MIA COUTO, entrevistado no
programa Roda Viva, da TV Cultura, em 10/07/2007, sob o comando de Paulo
Markun, com a participação de Ivan Marques, Norma Couri, Manya Millen, Josélia
Aguiar, Miguel Gullander e Paulo Lins.
O entrevistado de hoje, na
tenda do Roda Viva Flip é o romancista Mia Couto, de Moçambique, um dos mais
conhecidos e reconhecidos escritores africanos de língua portuguesa.
Intelectual que chegou a participar da luta armada pela independência de seu
país, hoje está na linha de frente da luta pela recuperação da identidade
cultural moçambicana.
O moçambicano Mia Couto
começou a carreira de escritor ainda jovem, quando se embrenhou no jornalismo.
Primeiro fez poesia, depois foi para o conto e a crônica, até chegar ao
romance, ganhando projeção na Europa, e teve os seus livros traduzidos em mais de
dez línguas.
Escrevendo originalmente em
português, em uma linguagem criativa e cheia de surpresas, a obra de Mia Couto
é profundamente marcada pela luta anticolonial do país onde nasceu. A história
de Moçambique tem origens tão distantes que, num conto tradicional, mereceria
um começo clássico: era uma vez um lugar na África habitado por povos
ancestrais, com território meio seco e meio verde, mas rico o suficiente para
atrair a cobiça de mercadores. E atraiu muitos deles. Primeiro, os árabes no
século X, depois os portugueses no século XV, que ali chegaram e ficaram.
Moçambique precisou de quase 500 anos para se livrar de Portugal. A
independência, em 1975, após uma luta sangrenta de mais de 10 anos, jogou o
país em uma guerra civil que durou outros 16. A paz só veio em 1992 e,
martirizado pela guerra, pela miséria e pela aids, Moçambique, desde então,
tenta se reconstruir.
António Emílio Leite Couto, ou
Mia Couto, é filho de imigrantes portugueses e nasceu na cidade moçambicana de
Beira, em 1955. Viveu a metade de seus 52 anos em meio às guerras do país e
chegou a participar da luta armada como membro da Frelimo, a Frente de
Libertação de Moçambique, que venceu a luta pela independência.
Nos anos 70, antes de ir para
o jornalismo e iniciar a carreira de escritor, que já rendeu quase duas dezenas
de livros, Mia Couto começou e parou um curso de medicina. Voltou à
universidade em 85 e se formou em biologia, passando a atuar também como
professor-pesquisador e ambientalista. Um dos autores do hino nacional de
Moçambique, Mia Couto conduz sua produção literária atento às raízes culturais,
angústias e esperanças de uma nação que fala mais de vinte línguas e vive os
desencontros da globalização. Ele escreve como alguém que refaz o próprio chão
para reconstruir o país. “A varanda do frangipani” [2001], um dos seus livros
de maior repercussão, é apresentada como um mirante de onde é possível olhar o
horizonte e entrever um rumo para um país que quer esquecer o tempo de guerra e
reingressar no campo do sonho.
Paulo
Markun: Eu queria começar pelo seguinte. Em uma entrevista, algum
tempo atrás, você se definiu como biólogo, e não como escritor, e disse que o
mundo da literatura é uma espécie de uma casa que você visita de vez em quando,
mas não mora lá. Eu fico me perguntando se essa casa você não está visitando
cada vez mais frequentemente e se já não está no momento de mudar para ela.
Mia
Couto: Eu estou já em uma situação em que não sei qual casa é a
minha casa de moradia, não é? Mas para mim o importante é ter essa possibilidade
de estar dentro e fora da escrita. De estar fora da escrita no sentido de se
deixar invadir, quase se dissolver no mundo da oralidade. É nesse sentido que
eu defino essa vivência, essa moradia, essa transumância [movimentação de
entrada ou saída] entre a escrita e a oralidade. Eu acho importante o escritor,
de vez em quando, não ser escritor ou ser um não-escritor, de maneira que ele
possa definir a sua relação com a escrita não com o verbo “ser”, mas com o
verbo “estar”. Eu estou escritor porque mantenho, neste momento, essa relação
criativa com a palavra.
Paulo
Markun: Eu queria que você explicasse melhor o que é esse
conceito de oralidade, porque há uma certa confusão. Você costuma desbastar
entre oralidade e tradição oral.
Mia
Couto: A oralidade é essa outra lógica que nós mantemos dentro de
nós, mesmo que seja subjugada à lógica da escrita. Em certo momento, esse
universo da escrita em nós ocupa um espaço quase hegemônico, e nós não
permitimos que aquilo que seja o lado da abordagem poética, o lado da abordagem
mais íntima das coisas, com a possibilidade de deixar conviver dentro de nós
diferentes tipos de lógicas. Esta que, para mim, é a briga, não como escritor,
mas como pessoa que quero ter uma relação com a vida que passa por esse partilhar
de linguagens com as coisas, com os animais, com as plantas.
Ivan
Marques: Bem, eu queria saber... com tanta paixão pela poesia, essa
própria questão com a oralidade, no fundo revela o seu apreço pela poesia. Por
que você acabou optando pela ficção? Foi um desejo de falar com o público mais
amplo ou você acha que a poesia continua presente da mesma forma em sua obra?
Mia
Couto: Eu acho que não optei, nem fui optado, digamos assim. Eu
acho que, a certo momento, eu pensei que, sendo um poeta e mantendo-me como um
poeta, eu queria contar histórias e, digamos, desrespeitando essa fronteira,
essa margem, que é muito tênue. Eu não sei qual é [a fronteira], pelo menos,
entre aquilo que é poesia e a prosa. Eu, hoje, acho que eu mantenho, de fato....
Sou um poeta que visita histórias, que traduz esse tipo de linguagem, que é uma
linguagem mesclada, entre a poesia e a prosa.
Ivan
Marques: Quer dizer: é poesia ainda?
Mia
Couto: Eu acho que eu faço poesia ainda, sim.
Paulo
Lins: Você fala muito em Guimarães Rosa. E o Guimarães Rosa trabalha
com neologismos, com as possibilidades da língua: sufixos e prefixos. Como é
que você faz seus neologismos? Você usa mais neologismos ou a linguagem da
palavra coloquial do povo da sua terra?
Mia
Couto: Eu acho que o segredo não é uma questão técnica, não é
como se faz, digamos, do ponto de vista da engenharia da palavra, mas de como
se está apto, disponível para escutar aquilo que são as formas de casamento, de
namoro... Moçambique vive uma situação muito particular, em que a maior parte
das pessoas são de outra língua e estão visitando o português. São de línguas
banto [conjunto de línguas do grupo nigero-congolês oriental faladas na África]
e têm o português como segunda língua. Isso cria uma situação favorável [para o
escritor]: é um privilégio conviver com essa situação em que o português está
quase em flagrante nascimento. E isso é feito com uma situação de grande
ausência de complexo: as pessoas estão muito livres para assaltarem o
português, namorarem na rua, na poeira, de noite, de dia. É difícil [portanto]
não ser um escritor que use esse tipo de construção e desconstrução.
Norma
Couri: Mia, você fala muito de Guimarães Rosa. E você disse que a
influência que você sofreu foi muito maior de Guimarães Rosa do que do Camões
[1524-1580]; e [também muito maior] de Caetano Veloso e Chico Buarque do que de
Amália Rodrigues. Então, eu queria saber
se a influência dos escritores brasileiros na África de língua portuguesa foi
maior, é maior do que a de Portugal. E sabendo que Moçambique ficou
independente em 75, quer dizer, há 32 anos só, deixando 90% de analfabetos,
essa influência atinge basicamente a população branca?
Mia
Couto: Bom, eu vou começar pelo fim. A população branca
moçambicana é uma minoria quase inexistente. Eu sou quase um inexistente em
Moçambique, nós somos 0,00...1 %. A população...
Norma
Couri: Qual é a população branca?
Mia
Couto: O total da população são quase 20 milhões. A população
branca deve ser, talvez, 10 mil pessoas, somos muito poucos. Mas a influência
dos escritores brasileiros foi muito grande nos anos 50, 60 e década de 70. É
curioso que foi durante um período de ditadura e o período colonial, da
repressão colonial, que houve uma troca intensa. Quer dizer, nós recebemos
muito do Brasil. Obviamente, imagino, o Brasil não sabia quase nada de nós, mas
nós tivemos influências enormes de Jorge Amado, Graciliano Ramos, Mário de
Andrade, Guimarães Rosa até foi quem chegou menos, provavelmente, mas, por exemplo,
Jorge Amado estava proibido em Portugal, e era autorizado nas colônias,
pensando-se que as colônias não liam e, portanto, ali não havia perigo. Agora a
situação já não é a mesma, infelizmente. Quer dizer, nós agora não conhecemos o
que de novo está sendo criado no Brasil, o que está chegando do Brasil, e a
influência de Portugal agora é um pouco mais presente. Portugal está hoje mais
presente do que o Brasil.
Norma
Couri: Por que isso acontece? O Brasil não conhece a África,
pensa que conhece, mas não conhece?
