A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre
um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de
que havia sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la
mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em
frente à vitrine para observá-la. Era nada menos que perfeita na sua cor
vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito
alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque. Disfarçado, observou
o preço e, em seguida, retomou o caminho. Cara demais, pensou, e enquanto pensava
decidiu não pensar mais no assunto.
Quase conseguiu — até o dia seguinte quando, voltando
pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte
de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou.
E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. No ônibus, observou
impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares
em suas colorações precisas, sem a menor magia.
Pelo vidro da janela analisou sua própria
gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras. Em casa,
atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio
jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar — mas um pouco mais tarde,
jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão, surpreendeu-se
a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la.
Na verdade, era mais fácil do que supunha.
Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais. Deitado, a cama pareceu menos
vazia que de costume. Na manhã seguinte, tomou a decisão: dentro de um mês, ela
seria sua. Passou na loja, mandou reservá-la, quase envergonhado por fazê-la
esperar tanto. Que ela, sabia, também ansiava por ele.
Trinta dias depois ela estava em suas mãos.
Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e
cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela — o trivial
não seria suficientemente expressivo, nem mesmo o meramente correto seria capaz
de atingi-la: metafísicas, budismos, antropologias.
Permaneceu deitado durante muito tempo, a
observá-la sobre a colcha azul. Dos mais variados ângulos, ela continuava a
mesma, terrivelmente bela, vaga e inatingível — mesmo ali, sobre a cama dele,
mesmo com a nota de compra e o talão de cheques um pouco mais magro ao lado.
Olhava os sapatos, as meias, a calça, a camisa — e não conseguia evitar uma
espécie de sentimento de inferioridade: nada era digno dela. Um pouco mais
tarde abriu o guarda-roupa e então deixou que um soluço comprimisse subitamente
seu peito de coração ardente, como duas mãos que apertassem para depois libertá-lo
em algumas lágrimas desiludidas. Não era possível. Não podia obrigá-la, tão nobre,
a servir de companhia àqueles ternos, sapatos e camisas antigos, gastos,
vulgares, cinzentos. Foi depois de olhar perdido para o assoalho que teve como
um repente de lucidez. Então encarou agressivo a impassibilidade da gravata e
disse:
– Você é minha. Você não passa de um objeto.
Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine
de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la à hora que quiser. Como e onde
quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano
estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma. Você...
Não conseguiu ir adiante. A voz dele estremeceu
e falhou bem no meio de uma palavra dura, exatamente como se estivesse blasfemando
e Deus o houvesse castigado.
Um Deus de plástico, talvez de acrílico ou
néon. Olhou desamparado para o sábado acontecendo por trás das janelas
entreabertas e, sem cessar, para a colcha azul sobre a cama, logo abaixo da
janela e, mais uma vez, para a gravata exposta em seu suporte de veludo pesado,
vermelho.
Ele enxugou os olhos, encaminhou-se para a estante.
Abriu um dicionário. Leu em voz alta:
Gravata S. f: lenço, manta ou fita que os
homens, em trajes não caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho
da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço. Golpe no pescoço, em algumas lutas
esportivas. Golpe sufocante, aplicado com o braço no pescoço da vítima,
enquanto um comparsa lhe saqueia as algibeiras.
Suspirou, tranquilizado. Não havia mistério.
Colocou o dicionário de volta na estante e voltou-se para encará-la novamente.
E tremeu. Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se
chocassem de repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que
tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer
tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não
tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia
ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida
fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:
– Você não passa de um substantivo feminino —
disse, e quase sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.
Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada.
Admitia que não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não
conseguisse controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo
daquela zona que alguns haviam convencionado chamar loucura. E essa era a primeira
vez que se descobria assim, tão perto dessas coisas incompreensíveis que sempre
julgara acontecerem aos outros — àqueles outros distanciados, melancólicos e
enigmáticos, que costumava chamar de os-sensíveis — jamais a ele. Pois se
sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era
plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o
que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia
coisas que nunca tinham sido suas.
Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se
uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o
medo dentro dele e portanto seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois
antes de fazê-lo já se sabia temendo, já se sabia perdendo-se dentro dele —
finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira
estaria perdido dentro dela.
