terça-feira, 17 de maio de 2011

BARROCO LITERÁRIO


“Pérola irregular”, “Jóia falsa”, “Mau gosto”, “Classicismo imperfeito”, “Escola espanhola”, “Estética religiosa”, “Escola da Contra-Reforma”, “Seiscentismo”...afinal o que é o Barroco??!!

I – INTRODUÇÃO:


O estilo Barroco é um dos mais complexos da literatura. A historiografia e a crítica têm oscilado entre posições que vão da seca recusa do Barroco, por alegada pobreza temática e exagerada manipulação da palavra, á quente apologia que fazem à escola os anatomistas do estilo, maravilhados com a engenhosidade e agudeza das produções da época. A posição mais conservadora, mais tradicionalista, tende a ver no Barroco uma “pérola irregular”, um classicismo imperfeito e obtuso.
A posição mais recente, que se abre com os estudos de Heinrich Wölfflin, tende a ver no Barroco uma constante universal na arte, expressiva dos períodos marcados por graves conflitos espirituais, e cuja essência é a irregularidade, a exasperação, o retorcimento, o exagero, características opostas à sobriedade e à disciplina clássica.
Observe a expressão de angústia das fisionomias, na tela “A Trindade”, de El Greco, traço marcante do Barroco.

 
II – LOCALIZAÇÃO:


III – CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL:

PORTUGAL: 1580-1756
BRASIL: 1601-1768

 
Se o início do século XVI, principalmente seus primeiros vinte e cinco anos, pode ser considerado o apogeu de PORTUGAL, não é menos verdade que os vinte cinco anos finais desse mesmo século representam o período mais negro de sua história.

O comércio e a expansão do império ultramarino levaram PORTUGAL a conhecer uma grandeza aparente. Lisboa era considerada a capital mundial da pimenta, porém a agricultura portuguesa era abandonada.
As colônias conquistadas, principalmente o Brasil, não deram a PORTUGAL retorno de riquezas imediatas; com o declínio do comércio das especiarias orientais observa-se uma falência da economia lusa.
Concomitantemente a decadência econômica, PORTUGAL vive uma crise dinástica: em 1578, o adorado e cristão rei D. Sebastião almejando ampliar a fé cristã e transformar PORTUGAL num grande império, “desaparece” numa batalha em Alcácer-Quibir, na África (“Mito do Sebastianismo”); dois anos depois, D. Felipe II da Espanha consolida a unificação da Península Ibérica.
Portanto, a partir de 1580, PORTUGAL passa a ser de domínio espanhol e tal situação permanecerá até 1640, quando ocorre a Restauração e PORTUGAL recupera sua autonomia.
A unificação da Península veio favorecer a luta conduzida pela Companhia de Jesus em nome da Contrarreforma: o ensino passa a ser quase um monopólio dos jesuítas e a censura eclesiástica torna-se um obstáculo a qualquer avanço no campo científico-cultural. Enquanto a Europa conhecia um período de efervescência no campo científico, com as pesquisas e descobertas de Francis Bacon, Galileu, Kepler e Newton, a Península Ibérica era um reduto da cultura medieval.
Com o Concílio de Trento (Norte da Itália, 1545-1563), o Cristianismo se divide. De um lado os estados protestantes (seguidores de Lutero, introdutor da Reforma) que propagavam o "espírito científico", o racionalismo clássico, a liberdade de expressão e pensamento, a diminuição do poder do Papa, a livre leitura da bíblia e o retorno à simplicidade dos apóstolos. De outro, os redutos católicos (a Contrarreforma) que seguiam uma mentalidade mais estreita, marcada pela Inquisição (processo administrativo), pelo Santo Ofício (investigação e julgamento) e pelo Index (uma espécie de censura) e pelo teocentrismo medieval.
Os padres jesuítas assumiram posição de destaque na defesa e difusão do catolicismo, como forma de combate ao protestantismo ameaçador. As escolas e universidades jesuítas criaram um estilo próprio de arte e arquitetura, ricamente ornamentadas por querubins e virgens celestiais, parecem tentar comover o coração da mesma forma que o pregador buscava seduzir o intelecto.
A tensão gerada pela reação católica ao protestantismo se fará notar na definição desse novo estilo que será mais intensa quanto mais intensa tiver sido a situação da Reforma Protestante ou da Contra-Reforma Católica.
Assim, teremos:

BARROCO IBÉRICO-JESUÍTICO: na Espanha, Itália, Portugal e com projeções na América Latina.
BARROCO REFORMISTA e LUTERANO: Alemanha, Inglaterra e Hollanda.
BARROCO: “tênue”: na Suécia e países nórdicos.