Mia
Couto: Eu acho que tem a ver com todo um universo que está para
além da literatura e da troca de livros. Eu acho que é preciso repensar toda
essa família nossa da língua portuguesa e como é que nós todos nos encontramos
nisso.
Norma
Couri: Ou não nos encontramos, não é? [risos]
Mia
Couto: Ou nos desencontramos na mesma língua, falando uma língua
comum.
Josélia
Aguiar: Quer dizer que a literatura brasileira não está mais
presente hoje, não há mais esse conhecimento da prosa atual? Que outra
literatura está sendo mais presente agora lá [em Moçambique]?
Mia
Couto: Hoje, como eu falei, a literatura europeia no seu conjunto
chega mais, porque os laços comerciais, as livrarias, editoras da Europa, por
via de Portugal, estão mais presentes. Portugal realmente assumiu-se como uma
espécie de vértice dessas triangulações que se fazem com a África, muito mais
do que o Brasil.
Josélia
Aguiar: Particularmente, o senhor tem lido o que, exatamente,
[mais literatura] do Brasil ou mais de Portugal?
Mia
Couto: Eu hoje leio mais autores de Portugal, [mas também] leio
do Brasil. Eu estou muito preso àquilo que foram as minhas referências nos anos
60 e 70. E, por exemplo, agora eu estou procurando toda a obra da [escritora brasileira]
Adélia Prado [1935-]. Eu conheci a [literatura de] Adélia Prado alguns anos
atrás e fiquei encantado com a poesia dela, e agora, três dias atrás, eu
conheci-a pessoalmente em Belo Horizonte. Ela foi ver uma peça, uma adaptação
de um texto meu, que foi feita em Belo Horizonte, e foi um encontro mágico
[refere-se à peça teatral “O último voo do flamingo”, dirigida por Paulo César
e Papoula Bicalho, que é uma adaptação do romance homônimo de Mia Couto].
Norma
Couri: Olha, você mencionou a língua portuguesa e as diversas
etnias que convivem [em Moçambique], que são: sena, maconde, changana, bitonga,
nyanja.... Aquelas coisas. E são 16 milhões de negros, parece, vivendo lá?
Mia
Couto: Mais do que isso...
Norma
Couri: Bom, Moçambique é uma ilha cercada de ingleses por todos
os lados, não é? E parece que 25% falam português; eu não consegui entender....
É isso, não é? Bom, e [o país] aderiu à Commonwealth [a comunidade britânica de
nações, que inclui a Grã-Bretanha e outros países independentes – ex-domínios
ou ex-colônias –, que em sua maioria professam fidelidade ao soberano inglês,
em um sentido mais histórico e simbólico do que jurídico] e parece que todos os
livros escolares são em inglês, porque são dados, ou pelo menos eram... A
língua portuguesa vai sobreviver? A língua portuguesa existe? É um país que
fala português?
Mia
Couto: Bom, Norma, eu tenho que dizer.... Esses dados não estão
corretos. Primeiro, os falantes de português são mais de 70% hoje. Os
falantes...E outras línguas. A maior parte dos moçambicanos são bilíngues,
alguns trilíngues, e isso é uma vantagem, não é um problema, é uma vantagem.
Tendo o português como língua materna, serão uns 10 ou 12% hoje, como língua
materna. E a maior parte deste são negro. A relação com a Commonwealth foi uma
coisa acidental, não mudou absolutamente nada naquilo que é a política de
Moçambique, de adoção, divulgação do português como uma língua nacional, como a
língua das várias nações de Moçambique. E não existe nenhuma dúvida sobre o
português como uma língua do presente e do futuro de Moçambique. Ela, no fundo,
define a nacionalidade moçambicana, quer dizer, não é ainda “a” língua de
Moçambique, mas é a língua desse projeto de nação que vai ser Moçambique.
Miguel
Gullander: Eu queria perguntar algo relativamente mais ao conteúdo
[de sua literatura]; normalmente fazem muitas perguntas acerca da forma, e eu
queria agora inserir um pouco sobre o conteúdo. Quando eu estava na Ilha do
Fogo [em Cabo Verde], durante aqueles anos, uma vez um amigo africano me disse:
“Nós aqui não temos universidade, não temos aqui centros culturais, no entanto,
temos aqui alguns dos despertadores que nos permitem descobrir essa sabedoria
que é o objetivo de muitos escritores. E na obra do Mia existe esse objetivo
difundido, de contatar essa sabedoria, essa profundeza humana, porque é uma
obra muito humana”. Ele disse uma coisa: “nós contatamos diariamente esses
despertadores, nomeadamente: a morte, a doença e o processo do tempo, a
velhice”. E eu gostaria de saber qual é o impacto disso na sua obra.
Mia
Couto: Bom, eu primeiro agradeço a pergunta, no sentido de que,
muitas vezes, a análise que se faz do meu texto fica naquilo que é a
desconstrução da linguagem etc. De fato, eu faço isso como uma espécie de uma
fratura que eu quero fazer no muro, que eu quero abrir no muro, para se ver que
do outro lado há uma outra luz, uma outra claridade. E essa outra claridade é
que interessa a mim, quer dizer, o que surge dessa outra sociedade, dessas
outras sociedades, como uma sugestão para apreender o mundo. E a relação, por
exemplo, com a morte, com os mortos, esta é uma coisa que eu acho que a África
tem, embora eu resista muito à ideia de que a África tem coisas, digamos assim,
que são tipicamente únicas, quer dizer, que os outros não têm. Eu acho que essa
religiosidade, essa relação não com a morte, mas com os mortos, é uma coisa da
África, o sentimento do tempo, o sentimento da eternidade, a maneira como o
mundo é governado por harmonias. Isso eu quero que surja nos meus textos e acho
que essa é a minha grande aposta.
Miguel
Gullander: Porque esse amigo africano me disse: “São três os
mecanismos incontornáveis da natureza, para nos tornar mais sábios da vida. ”
Portanto, são como aspectos negativos, mas que nos despertam, nos acordam e nos
fazem ir mais fundo, às vezes, apesar das carências, de coisas mais
sofisticadas, não é?
Mia
Couto: O que se percebe é que, por exemplo, aquilo que para nós
são conceitos universais, nós que estamos com um pé em um lado e um pé no
outro, que são, digamos assim, os mestiços, do ponto de vista dessa relação com
o mundo, por exemplo: o que se passa é que há palavras, conceitos, categorias
nossas que não são realmente traduzíveis; e vice-versa: os conceitos e
categorias africanas nem sempre têm uma equivalência fácil e simples.
Miguel
Gullander: Por exemplo, eu tenho em conta, sendo sueco também....
Naquela sociedade, nós evitamos ao máximo ter contato com essas coisas, vê-las,
saber delas.
Mia
Couto: [concordando] Na sociedade sueca.
Miguel
Gullander: Por exemplo, não é? E então, como é que a obra literária pode
ganhar esse impacto, não é?
Manya
Millen: Mia, o senhor disse recentemente, acho que em uma
entrevista ao [jornal] O Globo mesmo, que a literatura africana – não sei se é
a literatura africana de língua portuguesa ou as outras [também] – já tinha se
libertado há muito tempo dessas imagens, dessa coisa do exótico, de falar sobre
coisas específicas do mundo africano, para tomar esse caráter universal. Hoje
me parece que os leitores estão buscando mais... estão se voltando muito para
uma coisa muito particular, querem saber de histórias muito particulares,
mundos muito particulares. Eu queria saber: como é conciliar esse universal e o
particular, ao mesmo tempo, na literatura, sem perder uma característica
própria, mas sem também deixar de se inserir em um contexto mais universal? Como
fazer isso na literatura?
Mia
Couto: Eu acho que os escritores africanos estão agora vivendo um
período de transição. Até agora, era quase historicamente necessário serem de
um lugar, de um tempo – no tempo que era um tempo de afirmação, em um tempo de
reivindicação –, para resgatar aquilo que era a história, sua própria história,
sua identidade. Mas, de repente, se percebeu que isso se transformou numa
prisão, numa armadilha. E, de repente também, não só se obrigava que eles fossem
de um lugar, de um contexto histórico, mas também que fossem autênticos. E isso
quer dizer: [que expressassem] uma certa visão estereotipada de África. Eles
tinham de ter uma relação com a feitiçaria, com os curandeiros, com o mundo dos
espíritos etc. E hoje os escritores africanos estão se afirmando como
escritores, em primeiro lugar. Eles contam histórias, e essas histórias são
importantes em si mesmas. E, digamos assim, os escritores africanos estão quase
se libertando dessa condição de sua africanidade. Os escritores querem ser
escritores universais, e aí têm que fazer o mesmo que fazem outros: têm que se
confrontar com a busca da alma humana, com a busca do sentido do tempo, isso
que são as grandes alegrias e as grandes aflições no ser humano.
Manya
Millen: Mas manter uma certa africanidade, ou como a gente diz,
manter uma certa brasilidade, também é importante no texto? Quer dizer, tem que
ter essa identidade?