Todo enleado nesse pensamento, tomou-a entre os
dedos de pontas arredondadas e colocou-a em volta do pescoço. Os dez dedos esmeraram-se
em laçadas: segurou as duas pontas com extremo cuidado, cruzou a ponta esquerda
com a direita, passou a direita por cima e introduziu a ponta entre um lado
esquerdo e um lado direito. Abriu a porta do guarda-roupa, onde havia o espelho
grande, olhou-se de corpo inteiro, as duas mãos atarefadas em meio às pontas de
pano. Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se
apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou
viver uma madrugada de domingo — disse para dentro, num sussurro. — Basta
apertar. Mas antes de apertar uma coisa qualquer começou a acontecer
independente de seus movimentos. Sentiu o pescoço sendo lentamente esmagado,
introduziu os dedos entre os dois pedaços de pano de cor vagamente indefinível,
entremeado por pequenas formas coloridas, mas eles queimavam feito fogo.
Levou os dedos à boca, lambeu-os devagar, mas
seu ritmo lento opunha-se ao ritmo acelerado da gravata, apertando cada vez
mais. Ainda tentou desvencilhar-se duas, três, quatro vezes, dizendo-se
baixinho do impossível de tudo aquilo, o pescoço queimava e inchava, os olhos
inundados de sangue, quase saltando das órbitas. Quando tentou gritar é que
ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre
o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, boca aberta
revelando algumas obturações e falhas nos dentes, inúmeras rugas na testa,
escassos cabelos despenteados, duas pontas de seda estrangeira movimentando-se
feito cobras sobre o peito, uma das mãos cerradas com força e a outra estendida
em direção ao espelho — como se pedisse socorro a qualquer coisa muito próxima,
mas inteiramente desconhecida.
ANÁLISE
LITERÁRIA:
“[...] podia
partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro
dela”.
Caio Fernando Abreu
No conto “Gravata”, de Caio Fernando Abreu, há
uma clara referência ao fator econômico na construção do enredo e na
estruturação das personagens, em um contexto marcado por intensas
transformações políticas e sociais.
O texto de Abreu apresenta uma metáfora do
indivíduo que é dominado e sufocado pela sociedade, como uma crítica ao
mercado, ao consumo excessivo que impera na sociedade capitalista. A solidão do
sujeito e a busca do amor em um objeto retratam uma sociedade pautada na lógica
do mercado.
Este sufocamento se dá a partir da submissão da
identidade individual do sujeito aos padrões de consumo estimulados pelo
sistema capitalista.
No conto, a subjetividade do protagonista
eleva-se em oposição à objetividade do mercado consumidor, reproduzindo os
dilemas mais íntimos dos sujeitos que viviam no ambiente urbano e integravam a
força produtiva da época.
O conto “Gravata” apresenta um narrador
onisciente que nos expõe a conturbada relação entre um homem e um objeto (a
gravata).
Desde seu início, este conto revela-se como uma
reflexão acerca da repressão imposta pelo brutalismo característico da
sociedade brasileira da década de 1970, entusiasmada com uma promessa de
progresso e cada vez mais desumana.
Como afirma Ana Paula Ohe (2009):
O
“milagre econômico” brasileiro proporcionou ao país um crescimento da economia
em ritmo acelerado. O ingresso maciço de capitais e empresas estrangeiras
possibilitara a ampliação do mercado interno e externo. É nesse período, que
pela primeira vez, a produção brasileira encontrara um mercado consumidor
significativo em outros países, fazendo com que a transitoriedade dos modismos
rompesse os limites territoriais para inscrever-se num âmbito global, tornando
visível as mudanças nos padrões tanto de produção como de consumo. (OHE,
2009, p. 7)
Este contexto, regido pela lógica do consumo, é
refletido no conto a partir da busca do personagem por se sentir incluído
socialmente, através da aquisição de um bem material capaz de diferenciá-lo dos
demais:
“No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos
outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações
precisas, sem a menor magia” (ABREU, 2008, p. 24).
A percepção de que a vida de algumas pessoas em
sociedade se tornou efêmera e corriqueira pode ser relacionada com o
consumismo, com o acúmulo de bens materiais e, consequentemente, de trabalho e
de informação.
Assim, o indivíduo busca sentir-se melhor por
meio da aderência a modismos, no caso do conto em análise, através da compra de
uma gravata, que além de ser capaz de destacá-lo entre seus iguais – outros
homens com o mesmo padrão de vestimenta e, que assim como ele, utilizam
transporte coletivo –, também, por si só se constitui em um símbolo de marcação
de status.
Pouco sabemos sobre o protagonista: trata-se de
uma alegoria do homem comum. Desconhecemos seu nome, somos informados sobre
algumas de suas características físicas (apresenta obturações e falhas nos
dentes, rugas na testa e escassos cabelos) somente no último parágrafo, até
então o destaque era dado apenas à gravata) e sobre parte de sua rotina de
trabalho repetido por ele diariamente (trajeto de casa de ônibus para ir ao
trabalho, vive sozinho, prepara o próprio jantar, fuma) e a cada saída para o
trabalho ele passa pelos mesmos lugares.