IV - CARACTERÍSTICAS:

“Arte de ornamentação rica retratando o sofrimento.”

É importante ressaltar que a época barroca, o século XVII, foi das mais conturbadas que o homem ocidental viveu. E mais, coincide com o apogeu do Absolutismo monárquico e com a implantação sistemática do capitalismo e sua extensão a áreas coloniais. É notório quem se a Literatura é a expressão do homem e de seu tempo, o estilo barroco haveria de refletir os contrastes, incertezas e o desespero do homem que viveu essa época difícil.
Não se pode falar em ruptura entre o Renascimento e o Barroco; na verdade, o que se observa é um processo de transformação e continuidade, que redefine perspectivas artísticas, mas não as invalida como se pode observar na poética camoniana.
Como movimento cultural e artístico, o Barroco é um estilo muito complexo pela falta de temática ao mesmo tempo pelo rebuscamento da palavra.
Assim, o período do Barroco é marcado por uma profunda dualidade. Por um lado, é o desdobramento do humanismo clássico e do Renascimento com seus apelos ao racionalismo, ao prazer, ao “carpe diem”. Por outro lado, o homem é pressionado pela Igreja Católica e pelo protestantismo mais vigoroso a um regresso ao teocentrismo medieval, à postura estóica, à renúncia aos prazeres, à mortificação da carne e à observância plena do “amar a Deus sobre todas as coisas”, princípio capitular do teocentrismo medieval.

“Enterro do conde de Orgaz”, El Greco.


Em síntese, o homem do período Barroco foi marcado por oposições, conflitos íntimos, pessimismo, dúvidas, medo, insegurança e uma profunda angústia existencial.
O homem dessa época vive dividido entre a razão X emoção; equilíbrio/harmonia X desequilíbrio/instabilidade; corpo X alma; prazer (“carpe diem”) X virtude (mortificação da carne); materialidade X espiritualidade; consciência do pecado (deixar de pecar era impossível para o ser humano) X castigo de Deus e o arrependimento etc.
A Igreja nessa época converte-se numa espécie de espaço cênico, num teatro sacro onde são encenados os dramas humanos.
Dentre os traços característicos da estética barroca, merecem destaque:

- FEÍSMO: preferência por aspectos cruéis, dolorosos e repugnantes, numa tentativa de mostrar a miséria do ser humano.
- FUSIONISMO: associação entre o racional e o irracional, entre a razão e a fé.
- CONFLITO ENTRE O “EU” E O MUNDO: incapaz de compreender o mundo em que vive, o homem se isola, criando um mundo particular solitário e pessimista.
- BREVIDADE DA VIDA, FUGACIDADE e EFEMERIDADE DO TEMPO ou gozar ao máximos os prazeres mundanos.
- REBUSCAMENTO LINGUÍSTICO: uma linguagem trabalhada com excessos de recursos imagéticos e de figuras, principalmente de antíteses, paradoxos, oximoros associando o racional e o irracional e as metáforas, na tentativa de emprestar à literatura a riqueza visual da pintura e da escultura como também driblar a censura da Igreja.

V – ESTILOS:

O virtuosismo, a ornamentação exagerada, o jogo sutil de palavras e ideias, visando a surpreender o leitor pela espantosa engenhosidade da construção do texto, assumindo uma atitude lúdica com o leitor, propondo-lhe um labirinto de significantes e significados, provocando a surpresa da novidade, pela ousadia das metáforas e associações.
Este verdadeiro jogo de esconde-esconde tem duas explicações: por um lado, a necessidade de ludibriar a censura inquisitorial e, de longa data, a metáfora é o recurso linguístico para sugerir ideias, sutilmente; por outro, já está visto que o espírito barroco é contraditório, eivado de incertezas.
Os estilos da estética barroca expressam-se através de duas tendências:

CULTISMO/GONGORISMO: EXPRESSIVIDADE – JOGO DE PALAVRAS

Cultismo ou Gongorismo são as denominações que recebeu, na Península Ibérica, e em colônias ultramarinas, o aspecto do Barroco voltado para o rebuscamento da forma; para a ornamentação exagerada do estilo; por meio de vocabulário precioso, erudito, eivado de latinismos, para a inversão da ordem direta da frase, imitando a sintaxe do latim clássico; ornamentação; beleza; estética; exuberância; burilamento da forma verbal; imagens que envolvam o leitor por meio de estímulos sensoriais (com destaque para as camadas fônica e cromática do texto); descrição; aparências e aspectos exteriores.
O termo Cultismo deriva da obsessão barroca pela linguagem culta, e o termo Gongorismo alude ao autor espanhol Luís de Gôngora, expoente maior desse procedimento literário, criador de uma verdadeira escola que tem como seguidores, entre nós, Manuel Botelho de Oliveira e, em alguns momentos, Gregório de Matos Guerra.
O aspecto exterior imediatamente visível no Cultismo ou Gongorismo é o abuso no emprego de figuras de linguagem:
As semânticas:
- metáforas: é a figura de linguagem em que se emprega um termo por outro, mantendo-se entre eles uma relação de semelhança.
- antíteses: é a figura de estilo que consiste na exposição de ideias opostas. Ocorre quando há uma aproximação de palavras ou expressões de sentidos opostos. O contraste que se estabelece serve, essencialmente, para dar uma ênfase aos conceitos envolvidos que não se conseguiria com a exposição isolada dos mesmos.
- hipérboles: também, conhecida como intensificação, é a figura que consiste na ênfase resultante do exagero deliberado, quer no sentido negativo, quer no positivo.
As sintáticas:
- hipérbato: é a figura sintática que consiste numa inversão violenta da ordem da ordem direta da frase.
- perífrase: também denominada circunlóquio, consiste na substituição de uma palavra por uma série de outras, de modo que estas se refiram àquela, indiretamente. Utilizada, em geral, para evitar a monotonia das expressões gastas ou para criar novas relações metafóricas.
- anáforas: consiste na repetição intencional de palavras, no início dos versos ou frases.
- anadiplose: é a reiteração do(s) termo(s) final(ais) de um verso ou oração, no início do verso.

DESENGANOS DA VIDA HUMANA, METAFORICAMENTE


É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.



É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.



É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias aprestas, alentos preza:



Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?



Gregório de Matos


VOCABULÁRIO:

Airosa – esbelta.
Presumida – vaidosa, presunçosa.
Abril favorecida – favorecida pela primavera, que, na Europa, se inicia em abril.
Soberba – orgulho.
Empavesada – protegida, ornada.
Ufana – triunfante.
Fênix – divindade da miologia egípcia, símbolo da imortalidade, personificada numa ave que renascia das próprias cinzas.
Galhardias – garbo, elegância.
Apresta – apronta.
Alentos – entusiasmos, estímulos.

