Machado de Assis.
Narrado em primeira pessoa a um interlocutor imaginário, é a história do último enfermeiro do rabugento coronel Felisberto, que esgana seu indócil paciente.
Sofre o drama de consciência, intensificado pela herança do pecúlio do velho, mas a culpa arrefece quando se vê reconhecido por sua dedicação extrema. São todos exemplos maduros do realismo machadiano.

O narrador nos relata a história de uma vez em que tinha ido trabalhar como enfermeiro para um riquíssimo senhor de nome Felisberto. Era tão rico quanto ranheta, o que havia motivado os inúmeros pedidos de demissão de enfermeiros anteriores. Por causa disso, o narrador é tratado pelo padre da pequena cidade interior em que estão com toda a atenção, já que é quase a última esperança.
Corre a seu favor o fato de o senhor estar muito doente e, portanto, à beira da morte. Por sorte, o protagonista se mostra como o mais paciente que já havia sido contratado, o que angaria alguma simpatia do velho. Mas a lua-de-mel durou pouco tempo: logo o doente mostrou o seu gênio e começou a tratar rispidamente o enfermeiro. De primeira, aguentou, até que atingiu seu limite e pediu demissão. Surpreendentemente, o oponente amansou, pedindo desculpa e confessando que esperava do enfermeiro tolerância para o seu gênio de rabugento.
As pazes voltaram, mas por pouco tempo. A tortura retoma, até o momento em que o idoso atira uma vasilha d’água que acerta a cabeça do enfermeiro. Este, cego com a dor, voa sobre o velho, terminando por matá-lo esganado.

Começa então o processo mais interessante do conto. O narrador remói-se de remorso, mas começa a arranjar desculpas em sua mente para arejar sua consciência (trata-se de uma temática muito comum em Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas ela já havia aparecido, num capítulo em que o narrador a metaforizava. Quando fazemos coisas erradas, é como se nossa consciência ficasse numa casa sufocada, com todas as portas e janelas fechadas. Então inventamos desculpas, muitas vezes nos enganamos mesmo, lembramos de outros fatos, como se fosse possível, por meio de uma boa ação, real ou inventada, compensarmos falhas, ou seja, abrir a janela da casa e arejar a consciência): o velho tinha um aneurisma em estágio terminal que iria estourar a qualquer hora mesmo. No entanto, para complicar sua situação, quase que como uma ironia, o testamento do velho declara que o enfermeiro era o único herdeiro. O protagonista mergulha num conflito interior, que pensa eliminar doando a fortuna. É mais uma maneira de tentar arejar a consciência.

A partir de então começa o processo mais interessante do conto. Quando as pessoas vêm elogiar sua paciência com um velho tão insuportável, resolve elogiá-lo o máximo possível em público, como maneira de ocultar para a opinião alheia todo vestígio do crime. O pior é que acaba até se iludindo, eliminando de toda a sua consciência qualquer resto de crise. Nem sequer se livra, pois, da herança. Chega a fazer doações, como recurso de, digamos, “arejamento de consciência”. Fica, portanto, a ideia de que muitas vezes o universo de valores internos (o enfermeiro foi criminoso ao assassinar Felisberto) não corresponde ao de valores externos (uma cidade inteira o elogia pela paciência e dedicação a um velho rabugento). E o mais incrível é que, mesmo sabendo do seu próprio universo interno e, portanto, da verdade, o narrador ilude a si mesmo. A literatura machadiana encara esse processo como comum no ser humano.


quarta-feira, 26 de abril de 2017

UNS BRAÇOS, MACHADO DE ASSIS


                                     "Mulher com chapéu" (1940), de Di Cavalcanti

Publicado em 1885 na Gazeta de Notícias (depois no livro “VÁRIAS HISTÓRIAS”, em 1896) e mais amplamente inscrito em um período de intensa criação de Machado de Assis em contos, “UNS BRAÇOS” é um texto recorrente nas diversas coletâneas didáticas, críticas e de divulgação do autor, que revela a expressividade fortemente unívoca dos aspectos contextuais, temáticos e estilísticos da escrita machadiana.

A ação está restrita à brevidade temporal e quase somente ao ambiente doméstico, urbano, mais precisamente na Rua da Lapa, em 1870, pouco tempo depois do término do Romantismo. É possível observar que algumas características do Realismo vão surgindo, mesmo que suavemente, já que Machado está à frente do seu tempo e anuncia a tendência que está por vir.                                                                                                                                

O foco narrativo é de terceira pessoa que conduz quer contar em paralelo os sucessivos pensamentos das personagens, reforçando uma composição de múltiplos pontos de vista sobre a realidade, bastante relativizada, assim como é uma voz que omite ou desconhece algumas causas da ação, demonstrando ser a realidade também escorregadia e ilusória, com o efeito último de problematizar o paradigma da representação realista. Indo além, a colocação dos eventos mais importantes da narrativa na esfera íntima das relações amorosas complica ainda a percepção romântica do real, trazendo o amor para o mesmo jogo de incertezas.

Primeiramente, pode-se tentar reconstruir as identidades das TRÊS PERSONAGENS que compõem a cena de abertura da história, que são conhecidas aos poucos, para entender o diagrama de suas forças idiossincráticas e sociais.

É a história de INÁCIO, jovem de 15 anos que foi retirado do seio de uma família modesta, composta pela mãe, pelas irmãs e pelo pai barbeiro, cujo espírito de grandeza (principalmente financeira) ao vislumbrar o futuro do filho fizera com que ele confiasse Inácio ao solicitador (funcionário do Judiciário, algo entre procurador e advogado) BORGES, para ser aprendiz na profissão burocrática da procuradoria judiciária.

A mudança na vida de Inácio foi drástica, pois ele precisou ir morar no quarto dos fundos da casa do patrão, não desfrutando da usual intimidade familiar, sendo obrigado ao desgosto de um trabalho que exercia sem vontade nem habilidade, e vivendo sob a proteção de um homem que parecia estar longe de um ideal de figura paterna, ou mesmo de patrão.

Essa dependência durava cinco semanas quando o conto se inicia (note que nesse conto Machado mostra o dom que possui para narrativas memorialistas. Veja também o seu início abrupto, sendo o leitor jogado de chofre no meio da história, técnica chamada de in media res) com Inácio sendo acusado de algo que o fazia sofrer os grosseiros impropérios de Borges, “a preguiça do corpo”, o “sono pesado e contínuo” (p. 377), o “devanear à larga” (p. 378).
Seu novo estilo de vida, dentro do quadro social brasileiro da época de Machado, hierarquizado entre os extremos da ordem senhorial dos proprietários e da ordem dos escravos, libertos ou não, correspondia à rubrica de dependente, já que agora dependia dos favores (moradia, alimentação e educação profissional) de alguém pertencente a uma classe superior. Pouco superior, nesse caso, porque o pai de Inácio também era um trabalhador assalariado como Borges, que, inclusive, para manter sua condição, “trabalhava como um negro” (p. 380).

Outro aceno importante presente na cena do jantar é a interpretação metafórica dos signos não-verbais da realidade, como o corpo, seus gestos e movimentos, em signos verbais, em linguagem ou língua escrita. Tem-se, de início, apenas a figura de um Borges ruminante, que “abarrotava-se de alface e vaca” (p. 378) ruidosamente, como se assim fizesse seu discurso agressivo contra Inácio ressoar ainda nos pobres ouvidos do empregado, até suspendê-lo com “vírgulas” de vinho.

Mas surgirão posteriormente desdobramentos dessa concepção das coisas como recursos discursivos, gramaticais, simbólicos, ou seja, como mediações das palavras, e não como coisas em si. Além disso, a mastigação de Borges é narrada de um ângulo menos distante e idealizado do que poderia ser aquele do pai de Inácio, a quem o solicitador parecia uma figura respeitável, de certa importância, o que já começa a demonstrar a relatividade das percepções.

O segundo membro da célula familiar de que Inácio se aproximara é D. SEVERINA, A MULHER DOS BRAÇOS COBIÇADOS, única razão de seu admirador não fugir daquela casa, que vivia com Borges “maritalmente, há anos” (p. 377), o que institui a figura da esposa não consagrada pelo matrimônio.
Deve-se lembrar que na época em que se passa a história, 1870, não era comum uma mulher exibir tal parte do corpo. Mas, antes que se pense que ela era despudorada, deve-se lembrar que só o fazia por passar por certas dificuldades que tornava o seu vestuário falto de peças mais adequadas.

Ainda assim, os breves momentos em que via a mulher e principalmente os braços dela eram, para Inácio, o grande alívio diante de um cotidiano tão massacrante.
BORGES repreende INÁCIO por andar tão distraído, confundindo papéis e errando casas. Logo em seguida, o narrador faz a seguinte observação acerca de Inácio:

Cabeça inculta, mas bela, olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber nada.

Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado. Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.

Durante as refeições, Inácio procura ao máximo prolongar sua permanência na mesa para poder continuar na presença de D. Severina:

Inácio demorou o café o mais que pode. Entre um e outro gole alisava a toalha, arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros da sala de jantar, que eram dois, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas encaixilhados em casa.

Severina, por sua vez, trazia sempre os braços nus à mesa, podendo-se tratar de uma provocação, ainda que inconsciente, mesmo se já gastara todos os vestidos de manga comprida que possuía.

Até que um dia D. Severina percebe o interesse que desperta no moço. Demora a aceitar, pois considera-o apenas uma criança. Mas, quando vê o homem já na forma do menino, entra num sentimento conflitante, misto de vaidade e pudor. Por isso oscila entre tratar mal o rapaz e mostrar preocupação com o seu bem-estar.

Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto.

Era um “amor adolescente e virgem” (p. 381), puro em razão da inexperiência e sofreguidão emocional do moço, mas era impuro por escolher uma mulher proibida.
O sentimento de Inácio era “confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa a primeira flor”. Nesta passagem, Machado descreve exatamente o sentimento da paixão, que é por si só algo contraditório, dúbio e perturbador.

Trata-se, aqui, do despertar sexual do rapaz que implica diversas impossibilidades: ao apontar a diferença de idade entre Severina e Inácio, Machado é elegante e delicado; prefere a sugestão em vez da obviedade. Primeiro anuncia a idade do menino: “Tinha quinze anos feitos e bem feitos”, para mais a frente deixar-nos à par da idade da senhora: “Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos”.

Severina não só é mais velha (quase o dobro da de Inácio), ela vinha de uma classe superior e era casada, e ambos estão inseridos na sociedade oitocentista, impregnada de valores morais e sociais muito rígidos.

Inácio, porém, não é o único a ter comportamentos contraditórios. Severina adota uma postura essencialmente ambígua, contraditória e misteriosa.

D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela primeira vez, desconfiou alguma coisa.

Rejeitou a ideia logo, uma criança! [...] Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada.

D. Severina, primeiro, recusa a ideia de que o rapaz estivesse mesmo demonstrando interesse, para logo depois descartar essa rejeição, afinal, ela não podia ser amada ou desejada? Depois, passa a imaginar Inácio de forma sexualizada, em seus traços físicos da puberdade, para, enfim, procurar justificativas para a atitude do rapaz, por querer, justamente, se sentir mais viva, e consequentemente, menos submissa, assim, passa também a devanear e a assumir um comportamento semelhante ao do rapaz: “há ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas tornam e pousam” (p. 379).
Trata-se de um quadro de adultério pintado com suaves tintas por Machado de Assis, cuidadoso que é na estruturação de suas histórias, nunca ferindo as vistas dos leitores.

A profundidade do caráter de Severina é perceptível até mesmo por sua descrição física:

Não se pode dizer que era bonita; mas também não era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente de tartaruga que a mãe lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada. Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.