Mia
Couto: Mas isso surge naturalmente, surge inevitavelmente. Mas
não é uma missão, não é no sentido de missão.
Paulo
Markun: Mia, no seu livro “Um rio chamado tempo, uma casa chamada
terra” [2002], a impressão que eu tive é que a história que se desenrola entre
um neto que volta para o "enterro" do avô – eu estou simplificando a
história, obviamente –, há uma ideia de que, de alguma maneira, o país
[Moçambique] tem saída, o país tem solução, mas há um hiato de gerações. Eu
queria que você explicasse melhor o raciocínio, se é que estou correto.
Mia
Couto: Há um hiato de gerações e há um hiato que resulta de um
certo golpe. Nós tivemos, de uma maneira dramática, acontecimentos que
provocaram um desmoronar da teia de relações sociais, familiares. Nós tivemos
duas guerras consecutivas [a Guerra da Libertação, entre 1964-1975, e a Guerra
Civil Moçambicana, entre 1976-1992]. Mais da metade da minha vida foi passada
em guerra, e isso, de fato, condensou aquilo que acontece em outros países
também. Este fenômeno não é exclusivo dos países que sofrem guerra. O que
acontece na guerra é que isso é feito de uma maneira completamente crispada,
condensada. O conflito de gerações, esse distanciamento daquilo que são os
laços de solidariedade que eram muito presentes na sociedade rural africana,
são hoje uma condição quase dramática, porque se perdeu aquele mundo e não
temos um outro, vivemos em uma espécie de nuvem de um período de transição.
Norma
Couri: E acabou há pouco tempo. Parece que você participou dessa
luta armada. Ontem eu estava conversando com o escritor serra-leonês que está
aqui [em Paraty], que é o Ishmael Beah, e ele hoje tem 26 anos, mas ele falou
que, aos 13, ele perdeu o pai, a mãe e os dois irmãos, entrou na guerra e
matou, matou, matou, e gostou de matar. [Ishmael Beah, na década de 90, foi
soldado infantil durante a guerra civil em Serra Leoa. Anos depois, passou a
agir em favor de crianças envolvidas em lutas armadas]. Você chegou a matar
alguém?
Mia
Couto: Não, eu acho que aqui há um equívoco que eu devo dizer. Eu
participei da luta política no movimento de libertação, que foi a primeira
guerra, a Guerra da Libertação, que acabou na independência [em 1975,
Moçambique se tornou independente de Portugal]. Eu nunca peguei em uma arma,
nunca, nunca. Eu acho que não sou capaz de fazer uma coisa dessas.
Josélia
Aguiar: Mia, eu queria voltar um pouco no tempo e perguntar como é
que o senhor se tornou escritor. O senhor trabalhou como jornalista, foi
ativista político, depois se tornou biólogo e, inclusive, trabalha com isso. Em
que momento o senhor começou a escrever e em que momento se deu conta de que
isso ia tomar esse espaço na sua vida?
Mia
Couto: Eu não dou conta, não tenho consciência de quando começou.
Eu sou filho de um poeta, nasci em uma casa em que a poesia vivia
permanentemente, não vivia só na estante, vivia na nossa relação. Lembro-me que
a minha mãe tinha uma espécie de aflição permanente de pensar que "vem
outro", que um filho vai herdar aquela doença, que eram os aspectos menos
práticos que o meu pai tinha, e aconteceu assim. Eu não me recordo: comecei
escrevendo versos para as namoradas, aos 14, 15 anos, e a minha mãe rezava para
que isso fosse uma doença passageira, mas depois parece que ficou.
Paulo
Lins: Aqui no Brasil, hoje, está se falando muito em ação
afirmativa, em cotas para negros na universidade, em funcionalismo público, em
emprego... está se comentando muito isso hoje. E naquele filme Língua
[refere-se ao documentário Língua – vidas em português, de 2004
(Brasil/Portugal), dirigido por Victor Lopes] você fala que "transformaram
raça em cultura". Eu queria que você falasse um pouco mais sobre isso,
sobre essa transformação de raça em cultura.
Mia
Couto: Olha, eu não posso falar do Brasil, aquilo que se passa no
Brasil, eu não posso pensar sobre o Brasil, mas daquilo que eu entendo como uma
política cultural que se defina a partir da raça. Não penso que seja – não só
socialmente e historicamente – produtiva, mas também ela vai gerar outro tipo
de mal-entendidos, portanto não lido bem com essa ideia de que se definam
privilégios em função... ou desprivilégios, em função de raças. É preciso
resolver as questões de base que geraram desigualdades profundas. Essas
desigualdades têm que ser corrigidas, têm que ser resolvidas, mas não penso que
seja possível, digamos, melhorar essa miséria.... Nós vivemos em uma sociedade
que gera desigualdades, que gera racismos e que gera discriminações. O fato de
transformar o negativo em positivo não resolve, para mim. Não sei se eu
respondi a sua pergunta, mas... Em Moçambique, é claro que essa questão se
coloca de outra maneira; [trata-se de] um país de maioria negra, [que] tem um
governo negro, tem essa situação digamos que resolvida.
Norma
Couri: Mas olha, aqui nesta Flip tem cinco escritores africanos,
o que é uma vitória: [o sul-africano John Maxwell] Coetzee, [a sul-africana]
Nadine Gordimer, você, o [angolano José Eduardo] Agualusa, [mas] só um é negro,
que é o [cabo-verdiano] Ishmael Beah. Será que a literatura negra vai explodir
no mundo alguma vez? Como é que você vê isso? Porque realmente são poucos.
Mia
Couto: Mais uma vez: eu não sei se eu gosto muito desse nome, da
“literatura negra” ou “literatura branca”. A literatura africana está presente
aqui, e eu não sei como que essa coisa aconteceu.... No meu país eu sou
praticamente o único escritor branco. Há outros escritores negros, que são de
grande qualidade, [mas] provavelmente não têm a mesma projeção internacional.
Mas isso é acidental, digamos assim, é uma questão de circunstância. Mas é
óbvio que essa “literatura negra”, chamando assim agora, aceitando [a expressão
como] a literatura africana feita por escritores negros, dizendo melhor, vai se
projetar no mundo e vai se afirmar.
Miguel
Gullander: Mia, no seu trabalho há uma convergência, ou até uma
mescla, não só na forma, mas em termos de conteúdo, de uma grande alegria, de
humor, falando também depois da miséria, da guerra, da dor, e eu gostaria de
perguntar: você se considera, por assim dizer, um niilista eufórico ou um
pessimista com uma noção subjacente de algo de sagrado?
Mia
Couto: Olha, eu acho que, dizendo como o Agualusa costuma dizer:
"Em um país com tanta miséria, ser pessimista é um luxo" [risos dos
entrevistadores]. Temos que ser otimistas mesmo. E, de fato, a capacidade de
produzir alegria, mesmo em uma condição difícil, de miséria, eu acho que é uma
coisa comum em quase toda a África. A África tem isto, [que] vem provavelmente
de um sentimento de religiosidade em que a nomeação da tristeza é quase interdita,
porque ela atrai mais tristeza, mais desgraça. E isso, por exemplo, eu acho que
o Brasil incorporou bastante. Quer dizer, o lado africano do Brasil faz com que
o Brasil também seja um produtor de alegria, um produtor de esperança, mesmo em
condições muito adversas, não é?
Ivan
Marques: Mia, eu gostaria de saber [qual] a relação da sua
experimentação de linguagem – você até me faz lembrar muito de Guimarães Rosa –
com a diversidade cultural moçambicana. Em que sentido você costuma dizer que
essa cultura moçambicana, essa diversidade cultural pode ser uma boa lição para
o mundo. Eu queria saber em que sentido você acha isso exatamente, e [qual] a
relação disso com a sua linguagem.
Mia
Couto: Olha, no sentido em que eu, em Moçambique, tenho que funcionar
como uma espécie de tradutor, não de tradutor de línguas, mas de tradutor de
almas, digamos assim, de culturas, como um médium, e eu acho que o Guimarães
Rosa funcionou muito como um médium entre aquilo que era uma cultura escrita,
urbana e uma cultura rural, sertaneja. Ele atuou como essa ponte, como esse,
digamos assim, contrabandista de valores de um lado para o outro. E, no caso de
Moçambique, temos nações diversas, com culturas diversas, com línguas diversas.
Eu acho que a condição de escritor tem de ser essa: não só pôr em ligação essas
culturas, como os tempos. Portanto, o tempo da guerra, essa última guerra
civil, é um tempo interdito em Moçambique, não se visita, não há memória dele,
isso não é bom, [não é boa] qualquer coisa que não está resolvida. E o escritor
tem, de fato, uma missão, e eu acho que o escritor não tem tantas missões como
ele pensa [risos dos entrevistadores], mas provavelmente aqui está alguma coisa
que ele pode fazer, que é convidar a visitar esse tempo, sem sentimento de
culpa, sem o dedo acusatório. É isso que eu acho.