Exemplo do estilo Cultista, o próprio título do soneto, “Dos Desenganos da Vida Humana Metaforicamente”, alude ao emprego intensivo da metáfora.
O poema se entretece a partir de três metáforas da vaidade: Rosa, Planta e Nau.
O seu tema é o da precariedade de todas as coisas diante da adversidade do tempo, que tudo arrasta para a “tarde”, o crepúsculo final que se sucederá à “manhã” de nossas vidas. Note-se o tratamento indireto da “vaidade” (palavra que significa, originalmente, “coisa vã, vazia”), à qual são associadas sucessivas imagens (“rosa”, “planta”, “nau”), disseminadas no poema e recolhidas em seu verso final, num procedimento chamado Disseminação e Recolha que é comum na poesia barroca.
A metaforização intensiva do texto Barroco estabelece, quase sempre, uma identificação sensorial, resultando no aspecto cromático e criando associações surpreendentes.
Registre-se ainda a presença da mitologia antiga, através da Fênix, o pássaro-deus egípcio, símbolo da imortalidade, e com o qual a vaidade presumidamente se identifica. Note-se como, no verso final, temos a segunda recolha dos termos antes disseminados, confrontados com seus contrários (“ferro” é a lâmina que corta a planta; “penha”, o penhasco que destrói a “nau”, e “tarde”, o momento em que morre a “rosa”).
Esse soneto ao organizar de forma complexa e ornamentada um pensamento simples: parte da ideia de que a vaidade, apesar de sua aparência, não tem nenhuma substância na vida; desdobra esse pensamento em três metáforas resplandecentes, desdobradas em outras metáforas, que se distribuem simetricamente pelas três primeiras estrofes e são reunidas na quarta, acopladas aos seus contrários.
Na primeira estrofe, entenda-se: ”da manhã lisonjeada” como envaidecida pela juventude, indicada pela metáfora “manhã; “airosa”, como altiva e “presumida”, como “cheia de presunção”.
A vaidade é como uma rosa que abre (“rompe”), altiva, a “púrpura” de suas pétalas com “ambição dourada”, isto é, com ambição de brilhar, de se comparar ao ouro.
Na segunda estrofe: “que de abril favorecida”, significa animada pela primavera européia, que acontece em abril. Primavera também conota juventude; “soberba desatada” como arrogância incontida; “galeota empavesada” como uma embarcação equipada com defesas ou, em outro sentido, enfeitada e “sulca ufana” como navega orgulhosa.
Na terceira estrofe: “em breve ligeireza” refere-se ao vento brando; “com presunção de Fênix generosa” como pensando ser uma Fênix capaz de muitas ressurreições, por isso generosa e “galhardias apresta, alentos preza” como prepara valentias, preza estímulos do vento.
Na quarta estrofe, o último verso chamado “plurimembre”, é composto da enumeração de três pares de elementos antitéticos (contrapostos), recapitulando as três metáforas anteriores em ordem inversa à de seu aparecimento (nau, planta, rosa) e confrontando-as com os elementos que as hão de destruir, em três rápidas imagens da morte (penha, ferro, tarde).
O hipérbato resulta em certa dificuldade de leitura, como se verifica nos quatro primeiros versos do poema de Gregório de Matos, acima.
Reescrevendo-os, na ordem direta, teríamos: “Fábio, a vaidade nesta vida é rosa que, lisonjeada de manhã, arrasta presumida mil púrpuras e rompe airosa com ambição doirada.”

CONCEPTISMO: RACIONALISMO – JOGO DE IDEIAS

Define-se o Conceptismo ou Quevedismo como o aspecto construtivo do Barroco voltado para o jogo das ideias, para a argumentação sutil, para a dialética cerrada, que opera por meio de associações inesperadas, ainda fundadas na metáfora e, especialmente, nos procedimentos da lógica formal, como o silogismo, o sofisma e o paradoxo.
Enquanto os Cultistas ou Gongóricos consideravam que a percepção cognoscitiva das coisas deveria processar-se pela captação de seus aspectos sensoriais e plásticos (contorno, forma, cor, volume), produzindo como resultado um verdadeiro frenesi cromático, visando a apreender o como dos objetos, os Conceptistas pesquisavam a essência íntima dos objetos, buscando saber o que são, visando à apreensão da face oculta, apenas acessível ao pensamento, ou seja, aos conceitos; assim, a inteligência, a lógica e o raciocínio ocupam o lugar dos sentidos, impondo a concisão e a ordem, onde reinavam a exuberância e o exagero. Assim, é usual a presença de elementos da lógica formal, como:

- SILOGISMO: dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada, chamada conclusão. Assim, temos como exemplo: “Todo homem é mortal (premissa maior); ora, eu sou homem (premissa menor); logo, eu sou mortal (conclusão).

A CRISTO S.N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA


Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro:



Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É meu Jesus, a hora de ser ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.



Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.