Ao descrever seus anos como floridos e sólidos, o autor contrasta o viço de sua beleza com a sua situação social e sua postura diante do casamento.  Logo vemos a sexualidade reprimida diante dos fatores sociais. Esse conflito vai achar refúgio nos sonhos e insinuações inocentes de Inácio, que não consegue esconder as distrações à mesa, os olhares indiscretos e o fascínio por seus braços. Dona Severina apaixona-se antes por sua própria beleza, ao descobrir-se desejada e dá vazão aos seus sentimentos, talvez porque seu marido não demonstrasse afeto ou ela achasse impossível ser notada por um jovem de apenas quinze anos.

Na passagem seguinte, a atitude do solicitador pode ser uma simples repressão, mas pode ser também que estivesse desconfiando de algum interesse por parte de sua mulher e de seu escrevente. Trata-se de um vazio que o texto cria e que o leitor deve resolver sozinho, porque a narrativa machadiana não se compromete em resolver os conflitos que ela mesma cria:

- Que é que você tem? disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de alguns minutos de pausa.
- Não tenho nada.
- Nada? Parece que cá em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos...

D. Severina pega de surpresa dissimulou seus pensamentos, entabulando uma conversa sobre sua comadre para fugir à ameaça “de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos”, proferida pelo marido que, mais uma vez, esteve “fuzilando ameaças” sem cumpri-las e provou ser “antes grosseiro que mau” (p. 380). Pouco depois, estando convencida de que descobrira uma verdade moralmente reprovável, “chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho” (p. 380).

D. Severina, no entanto, “aqui estacou: realmente não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão”. Será que agora tinha dado a inventar coisas?  “Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de estar enganada” (p. 380).

D. SEVERINA dividida entre o sim e do não, dentro do labirinto em que o narrador fecha também o próprio leitor, a despeito de este conhecer as intenções de Inácio, D. Severina decidiu interromper suas conjeturas e se voltar à objetividade da observação minuciosa do mundo exterior: “refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas” (p. 380).

A sujeição feminina encontra-se também manifesta na passagem em que Severina teme acariciar seu próprio marido por medo de irritá-lo ainda mais: “fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais”. Porém, como quem se indigna com essa submissão, Severina tem atitudes mais que ousadas para uma senhora casada inserida na sociedade brasileira oitocentista. Como achasse por bem observar o rapaz Inácio antes de tomar uma atitude inapropriada e precipitada, aceitou estrategicamente que tudo fora apenas ilusão, e “percebeu que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo.”
Perdida nos extremos de sua realidade íntima, trata Inácio mais secamente, chegando, às vezes, ao contrário, a dedicar-lhe meiguice e atenção. Além de sua inconstância, o narrador mostra também os titubeios do jovem após percebê-la, a vontade de ir embora, uma ideia que nunca se concretiza e sempre permanece em segundo plano.

- Deixe estar, - pensou ele um dia - fujo daqui e não volto mais. Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos.

O próximo comportamento de D. Severina foi oferecer a Inácio todos os seus cuidados, desencadeando no moço algumas reações adversas.

Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via mulher, ao longe ou ao perto, que lhe não trouxesse à memória” (p. 381), e, em casa, estava inquieto, sem entender e dormindo mal. O rapaz realmente sofria sua paixão, já não se encontrava e até começava a deixar de ser o pródigo dorminhoco de antes, porque, com as novas esperanças vindas com o carinho que recebia, “acordava de noite, pensando em D. Severina” (p. 381).

Esse triste insucesso começou com “a mesma linguagem obscura e nova de D. Severina” (p. 382) cantada pelo mar, avistado, através da janela do quarto, pelo solitário Inácio. Era como se o fluxo e influxo das ondas não fossem coisas reais, mas signos a serem interpretados, mediações linguísticas que, em sentido último, enfraquecem a perspectiva de uma realidade una, transparente e sem contradições.

Já um pouco hipnotizado e como estivesse cansado, pois “dormira mal a noite, depois de haver andado muito na véspera” (p. 382), começou a ler o folheto da História da Princesa Magalona, filha de El-rei de Nápoles, e do nobre e valoroso Pierre, Pedro de Provença, e dos muitos trabalhos e adversidades que passaram, difundido no Brasil junto a outros folhetos populares de cordel, por volta dos anos de 1860 e 70. Comparou a heroína desse livro de origem medieval e de todas as outras histórias antigas à D. Severina, mas quem serviria ao papel da princesa capturada, de quem o bravo herói, cavaleiro ou príncipe, se aproxima para salvá-la do sono mais profundo com um beijo apaixonado, seria ele próprio, outra Branca de Neve, Bela Adormecida ou até Julieta de Shakespeare, que, dessa vez, fez falhar a profecia romântica. Mesmo que Inácio fosse o nobre e valoroso cavaleiro medieval da época da Princesa Magalona, havia demasiado torpor em seu olhar a aproximação da “dama de seus cuidados”, com braços passivos que não foram ao encontro dos de D. Severina. Enfim, ele dormia.

Pena ter ele justamente ido recuperar a noite de insônia na hora errada, causando, por esse infortúnio, o fim de seu caso amoroso com tão lindos braços...
Essa frase já aponta para o próprio final do conto, e poderia mesmo ser repetida, em se tratando de um adiantamento de expectativas.

A simultaneidade temporal das ações e do sono de Inácio vivida na sala próxima ao seu quarto é imediatamente revelada. D. Severina sofria sintomas de loucura e criava pretextos para ir vê-lo, julgando-o doente. A visão angelical do moço dormindo, apesar de tocar seu coração, convenceu-a de que estava diante de uma criança. Convenceu a si mesma com a argumentação do sentimento, “naquela língua sem palavras que todos trazemos conosco” (p. 383).

D. Severina aproxima-se de Inácio dormindo na rede e dá-lhe um leve beijo na boca. Enquanto os pensamentos e impulsos de D. Severina davam reviravoltas, um primeiro incidente veio confirmar a compleição um tanto infantil de Inácio: ele não acordou com o barulho da tigela derrubada pelo gato ali perto, que sobressaltou a senhora.

A criança tinha o sono duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade” (p. 383-4).
Depois do beijo dado por D. Severina no moço dorminhoco, que, naquele exato momento, sonhava ser beijado pelo mesmo beijo, ela sentiu primeiramente medo, em seguida vergonha pelo ato incestuoso de se aproveitar de um filho inconsciente, e irritação por ele talvez estar só fingindo que dormia. Sentia e pensava isso tudo sem a certeza de nada. Já Inácio só tinha a certeza de que sonhava e de que nada havia interrompido suas horas de descanso até o jantar, durante as quais “ouvia as palavras dela, que eram lindas, cálidas, principalmente novas, ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele não conhecia, posto que o entendesse” (p. 383). A linguagem do amor só podia ser por ele interpretada em sonho, longe de sua amada real.

Uma semana depois do beijo “sonhado”, Borges dispensa o garoto de forma admiravelmente amistosa sem nenhuma razão exata. O menino não vê mais D. Severina, guardando a sensação daquela tarde como algo que não ia ser superado em nenhum relacionamento de sua existência.

Por fim, na conclusão do conto, tem-se a fusão do sonho com a realidade. Inácio está dormindo em sua rede, e sonha com Severina encarando-lhe de frente, pegando-lhe nas mãos, cruzando-as nos braços, e dando-lhe um beijo na boca. Este exato momento do sonho coincide com a realidade, pois que Severina de fato beija a boca do rapaz para de imediato sair do quarto, assustada, confusa e arrependida com sua atitude. E não somente por vergonha, mas como forma de punir a si mesma por tamanha ousadia, Severina passa a cobrir os braços à mesa, mas também como punição ao próprio rapaz, a quem ela atribui uma parcela de culpa. A princípio Inácio não percebe que o famoso par de braços não mais está à vista, tão embriago pela sensação do beijo. Ao final, o rapaz deve ir embora da casa do comendador, mas não consegue se despedir de Severina, que inventa uma forte dor de cabeça. O mocinho jamais saberia que não foi um mero sonho, muito embora nunca tenha achado sensação igual à daquele domingo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

1. D. SEVERINA:

- Magalhães de Azeredo faz uma observação muito pertinente em se tratando das figuras femininas de Machado de Assis, e que se aplica muito bem a D. Severina, cujo nome já aponta para certa perversidade e consequente sedução, ou, conforme o próprio nome, severidade mesmo:

As mulheres, evocadas por Machado de Assis - para quem o eterno feminino é um vasto elemento moral -, têm de ordinário uma soberania de beleza, de sedução, de resistência ou mesmo de virtude, que lhe confere a vitória na luta com o sexo rival. Perversa, em rigor, não vejo nenhuma; perturbadoras há muitas, e de penosa decifração.

- Dona Severina tem personalidade complexa, pois muda de postura no decorrer da trama, deixando-se envolver pela possibilidade de um romance extraconjugal. Embora os valores morais resistam ao desvio de conduta da jovem senhora, a preservação da família burguesa triunfa no final da trama.

- Machado lança a temática do adultério feminino, ainda que suavemente, assunto nunca abordado anteriormente por outros autores e que viria a ser uma das principais chaves para o Realismo em ascendência. É justamente o final da trama que marca a decadência romântica, já que os desejos de Inácio não são extravasados, como é comum no Romantismo.   

- No que concerne ao papel feminino da época as mulheres tinham maior dependência e viviam sobre o domínio dos homens, não possuíam desejos próprios como exercer uma profissão e, para muitos homens, a mulher era vista apenas como uma pessoa doméstica, para cuidar da casa e dos filhos e porventura satisfazer aos desejos carnais sem nenhum tipo de carinho.  

- As mulheres machadianas para quem o eterno feminino é uma vasta figura moral, têm de extraordinário uma soberania de beleza e sedução. Vemos isso em D. Severina quando ela passa a gostar de si mesma.

- Outra interpretação possível pela aproximação de D. Severina seja a idealização em Inácio do filho desejado. Dona Severina compensa ou justifica seu interesse no menino alegando ser ele o filho que ela nunca tivera e por isso cerca-o de tantos mimos e recomendações:
"D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão."
O motivo de tanta brandura poderia ser para realmente confirmar os sentimentos de Inácio para com ela, ou já uma forma inconsciente de aceitação e retribuição desse sentimento, usado para suprir alguma carência afetiva ou mesmo capricho. O fato é que depois do beijo dado em Inácio adormecido na rede desfez todas as suas certezas e a vergonha tomou de conta de seu ser, seja porque foi capaz de fantasiar algo tão intensamente, indo tão longe em seus atos, ou porque o rapaz não correspondeu suas expectativas, ou ainda por medo de ser descoberta e perder sua posição social tão valorizada na época. 


2. FANTASIA E REALIDADE:

- É perceptível no decorrer da história a oposição entre a fantasia e a realidade, onde os sonhos de Inácio se confundem com as reações sucintas e gradativas de Dona Severina. O que é realidade para um, é sonho para o outro; eis o grande conflito da história. Os universos das personagens nunca se encontram e na única oportunidade de se cruzarem, o sono pesado de Inácio é o motivo de frustração desse sonho. O “final feliz”, portanto, não acontece, nem mesmo o reconhecimento recíproco de sentimento entre os personagens; ao contrário, o que existe é uma confusão e a desilusão, os sonhos perdidos na própria realidade.

- Em “Uns braços”, o sonho vira realidade, a realidade, sonho, linguagem simbólica. Então, o que teria dito a Borges D. Severina? Desculpas inventadas que provassem ser Inácio importuno naquela casa? Mentiras bobas que não a incriminassem? Ou nenhuma palavra, deixando que o marido naturalmente percebesse que não valia a pena investir naquele moleque irresponsável e dorminhoco? Há um mistério que não se resolve no conto, porque a língua literária de Machado, assim como a língua do amor, nem mais nem menos confiável do que a realidade das coisas, é sempre nova e obscura.