Ivan
Marques: Mas tem a questão, por exemplo, de ser uma cultura que não
está presa a modelos de racionalidade. Quer dizer, neste sentido, talvez haja
lições mesmo para o mundo moderno.
Mia
Couto: Sim, digamos que o mundo moderno tem pressa em encontrar
identidades fixas, não é? Em molduras, retratos.... Eu acho que o fato de
convivermos nós [moçambicanos] numa realidade que é múltipla, que escapa à
moldura, e não ficamos doentes por isso, não temos pressa.... Eu acho que essa
condição provavelmente é uma lição de que a ideia de identidade, que é tão
cômoda para nós, é sempre uma ilusão, é sempre ilusório.
Manya
Millen: Mia, a ideia que a gente tem, que a maioria tem sobre os
escritores é, enfim, são aquelas pessoas que ficam enclausuradas no escritório
escrevendo, e sem contato com o público. E, hoje em dia, parece impensável o
modelo da literatura que não se divulga. Então, lança-se um livro e estamos na
Festa Literária Internacional de Paraty, e tem outros modelos de festa
[literária] surgindo, onde o escritor virou um pop star. Ele lança um livro e
ele tem que circular para divulgar a sua obra. Eu queria saber como você se
sente no papel deste escritor pop star e escritor divulgador, e tendo que sair....
Se você se sente confortável, e o que você acha dessa ideia de literatura tão
divulgada?
Mia
Couto: Eu não me sinto bem [risos]. Eu não me sinto bem em estar
aqui [sendo entrevistado]. Ontem eu falava com um amigo escritor sobre o limite
que é.... da verdade interior, da maneira como nós nos entregamos.... Porque é
óbvio que quando se publica e se quer se publicar, nós temos que aceitar uma
certa lógica dessa coisa do livro ser uma mercadoria. Mas o livro ser uma
mercadoria é uma coisa, agora nós, enquanto autores, digamos, cedermos a esse
tipo de exposição e de mercantilização da nossa própria imagem... eu não me
sinto bem.
Paulo
Markun: Existe alternativa?
Mia
Couto: Eu acho que a alternativa funciona assim: essa relação que
nós temos com o empenho da qualidade do trabalho que fazemos. E é aí que
poderemos, digamos – eu vou usar uma palavra de que eu não gosto –, nós podemos
vencer, podemos nos afirmar nisso que é o mercado. Ou funciona assim ou não
vale a pena, por estratagemas ou artifícios para que o livro seja um produto
divulgado, não me apetece isso, não quero.
Paulo
Markun: No seu livro Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra,
há um trecho de uma carta – há cartas que aparecem no livro –, não fica muito
claro quem as escreve, aparentemente é um falecido, em que ele diz que: "A
nossa família é o lugar onde somos eternos." Eu queria saber se você concorda
com o seu personagem.
Mia
Couto: Sim, neste caso eu concordo com ele, de fato. Quer dizer,
se eu tenho uma pátria, essa pátria é, em primeiro lugar, a minha família. Eu
sou o produto de uma família que viveu muito intensamente os seus próprios
laços internos. A minha família nasceu nos meus pais, na minha mãe e no meu
pai, porque eles saíram de Portugal e imigraram; nós nascemos em Moçambique,
não conhecemos nunca os avós, os tios. Eu estou descobrindo primos, estão
chegando agora, mas era uma família muito nuclear, e que criou uma espécie de autossuficiência,
quase de amparo, de afeto. E, nesse sentido, é o meu lugar eterno, é a família.
Eu queria só corrigir uma coisinha: eu disse que eu não me sentia bem de estar
aqui [no Roda Viva]. Eu me sinto bem de estar aqui, por um lado, mas é por
causa da qualidade, porque disseram que este era um programa de grande
qualidade. Eu não viria a um programa que me ajudasse a me projetar no Brasil,
se ele não fosse de boa qualidade [risos].
Paulo
Markun: Mas muitos dos que sentam aí não se sentem muito à vontade
[no início da entrevista]. Depois, com o passar do tempo, a coisa melhora
[risos]. [...]: Ou piora... [risos]. Ou piora, depende [risos].
Paulo
Lins: Em “Terra sonâmbula” [romance de Mia Couto, publicado em
1992], por exemplo, quando a gente acaba o livro, parece que já estava tudo
arquitetado na sua cabeça, não é? Parece que você... falando de conteúdo, já
que você não gosta muito que se pergunte sobre a forma... [risos]
Mia
Couto: Pode perguntar sobre a forma...
Paulo
Lins: [continuando] Sobre a desconstrução e construção... Agora,
falando de conteúdo, parece, no final, que você já sabia o final quando você
começou a escrever o livro. Parece que a obra estava pronta na sua cabeça e só
restava escrever. É assim que funciona contigo?
Mia
Couto: Não, não. O “Terra sonâmbula” é um livro de exceção no meu
processo de criação, que não é processo nenhum. O meu processo é caótico; eu
começo por um pequeno núcleo de uma história e depois vou arquitetando. Tenho
uma grande dificuldade de lidar com os personagens, isto é, eles batem em uma
porta e, em certa altura, trazem os primos, os irmãos, a família largada, e eu
não tenho maneira de conter aquela migração. No caso de “Terra sonâmbula”, foi
um livro, digamos, foi sofrido, porque eu pensava que não podia escrever um
livro durante a guerra. Eu pensava que, provavelmente, só se escreveria um
livro no período de paz; depois da guerra, escreveria um livro sobre a guerra.
Mas ele surgiu, e surgiu de uma maneira muito intensa, muito sofrida, com
insônias, e, de fato, o que aconteceu naquele livro é uma coisa que me acontece
em outros, em que eu sei que estou acabando um livro quando escrevo a primeira
frase, não quando escrevo a última frase. E eu tinha já alguma coisa do final
pensado sim, mas não feito daquela maneira.
Miguel
Gullander: Mia, você é muito conhecido, por exemplo, na Suécia. E eu
me lembro de ter estado, há um par de anos, em Oxford a ouvir um dos seus
tradutores a falar, e há uma franca dificuldade dos tradutores de conseguirem
transmitir aquela essência, aquela graça [presente nos livros de Mia Couto] nas
traduções. As traduções o preocupam?
Mia
Couto: As traduções são um drama, são um sofrimento para mim
também. Imagino que, para os tradutores, são as duas coisas: são o prazer e o
desafio. Eu não posso dizer que sou simplesmente vítima, quer dizer, porque há
bons tradutores que depois, aprendendo aquilo que é uma certa lógica de
mudança, uma certa lógica de desconstrução, como eu falei com o Paulo [Lins],
que depois fazem isso como quem traduz poesia. Ele [o tradutor] tem que ser um
recriador da linguagem também, nesse sentido. Mas, obviamente, há sempre alguma
coisa que se perde. Eu estou condenado a ser um escritor de língua portuguesa.
Eu tenho traduções já em mais de 21 países, hoje, e de minha parte, às vezes,
para o tradutor não há solução para a construção de alguns neologismos que
resultam bem em português.
Paulo
Lins: Você se comunica com seus tradutores? Conversa [com eles]
por telefone, e-mail?
Mia
Couto: Sim. Agora [o que recebo] são listas de centenas de
correspondências diversas. São difíceis porque, muitas vezes, o tradutor não
percebe, não é questão da língua, [ele] não percebe o contexto cultural, não
percebe como é que aquela palavra funciona, ganha cor, ganha dinamismo num
outro contexto. Então não é uma questão da palavra, não é uma questão técnica
da língua, é uma questão de traduzir culturas.
Paulo
Markun: Mia, no seu livro “A varanda de frangipani”, há uma frase
de um personagem que diz o seguinte: "Sofremos a guerra, haveremos de
sofrer a paz". Eu queria saber como é que Moçambique sofre a paz.
Mia
Couto: Obviamente, agora que eu vivo em paz, eu penso que não há
comparação possível, quer dizer, nós que vivemos 16 anos de uma guerra que foi
o horror, nós não queremos nunca mais a guerra. Mas, obviamente, há aqui coisas
que é preciso entender, que é: a razão dessa paz assenta sobre coisas que não
conhecemos. Sabemos, e é por isso que se esqueceu o período da guerra, por isso
que ninguém quer lembrar os demônios que estão naquela caixa escondida. E
sabemos que há coisas que não estão resolvidas, profundamente resolvidas, e que
deram também... foram parte da razão da existência da guerra: as desigualdades
sociais profundas, a exclusão de grande parte do país, daquilo que é a
visibilidade desse país, os mecanismos de participar no futuro do país, isso
não está resolvido portanto. Eu acho que não há verdadeira paz enquanto isso
não estiver feito. Agora, não há comparação... e aí eu não concordo com esse personagem
[risos] – se é que é um personagem – ou não concordo comigo mesmo [risos].
Norma
Couri: Falando ainda sobre tradução, o Amós Oz fala que a
tradução é como fazer amor com um cobertor no meio [risos]. E essas suas
traduções.... Teve um tempo em que o Brasil costumava traduzir os escritores
portugueses [do português de Portugal para o português do Brasil]. Este seu
livro [A varanda de frangipani] foi traduzido?