A construção desta personagem oferece pistas
substanciais para reflexão do distanciamento nas relações pessoais, do
sentimento de solidão e perda de identidade que o homem experimenta nas
situações características da vida urbana, que aglomera os seres, mas não os
aproxima.
A racionalidade predomina em suas ações e torna
suas posturas mecânicas, repetitivas.
A personagem está conectada com o mundo através
dos meios de comunicação de massa, o que o torna presa fácil de campanhas
publicitárias e ideológicas, que como ainda hoje, empurram os indivíduos para
um consumo desenfreado e inconsequente, como pode ser constatado em trechos:
“Deitado,
a cama pareceu menos vazia que de costume” (Id. p. 25) e “em casa, atarefado na cozinha, dispondo
pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos
não pensar – mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar
perdido num comercial de televisão [...]” (Id., p. 24).
Não há no texto referência aos sujeitos que o
protagonista possa conhecer ou encontrar ao repetir diariamente o mesmo
trajeto. Quando o narrador menciona os demais homens que viajam no mesmo ônibus,
estes surgem sem rostos, sem traços físicos, sendo identificados apenas pelas
roupas que portam. As roupas, assim, são o elemento que equipara todos os
homens, enquanto que, suas características físicas e psicológicas não são
levadas em consideração.
As marcas urbanas, como as ruas, os ônibus, o
asfalto e as lojas, são sobrepostas aos aspectos humanos no texto.
“No
ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente
desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia. Pelo
vidro da janela analisou a sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a
igual a todas as outras” (ABREU, 2001, p. 26).
Sua rotina de trabalho estabelece certa
“objetividade” em sua vida. Essa objetividade, no entanto, é abalada pelo
encantamento que ele passa a sentir em relação a um objeto (uma gravata).
Almejar um objeto novo, supostamente superior ao que possuía, converte o protagonista
em apenas mais um dos tantos sujeitos que vivem na urbe, que fazem parte do
sistema capitalista que nela impera.
Após ver a gravata pela primeira vez em uma
vitrine, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus, delineia-se
uma relação sentimental entre o homem e o objeto que se torna alvo de seu
desejo e tem certeza de que ela havia sido feita apenas para ele e que não
poderia mais esquecê-la, então, passou a organizar sua vida objetivando
adquiri-la.
“No
dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela”
(ABREU, 2001, p. 26).
O que surge como diferencial no texto é o fato
do protagonista devotar um sentimento tão forte para a gravata (denominado por
ele de “amor”), dando ao objeto um status único, equiparando-o a uma pessoa
numa espécie de amor platônico:
“No
ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte,
saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la” (ABREU,
2008, p. 24).
“[...] voltando
pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte
de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade,
pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. [...]
surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem
possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos,
algumas fomes a mais (ABREU, 2008, p. 24-25).
Nesse momento, a gravata ganha vida no texto,
assume superioridade como pode constatar no título do conto. Ocupa o espaço dos
demais indivíduos nas relações pessoais (objeto humanizado de um lado e sujeito
coisificado de outro). Enquanto a ausência de uma precisão na caracterização do
protagonista remete a uma equiparação entre todos os “homens”, entre todos os
indivíduos que possuem rotinas de trabalho, que tomam ônibus e vivem sozinhos,
convertendo-o em apenas mais um sujeito no meio da multidão, a impossibilidade
de descrever com precisão a gravata devido à complexidade com que se apresenta
para o personagem dá ao objeto um lugar de maior destaque do que o que é
conferido ao sujeito. O desejo, a necessidade pelo objeto se apodera do
indivíduo de tal forma, que este se vê absolutamente seduzido pela imagem da
mesma:
“Era
nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de
pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que
pressentia lisa e mansa ao toque” (ABREU, 2001, p. 24), tanto
é, que mesmo após concluir que não dispunha de meios para pagá-la, não
conseguiu desistir de comprá-la.
Recorrendo ao conceito apresentado no próprio
conto, uma gravata é um “lenço, manta ou fita que os homens, em trajes
não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa,
atando-a adiante com um nó ou laço” (ABREU, 2008, p. 26), ou seja, algo
inapropriado, ou ainda, improvável para um sujeito que em seu trabalho realize
atividades que envolvam esforço físico – as quais são desvalorizadas e até
vistas com preconceito pela sociedade.
A gravata é usada, comumente, em conjunto com
um terno e com sapatos, sendo associada a um traje mais formal e pertencente a
ambientes de trabalho que requerem o emprego da razão em oposição à força
física. Vinculada ao ambiente urbano, a gravata erige-se como uma marca da rotina
de trabalho do protagonista na urbe.