- O leitor, por sua vez, irá conhecer parcialmente a verdade, porque acaba por participar, de modo indireto, dessas alusões, hesitações e suspensões da realidade dos fatos narrados, sendo colocado em meio aos artifícios do narrador, a fim de também ter um destino literário incerto. Observa-se que, por um lado, o leitor conhece a inocência de Inácio enquanto realmente dormia e a injustiça que Borges (ou Severina?) cometeu ao mandá-lo embora sem muitas explicações, e até com simpatia, o que era incomum de sua parte; assim como também conhece a marca guardada por Inácio daquela primeira paixão em suas experiências amorosas posteriores, a marca definitiva da sexualidade e do abandono da infância, simbolizada no sonho. Por outro lado, o leitor desconhece verdadeiramente o motivo (se é que houve apenas um) de D. Severina passar a evitar Inácio e depois convencer o marido a expulsá-lo dali (se é que partiu dela a iniciativa).
Sob a aura de mistério que encerra o conto, é possível apenas tentar desdobrar como são construídas pelo narrador machadiano ao longo do texto as possibilidades da verdade, as diversas roupagens da realidade das coisas, muitas vezes usadas em conjunto, para perscrutar as hipóteses sobre a razão do afastamento de D. Severina e o responsável pela expulsão de Inácio.

3. CARÁTER VICIOSO E FETICHISTA:

- O caráter vicioso e fetichista da atração de Inácio por D. Severina, que encontra, pela fixação de uma mesma parte do corpo feminino, como visto, longa tradição na obra machadiana. E a culpa pelo impulso sexual, negada por Inácio (“a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus, constantemente”), mas logo rebatida pelo narrador, que relativiza o comportamento da mulher, dizendo ser “justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque já gastara todos os vestidos de mangas compridas” (p. 378), explicação que, por sua vez, apenas abala um pouco a imagem de um jogo da sedução permanentemente consciente, mas não isenta D. Severina da condição de comprar novos vestidos de mangas, se pudesse fazê-lo. 