Este poema se baseia a crença de que o poeta, velho e arrependido da vida desregrada que levara, reconciliou-se com a religião, e, como Bocage, um século depois, compôs sonetos de arrependimento em seus últimos dias.
Expressa a cosmovisão barroca: a insignificância do homem perante Deus, a consciência nítida do pecado e a busca do perdão. Ao lado de momentos de verdadeiro arrependimento, muitas vezes o tema religioso é utilizado como simples pretexto para o exercício poético, desenvolvendo engenhosos jogos de imagens e conceitos.
Nas duas primeiras estrofes, o poeta expressa a contrição religiosa e a crença no amor infinito de Cristo, para manifestar, no final, a certeza do perdão.
Observe a construção dos tercetos finais de um soneto sacro de Gregório de Matos, que encobre uma formulação silogística, que se pode expressar dessa maneira:
O amor de Cristo é infinito (verso 11) – Premissa Maior;
O meu pecado, por maior que seja, é finito, e menor que o amor de Jesus (versos 9 e 10) – Premissa Menor;
Logo, por maior que seja o meu pecado, eu espero salvar-me (versos 13 e 14) – Conclusão.

- SOFISMA: é o argumento que parte de premissas verdadeiras e que chega a uma conclusão inadmissível, que não pode enganar ninguém, mas que se apresenta como resultante de regras formais do raciocínio, não podendo ser refutado. É um raciocínio falso, elaborado com a função de enganar.

VI – BARROCO NO BRASIL:



1601 – “PROSOPOPÉIA”, poema épico de autoria do português, radicado no Brasil, Bento Teixeira.

Considerado o mais antigo poeta brasileiro, “Prosopopéia”, escrito em moldes camonianos, onde se cantam os feitos do governador Jorge de Albuquerque Coelho, surge como primeiro documento poético com uma referência local, brasileira, com especial relevo para uma descrição do Recife.
Em 1601 saía em Lisboa, da imprensa de Antônio Alvarez, um opúsculo de dezoito páginas, in-4º, trazendo no alto da primeira do texto este título: “Prosopopéia”, dirigida a Jorge Dalbuquerque Coelho, Capitão, e Governador de Pernambuco, Nova Lusitana, etc. O nome do autor Bento Teyxeyra vinha, assim escrito, embaixo do Prólogo, no qual fazia ao seu herói o oferecimento da obra.
É um poema de noventa e quatro oitavas, em verso endecassílabo, sem divisão de cantos, nem numeração de estrofes, cheio de reminiscências, imitações, arremedos e paródias d’Os Lusíadas.
Não tem propriamente ação, e a “Prosopopéia” donde tira o nome está numa fala de Proteu, profetizando “post facto”, os feitos e a fortuna, exageradamente idealizados, dos Albuquerques, particularmente de Jorge, o terceiro donatário de Pernambuco, ao qual é consagrado.
Não tem mérito algum de inspiração, poesia ou forma. Afora a sua importância cronológica de primeira produção literária publicada de um brasileiro, pouquíssimo valor tem. No meio da própria ruim literatura poética portuguesa do tempo — aliás, a só atender à data em que possivelmente foi este poema escrito, a melhor época dessa literatura — não se elevaria este acima da multidão de maus poetas iguais.
O poeta ou era de si medíocre, ou bem novo e inexperiente quando o escreveu. Confessa aliás no seu Prólogo, já gongórico que eram as suas "primeiras primícias". Não se sabe se veio a dar fruto mais sazonado. Nos seus setecentos e cinquenta e dois versos apenas haverá algum notável, pela ideia ou pela forma. São na maioria prosaicos, como banais são os seus conceitos. A língua não tem a distinção ou relevo, e o estilo traz já todos os defeitos que maculam o pior estilo poético do tempo, e seriam os distintivos da má poesia portuguesa do século seguinte, o vazio ou o afetado da ideia e a penúria do sentimento poético, cujo realce se procurava com efeitos mitológicos e reminiscências clássicas, impróprios e incongruentes, sem sombra do gênio com que Camões, com sucesso único, restaurara esses recursos na poesia do seu tempo.
Conforme a regra clássica, começa o poema pela invocação. É de justiça reparar que começa com uma novidade, a invocação é desta vez dirigida ao Deus dos cristãos. Além do Deus, invoca a Jorge de Albuquerque "o sublime Jorge em que se esmalta a estirpe de Albuquerque excelente" com versos diretamente imitados de “Os Lusíadas”. A memória fresca do poema de Camões está por todo o poema do nosso patrício, em que não há só reminiscências, influências mas versos imitados, parodiados, alguns quase integralmente transcritos, e ainda alusões à grande epopéia portuguesa.
Depois da invocação preceitual segue-se no poema de Bento Teixeira, como também era de regra, a "narração" expressamente designada do livro.
A ação do poema é falada ou narrada. Proteu a diz de sobre o Recife de Pernambuco. Seis estrofes o descrevem, de um modo insípido, pura e secamente topográfico:

Para a parte do sul onde a pequena
Ursa, se vê de guardas rodeada,
Onde o Céu luminoso mais serena,
Tem sua influição, e temperada.
Junto da nova Lusitânia ordena,
A natureza, mãe, bem atentada,
Um porto tam quieto e tam seguro,
Que pera as curvas naus serve de muro.