Mia
Couto: Não.
Norma
Couri: Foi uma exigência sua?
Mia
Couto: Sim. Toda a literatura brasileira que li, eu entendi
perfeitamente. Eu acho que não é nenhum obstáculo o fato de que há um sistema
gráfico que tem algumas diferenças. Inclusive, essas diferenças conferem o
sabor local, e esse sabor diferente deve estar presente no livro.
Paulo
Lins: Ontem, conversando com um grande poeta brasileiro, o
Carlito Azevedo – ele só faz poesia; eu acho que ele nunca escreveu um conto,
nunca escreveu ficção, nunca escreveu em prosa –, eu falei para ele que eu lia
muito mais poesia do que prosa. E ele falou que lia muito mais romance do que
poesia [risos]. Você é poeta, contista e é romancista. O que você lê mais? Você
mescla ou tem algum gênero que você lê mais?
Mia
Couto: Eu sou um leitor de poesia, um “releitor” de poesia
também, porque eu sou um “reescritor”, eu reescrevo mais do que escrevo. Mas a
poesia que continua a ser a minha fonte, quer dizer, onde eu vou beber é na
poesia.
Paulo
Lins: Eu tinha certeza disso. Só perguntei para confirmar
[risos].
Miguel
Gullander: Mia, ainda na linha desta mesma pergunta, como poeta, qual
é a sua relação com o sonho, com o onírico e com a natureza? Essa simbiose,
essa inter-relação... porque se sente muito fortemente esse pulsar na sua
escrita.
Mia
Couto: Eu acho que a minha relação tem que ser definida nisso...
porque eu não sei exatamente onde começa cada uma dessas coisas. E tenho
dúvidas desses desenhos que nós fizemos de onde começa o real, onde começa o
fantástico, onde começa o onírico, onde começa... A definição de natureza é muito
curiosa. Em África, pelo menos em Moçambique, a ideia de natureza é uma ideia
muito diversa. Nem sequer há palavra para dizer natureza da parte das línguas
africanas de Moçambique de origem banto. Portanto, isso me coloca nessa
condição de reaprender aquilo que são os conceitos e o gosto de desobedecer
aquilo que são as linhas-limite, não é?
Miguel
Gullander: São fronteiras perdidas, no fundo...
Mia
Couto: Ainda bem!
Miguel
Gullander: Ainda bem... [risos].
Ivan
Marques: Eu queria fazer uma pergunta justamente sobre o realismo
mágico [gênero de narrativa que surgiu na América Latina, em meados do século
XX, que extrapola a “realidade” e introduz elementos simbólicos, misteriosos,
mágicos como parte da “normalidade”]. Já vi entrevistas em que o senhor diz que
isso é algo típico do Terceiro Mundo, da América Latina, da África. Na América
Latina, isso tem sido bastante revisto e criticado pelas novas gerações, essa
história do realismo mágico. Eu queria saber: por que exatamente lhe interessou
essa opção pelo realismo mágico e quais são as diferenças, de fato, entre o
realismo mágico que está na sua obra e o que é praticado ou o que foi praticado
pelos latino-americanos?
Mia
Couto: Eu acho que, começando pelo fim da pergunta, uma das
diferenças, qualquer que seja o nome que nós queiramos dar às correntes
literárias, e eu não tenho uma relação muito feliz com essas categorizações dos
gêneros literários, mas, no caso da África, eu acho que o lugar dos mortos, o
lugar da morte, quer dizer, não é a morte que está presente, são os mortos, e
os mortos em uma condição de estarem vivos e estarem governando o mundo dos
vivos, governando com os vivos o mundo atual. Isso eu penso que é uma coisa
diversa, quer dizer, provavelmente a presença de uma influência católica, na
América Latina, determinou uma diferença de posturas filosóficas em relação à
morte e aos mortos, ao sentimento de culpa, por exemplo, e a África tem uma
outra dimensão. Isso tudo vem não do terreno literário, mas de qualquer coisa
que é anterior e mais profundo, que são as perspectivas religiosas. De qualquer
maneira, eu não fico muito aflito com o dar-se nome aos gêneros e às correntes
literárias, escolas literárias, mas não me vejo muito nessa ideia de que existe
uma coisa chamada “realismo mágico”. Neste sentido que o próprio termo
“realismo” tem que ser interrogado: não há pior armadilha do que esse sentido
de realidade como sendo uma realidade única, estanque, normativa, que nos
quiseram impor.
Paulo
Lins: Você tem uma relação muito forte com o Brasil. E com a
América do Sul, você tem alguma relação com a América do Sul?
Mia
Couto: Sim, também. Eu li outros autores... esses de que estamos
falando, do Juan Rulfo, do García Márquez etc, e foram muito importantes na
minha formação
Paulo
Lins: Então a sua primeira formação é mais com o Brasil do que
com a própria Europa, com Portugal?
Mia
Couto: Sem dúvida, eu tenho uma ligação fortíssima nisso que foi
minha constituição como produtor de linguagem, como produtor de poesia, que tem
toda dívida para com o Brasil. Eu venho sempre aqui prestar homenagem a essas
influências também.
Josélia
Aguiar: Falando em leituras ainda, a gente tem sempre curiosidade
de saber. Você tem um livro, um autor de cabeceira, aquele para o qual você
sempre volta, sempre vai buscar novas coisas que você ainda não tinha
encontrado, você tem essa obra ou esse autor?
Mia
Couto: Eu tenho. E, curiosamente, não é um brasileiro, é um
português, neste caso, que é Fernando Pessoa. É uma espécie de... O livro do
desassossego é o meu livro de sossego, digamos assim, é o meu livro de cabeceira.
[O livro do desassossego, organizado postumamente, foi publicado em 1982; é
atribuído aos heterônimos Vicente Guedes e Bernardo Soares. ]
Paulo
Markun: Machado de Assis você lê?
Mia
Couto: Li pouco, mas não me marcou tanto como outros autores
brasileiros.
Ivan
Marques: Mia, tem a história que eu já vi você dizer em uma
entrevista que, de certa forma, o Brasil está nas origens da literatura
moçambicana. Como que é essa história do [poeta árcade luso-brasileiro] Tomás
Antônio Gonzaga [ (1744-1810) autor de “Marília de Dirceu” e das “Cartas
chilenas”; participou da Inconfidência Mineira, e por isso foi condenado por
crime de lesa-majestade], no começo do século XIX, constituindo um primeiro
ciclo de escritores em Moçambique?
Mia
Couto: Ele viveu... foi deportado [para Moçambique em 1792],
viveu na Ilha de Moçambique, na altura era capital de Moçambique. E ali se
apaixonou perdidamente, e ele e a mulher constituíram uma espécie de ciclo de
leitura, um ciclo de poetas em germinação. E isso provavelmente foi o primeiro
círculo de gente que se reunia em volta da poesia, em volta da literatura, e se
deram alguns frutos [literários] naquela região. É uma região muito pequenina,
mas como era, na altura, a capital de Moçambique, isso teve repercussão.
Josélia
Aguiar: O senhor sempre se refere à cultura e religião de matriz
banto, na sua linguagem, enfim, na hora de criar as suas histórias. Eu queria
que o senhor contasse um pouco como é que foi conviver com essa cultura, sendo
de uma minoria branca, e aproveitar para comentar como é a convivência de brancos
e negros em Moçambique.
Mia
Couto: Eu nasci em Moçambique e tive, digamos assim, uma educação
dividida entre a casa e a rua. A casa era uma casa de influência portuguesa,
obviamente, mas na cidade onde eu nasci, os portugueses não conseguiram
expulsar, afastar a África, e a África estava ali mesmo, estava presente na
rua, nos meninos que brincavam comigo. Eu, digamos, que aprendi logo aos cinco,
seis anos... eu sabia falar uma língua de origem banto, cisena, e isso me
permitiu um certo passaporte, eu escutava já os dois mundos, já me deixava
enamorar pelos dois imaginários. Minha mãe é uma grande contadora de histórias,
ela me fazia adormecer, mas eu, de uma certa maneira, preferia aquelas outras
histórias que tinham mais intensidade, dos contadores de histórias que eu
escutava em cisena, e, portanto, eu, digamos, que fui crescendo nessa
combinação de mundos, e hoje não sei onde, dentro de mim, está um e outro,
[porque] estão misturados.
Josélia
Aguiar: E como é essa convivência hoje, para quem tem tantos
compromissos, tem outros contatos?
Mia
Couto: Eu acho que Moçambique resolveu bem, não inteiramente, mas
resolveu bem a questão racial. Não há nenhum país no mundo que eu tenha
visitado em que não exista racismo. Ele está presente como uma espécie de
doença universal, mas, se calhar, o país onde eu estive, onde esse peso da raça
está menos presente, é Moçambique. Até porque não é uma conquista histórica
recente, mas a própria percepção da raça em Moçambique é bastante diversa. Por
exemplo, eu sou biólogo, trabalho com colegas meus que são negros, todos eles,
e quando chegamos a uma aldeia, no interior, as pessoas dizem: “Chegaram os
brancos”. Somos todos brancos, somos todos "valungos", como se diz, o
termo é este, porque temos todos uma mesma postura cultural, falamos português,
vestimos da mesma maneira, portanto, somos estranhos, digamos assim, em relação
àquele território. Então não há palavra para nomear raça, há palavra para
nomear o que é próprio do lugar e o que é estranho.