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

MIA COUTO (5 de julho de 1955, Beira, Moçambique) ENTREVISTA RODA VIVA/2007



MIA COUTO, entrevistado no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 10/07/2007, sob o comando de Paulo Markun, com a participação de Ivan Marques, Norma Couri, Manya Millen, Josélia Aguiar, Miguel Gullander e Paulo Lins.
O entrevistado de hoje, na tenda do Roda Viva Flip é o romancista Mia Couto, de Moçambique, um dos mais conhecidos e reconhecidos escritores africanos de língua portuguesa. Intelectual que chegou a participar da luta armada pela independência de seu país, hoje está na linha de frente da luta pela recuperação da identidade cultural moçambicana.
O moçambicano Mia Couto começou a carreira de escritor ainda jovem, quando se embrenhou no jornalismo. Primeiro fez poesia, depois foi para o conto e a crônica, até chegar ao romance, ganhando projeção na Europa, e teve os seus livros traduzidos em mais de dez línguas.
Escrevendo originalmente em português, em uma linguagem criativa e cheia de surpresas, a obra de Mia Couto é profundamente marcada pela luta anticolonial do país onde nasceu. A história de Moçambique tem origens tão distantes que, num conto tradicional, mereceria um começo clássico: era uma vez um lugar na África habitado por povos ancestrais, com território meio seco e meio verde, mas rico o suficiente para atrair a cobiça de mercadores. E atraiu muitos deles. Primeiro, os árabes no século X, depois os portugueses no século XV, que ali chegaram e ficaram. Moçambique precisou de quase 500 anos para se livrar de Portugal. A independência, em 1975, após uma luta sangrenta de mais de 10 anos, jogou o país em uma guerra civil que durou outros 16. A paz só veio em 1992 e, martirizado pela guerra, pela miséria e pela aids, Moçambique, desde então, tenta se reconstruir.
António Emílio Leite Couto, ou Mia Couto, é filho de imigrantes portugueses e nasceu na cidade moçambicana de Beira, em 1955. Viveu a metade de seus 52 anos em meio às guerras do país e chegou a participar da luta armada como membro da Frelimo, a Frente de Libertação de Moçambique, que venceu a luta pela independência.
Nos anos 70, antes de ir para o jornalismo e iniciar a carreira de escritor, que já rendeu quase duas dezenas de livros, Mia Couto começou e parou um curso de medicina. Voltou à universidade em 85 e se formou em biologia, passando a atuar também como professor-pesquisador e ambientalista. Um dos autores do hino nacional de Moçambique, Mia Couto conduz sua produção literária atento às raízes culturais, angústias e esperanças de uma nação que fala mais de vinte línguas e vive os desencontros da globalização. Ele escreve como alguém que refaz o próprio chão para reconstruir o país. “A varanda do frangipani” [2001], um dos seus livros de maior repercussão, é apresentada como um mirante de onde é possível olhar o horizonte e entrever um rumo para um país que quer esquecer o tempo de guerra e reingressar no campo do sonho.
Paulo Markun: Eu queria começar pelo seguinte. Em uma entrevista, algum tempo atrás, você se definiu como biólogo, e não como escritor, e disse que o mundo da literatura é uma espécie de uma casa que você visita de vez em quando, mas não mora lá. Eu fico me perguntando se essa casa você não está visitando cada vez mais frequentemente e se já não está no momento de mudar para ela.
Mia Couto: Eu estou já em uma situação em que não sei qual casa é a minha casa de moradia, não é? Mas para mim o importante é ter essa possibilidade de estar dentro e fora da escrita. De estar fora da escrita no sentido de se deixar invadir, quase se dissolver no mundo da oralidade. É nesse sentido que eu defino essa vivência, essa moradia, essa transumância [movimentação de entrada ou saída] entre a escrita e a oralidade. Eu acho importante o escritor, de vez em quando, não ser escritor ou ser um não-escritor, de maneira que ele possa definir a sua relação com a escrita não com o verbo “ser”, mas com o verbo “estar”. Eu estou escritor porque mantenho, neste momento, essa relação criativa com a palavra.
Paulo Markun: Eu queria que você explicasse melhor o que é esse conceito de oralidade, porque há uma certa confusão. Você costuma desbastar entre oralidade e tradição oral.
Mia Couto: A oralidade é essa outra lógica que nós mantemos dentro de nós, mesmo que seja subjugada à lógica da escrita. Em certo momento, esse universo da escrita em nós ocupa um espaço quase hegemônico, e nós não permitimos que aquilo que seja o lado da abordagem poética, o lado da abordagem mais íntima das coisas, com a possibilidade de deixar conviver dentro de nós diferentes tipos de lógicas. Esta que, para mim, é a briga, não como escritor, mas como pessoa que quero ter uma relação com a vida que passa por esse partilhar de linguagens com as coisas, com os animais, com as plantas.
Ivan Marques: Bem, eu queria saber... com tanta paixão pela poesia, essa própria questão com a oralidade, no fundo revela o seu apreço pela poesia. Por que você acabou optando pela ficção? Foi um desejo de falar com o público mais amplo ou você acha que a poesia continua presente da mesma forma em sua obra?
Mia Couto: Eu acho que não optei, nem fui optado, digamos assim. Eu acho que, a certo momento, eu pensei que, sendo um poeta e mantendo-me como um poeta, eu queria contar histórias e, digamos, desrespeitando essa fronteira, essa margem, que é muito tênue. Eu não sei qual é [a fronteira], pelo menos, entre aquilo que é poesia e a prosa. Eu, hoje, acho que eu mantenho, de fato.... Sou um poeta que visita histórias, que traduz esse tipo de linguagem, que é uma linguagem mesclada, entre a poesia e a prosa.
Ivan Marques: Quer dizer: é poesia ainda?
Mia Couto: Eu acho que eu faço poesia ainda, sim.
Paulo Lins: Você fala muito em Guimarães Rosa. E o Guimarães Rosa trabalha com neologismos, com as possibilidades da língua: sufixos e prefixos. Como é que você faz seus neologismos? Você usa mais neologismos ou a linguagem da palavra coloquial do povo da sua terra?
Mia Couto: Eu acho que o segredo não é uma questão técnica, não é como se faz, digamos, do ponto de vista da engenharia da palavra, mas de como se está apto, disponível para escutar aquilo que são as formas de casamento, de namoro... Moçambique vive uma situação muito particular, em que a maior parte das pessoas são de outra língua e estão visitando o português. São de línguas banto [conjunto de línguas do grupo nigero-congolês oriental faladas na África] e têm o português como segunda língua. Isso cria uma situação favorável [para o escritor]: é um privilégio conviver com essa situação em que o português está quase em flagrante nascimento. E isso é feito com uma situação de grande ausência de complexo: as pessoas estão muito livres para assaltarem o português, namorarem na rua, na poeira, de noite, de dia. É difícil [portanto] não ser um escritor que use esse tipo de construção e desconstrução.
Norma Couri: Mia, você fala muito de Guimarães Rosa. E você disse que a influência que você sofreu foi muito maior de Guimarães Rosa do que do Camões [1524-1580]; e [também muito maior] de Caetano Veloso e Chico Buarque do que de Amália Rodrigues.  Então, eu queria saber se a influência dos escritores brasileiros na África de língua portuguesa foi maior, é maior do que a de Portugal. E sabendo que Moçambique ficou independente em 75, quer dizer, há 32 anos só, deixando 90% de analfabetos, essa influência atinge basicamente a população branca?
Mia Couto: Bom, eu vou começar pelo fim. A população branca moçambicana é uma minoria quase inexistente. Eu sou quase um inexistente em Moçambique, nós somos 0,00...1 %. A população...
Norma Couri: Qual é a população branca?
Mia Couto: O total da população são quase 20 milhões. A população branca deve ser, talvez, 10 mil pessoas, somos muito poucos. Mas a influência dos escritores brasileiros foi muito grande nos anos 50, 60 e década de 70. É curioso que foi durante um período de ditadura e o período colonial, da repressão colonial, que houve uma troca intensa. Quer dizer, nós recebemos muito do Brasil. Obviamente, imagino, o Brasil não sabia quase nada de nós, mas nós tivemos influências enormes de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Guimarães Rosa até foi quem chegou menos, provavelmente, mas, por exemplo, Jorge Amado estava proibido em Portugal, e era autorizado nas colônias, pensando-se que as colônias não liam e, portanto, ali não havia perigo. Agora a situação já não é a mesma, infelizmente. Quer dizer, nós agora não conhecemos o que de novo está sendo criado no Brasil, o que está chegando do Brasil, e a influência de Portugal agora é um pouco mais presente. Portugal está hoje mais presente do que o Brasil.
Norma Couri: Por que isso acontece? O Brasil não conhece a África, pensa que conhece, mas não conhece?
Mia Couto: Eu acho que tem a ver com todo um universo que está para além da literatura e da troca de livros. Eu acho que é preciso repensar toda essa família nossa da língua portuguesa e como é que nós todos nos encontramos nisso.
Norma Couri: Ou não nos encontramos, não é? [risos]
Mia Couto: Ou nos desencontramos na mesma língua, falando uma língua comum.
Josélia Aguiar: Quer dizer que a literatura brasileira não está mais presente hoje, não há mais esse conhecimento da prosa atual? Que outra literatura está sendo mais presente agora lá [em Moçambique]?
Mia Couto: Hoje, como eu falei, a literatura europeia no seu conjunto chega mais, porque os laços comerciais, as livrarias, editoras da Europa, por via de Portugal, estão mais presentes. Portugal realmente assumiu-se como uma espécie de vértice dessas triangulações que se fazem com a África, muito mais do que o Brasil.
Josélia Aguiar: Particularmente, o senhor tem lido o que, exatamente, [mais literatura] do Brasil ou mais de Portugal?
Mia Couto: Eu hoje leio mais autores de Portugal, [mas também] leio do Brasil. Eu estou muito preso àquilo que foram as minhas referências nos anos 60 e 70. E, por exemplo, agora eu estou procurando toda a obra da [escritora brasileira] Adélia Prado [1935-]. Eu conheci a [literatura de] Adélia Prado alguns anos atrás e fiquei encantado com a poesia dela, e agora, três dias atrás, eu conheci-a pessoalmente em Belo Horizonte. Ela foi ver uma peça, uma adaptação de um texto meu, que foi feita em Belo Horizonte, e foi um encontro mágico [refere-se à peça teatral “O último voo do flamingo”, dirigida por Paulo César e Papoula Bicalho, que é uma adaptação do romance homônimo de Mia Couto].
Norma Couri: Olha, você mencionou a língua portuguesa e as diversas etnias que convivem [em Moçambique], que são: sena, maconde, changana, bitonga, nyanja.... Aquelas coisas. E são 16 milhões de negros, parece, vivendo lá?
Mia Couto: Mais do que isso...
Norma Couri: Bom, Moçambique é uma ilha cercada de ingleses por todos os lados, não é? E parece que 25% falam português; eu não consegui entender.... É isso, não é? Bom, e [o país] aderiu à Commonwealth [a comunidade britânica de nações, que inclui a Grã-Bretanha e outros países independentes – ex-domínios ou ex-colônias –, que em sua maioria professam fidelidade ao soberano inglês, em um sentido mais histórico e simbólico do que jurídico] e parece que todos os livros escolares são em inglês, porque são dados, ou pelo menos eram... A língua portuguesa vai sobreviver? A língua portuguesa existe? É um país que fala português?
Mia Couto: Bom, Norma, eu tenho que dizer.... Esses dados não estão corretos. Primeiro, os falantes de português são mais de 70% hoje. Os falantes...E outras línguas. A maior parte dos moçambicanos são bilíngues, alguns trilíngues, e isso é uma vantagem, não é um problema, é uma vantagem. Tendo o português como língua materna, serão uns 10 ou 12% hoje, como língua materna. E a maior parte deste são negro. A relação com a Commonwealth foi uma coisa acidental, não mudou absolutamente nada naquilo que é a política de Moçambique, de adoção, divulgação do português como uma língua nacional, como a língua das várias nações de Moçambique. E não existe nenhuma dúvida sobre o português como uma língua do presente e do futuro de Moçambique. Ela, no fundo, define a nacionalidade moçambicana, quer dizer, não é ainda “a” língua de Moçambique, mas é a língua desse projeto de nação que vai ser Moçambique.
Miguel Gullander: Eu queria perguntar algo relativamente mais ao conteúdo [de sua literatura]; normalmente fazem muitas perguntas acerca da forma, e eu queria agora inserir um pouco sobre o conteúdo. Quando eu estava na Ilha do Fogo [em Cabo Verde], durante aqueles anos, uma vez um amigo africano me disse: “Nós aqui não temos universidade, não temos aqui centros culturais, no entanto, temos aqui alguns dos despertadores que nos permitem descobrir essa sabedoria que é o objetivo de muitos escritores. E na obra do Mia existe esse objetivo difundido, de contatar essa sabedoria, essa profundeza humana, porque é uma obra muito humana”. Ele disse uma coisa: “nós contatamos diariamente esses despertadores, nomeadamente: a morte, a doença e o processo do tempo, a velhice”. E eu gostaria de saber qual é o impacto disso na sua obra.