Quando, enfim, consegue adquiri-la, o
protagonista se vê em meio a sentimentos opostos: ao mesmo tempo em que busca
racionalizar o que sente na tentativa de perceber a gravata como um objeto e,
então, fazer uso dela, ele percebe a impossibilidade de controlar suas emoções:
o protagonista debate-se entre o objetivo (a lógica do mercado) e o subjetivo
(seus sentimentos).
“A
cama pareceu menos vazia que de costume” (ABREU, 2001, p. 27), fazendo
as vezes de um par romântico:
“Apalpou-a
sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de
recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela”
(ABREU, 2001, p. 27).
Mas, seus sentimentos não podem ser facilmente
racionalizados. O sujeito do conto de Abreu vê-se perdido, atordoado, pois o
fato da gravata ser um objeto não impede que ele a ame. No texto, o narrador
nos mostra a gravata com traços humanos, atribuindo-lhe também sentimentos:
“Que
ela, sabia, também ansiava por ele” (ABREU, 2001, p. 27).
Ao tentar racionalizar o que sente, busca na
falta de humanidade da gravata uma justificativa para a impossibilidade de
amá-la:
“Você
é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para
pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso
usá-la a hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque
não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma
coisa sem alma“ (ABREU, 2001, p. 28).
E essa relação intensifica-se: “eu te amo tanto, tanto” (ABREU, 2001,
p. 29).
O ato de vivenciar algo desconhecido, algo que
ele não consegue racionalizar “por mais
que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de
qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento” (ABREU, 2001, p. 29)
coloca-o em conflito existencial, surge a loucura em oposição à razão.
“Pois
sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era
plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o
que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia
coisas que nunca tinham sido suas” (ABREU, 2001, p. 29).
Quando o protagonista assume seu medo, ele
consegue ir além da objetividade que o mantinha atrelado a sua rotina, que o
fazia medir suas ações, que o limitava: “sim,
podia fazer qualquer coisa” (ABREU, 2001, p. 29).
A personagem ao reconquistar seu equilíbrio,
restabelecer sua totalidade e sair do estado de alienação, no qual estava
imersa, tenta lidar com o objeto. Há um respeito e uma veneração do sujeito
para com o objeto, mas aquele rompe a barreira que os separava e assume o
objeto como seu.
“Sentia-se
aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia
ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo”
(ABREU, 2001, p. 30).
Nesse momento, o objeto (gravata) que havia
catalisado essa tomada de consciência assume vida e sufoca o protagonista: a
vida presente na gravata tira a vida do protagonista.
“Ergueu
os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o
assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, [...] duas
pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito [...]”
(ABREU, 2008, p. 28).
O final do conto parece conduzir para uma visão
fatalista, retratando a impossibilidade do indivíduo de desvencilhar-se do
contexto, do mercado, do capitalismo, acabando por ser aniquilado. Entretanto,
em seu sentido menos aparente, encontramos um texto que alerta para as relações
impessoais e superficiais estabelecidas pela sociedade capitalista.
A desintegração progressiva das ligações
sociais, a crescente atomização da sociedade, a intensificação do isolamento
dos indivíduos, uns em relação aos outros, e a solidão, necessariamente
inerente a essas tendências, torna o sujeito o próprio produto da alienação.
Abreu faz uma crítica a esse modo de vida, no
qual as identidades individuais entram em conflito diante dos padrões e papéis
sociais que necessitam exercer. Dessa forma, a gravata, metáfora de “mercado”, impede
que o indivíduo recobre sua humanidade, sua totalidade, anulando sua
existência.
O conto, assim, mergulha na subjetividade do
protagonista para mostrar-nos o debate entre o objetivo e o subjetivo e a
necessidade de conciliá-los. O sujeito fragmentado, incompleto, surge alienado,
como o reflexo do mercado. Sua ambição está no consumo do melhor produto, na
aparência. Porém, o consumo continua mantendo-o incompleto.
Abreu nos apresenta uma sociedade automatizada
nas relações de produção e consumo e mesmo nas relações sociais. Essa mudança
teve como resultado sujeitos alienados que perderam a noção de totalidade (de
dominantes passaram a dominados). Na sociedade capitalista moderna, o elemento
subjetivo da realidade social surge separado do elemento objetivo, como se
fossem duas substâncias independentes: subjetividade vazia de um lado e
objetividade coisificada de outro; de um lado o automatismo da situação dada e
de outro a psicologização e a passividade do sujeito.
A única forma de romper com essa automatização
é através da reflexão de que o homem é o portador verdadeiro do movimento
social, tanto no processo produtor e reprodutor de sua vida.
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