Norma
Couri: Você acha que o Brasil é um país racista?
Mia
Couto: Eu seria de uma grande arrogância estar a dizer isso,
provavelmente...
Norma
Couri: [interrompendo] O Agualusa acha que, pela proporção de
negros neste país e pela invisibilidade deles, é uma coisa assustadora...
Mia
Couto: Eu acho que, provavelmente, sempre que há sinais de
qualquer coisa que não está resolvida e que as formas de abordar isso são
formas ainda tímidas, complexadas, ressentidas etc, então há um processo ainda
que está operando. Mas eu tenho grande dificuldade de chegar aqui, desembarcar
e dizer coisas sobre o Brasil dessa maneira.
Norma
Couri: Mas você pode sentir mais do que outra pessoa qualquer.
Mia
Couto: Eu sinto que não está resolvido o problema da raça no
Brasil, é isso que eu posso dizer.
Paulo
Markun: No seu livro “A varanda do frangipani”, frangipani é uma
árvore típica que eu, como leitor, fiquei curioso para conhecer, mas não há uma
imagem dela...
Mia
Couto: Aqui no Brasil existe. Eu penso que se chama aqui
dama-da-noite, ou qualquer coisa assim.
[...]: Ah, dama-da-noite!
Paulo
Markun: Tinham que explicar isso para a gente, mas o que eu queria
perguntar é o seguinte...
Norma
Couri: Isso tinha que ser traduzido...
Paulo
Markun: [concordando] Pois é. Neste sentido, o seu trabalho de
biólogo, de alguma forma, interfere ou influencia o trabalho de escritor?
Mia
Couto: Sim. Da mesma maneira que não quero ser “um escritor”,
também não quero ser “um biólogo”. Eu sou muito mau biólogo, sou muito mau
cientista, nesse sentido de ver a ciência como uma espécie de religião, de
[achar] que há [na ciência] resposta para tudo. Eu uso a biologia como uma
parte das respostas, uma lógica que também me é importante ter. O que a
biologia me deu foi conferir uma certa familiaridade com coisas que eu achava
importantes. Quer dizer, eu hoje sei falar a língua de algumas árvores, digamos
assim, nesse sentido metafórico, é claro. Ganhei intimidade com coisas que para
mim eram realmente fundamentais, essenciais, processos vitais, entender como é que
a vida se processa e como é que nós somos parte desse conjunto harmônico. Isso
para mim foi importante para saber o meu tamanho, a minha dimensão e como é que
eu tenho que me inserir nessa coisa chamada vida, não é?
Paulo
Lins: Você é poeta, contista, ficcionista, é prosador. Você
costuma ler crítica literária, gosta de crítica literária, tem alguma relação e
conhece alguém aqui do Brasil?
Mia
Couto: Sim. Não, do Brasil eu não conheço, mas leio crítica
literária. Eu acho que é importante o escritor manter uma relação de
aprender... O escritor tem que encontrar escolas, tem que encontrar mecanismos
de aprendizagem que questionem o seu próprio trabalho. Então eu acho que isso é
importante. Muitas vezes, a crítica literária me fornece elementos que nós
próprios não entendemos no nosso processo de criação.
Ivan
Marques: Quer dizer: a crítica ajuda o escritor, em primeiro lugar,
a crítica não serve tanto para o leitor, então?
Mia
Couto: Eu concordo consigo. Eu acho que, provavelmente, aquilo é
um diálogo mais a dois do que, propriamente, passe para um leitor...
Miguel
Gullander: Posso voltar só um passinho atrás, que eu fiquei com
curiosidade de perguntar uma coisa. Em África, as árvores são consideradas em
um certo sentido como sábios. E eu tenho curiosidade de saber qual é a sua
árvore preferida e por quê [risos].
Mia
Couto: Eu tenho preferências várias, eu sou promíscuo nesse amor
com as árvores. Mas o embondeiro é provavelmente uma árvore de eleição, que
aqui se chama baobá, não sei se.... Agora, o que é curioso é que as árvores, e
por isso que eu não sou um bom cientista, as árvores em África são entidades
múltiplas. Quer dizer, a África escandaliza todo mundo, e eu agora estou
mistificando e tornando a coisa um pouco exótica. Mas o baobá, por exemplo,
particularmente, ou a mafurreira, ou o canhoeiro são árvores nossas que não
existem fora da África. São residências de espíritos, são uma espécie de um
altar. É ali que se enterram os mortos. E essa relação entre o céu e a terra,
isso me fascina muito. E é ali que se contam histórias, há todo um vínculo, a
árvore é um ser de relação, vamos dizer assim.
Paulo
Lins: E os elefantes? Você falou que tem uma paixão por esse animal.
Mia
Couto: Sim, sim, eu tenho uma grande paixão, de fato.... Faz
parte do meu trabalho, eu trabalho em reservas e parques de Moçambique. Estamos
reabilitando aquilo que foi destruído pela guerra. E, de fato, o elefante é um
animal cujas habilidades, digamos assim, de comunicação, de ser um ser social,
sofisticado, com um profundo desconhecimento daquilo que.... Nós não o
conhecemos. Não conhecemos essa entidade coletiva, que é a família, a família
dos elefantes. Eu tenho um grande fascínio por esse animal. Não, digamos assim,
o animal de eleição, em geral, em África, aquilo que é uma tentativa de uma
imagem de exportação dessa África, de cartaz, é o leão, mas eu escolhi o
elefante. Até porque é muito desajeitado, e eu gosto...
Paulo
Markun: Há um grande debate no mundo inteiro, e no Brasil também,
obviamente, sobre a questão ambiental. Isso inclusive começa a transbordar para
a literatura, em livros de alguma militância. Eu queria saber se isso ocorre
também em Moçambique.
Mia
Couto: Ocorre sim. Nós estamos partilhando dessa preocupação de
valorizar aquilo que são harmonias, que são a procura de respostas para
desequilíbrios ecológicos. Mas eu tenho uma certa resistência de que [esse
problema] seja autonomizado, que seja separado do resto, ou seja, é preciso
mudar o mundo inteiro e isso vai junto, digamos assim. Separar essa questão,
fazendo uma militância específica desse assunto é uma coisa para a qual eu
tenho alguma resistência.
Paulo
Markun: Mia, nos dois livros que eu tive a oportunidade de ler,
publicados aqui no Brasil, eu sei que há outros, há personagens velhos, que têm
um papel preponderante. Em um deles, [no livro] “A varanda do frangipani”, a
história se passa em um asilo, então a grande parte dos personagens são velhos.
No outro, “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, um dos personagens
centrais é o avô. Como você encara os velhos na sociedade? Eles realmente são
essa fonte de sabedoria e de conhecimento que aparece na sua obra?
Mia
Couto: No mundo rural de Moçambique, isso é verdade: os velhos
não são só a fonte de sabedoria, são de fato uma fonte da produção dos valores
morais etc, são ao mesmo tempo.... Nós estamos a falar de uma sociedade em que
essas esferas da política, da religião etc, não se autonomizaram, estão todas
misturadas. Portanto, o mais velho da família é, ao mesmo tempo, o chefe da família,
é o sacerdote, porque não há uma igreja que está institucionalizada. Então,
concentram-se nos mais velhos esses conjuntos de funções, e eles de fato são os
personagens centrais, e são memória, e são aquilo que são na relação com os
antepassados, são eles o veículo, por eles que passa esse tipo de
relacionamento. Mas isso está mudando. Há dinâmicas de mudanças em África que
são hoje, digamos, quase dramáticas, estão acontecendo de uma forma dramática –
quando eu digo dramática, quero dizer: intensa, não do ponto de vista de serem
negativas. Nas universidades hoje os jovens sabem coisas que são mais
importantes para o futuro e, portanto, isso é um dos grandes dramas humanos,
essa perda de função dos mais velhos.
Norma
Couri: Você acha que algum dia vai acontecer a tese do Saramago,
em “A jangada de pedra” [romance publicado em 1986], que um dia Portugal vai se
deslocar da Europa e se unir à África e ao Brasil? Você acha que isso pode
acontecer um dia.... essa CPLT, comunidade dos países de língua portuguesa, que
nunca aconteceu de verdade?