Mia Couto: Bom, eu primeiro agradeço a pergunta, no sentido de que, muitas vezes, a análise que se faz do meu texto fica naquilo que é a desconstrução da linguagem etc. De fato, eu faço isso como uma espécie de uma fratura que eu quero fazer no muro, que eu quero abrir no muro, para se ver que do outro lado há uma outra luz, uma outra claridade. E essa outra claridade é que interessa a mim, quer dizer, o que surge dessa outra sociedade, dessas outras sociedades, como uma sugestão para apreender o mundo. E a relação, por exemplo, com a morte, com os mortos, esta é uma coisa que eu acho que a África tem, embora eu resista muito à ideia de que a África tem coisas, digamos assim, que são tipicamente únicas, quer dizer, que os outros não têm. Eu acho que essa religiosidade, essa relação não com a morte, mas com os mortos, é uma coisa da África, o sentimento do tempo, o sentimento da eternidade, a maneira como o mundo é governado por harmonias. Isso eu quero que surja nos meus textos e acho que essa é a minha grande aposta.
Miguel Gullander: Porque esse amigo africano me disse: “São três os mecanismos incontornáveis da natureza, para nos tornar mais sábios da vida. ” Portanto, são como aspectos negativos, mas que nos despertam, nos acordam e nos fazem ir mais fundo, às vezes, apesar das carências, de coisas mais sofisticadas, não é?
Mia Couto: O que se percebe é que, por exemplo, aquilo que para nós são conceitos universais, nós que estamos com um pé em um lado e um pé no outro, que são, digamos assim, os mestiços, do ponto de vista dessa relação com o mundo, por exemplo: o que se passa é que há palavras, conceitos, categorias nossas que não são realmente traduzíveis; e vice-versa: os conceitos e categorias africanas nem sempre têm uma equivalência fácil e simples.
Miguel Gullander: Por exemplo, eu tenho em conta, sendo sueco também.... Naquela sociedade, nós evitamos ao máximo ter contato com essas coisas, vê-las, saber delas.
Mia Couto: [concordando] Na sociedade sueca.
Miguel Gullander: Por exemplo, não é? E então, como é que a obra literária pode ganhar esse impacto, não é?
Manya Millen: Mia, o senhor disse recentemente, acho que em uma entrevista ao [jornal] O Globo mesmo, que a literatura africana – não sei se é a literatura africana de língua portuguesa ou as outras [também] – já tinha se libertado há muito tempo dessas imagens, dessa coisa do exótico, de falar sobre coisas específicas do mundo africano, para tomar esse caráter universal. Hoje me parece que os leitores estão buscando mais... estão se voltando muito para uma coisa muito particular, querem saber de histórias muito particulares, mundos muito particulares. Eu queria saber: como é conciliar esse universal e o particular, ao mesmo tempo, na literatura, sem perder uma característica própria, mas sem também deixar de se inserir em um contexto mais universal? Como fazer isso na literatura?
Mia Couto: Eu acho que os escritores africanos estão agora vivendo um período de transição. Até agora, era quase historicamente necessário serem de um lugar, de um tempo – no tempo que era um tempo de afirmação, em um tempo de reivindicação –, para resgatar aquilo que era a história, sua própria história, sua identidade. Mas, de repente, se percebeu que isso se transformou numa prisão, numa armadilha. E, de repente também, não só se obrigava que eles fossem de um lugar, de um contexto histórico, mas também que fossem autênticos. E isso quer dizer: [que expressassem] uma certa visão estereotipada de África. Eles tinham de ter uma relação com a feitiçaria, com os curandeiros, com o mundo dos espíritos etc. E hoje os escritores africanos estão se afirmando como escritores, em primeiro lugar. Eles contam histórias, e essas histórias são importantes em si mesmas. E, digamos assim, os escritores africanos estão quase se libertando dessa condição de sua africanidade. Os escritores querem ser escritores universais, e aí têm que fazer o mesmo que fazem outros: têm que se confrontar com a busca da alma humana, com a busca do sentido do tempo, isso que são as grandes alegrias e as grandes aflições no ser humano.
Manya Millen: Mas manter uma certa africanidade, ou como a gente diz, manter uma certa brasilidade, também é importante no texto? Quer dizer, tem que ter essa identidade?
Mia Couto: Mas isso surge naturalmente, surge inevitavelmente. Mas não é uma missão, não é no sentido de missão.
Paulo Markun: Mia, no seu livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra” [2002], a impressão que eu tive é que a história que se desenrola entre um neto que volta para o "enterro" do avô – eu estou simplificando a história, obviamente –, há uma ideia de que, de alguma maneira, o país [Moçambique] tem saída, o país tem solução, mas há um hiato de gerações. Eu queria que você explicasse melhor o raciocínio, se é que estou correto.
Mia Couto: Há um hiato de gerações e há um hiato que resulta de um certo golpe. Nós tivemos, de uma maneira dramática, acontecimentos que provocaram um desmoronar da teia de relações sociais, familiares. Nós tivemos duas guerras consecutivas [a Guerra da Libertação, entre 1964-1975, e a Guerra Civil Moçambicana, entre 1976-1992]. Mais da metade da minha vida foi passada em guerra, e isso, de fato, condensou aquilo que acontece em outros países também. Este fenômeno não é exclusivo dos países que sofrem guerra. O que acontece na guerra é que isso é feito de uma maneira completamente crispada, condensada. O conflito de gerações, esse distanciamento daquilo que são os laços de solidariedade que eram muito presentes na sociedade rural africana, são hoje uma condição quase dramática, porque se perdeu aquele mundo e não temos um outro, vivemos em uma espécie de nuvem de um período de transição.
Norma Couri: E acabou há pouco tempo. Parece que você participou dessa luta armada. Ontem eu estava conversando com o escritor serra-leonês que está aqui [em Paraty], que é o Ishmael Beah, e ele hoje tem 26 anos, mas ele falou que, aos 13, ele perdeu o pai, a mãe e os dois irmãos, entrou na guerra e matou, matou, matou, e gostou de matar. [Ishmael Beah, na década de 90, foi soldado infantil durante a guerra civil em Serra Leoa. Anos depois, passou a agir em favor de crianças envolvidas em lutas armadas]. Você chegou a matar alguém?
Mia Couto: Não, eu acho que aqui há um equívoco que eu devo dizer. Eu participei da luta política no movimento de libertação, que foi a primeira guerra, a Guerra da Libertação, que acabou na independência [em 1975, Moçambique se tornou independente de Portugal]. Eu nunca peguei em uma arma, nunca, nunca. Eu acho que não sou capaz de fazer uma coisa dessas.
Josélia Aguiar: Mia, eu queria voltar um pouco no tempo e perguntar como é que o senhor se tornou escritor. O senhor trabalhou como jornalista, foi ativista político, depois se tornou biólogo e, inclusive, trabalha com isso. Em que momento o senhor começou a escrever e em que momento se deu conta de que isso ia tomar esse espaço na sua vida?
Mia Couto: Eu não dou conta, não tenho consciência de quando começou. Eu sou filho de um poeta, nasci em uma casa em que a poesia vivia permanentemente, não vivia só na estante, vivia na nossa relação. Lembro-me que a minha mãe tinha uma espécie de aflição permanente de pensar que "vem outro", que um filho vai herdar aquela doença, que eram os aspectos menos práticos que o meu pai tinha, e aconteceu assim. Eu não me recordo: comecei escrevendo versos para as namoradas, aos 14, 15 anos, e a minha mãe rezava para que isso fosse uma doença passageira, mas depois parece que ficou.
Paulo Lins: Aqui no Brasil, hoje, está se falando muito em ação afirmativa, em cotas para negros na universidade, em funcionalismo público, em emprego... está se comentando muito isso hoje. E naquele filme Língua [refere-se ao documentário Língua – vidas em português, de 2004 (Brasil/Portugal), dirigido por Victor Lopes] você fala que "transformaram raça em cultura". Eu queria que você falasse um pouco mais sobre isso, sobre essa transformação de raça em cultura.
Mia Couto: Olha, eu não posso falar do Brasil, aquilo que se passa no Brasil, eu não posso pensar sobre o Brasil, mas daquilo que eu entendo como uma política cultural que se defina a partir da raça. Não penso que seja – não só socialmente e historicamente – produtiva, mas também ela vai gerar outro tipo de mal-entendidos, portanto não lido bem com essa ideia de que se definam privilégios em função... ou desprivilégios, em função de raças. É preciso resolver as questões de base que geraram desigualdades profundas. Essas desigualdades têm que ser corrigidas, têm que ser resolvidas, mas não penso que seja possível, digamos, melhorar essa miséria.... Nós vivemos em uma sociedade que gera desigualdades, que gera racismos e que gera discriminações. O fato de transformar o negativo em positivo não resolve, para mim. Não sei se eu respondi a sua pergunta, mas... Em Moçambique, é claro que essa questão se coloca de outra maneira; [trata-se de] um país de maioria negra, [que] tem um governo negro, tem essa situação digamos que resolvida.
Norma Couri: Mas olha, aqui nesta Flip tem cinco escritores africanos, o que é uma vitória: [o sul-africano John Maxwell] Coetzee, [a sul-africana] Nadine Gordimer, você, o [angolano José Eduardo] Agualusa, [mas] só um é negro, que é o [cabo-verdiano] Ishmael Beah. Será que a literatura negra vai explodir no mundo alguma vez? Como é que você vê isso? Porque realmente são poucos.
Mia Couto: Mais uma vez: eu não sei se eu gosto muito desse nome, da “literatura negra” ou “literatura branca”. A literatura africana está presente aqui, e eu não sei como que essa coisa aconteceu.... No meu país eu sou praticamente o único escritor branco. Há outros escritores negros, que são de grande qualidade, [mas] provavelmente não têm a mesma projeção internacional. Mas isso é acidental, digamos assim, é uma questão de circunstância. Mas é óbvio que essa “literatura negra”, chamando assim agora, aceitando [a expressão como] a literatura africana feita por escritores negros, dizendo melhor, vai se projetar no mundo e vai se afirmar.
Miguel Gullander: Mia, no seu trabalho há uma convergência, ou até uma mescla, não só na forma, mas em termos de conteúdo, de uma grande alegria, de humor, falando também depois da miséria, da guerra, da dor, e eu gostaria de perguntar: você se considera, por assim dizer, um niilista eufórico ou um pessimista com uma noção subjacente de algo de sagrado?
Mia Couto: Olha, eu acho que, dizendo como o Agualusa costuma dizer: "Em um país com tanta miséria, ser pessimista é um luxo" [risos dos entrevistadores]. Temos que ser otimistas mesmo. E, de fato, a capacidade de produzir alegria, mesmo em uma condição difícil, de miséria, eu acho que é uma coisa comum em quase toda a África. A África tem isto, [que] vem provavelmente de um sentimento de religiosidade em que a nomeação da tristeza é quase interdita, porque ela atrai mais tristeza, mais desgraça. E isso, por exemplo, eu acho que o Brasil incorporou bastante. Quer dizer, o lado africano do Brasil faz com que o Brasil também seja um produtor de alegria, um produtor de esperança, mesmo em condições muito adversas, não é?
Ivan Marques: Mia, eu gostaria de saber [qual] a relação da sua experimentação de linguagem – você até me faz lembrar muito de Guimarães Rosa – com a diversidade cultural moçambicana. Em que sentido você costuma dizer que essa cultura moçambicana, essa diversidade cultural pode ser uma boa lição para o mundo. Eu queria saber em que sentido você acha isso exatamente, e [qual] a relação disso com a sua linguagem.
Mia Couto: Olha, no sentido em que eu, em Moçambique, tenho que funcionar como uma espécie de tradutor, não de tradutor de línguas, mas de tradutor de almas, digamos assim, de culturas, como um médium, e eu acho que o Guimarães Rosa funcionou muito como um médium entre aquilo que era uma cultura escrita, urbana e uma cultura rural, sertaneja. Ele atuou como essa ponte, como esse, digamos assim, contrabandista de valores de um lado para o outro. E, no caso de Moçambique, temos nações diversas, com culturas diversas, com línguas diversas. Eu acho que a condição de escritor tem de ser essa: não só pôr em ligação essas culturas, como os tempos. Portanto, o tempo da guerra, essa última guerra civil, é um tempo interdito em Moçambique, não se visita, não há memória dele, isso não é bom, [não é boa] qualquer coisa que não está resolvida. E o escritor tem, de fato, uma missão, e eu acho que o escritor não tem tantas missões como ele pensa [risos dos entrevistadores], mas provavelmente aqui está alguma coisa que ele pode fazer, que é convidar a visitar esse tempo, sem sentimento de culpa, sem o dedo acusatório. É isso que eu acho.
Ivan Marques: Mas tem a questão, por exemplo, de ser uma cultura que não está presa a modelos de racionalidade. Quer dizer, neste sentido, talvez haja lições mesmo para o mundo moderno.
Mia Couto: Sim, digamos que o mundo moderno tem pressa em encontrar identidades fixas, não é? Em molduras, retratos.... Eu acho que o fato de convivermos nós [moçambicanos] numa realidade que é múltipla, que escapa à moldura, e não ficamos doentes por isso, não temos pressa.... Eu acho que essa condição provavelmente é uma lição de que a ideia de identidade, que é tão cômoda para nós, é sempre uma ilusão, é sempre ilusório.
Manya Millen: Mia, a ideia que a gente tem, que a maioria tem sobre os escritores é, enfim, são aquelas pessoas que ficam enclausuradas no escritório escrevendo, e sem contato com o público. E, hoje em dia, parece impensável o modelo da literatura que não se divulga. Então, lança-se um livro e estamos na Festa Literária Internacional de Paraty, e tem outros modelos de festa [literária] surgindo, onde o escritor virou um pop star. Ele lança um livro e ele tem que circular para divulgar a sua obra. Eu queria saber como você se sente no papel deste escritor pop star e escritor divulgador, e tendo que sair.... Se você se sente confortável, e o que você acha dessa ideia de literatura tão divulgada?
Mia Couto: Eu não me sinto bem [risos]. Eu não me sinto bem em estar aqui [sendo entrevistado]. Ontem eu falava com um amigo escritor sobre o limite que é.... da verdade interior, da maneira como nós nos entregamos.... Porque é óbvio que quando se publica e se quer se publicar, nós temos que aceitar uma certa lógica dessa coisa do livro ser uma mercadoria. Mas o livro ser uma mercadoria é uma coisa, agora nós, enquanto autores, digamos, cedermos a esse tipo de exposição e de mercantilização da nossa própria imagem... eu não me sinto bem.
Paulo Markun: Existe alternativa?
Mia Couto: Eu acho que a alternativa funciona assim: essa relação que nós temos com o empenho da qualidade do trabalho que fazemos. E é aí que poderemos, digamos – eu vou usar uma palavra de que eu não gosto –, nós podemos vencer, podemos nos afirmar nisso que é o mercado. Ou funciona assim ou não vale a pena, por estratagemas ou artifícios para que o livro seja um produto divulgado, não me apetece isso, não quero.
Paulo Markun: No seu livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, há um trecho de uma carta – há cartas que aparecem no livro –, não fica muito claro quem as escreve, aparentemente é um falecido, em que ele diz que: "A nossa família é o lugar onde somos eternos." Eu queria saber se você concorda com o seu personagem.
Mia Couto: Sim, neste caso eu concordo com ele, de fato. Quer dizer, se eu tenho uma pátria, essa pátria é, em primeiro lugar, a minha família. Eu sou o produto de uma família que viveu muito intensamente os seus próprios laços internos. A minha família nasceu nos meus pais, na minha mãe e no meu pai, porque eles saíram de Portugal e imigraram; nós nascemos em Moçambique, não conhecemos nunca os avós, os tios. Eu estou descobrindo primos, estão chegando agora, mas era uma família muito nuclear, e que criou uma espécie de autossuficiência, quase de amparo, de afeto. E, nesse sentido, é o meu lugar eterno, é a família. Eu queria só corrigir uma coisinha: eu disse que eu não me sentia bem de estar aqui [no Roda Viva]. Eu me sinto bem de estar aqui, por um lado, mas é por causa da qualidade, porque disseram que este era um programa de grande qualidade. Eu não viria a um programa que me ajudasse a me projetar no Brasil, se ele não fosse de boa qualidade [risos].
Paulo Markun: Mas muitos dos que sentam aí não se sentem muito à vontade [no início da entrevista]. Depois, com o passar do tempo, a coisa melhora [risos]. [...]: Ou piora... [risos]. Ou piora, depende [risos].
Paulo Lins: Em “Terra sonâmbula” [romance de Mia Couto, publicado em 1992], por exemplo, quando a gente acaba o livro, parece que já estava tudo arquitetado na sua cabeça, não é? Parece que você... falando de conteúdo, já que você não gosta muito que se pergunte sobre a forma... [risos]
Mia Couto: Pode perguntar sobre a forma...
Paulo Lins: [continuando] Sobre a desconstrução e construção... Agora, falando de conteúdo, parece, no final, que você já sabia o final quando você começou a escrever o livro. Parece que a obra estava pronta na sua cabeça e só restava escrever. É assim que funciona contigo?
Mia Couto: Não, não. O “Terra sonâmbula” é um livro de exceção no meu processo de criação, que não é processo nenhum. O meu processo é caótico; eu começo por um pequeno núcleo de uma história e depois vou arquitetando. Tenho uma grande dificuldade de lidar com os personagens, isto é, eles batem em uma porta e, em certa altura, trazem os primos, os irmãos, a família largada, e eu não tenho maneira de conter aquela migração. No caso de “Terra sonâmbula”, foi um livro, digamos, foi sofrido, porque eu pensava que não podia escrever um livro durante a guerra. Eu pensava que, provavelmente, só se escreveria um livro no período de paz; depois da guerra, escreveria um livro sobre a guerra. Mas ele surgiu, e surgiu de uma maneira muito intensa, muito sofrida, com insônias, e, de fato, o que aconteceu naquele livro é uma coisa que me acontece em outros, em que eu sei que estou acabando um livro quando escrevo a primeira frase, não quando escrevo a última frase. E eu tinha já alguma coisa do final pensado sim, mas não feito daquela maneira.
Miguel Gullander: Mia, você é muito conhecido, por exemplo, na Suécia. E eu me lembro de ter estado, há um par de anos, em Oxford a ouvir um dos seus tradutores a falar, e há uma franca dificuldade dos tradutores de conseguirem transmitir aquela essência, aquela graça [presente nos livros de Mia Couto] nas traduções. As traduções o preocupam?
Mia Couto: As traduções são um drama, são um sofrimento para mim também. Imagino que, para os tradutores, são as duas coisas: são o prazer e o desafio. Eu não posso dizer que sou simplesmente vítima, quer dizer, porque há bons tradutores que depois, aprendendo aquilo que é uma certa lógica de mudança, uma certa lógica de desconstrução, como eu falei com o Paulo [Lins], que depois fazem isso como quem traduz poesia. Ele [o tradutor] tem que ser um recriador da linguagem também, nesse sentido. Mas, obviamente, há sempre alguma coisa que se perde. Eu estou condenado a ser um escritor de língua portuguesa. Eu tenho traduções já em mais de 21 países, hoje, e de minha parte, às vezes, para o tradutor não há solução para a construção de alguns neologismos que resultam bem em português.
Paulo Lins: Você se comunica com seus tradutores? Conversa [com eles] por telefone, e-mail?
Mia Couto: Sim. Agora [o que recebo] são listas de centenas de correspondências diversas. São difíceis porque, muitas vezes, o tradutor não percebe, não é questão da língua, [ele] não percebe o contexto cultural, não percebe como é que aquela palavra funciona, ganha cor, ganha dinamismo num outro contexto. Então não é uma questão da palavra, não é uma questão técnica da língua, é uma questão de traduzir culturas.
Paulo Markun: Mia, no seu livro “A varanda de frangipani”, há uma frase de um personagem que diz o seguinte: "Sofremos a guerra, haveremos de sofrer a paz". Eu queria saber como é que Moçambique sofre a paz.
Mia Couto: Obviamente, agora que eu vivo em paz, eu penso que não há comparação possível, quer dizer, nós que vivemos 16 anos de uma guerra que foi o horror, nós não queremos nunca mais a guerra. Mas, obviamente, há aqui coisas que é preciso entender, que é: a razão dessa paz assenta sobre coisas que não conhecemos. Sabemos, e é por isso que se esqueceu o período da guerra, por isso que ninguém quer lembrar os demônios que estão naquela caixa escondida. E sabemos que há coisas que não estão resolvidas, profundamente resolvidas, e que deram também... foram parte da razão da existência da guerra: as desigualdades sociais profundas, a exclusão de grande parte do país, daquilo que é a visibilidade desse país, os mecanismos de participar no futuro do país, isso não está resolvido portanto. Eu acho que não há verdadeira paz enquanto isso não estiver feito. Agora, não há comparação... e aí eu não concordo com esse personagem [risos] – se é que é um personagem – ou não concordo comigo mesmo [risos].
Norma Couri: Falando ainda sobre tradução, o Amós Oz fala que a tradução é como fazer amor com um cobertor no meio [risos]. E essas suas traduções.... Teve um tempo em que o Brasil costumava traduzir os escritores portugueses [do português de Portugal para o português do Brasil]. Este seu livro [A varanda de frangipani] foi traduzido?
Mia Couto: Não.
Norma Couri: Foi uma exigência sua?
Mia Couto: Sim. Toda a literatura brasileira que li, eu entendi perfeitamente. Eu acho que não é nenhum obstáculo o fato de que há um sistema gráfico que tem algumas diferenças. Inclusive, essas diferenças conferem o sabor local, e esse sabor diferente deve estar presente no livro.
Paulo Lins: Ontem, conversando com um grande poeta brasileiro, o Carlito Azevedo – ele só faz poesia; eu acho que ele nunca escreveu um conto, nunca escreveu ficção, nunca escreveu em prosa –, eu falei para ele que eu lia muito mais poesia do que prosa. E ele falou que lia muito mais romance do que poesia [risos]. Você é poeta, contista e é romancista. O que você lê mais? Você mescla ou tem algum gênero que você lê mais?
Mia Couto: Eu sou um leitor de poesia, um “releitor” de poesia também, porque eu sou um “reescritor”, eu reescrevo mais do que escrevo. Mas a poesia que continua a ser a minha fonte, quer dizer, onde eu vou beber é na poesia.
Paulo Lins: Eu tinha certeza disso. Só perguntei para confirmar [risos].
Miguel Gullander: Mia, ainda na linha desta mesma pergunta, como poeta, qual é a sua relação com o sonho, com o onírico e com a natureza? Essa simbiose, essa inter-relação... porque se sente muito fortemente esse pulsar na sua escrita.
Mia Couto: Eu acho que a minha relação tem que ser definida nisso... porque eu não sei exatamente onde começa cada uma dessas coisas. E tenho dúvidas desses desenhos que nós fizemos de onde começa o real, onde começa o fantástico, onde começa o onírico, onde começa... A definição de natureza é muito curiosa. Em África, pelo menos em Moçambique, a ideia de natureza é uma ideia muito diversa. Nem sequer há palavra para dizer natureza da parte das línguas africanas de Moçambique de origem banto. Portanto, isso me coloca nessa condição de reaprender aquilo que são os conceitos e o gosto de desobedecer aquilo que são as linhas-limite, não é?
Miguel Gullander: São fronteiras perdidas, no fundo...
Mia Couto: Ainda bem!
Miguel Gullander: Ainda bem... [risos].
Ivan Marques: Eu queria fazer uma pergunta justamente sobre o realismo mágico [gênero de narrativa que surgiu na América Latina, em meados do século XX, que extrapola a “realidade” e introduz elementos simbólicos, misteriosos, mágicos como parte da “normalidade”]. Já vi entrevistas em que o senhor diz que isso é algo típico do Terceiro Mundo, da América Latina, da África. Na América Latina, isso tem sido bastante revisto e criticado pelas novas gerações, essa história do realismo mágico. Eu queria saber: por que exatamente lhe interessou essa opção pelo realismo mágico e quais são as diferenças, de fato, entre o realismo mágico que está na sua obra e o que é praticado ou o que foi praticado pelos latino-americanos?
Mia Couto: Eu acho que, começando pelo fim da pergunta, uma das diferenças, qualquer que seja o nome que nós queiramos dar às correntes literárias, e eu não tenho uma relação muito feliz com essas categorizações dos gêneros literários, mas, no caso da África, eu acho que o lugar dos mortos, o lugar da morte, quer dizer, não é a morte que está presente, são os mortos, e os mortos em uma condição de estarem vivos e estarem governando o mundo dos vivos, governando com os vivos o mundo atual. Isso eu penso que é uma coisa diversa, quer dizer, provavelmente a presença de uma influência católica, na América Latina, determinou uma diferença de posturas filosóficas em relação à morte e aos mortos, ao sentimento de culpa, por exemplo, e a África tem uma outra dimensão. Isso tudo vem não do terreno literário, mas de qualquer coisa que é anterior e mais profundo, que são as perspectivas religiosas. De qualquer maneira, eu não fico muito aflito com o dar-se nome aos gêneros e às correntes literárias, escolas literárias, mas não me vejo muito nessa ideia de que existe uma coisa chamada “realismo mágico”. Neste sentido que o próprio termo “realismo” tem que ser interrogado: não há pior armadilha do que esse sentido de realidade como sendo uma realidade única, estanque, normativa, que nos quiseram impor.
Paulo Lins: Você tem uma relação muito forte com o Brasil. E com a América do Sul, você tem alguma relação com a América do Sul?
Mia Couto: Sim, também. Eu li outros autores... esses de que estamos falando, do Juan Rulfo, do García Márquez etc, e foram muito importantes na minha formação
Paulo Lins: Então a sua primeira formação é mais com o Brasil do que com a própria Europa, com Portugal?
Mia Couto: Sem dúvida, eu tenho uma ligação fortíssima nisso que foi minha constituição como produtor de linguagem, como produtor de poesia, que tem toda dívida para com o Brasil. Eu venho sempre aqui prestar homenagem a essas influências também.
Josélia Aguiar: Falando em leituras ainda, a gente tem sempre curiosidade de saber. Você tem um livro, um autor de cabeceira, aquele para o qual você sempre volta, sempre vai buscar novas coisas que você ainda não tinha encontrado, você tem essa obra ou esse autor?
Mia Couto: Eu tenho. E, curiosamente, não é um brasileiro, é um português, neste caso, que é Fernando Pessoa. É uma espécie de... O livro do desassossego é o meu livro de sossego, digamos assim, é o meu livro de cabeceira. [O livro do desassossego, organizado postumamente, foi publicado em 1982; é atribuído aos heterônimos Vicente Guedes e Bernardo Soares. ]
Paulo Markun: Machado de Assis você lê?
Mia Couto: Li pouco, mas não me marcou tanto como outros autores brasileiros.
Ivan Marques: Mia, tem a história que eu já vi você dizer em uma entrevista que, de certa forma, o Brasil está nas origens da literatura moçambicana. Como que é essa história do [poeta árcade luso-brasileiro] Tomás Antônio Gonzaga [ (1744-1810) autor de “Marília de Dirceu” e das “Cartas chilenas”; participou da Inconfidência Mineira, e por isso foi condenado por crime de lesa-majestade], no começo do século XIX, constituindo um primeiro ciclo de escritores em Moçambique?
Mia Couto: Ele viveu... foi deportado [para Moçambique em 1792], viveu na Ilha de Moçambique, na altura era capital de Moçambique. E ali se apaixonou perdidamente, e ele e a mulher constituíram uma espécie de ciclo de leitura, um ciclo de poetas em germinação. E isso provavelmente foi o primeiro círculo de gente que se reunia em volta da poesia, em volta da literatura, e se deram alguns frutos [literários] naquela região. É uma região muito pequenina, mas como era, na altura, a capital de Moçambique, isso teve repercussão.