Mia
Couto: Nunca aconteceu exatamente porque essa viagem, essa
jangada de pedra, de que falou o Saramago, tem que ser de todos, tem que ser
uma viagem... não tem que ser Portugal que parta para descobrir os outros, tem
que ser todos partindo para se encontrarem em algum lugar comum. E, de fato, a ideia
da lusofonia é quase uma miragem ainda. A ideia de uma comunidade lusófona é um
projeto de construção pelo qual eu tenho simpatia, embora no princípio ela
fosse uma espécie de resgate, de alguma coisa que tinha uma sensação de império
perdido. Mas, agora, acho que os próprios países africanos querem esse projeto,
precisam de ter um espaço de afirmação e, portanto, há de haver um momento em
que nós nos encontramos. E aí o lugar do Brasil é fundamental. Se o Brasil não
quer a lusofonia, não quer essa projeção dessa ideia, essa ideia nunca vai
existir.
Josélia
Aguiar: Mia, a guerra, a vida após a guerra foram temas seus, e a
pergunta é: essas são as suas inquietações ainda, o que o senhor está
escrevendo no momento, você pode já falar um pouco do que está nascendo de
novo?
Mia
Couto: A guerra não.... Em si mesma, eu não quero que ela seja um
tema. A guerra foi um cenário em que eu coloquei aquilo que são preocupações
outras, que são mais comuns, digamos assim, que são as preocupações em relação
à morte, ao humor, à relação das pessoas com os seus lugares. E eu hoje estou
escrevendo um romance que passa por uma ideia de encontro. Este também é um
tema que é do meu agrado, que é a possibilidade de encontro entre culturas e a
margem de desencontro que continua existindo, porque as pessoas não são capazes
de sair delas próprias, não são capazes de se despirem daquilo que são os seus
valores que acreditam ser essenciais. Então, há uma mulher da Europa – para eu
contar só um bocadinho da história –, uma mulher da Europa que vem à procura do
seu marido que se perdeu em África, que se dissolveu em amores com mulheres
africanas, e ela veio resgatar o marido. E depois ela encontra um universo em
que ela própria se tem que reencontrar consigo mesma, digamos assim.
Josélia
Aguiar: E quando fica pronto [este romance]?
Mia
Couto: Eu não sei...
Paulo
Lins: Você tem uma disciplina para escrever, um tempo para
escrever, horário, essas coisas todas?
Mia
Couto: Não, eu escrevo nos intervalos, porque.... Eu escrevo mais
à noite e mais nas insônias. Eu sou um escritor de insônia [risos].
Norma
Couri: Eu fiquei curiosa com uma coisa que você falou
anteriormente: [você disse que] os espíritos moram na árvore. E quando se abate
uma árvore, o que acontece? Os espíritos...
Mia
Couto: Essas árvores, digamos, não são abatidas. Elas são
sagradas, não se pode abater. Claro que se se abate a árvore, os espíritos....
É uma coisa muito interessante, porque daí que nós vemos que a tradição é uma
coisa feita de elementos congelados, fixos. Os espíritos translocam-se, mudam
de residência, aliás...
Norma
Couri: Para outras árvores?
Mia
Couto: De fato, eles vivem na terra e falam pela árvore, digamos
assim. A referência é a terra, e mesmo que aquela árvore seja abatida por uma
razão qualquer, estranha, eles perdem voz, mas não perdem a moradia.
Miguel
Gullander: Mia, no seu trabalho, uma pessoa poderia concluir, ler nas
entrelinhas, que o escritor tem como que um papel ativo, traz um papel ativo,
crítico e também [um papel] para mitigar o sofrimento do outro e de combater a
ignorância. Concorda com isso? Esse papel engajado em nível quase social?
Mia
Couto: Eu acho que passa tudo por uma coisa que é sugerir que há
uma outra possibilidade de um outro mundo, que há outros mundos que estão
vivendo já, isto é, que não é preciso nós nos inventarmos tanto assim, mas que
há essa possibilidade de que não nos deixemos sufocar por isso que é a chamada
realidade, digamos assim. Para mim, tudo isso se resume em um episódio que
marcou muito a minha maneira de ver o mundo. Foi o Ho Chi Minh [1890-1969], o
revolucionário vietnamita, o presidente do Vietnã, que esteve preso e escreveu
na prisão belíssimos poemas de amor, cheios de ternura, da mais fina ternura. E
quando perguntaram como ele foi capaz de produzir essa obra em uma condição tão
sofrida na prisão, ele respondeu uma coisa que, para mim, é uma espécie de
sentença. Ele disse: "Eu desvalorizei as paredes". No fundo, eu acho
que escrevemos para desvalorizar as paredes.
Ivan
Marques: Mia, eu gostaria de perguntar.... Você fala muito dessa
visão errada, romântica, folclórica que os ocidentais têm da África. O que você
acha mais importante de corrigir nessa visão externa do continente africano, da
cultura africana?
Mia
Couto: Ivan, a questão é que essa visão agora já é interna, quer
dizer, os africanos já sinalizaram, digamos assim, incorporaram essa visão de
si mesmo. Acho que o mais grave é isso, e provavelmente a responsabilidade
histórica dos africanos agora é produzir uma imagem de si mesmos que seja
diferente, que seja uma fuga a esse exterior. Essa é a nossa obrigação, e eu
espero que a nossa presença aqui, por exemplo, na Flip possa ajudar um
bocadinho a criar uma ideia de uma África que é diversa, que é complexa, que
tem muitos mundos dentro de si própria.
Miguel
Gullander: Porque existe, em nível europeu, sempre aquela expectativa
de que o autor africano tem que, de certa maneira, corresponder a uma certa categoria,
estar formatado...
Mia
Couto: Os africanos também pensam assim de si mesmos [risos].
Manya
Millen: Eu queria que você falasse um pouco da sua relação com a
tecnologia, porque minha pergunta é sobre o futuro do livro. A música já mudou
de suporte várias vezes, o disco, o DVD, o MP3... é sempre uma conversa que vem
de novo, o livro como suporte. O papel vai sobreviver ou não? E as pessoas já leem
jornais cada vez mais na internet e não no papel, então há essa discussão. Eu,
por exemplo, gosto do cheiro do livro, não consigo ler livros na internet. Qual
é a sua relação com a tecnologia? Você acredita, enfim, que o livro é eterno?
Mia
Couto: Eu acho que não será eterno, mas tenho pena que não seja....
Eu tenho uma relação, essa mesma que a Manya tem, um certo gosto por aquele
objeto. Mas eu acredito que isso é uma coisa provavelmente que não é grave... o
suporte do livro que muda, mas a relação de encantamento com a leitura se
preserva, eu acho que isso é o mais importante. Provavelmente essa nossa ideia
nostálgica de que o livro será sempre assim não vai sobreviver.
Ivan
Marques: Mas a literatura pode sair do papel, você acha? Ela
pode... A poesia musicada...
Mia
Couto: Ela começa fora do papel, ela viaja pelo papel e passa
pelo papel. Às vezes perguntam [quais] as influências que eu tive do Brasil,
para minha própria escrita, muitas vieram através da música, das letras que
eram poesia, de fato, de Chico Buarque, do Caetano Veloso. Portanto, para nós,
foi importantíssimo saber como é que o português podia ser cantado assim,
porque se libertava daquilo que era aquela norma, aquela coisa regulamentada,
cansada, amarrada no papel. Foi importante isso.
Paulo
Markun: Você usa o computador para trabalhar?
Mia
Couto: Uso, sem problema.
Paulo
Markun: Você escreve no computador os seus livros?
Mia
Couto: Eu escrevo em papelinhos, em papéis vários que tenho,
[mas] perco quase todos. E o computador para mim é uma caixa onde eu atiro
esses papéis, mas já não sou mais intimidado pelo computador. No princípio eu tinha
uma relação de inferioridade com aquela máquina, agora já somos parceiros.
Norma
Couri: Você é sócio correspondente da Academia Brasileira de
Letras. Você acha que o Brasil conhece a África, conhece Moçambique?
Mia
Couto: Não. O que eu penso é que já posso dizer alguma coisa,
digamos assim, não falando do Brasil, mas daquilo que eu tenho como percepção,
é que Moçambique, para o cidadão comum brasileiro, não é nada. E, às vezes,
tenho que explicar que eu sou de Moçambique e eu percebo que a pessoa não tem ideia
nenhuma do que eu estou a falar. E eu acho que isso é alguma coisa que temos
que resolver. E, por outro lado, a ideia da África é uma ideia muito
mistificada, uma ideia muito folclorizada, muitas vezes. E isso é comum a todos
os brasileiros, brasileiros que têm origem africana e os que não têm origem
africana, digamos, que padecem quase sempre da mesma visão mistificada, de um
continente que é fácil, porque parece que é um só. E há muitas Áfricas, as
Áfricas são profundamente complexas e....
Norma
Couri: [interrompendo]. Como são as Áfricas?
Mia
Couto: Eu também não sei dizer [risos].
Paulo
Markun: Vamos para uma pergunta mais simples e elementar: o que é
Moçambique?
Mia
Couto: Moçambique é uma nação à procura de si própria, quer
dizer, uma nação que está em projeto de nascer ainda, é mais nova que eu. Eu
fiz ontem 52 anos, e o meu país tem 32 anos. Então, é um momento feliz em que o
país não sabe o que é. Isso é ótimo, não é uma aflição...
Paulo
Markun: Mas sabe o que quer, o país?
Mia
Couto: A elite que está governando o país sabe o que quer, mas há
vários quereres, e também nisso somos iguais aos outros países. Há conflitos de
interesses profundos, entre aquilo que são os interesses mais populares, mais
da gente que trabalha, e os projetos, a visão da elite. Essa elite é,
estranhamente, a elite que lutou pela independência, a elite que fez a
revolução, que fez o socialismo, o regime socialista, e, de repente, refez
tudo, está fazendo o capitalismo agora com o mesmo empenho, e há ali, portanto,
um sentimento de que estamos todos um pouco perdidos. E alguma coisa vai
acontecer, se acontecer a estabilidade, se nós não tivermos mais guerra, alguma
coisa vai acontecer, e nós, infelizmente, vamos ficar parecidos com os outros
países, vamos ser mais um país no mundo.
Norma
Couri: O Agualusa fala que sempre que ele volta a Angola, ele
encontra felicidade e inferno. Você acha que Moçambique tem horror e beleza,
tem mais horror do que beleza, tem mais beleza do que horror?
Mia
Couto: Tem as duas coisas. A relação do Agualusa é um pouco
diferente, ele vive uma parte do tempo fora de Angola, porque ele vai de
visita... E, para ele, esses dois lados ficam mais visíveis. Eu estou dentro do
poço, digamos assim, e para mim o céu é aquele pequeno buraco que está lá em
cima do poço, portanto, para mim isso não é tão visível como é para ele.
Paulo
Markun: Outra questão é a seguinte: tem muitos escritores que
reclamam do tempo. Aqui no Brasil nós tivemos muitos escritores que eram
funcionários públicos e escreviam nas horas vagas, ou outros que buscavam, enfim,
uma maneira de sobreviver e ao mesmo tempo escrever. Você disse que escreve em
pequenos papéis que vai colocando pelo bolso ao longo da sua atividade.
Gostaria que não fosse assim?
Mia
Couto: Gostaria que não fosse assim, mas eu não quereria nunca ser
um escritor o tempo inteiro.
Paulo
Markun: Por quê?
Mia
Couto: Porque eu quero ter essas outras janelas abertas para o
mundo, eu quero trabalhar em equipe, trabalhar em uma relação mais produtiva
com o mundo. A escrita é uma atividade solitária, eu não quero.... Eu
envelheceria muito e, digamos, eu não quero levar tão a sério a escrita.
Ivan
Marques: Ser escritor o tempo inteiro não é tão bom assim? É uma coisa
dolorosa, um exercício?
Mia
Couto: Às vezes adoecemos disso, quer dizer, às vezes investimos
tanto nessa única coisa que, depois, se não corre bem, nós nos desmoronamos
inteiramente. Eu não quero que isso aconteça.
Paulo
Lins: Você me falou que o livro que você sofreu mais para
escrever foi o “Terra sonâmbula”, me falou ontem lá na pousada. E você fala
agora em solidão, você não quer ser escritor o tempo todo.... É penoso para
você escrever, é uma atividade penosa?
Mia
Couto: Não, não, não. Eu não sou masoquista [risos]. Eu escrevo
com grande prazer. O momento da criação é o momento em que nós, digamos assim,
inventamos um universo em que aqueles personagens são nossa família, estão
vivos, estão nos dizendo coisas. Esse momento é de uma felicidade extrema. Eu
faço outras coisas, a biologia para mim é um prazer de fazer. Mas a paixão, a
grande paixão é a escrita.
Josélia
Aguiar: O senhor escreve todos os dias, tem o hábito de...
Mia
Couto: Sim, todos os dias, nem que eu tenha que reescrever uma
simples frase, eu vou sempre ao texto.
Miguel
Gullander: Mia, eu sinto que no, seu trabalho, você saboreia a
textura de todas as palavras. Qual é, assim, uma de suas palavras preferidas no
momento?
Mia
Couto: No momento?
Miguel
Gullander: Ou uma de suas palavras preferidas.
Mia
Couto: Não sei, eu talvez esteja viciado, porque ontem eu estava
pensando na questão de como é que eu... O anúncio da página, em Moçambique,
quando foi anunciado o fim da guerra, não houve uma festa como eu pensava que
ocorreria. As pessoas não saíram para a rua dançando, e uma semana depois
choveu, e aí as pessoas festejaram. E aí eu criei de fato uma palavra, que era
a chuva “abensonhada”, que era abençoada e sonhada ao mesmo tempo... E
provavelmente a ideia era que a chuva estava trazendo a notícia, não foi o
jornal ou a televisão que trouxeram a verdadeira notícia, foi a chuva que
trouxe.
Miguel
Gullander: Uma bela palavra!
Paulo
Markun: Mia, eu queria checar uma coisa para você confirmar,
contando uma história que aconteceu comigo uma vez. Uma certa noite eu estava
dormindo e acordei, no meio de um sonho, e achei que era uma história
sensacional. Sensacional, iria dar um romance maravilhoso. E peguei um pedaço
de papel e anotei tudo o que eu achava importante daquela história. Dormi
novamente e, no dia seguinte, acordei e não entendi nada do que tinha escrito.
Eu queria saber se essa coisa do sonho, de alguma forma, interfere no seu
trabalho e, ao contrário, se quando você está muito envolvido com um livro, se
ele passa para o teu sonho.
Mia
Couto: Em geral, ele não passa. Quer dizer, em geral eu funciono
assim como o Paulo [Lins] disse, eu acordo estremunhado, no meio da noite, e
tenho um papel e uma caneta, [anoto] às vezes no escuro. E, exatamente como
aconteceu consigo, na maior parte das vezes tenho que decifrar [o que foi
escrito]. E, nesse trabalho de decifrar, digamos assim, há ali um lado quase
arqueológico, como se aquilo tivesse ocorrido antes de eu próprio nascer, antes
de eu ser vivo. Mas esse exercício também para mim é um prazer: esse exercício
de decifrar aquilo que está no intervalo, nessa zona de vigília, para mim é um
grande prazer. Mas, normalmente, os personagens, eu sou um escritor de
personagens.... Também eu não construo uma narrativa, que era a pergunta do
Paulo, eu não tenho uma arquitetura já feita, os personagens conduzem-me, e eu
tenho que ter um estado enorme de paixão. Eu tenho que estar enamorado por eles
de maneira que eles [os personagens] são mais importantes do que eu em um certo
processo.
Paulo
Lins: O personagem ganha vida própria de vez em quando? Tem
vezes que a gente escreve uma coisa e depois diz: “Por que que esse cara está
fazendo isso? Como eu fui fazer isso? Por que ele fez isso? ” Eles ganham
uma...
Mia
Couto: Tem que se matar esse personagem... [risos].
Paulo
Lins: É a melhor forma de resolver, não é?
Mia
Couto: Sim, simbolicamente [risos].
Norma
Couri: Ontem eu estava conversando com um escritor californiano,
Jim Dodge, que escreveu [o romance] Fup [1983]; eu não sei se você leu, que é a
história de uma pata e tal, muito famoso. E ele contava que ele está há dez
anos tentando escrever um romance policial, e que o personagem dele já se
transformou em dez pessoas, e que ele vive assoberbado com esse personagem.
Esse personagem tomou conta dele, e ele parou o livro para ver se o personagem para
de persegui-lo. Isso aconteceu com você alguma vez? [Risos].
Mia
Couto: Sim. Eu agora estou nesse livro, e tenho limites. Só
entram cinco [personagens]. E, de fato, eles chamam outros; há essa coisa do
processo de ramificação, ou arborização, que, a certa altura, nós temos que
conduzir o cavalo, temos que ter a rédea na mão para que o processo não seja depois
um processo doloroso.
Paulo
Markun: Mia, o nosso tempo está chegando ao fim, e eu faço uma
pergunta justamente sobre isso, sobre essa questão do tempo. Também em sua obra
ou em parte dela, [o tempo] não segue a lógica, digamos, do cronômetro, certo,
da sucessão de minutos, horas, dias, é meio circular. Isso é, digamos, o tempo
da África?
Mia
Couto: Sim, é o tempo da África. Se há coisas assim que a África
me entregou, e eu custei de escutar essa outra ideia de um tempo circular, de
um tempo em que o futuro é quase interdito: não há palavra para dizer futuro em
muitas línguas de Moçambique. Isso revela, traduz, essa ideia de um tempo
circular.
Paulo
Markun: Mas você acredita no futuro?
Mia
Couto: Eu, infelizmente, tenho medo dele, pelo menos [risos].
Paulo
Markun: Muito obrigado, Mia. O Roda Viva chega ao final; eu
gostaria de agradecer a presença do escritor moçambicano Mia Couto e da nossa
bancada de entrevistadores. Agradecemos também a sua atenção, lembrando que a
série especial na Festa Literária Internacional de Paraty volta amanhã, à
meia-noite e meia, com a entrevista de Amós Oz, o mais conhecido escritor de
Israel, que também veio participar da Flip 2007. Até lá.
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