Josélia Aguiar: O senhor sempre se refere à cultura e religião de matriz banto, na sua linguagem, enfim, na hora de criar as suas histórias. Eu queria que o senhor contasse um pouco como é que foi conviver com essa cultura, sendo de uma minoria branca, e aproveitar para comentar como é a convivência de brancos e negros em Moçambique.
Mia Couto: Eu nasci em Moçambique e tive, digamos assim, uma educação dividida entre a casa e a rua. A casa era uma casa de influência portuguesa, obviamente, mas na cidade onde eu nasci, os portugueses não conseguiram expulsar, afastar a África, e a África estava ali mesmo, estava presente na rua, nos meninos que brincavam comigo. Eu, digamos, que aprendi logo aos cinco, seis anos... eu sabia falar uma língua de origem banto, cisena, e isso me permitiu um certo passaporte, eu escutava já os dois mundos, já me deixava enamorar pelos dois imaginários. Minha mãe é uma grande contadora de histórias, ela me fazia adormecer, mas eu, de uma certa maneira, preferia aquelas outras histórias que tinham mais intensidade, dos contadores de histórias que eu escutava em cisena, e, portanto, eu, digamos, que fui crescendo nessa combinação de mundos, e hoje não sei onde, dentro de mim, está um e outro, [porque] estão misturados.
Josélia Aguiar: E como é essa convivência hoje, para quem tem tantos compromissos, tem outros contatos?
Mia Couto: Eu acho que Moçambique resolveu bem, não inteiramente, mas resolveu bem a questão racial. Não há nenhum país no mundo que eu tenha visitado em que não exista racismo. Ele está presente como uma espécie de doença universal, mas, se calhar, o país onde eu estive, onde esse peso da raça está menos presente, é Moçambique. Até porque não é uma conquista histórica recente, mas a própria percepção da raça em Moçambique é bastante diversa. Por exemplo, eu sou biólogo, trabalho com colegas meus que são negros, todos eles, e quando chegamos a uma aldeia, no interior, as pessoas dizem: “Chegaram os brancos”. Somos todos brancos, somos todos "valungos", como se diz, o termo é este, porque temos todos uma mesma postura cultural, falamos português, vestimos da mesma maneira, portanto, somos estranhos, digamos assim, em relação àquele território. Então não há palavra para nomear raça, há palavra para nomear o que é próprio do lugar e o que é estranho.
Norma Couri: Você acha que o Brasil é um país racista?
Mia Couto: Eu seria de uma grande arrogância estar a dizer isso, provavelmente...
Norma Couri: [interrompendo] O Agualusa acha que, pela proporção de negros neste país e pela invisibilidade deles, é uma coisa assustadora...
Mia Couto: Eu acho que, provavelmente, sempre que há sinais de qualquer coisa que não está resolvida e que as formas de abordar isso são formas ainda tímidas, complexadas, ressentidas etc, então há um processo ainda que está operando. Mas eu tenho grande dificuldade de chegar aqui, desembarcar e dizer coisas sobre o Brasil dessa maneira.
Norma Couri: Mas você pode sentir mais do que outra pessoa qualquer.
Mia Couto: Eu sinto que não está resolvido o problema da raça no Brasil, é isso que eu posso dizer.
Paulo Markun: No seu livro “A varanda do frangipani”, frangipani é uma árvore típica que eu, como leitor, fiquei curioso para conhecer, mas não há uma imagem dela...
Mia Couto: Aqui no Brasil existe. Eu penso que se chama aqui dama-da-noite, ou qualquer coisa assim.
[...]: Ah, dama-da-noite!
Paulo Markun: Tinham que explicar isso para a gente, mas o que eu queria perguntar é o seguinte...
Norma Couri: Isso tinha que ser traduzido...
Paulo Markun: [concordando] Pois é. Neste sentido, o seu trabalho de biólogo, de alguma forma, interfere ou influencia o trabalho de escritor?
Mia Couto: Sim. Da mesma maneira que não quero ser “um escritor”, também não quero ser “um biólogo”. Eu sou muito mau biólogo, sou muito mau cientista, nesse sentido de ver a ciência como uma espécie de religião, de [achar] que há [na ciência] resposta para tudo. Eu uso a biologia como uma parte das respostas, uma lógica que também me é importante ter. O que a biologia me deu foi conferir uma certa familiaridade com coisas que eu achava importantes. Quer dizer, eu hoje sei falar a língua de algumas árvores, digamos assim, nesse sentido metafórico, é claro. Ganhei intimidade com coisas que para mim eram realmente fundamentais, essenciais, processos vitais, entender como é que a vida se processa e como é que nós somos parte desse conjunto harmônico. Isso para mim foi importante para saber o meu tamanho, a minha dimensão e como é que eu tenho que me inserir nessa coisa chamada vida, não é?
Paulo Lins: Você é poeta, contista, ficcionista, é prosador. Você costuma ler crítica literária, gosta de crítica literária, tem alguma relação e conhece alguém aqui do Brasil?
Mia Couto: Sim. Não, do Brasil eu não conheço, mas leio crítica literária. Eu acho que é importante o escritor manter uma relação de aprender... O escritor tem que encontrar escolas, tem que encontrar mecanismos de aprendizagem que questionem o seu próprio trabalho. Então eu acho que isso é importante. Muitas vezes, a crítica literária me fornece elementos que nós próprios não entendemos no nosso processo de criação.
Ivan Marques: Quer dizer: a crítica ajuda o escritor, em primeiro lugar, a crítica não serve tanto para o leitor, então?
Mia Couto: Eu concordo consigo. Eu acho que, provavelmente, aquilo é um diálogo mais a dois do que, propriamente, passe para um leitor...
Miguel Gullander: Posso voltar só um passinho atrás, que eu fiquei com curiosidade de perguntar uma coisa. Em África, as árvores são consideradas em um certo sentido como sábios. E eu tenho curiosidade de saber qual é a sua árvore preferida e por quê [risos].
Mia Couto: Eu tenho preferências várias, eu sou promíscuo nesse amor com as árvores. Mas o embondeiro é provavelmente uma árvore de eleição, que aqui se chama baobá, não sei se.... Agora, o que é curioso é que as árvores, e por isso que eu não sou um bom cientista, as árvores em África são entidades múltiplas. Quer dizer, a África escandaliza todo mundo, e eu agora estou mistificando e tornando a coisa um pouco exótica. Mas o baobá, por exemplo, particularmente, ou a mafurreira, ou o canhoeiro são árvores nossas que não existem fora da África. São residências de espíritos, são uma espécie de um altar. É ali que se enterram os mortos. E essa relação entre o céu e a terra, isso me fascina muito. E é ali que se contam histórias, há todo um vínculo, a árvore é um ser de relação, vamos dizer assim.
Paulo Lins: E os elefantes? Você falou que tem uma paixão por esse animal.
Mia Couto: Sim, sim, eu tenho uma grande paixão, de fato.... Faz parte do meu trabalho, eu trabalho em reservas e parques de Moçambique. Estamos reabilitando aquilo que foi destruído pela guerra. E, de fato, o elefante é um animal cujas habilidades, digamos assim, de comunicação, de ser um ser social, sofisticado, com um profundo desconhecimento daquilo que.... Nós não o conhecemos. Não conhecemos essa entidade coletiva, que é a família, a família dos elefantes. Eu tenho um grande fascínio por esse animal. Não, digamos assim, o animal de eleição, em geral, em África, aquilo que é uma tentativa de uma imagem de exportação dessa África, de cartaz, é o leão, mas eu escolhi o elefante. Até porque é muito desajeitado, e eu gosto...
Paulo Markun: Há um grande debate no mundo inteiro, e no Brasil também, obviamente, sobre a questão ambiental. Isso inclusive começa a transbordar para a literatura, em livros de alguma militância. Eu queria saber se isso ocorre também em Moçambique.
Mia Couto: Ocorre sim. Nós estamos partilhando dessa preocupação de valorizar aquilo que são harmonias, que são a procura de respostas para desequilíbrios ecológicos. Mas eu tenho uma certa resistência de que [esse problema] seja autonomizado, que seja separado do resto, ou seja, é preciso mudar o mundo inteiro e isso vai junto, digamos assim. Separar essa questão, fazendo uma militância específica desse assunto é uma coisa para a qual eu tenho alguma resistência.
Paulo Markun: Mia, nos dois livros que eu tive a oportunidade de ler, publicados aqui no Brasil, eu sei que há outros, há personagens velhos, que têm um papel preponderante. Em um deles, [no livro] “A varanda do frangipani”, a história se passa em um asilo, então a grande parte dos personagens são velhos. No outro, “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, um dos personagens centrais é o avô. Como você encara os velhos na sociedade? Eles realmente são essa fonte de sabedoria e de conhecimento que aparece na sua obra?
Mia Couto: No mundo rural de Moçambique, isso é verdade: os velhos não são só a fonte de sabedoria, são de fato uma fonte da produção dos valores morais etc, são ao mesmo tempo.... Nós estamos a falar de uma sociedade em que essas esferas da política, da religião etc, não se autonomizaram, estão todas misturadas. Portanto, o mais velho da família é, ao mesmo tempo, o chefe da família, é o sacerdote, porque não há uma igreja que está institucionalizada. Então, concentram-se nos mais velhos esses conjuntos de funções, e eles de fato são os personagens centrais, e são memória, e são aquilo que são na relação com os antepassados, são eles o veículo, por eles que passa esse tipo de relacionamento. Mas isso está mudando. Há dinâmicas de mudanças em África que são hoje, digamos, quase dramáticas, estão acontecendo de uma forma dramática – quando eu digo dramática, quero dizer: intensa, não do ponto de vista de serem negativas. Nas universidades hoje os jovens sabem coisas que são mais importantes para o futuro e, portanto, isso é um dos grandes dramas humanos, essa perda de função dos mais velhos.
Norma Couri: Você acha que algum dia vai acontecer a tese do Saramago, em “A jangada de pedra” [romance publicado em 1986], que um dia Portugal vai se deslocar da Europa e se unir à África e ao Brasil? Você acha que isso pode acontecer um dia.... essa CPLT, comunidade dos países de língua portuguesa, que nunca aconteceu de verdade?
Mia Couto: Nunca aconteceu exatamente porque essa viagem, essa jangada de pedra, de que falou o Saramago, tem que ser de todos, tem que ser uma viagem... não tem que ser Portugal que parta para descobrir os outros, tem que ser todos partindo para se encontrarem em algum lugar comum. E, de fato, a ideia da lusofonia é quase uma miragem ainda. A ideia de uma comunidade lusófona é um projeto de construção pelo qual eu tenho simpatia, embora no princípio ela fosse uma espécie de resgate, de alguma coisa que tinha uma sensação de império perdido. Mas, agora, acho que os próprios países africanos querem esse projeto, precisam de ter um espaço de afirmação e, portanto, há de haver um momento em que nós nos encontramos. E aí o lugar do Brasil é fundamental. Se o Brasil não quer a lusofonia, não quer essa projeção dessa ideia, essa ideia nunca vai existir.
Josélia Aguiar: Mia, a guerra, a vida após a guerra foram temas seus, e a pergunta é: essas são as suas inquietações ainda, o que o senhor está escrevendo no momento, você pode já falar um pouco do que está nascendo de novo?
Mia Couto: A guerra não.... Em si mesma, eu não quero que ela seja um tema. A guerra foi um cenário em que eu coloquei aquilo que são preocupações outras, que são mais comuns, digamos assim, que são as preocupações em relação à morte, ao humor, à relação das pessoas com os seus lugares. E eu hoje estou escrevendo um romance que passa por uma ideia de encontro. Este também é um tema que é do meu agrado, que é a possibilidade de encontro entre culturas e a margem de desencontro que continua existindo, porque as pessoas não são capazes de sair delas próprias, não são capazes de se despirem daquilo que são os seus valores que acreditam ser essenciais. Então, há uma mulher da Europa – para eu contar só um bocadinho da história –, uma mulher da Europa que vem à procura do seu marido que se perdeu em África, que se dissolveu em amores com mulheres africanas, e ela veio resgatar o marido. E depois ela encontra um universo em que ela própria se tem que reencontrar consigo mesma, digamos assim.
Josélia Aguiar: E quando fica pronto [este romance]?
Mia Couto: Eu não sei...
Paulo Lins: Você tem uma disciplina para escrever, um tempo para escrever, horário, essas coisas todas?
Mia Couto: Não, eu escrevo nos intervalos, porque.... Eu escrevo mais à noite e mais nas insônias. Eu sou um escritor de insônia [risos].
Norma Couri: Eu fiquei curiosa com uma coisa que você falou anteriormente: [você disse que] os espíritos moram na árvore. E quando se abate uma árvore, o que acontece? Os espíritos...
Mia Couto: Essas árvores, digamos, não são abatidas. Elas são sagradas, não se pode abater. Claro que se se abate a árvore, os espíritos.... É uma coisa muito interessante, porque daí que nós vemos que a tradição é uma coisa feita de elementos congelados, fixos. Os espíritos translocam-se, mudam de residência, aliás...
Norma Couri: Para outras árvores?
Mia Couto: De fato, eles vivem na terra e falam pela árvore, digamos assim. A referência é a terra, e mesmo que aquela árvore seja abatida por uma razão qualquer, estranha, eles perdem voz, mas não perdem a moradia.
Miguel Gullander: Mia, no seu trabalho, uma pessoa poderia concluir, ler nas entrelinhas, que o escritor tem como que um papel ativo, traz um papel ativo, crítico e também [um papel] para mitigar o sofrimento do outro e de combater a ignorância. Concorda com isso? Esse papel engajado em nível quase social?
Mia Couto: Eu acho que passa tudo por uma coisa que é sugerir que há uma outra possibilidade de um outro mundo, que há outros mundos que estão vivendo já, isto é, que não é preciso nós nos inventarmos tanto assim, mas que há essa possibilidade de que não nos deixemos sufocar por isso que é a chamada realidade, digamos assim. Para mim, tudo isso se resume em um episódio que marcou muito a minha maneira de ver o mundo. Foi o Ho Chi Minh [1890-1969], o revolucionário vietnamita, o presidente do Vietnã, que esteve preso e escreveu na prisão belíssimos poemas de amor, cheios de ternura, da mais fina ternura. E quando perguntaram como ele foi capaz de produzir essa obra em uma condição tão sofrida na prisão, ele respondeu uma coisa que, para mim, é uma espécie de sentença. Ele disse: "Eu desvalorizei as paredes". No fundo, eu acho que escrevemos para desvalorizar as paredes.
Ivan Marques: Mia, eu gostaria de perguntar.... Você fala muito dessa visão errada, romântica, folclórica que os ocidentais têm da África. O que você acha mais importante de corrigir nessa visão externa do continente africano, da cultura africana?
Mia Couto: Ivan, a questão é que essa visão agora já é interna, quer dizer, os africanos já sinalizaram, digamos assim, incorporaram essa visão de si mesmo. Acho que o mais grave é isso, e provavelmente a responsabilidade histórica dos africanos agora é produzir uma imagem de si mesmos que seja diferente, que seja uma fuga a esse exterior. Essa é a nossa obrigação, e eu espero que a nossa presença aqui, por exemplo, na Flip possa ajudar um bocadinho a criar uma ideia de uma África que é diversa, que é complexa, que tem muitos mundos dentro de si própria.
Miguel Gullander: Porque existe, em nível europeu, sempre aquela expectativa de que o autor africano tem que, de certa maneira, corresponder a uma certa categoria, estar formatado...
Mia Couto: Os africanos também pensam assim de si mesmos [risos].
Manya Millen: Eu queria que você falasse um pouco da sua relação com a tecnologia, porque minha pergunta é sobre o futuro do livro. A música já mudou de suporte várias vezes, o disco, o DVD, o MP3... é sempre uma conversa que vem de novo, o livro como suporte. O papel vai sobreviver ou não? E as pessoas já leem jornais cada vez mais na internet e não no papel, então há essa discussão. Eu, por exemplo, gosto do cheiro do livro, não consigo ler livros na internet. Qual é a sua relação com a tecnologia? Você acredita, enfim, que o livro é eterno?
Mia Couto: Eu acho que não será eterno, mas tenho pena que não seja.... Eu tenho uma relação, essa mesma que a Manya tem, um certo gosto por aquele objeto. Mas eu acredito que isso é uma coisa provavelmente que não é grave... o suporte do livro que muda, mas a relação de encantamento com a leitura se preserva, eu acho que isso é o mais importante. Provavelmente essa nossa ideia nostálgica de que o livro será sempre assim não vai sobreviver.
Ivan Marques: Mas a literatura pode sair do papel, você acha? Ela pode... A poesia musicada...
Mia Couto: Ela começa fora do papel, ela viaja pelo papel e passa pelo papel. Às vezes perguntam [quais] as influências que eu tive do Brasil, para minha própria escrita, muitas vieram através da música, das letras que eram poesia, de fato, de Chico Buarque, do Caetano Veloso. Portanto, para nós, foi importantíssimo saber como é que o português podia ser cantado assim, porque se libertava daquilo que era aquela norma, aquela coisa regulamentada, cansada, amarrada no papel. Foi importante isso.
Paulo Markun: Você usa o computador para trabalhar?
Mia Couto: Uso, sem problema.
Paulo Markun: Você escreve no computador os seus livros?
Mia Couto: Eu escrevo em papelinhos, em papéis vários que tenho, [mas] perco quase todos. E o computador para mim é uma caixa onde eu atiro esses papéis, mas já não sou mais intimidado pelo computador. No princípio eu tinha uma relação de inferioridade com aquela máquina, agora já somos parceiros.
Norma Couri: Você é sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. Você acha que o Brasil conhece a África, conhece Moçambique?
Mia Couto: Não. O que eu penso é que já posso dizer alguma coisa, digamos assim, não falando do Brasil, mas daquilo que eu tenho como percepção, é que Moçambique, para o cidadão comum brasileiro, não é nada. E, às vezes, tenho que explicar que eu sou de Moçambique e eu percebo que a pessoa não tem ideia nenhuma do que eu estou a falar. E eu acho que isso é alguma coisa que temos que resolver. E, por outro lado, a ideia da África é uma ideia muito mistificada, uma ideia muito folclorizada, muitas vezes. E isso é comum a todos os brasileiros, brasileiros que têm origem africana e os que não têm origem africana, digamos, que padecem quase sempre da mesma visão mistificada, de um continente que é fácil, porque parece que é um só. E há muitas Áfricas, as Áfricas são profundamente complexas e....
Norma Couri: [interrompendo]. Como são as Áfricas?
Mia Couto: Eu também não sei dizer [risos].
Paulo Markun: Vamos para uma pergunta mais simples e elementar: o que é Moçambique?
Mia Couto: Moçambique é uma nação à procura de si própria, quer dizer, uma nação que está em projeto de nascer ainda, é mais nova que eu. Eu fiz ontem 52 anos, e o meu país tem 32 anos. Então, é um momento feliz em que o país não sabe o que é. Isso é ótimo, não é uma aflição...
Paulo Markun: Mas sabe o que quer, o país?
Mia Couto: A elite que está governando o país sabe o que quer, mas há vários quereres, e também nisso somos iguais aos outros países. Há conflitos de interesses profundos, entre aquilo que são os interesses mais populares, mais da gente que trabalha, e os projetos, a visão da elite. Essa elite é, estranhamente, a elite que lutou pela independência, a elite que fez a revolução, que fez o socialismo, o regime socialista, e, de repente, refez tudo, está fazendo o capitalismo agora com o mesmo empenho, e há ali, portanto, um sentimento de que estamos todos um pouco perdidos. E alguma coisa vai acontecer, se acontecer a estabilidade, se nós não tivermos mais guerra, alguma coisa vai acontecer, e nós, infelizmente, vamos ficar parecidos com os outros países, vamos ser mais um país no mundo.
Norma Couri: O Agualusa fala que sempre que ele volta a Angola, ele encontra felicidade e inferno. Você acha que Moçambique tem horror e beleza, tem mais horror do que beleza, tem mais beleza do que horror?
Mia Couto: Tem as duas coisas. A relação do Agualusa é um pouco diferente, ele vive uma parte do tempo fora de Angola, porque ele vai de visita... E, para ele, esses dois lados ficam mais visíveis. Eu estou dentro do poço, digamos assim, e para mim o céu é aquele pequeno buraco que está lá em cima do poço, portanto, para mim isso não é tão visível como é para ele.
Paulo Markun: Outra questão é a seguinte: tem muitos escritores que reclamam do tempo. Aqui no Brasil nós tivemos muitos escritores que eram funcionários públicos e escreviam nas horas vagas, ou outros que buscavam, enfim, uma maneira de sobreviver e ao mesmo tempo escrever. Você disse que escreve em pequenos papéis que vai colocando pelo bolso ao longo da sua atividade. Gostaria que não fosse assim?
Mia Couto: Gostaria que não fosse assim, mas eu não quereria nunca ser um escritor o tempo inteiro.
Paulo Markun: Por quê?
Mia Couto: Porque eu quero ter essas outras janelas abertas para o mundo, eu quero trabalhar em equipe, trabalhar em uma relação mais produtiva com o mundo. A escrita é uma atividade solitária, eu não quero.... Eu envelheceria muito e, digamos, eu não quero levar tão a sério a escrita.
Ivan Marques: Ser escritor o tempo inteiro não é tão bom assim? É uma coisa dolorosa, um exercício?
Mia Couto: Às vezes adoecemos disso, quer dizer, às vezes investimos tanto nessa única coisa que, depois, se não corre bem, nós nos desmoronamos inteiramente. Eu não quero que isso aconteça.
Paulo Lins: Você me falou que o livro que você sofreu mais para escrever foi o “Terra sonâmbula”, me falou ontem lá na pousada. E você fala agora em solidão, você não quer ser escritor o tempo todo.... É penoso para você escrever, é uma atividade penosa?
Mia Couto: Não, não, não. Eu não sou masoquista [risos]. Eu escrevo com grande prazer. O momento da criação é o momento em que nós, digamos assim, inventamos um universo em que aqueles personagens são nossa família, estão vivos, estão nos dizendo coisas. Esse momento é de uma felicidade extrema. Eu faço outras coisas, a biologia para mim é um prazer de fazer. Mas a paixão, a grande paixão é a escrita.
Josélia Aguiar: O senhor escreve todos os dias, tem o hábito de...
Mia Couto: Sim, todos os dias, nem que eu tenha que reescrever uma simples frase, eu vou sempre ao texto.
Miguel Gullander: Mia, eu sinto que no, seu trabalho, você saboreia a textura de todas as palavras. Qual é, assim, uma de suas palavras preferidas no momento?
Mia Couto: No momento?
Miguel Gullander: Ou uma de suas palavras preferidas.
Mia Couto: Não sei, eu talvez esteja viciado, porque ontem eu estava pensando na questão de como é que eu... O anúncio da página, em Moçambique, quando foi anunciado o fim da guerra, não houve uma festa como eu pensava que ocorreria. As pessoas não saíram para a rua dançando, e uma semana depois choveu, e aí as pessoas festejaram. E aí eu criei de fato uma palavra, que era a chuva “abensonhada”, que era abençoada e sonhada ao mesmo tempo... E provavelmente a ideia era que a chuva estava trazendo a notícia, não foi o jornal ou a televisão que trouxeram a verdadeira notícia, foi a chuva que trouxe.
Miguel Gullander: Uma bela palavra!
Paulo Markun: Mia, eu queria checar uma coisa para você confirmar, contando uma história que aconteceu comigo uma vez. Uma certa noite eu estava dormindo e acordei, no meio de um sonho, e achei que era uma história sensacional. Sensacional, iria dar um romance maravilhoso. E peguei um pedaço de papel e anotei tudo o que eu achava importante daquela história. Dormi novamente e, no dia seguinte, acordei e não entendi nada do que tinha escrito. Eu queria saber se essa coisa do sonho, de alguma forma, interfere no seu trabalho e, ao contrário, se quando você está muito envolvido com um livro, se ele passa para o teu sonho.
Mia Couto: Em geral, ele não passa. Quer dizer, em geral eu funciono assim como o Paulo [Lins] disse, eu acordo estremunhado, no meio da noite, e tenho um papel e uma caneta, [anoto] às vezes no escuro. E, exatamente como aconteceu consigo, na maior parte das vezes tenho que decifrar [o que foi escrito]. E, nesse trabalho de decifrar, digamos assim, há ali um lado quase arqueológico, como se aquilo tivesse ocorrido antes de eu próprio nascer, antes de eu ser vivo. Mas esse exercício também para mim é um prazer: esse exercício de decifrar aquilo que está no intervalo, nessa zona de vigília, para mim é um grande prazer. Mas, normalmente, os personagens, eu sou um escritor de personagens.... Também eu não construo uma narrativa, que era a pergunta do Paulo, eu não tenho uma arquitetura já feita, os personagens conduzem-me, e eu tenho que ter um estado enorme de paixão. Eu tenho que estar enamorado por eles de maneira que eles [os personagens] são mais importantes do que eu em um certo processo.
Paulo Lins: O personagem ganha vida própria de vez em quando? Tem vezes que a gente escreve uma coisa e depois diz: “Por que que esse cara está fazendo isso? Como eu fui fazer isso? Por que ele fez isso? ” Eles ganham uma...
Mia Couto: Tem que se matar esse personagem... [risos].
Paulo Lins: É a melhor forma de resolver, não é?
Mia Couto: Sim, simbolicamente [risos].
Norma Couri: Ontem eu estava conversando com um escritor californiano, Jim Dodge, que escreveu [o romance] Fup [1983]; eu não sei se você leu, que é a história de uma pata e tal, muito famoso. E ele contava que ele está há dez anos tentando escrever um romance policial, e que o personagem dele já se transformou em dez pessoas, e que ele vive assoberbado com esse personagem. Esse personagem tomou conta dele, e ele parou o livro para ver se o personagem para de persegui-lo. Isso aconteceu com você alguma vez? [Risos].
Mia Couto: Sim. Eu agora estou nesse livro, e tenho limites. Só entram cinco [personagens]. E, de fato, eles chamam outros; há essa coisa do processo de ramificação, ou arborização, que, a certa altura, nós temos que conduzir o cavalo, temos que ter a rédea na mão para que o processo não seja depois um processo doloroso.
Paulo Markun: Mia, o nosso tempo está chegando ao fim, e eu faço uma pergunta justamente sobre isso, sobre essa questão do tempo. Também em sua obra ou em parte dela, [o tempo] não segue a lógica, digamos, do cronômetro, certo, da sucessão de minutos, horas, dias, é meio circular. Isso é, digamos, o tempo da África?
Mia Couto: Sim, é o tempo da África. Se há coisas assim que a África me entregou, e eu custei de escutar essa outra ideia de um tempo circular, de um tempo em que o futuro é quase interdito: não há palavra para dizer futuro em muitas línguas de Moçambique. Isso revela, traduz, essa ideia de um tempo circular.
Paulo Markun: Mas você acredita no futuro?
Mia Couto: Eu, infelizmente, tenho medo dele, pelo menos [risos].

Paulo Markun: Muito obrigado, Mia. O Roda Viva chega ao final; eu gostaria de agradecer a presença do escritor moçambicano Mia Couto e da nossa bancada de entrevistadores. Agradecemos também a sua atenção, lembrando que a série especial na Festa Literária Internacional de Paraty volta amanhã, à meia-noite e meia, com a entrevista de Amós Oz, o mais conhecido escritor de Israel, que também veio participar da Flip 2007. Até lá.