É este porto tal, por estar posta,
Uma cinta de pedra, inculta, e viva,
Ao longo da soberba, e larga costa,
Onde quebra Neptuno a fúria esquiva,
Entre a praia, e pedra descomposta,
O estranhado elemento se deriva,
Com tanta mansidão, que uma fateixa,
Basta ter à fatal Argos aneixa.



Em o meio desta obra alpestre, e dura,
Sua boca rompeu o Mar inchado,
Que na língua dos bárbaros escura,
Paranambuco, de todos é chamado
De Paraná que é Mar, Puca - rotura,
Feita em fúria desse Mar salgado,
Que sem no derivar cometer míngua,
Cova do Mar se chama em nossa língua.

Em seguida, por ordem de Netuno, profetiza Proteu, num largo canto em louvor dos Albuquerques e nomeadamente de Jorge, a quem se endereça esta prosopopéia. Vê Proteu:

A opulenta Olinda florescente
Chegar ao cume do supremo estado
Será de fera e belicosa gente
O seu largo distrito povoado
Por nome terá, Nova Lusitânia,
Das leis isenta da fatal insônia.

Esta Lusitânia será governada por Duarte Pacheco "o grão Duarte" que o poeta, pela voz de Proteu, compara a Enéias, a Públio Cipião, a Nestor e a Fábio. E tudo o que até então tinha passado com os Pachecos e Albuquerques, já celebrados por Camões, ocorre a Proteu que o profetiza posteriormente desmedindo-se no louvor e encarecimento. Acaba o poema pouco originalmente, com as despedidas do poeta, repetindo a promessa de voltar com um novo canto:

Por tal modo que cause ao mundo espanto.

Jorge de Albuquerque Coelho, o motivo senão o herói deste poema, era filho de Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, onde Jorge nasceu, em Olinda, em 1539. O enfático padre Loreto Couto, falando dele como de sujeito verdadeiramente extraordinário, assevera que "ainda que Pernambuco não tivera produzido outro filho bastaria este para a sua imortal glória". E mais, que "foi este insigne pernambucano um daqueles espíritos raros para cuja produção tarda séculos inteiros a natureza, pois à sua rara virtude e insigne valor, acrescentou uma erudição rara e conhecimento das letras humanas".
Uma e outro não teriam sido adquiridos no Brasil. Se são exatas, como parece, as notícias de Jaboatão, Jorge Albuquerque criou-se em Portugal, onde aos 14 anos se achava. Com 20 voltou a Pernambuco, donde tornou ao Reino, em 1555, aos 26 anos, após a sua brilhante campanha contra os índios da capitania.
Nesta viagem para Portugal sofreu o naufrágio célebre da nau Santo Antônio que o levava, cuja relação, escrita pelo piloto Afonso Luís e reformada por Antônio de Castro, foi atribuída a Bento Teixeira. Em Portugal "foi de todos aplaudido de cortesão, generoso, discreto, liberal, afável e modesto".
Em todos os tempos poetas e literatos foram inclinadíssimos à bajulação dos poderosos. Em Portugal tais poetas e literatos faziam até parte da domesticidade da corte ou das grandes casas fidalgas e ricas, que os aposentavam e pensionavam, em troca dos poemas e escrituras com que infalivelmente celebravam a família em cada um dos seus sucessos domésticos, nascimentos, casamentos, mortes, façanhas guerreiras, vantagens sociais obtidas, aniversários. Frequentemente eram estes que lhe mandavam imprimir as obras, que sem tais patronos dificilmente achariam editores.
Bento Teixeira fica, pois, sendo, não só o primeiro em data dos poetas brasileiros, mas o patriarca dos nossos "engrossadores" literários. E de ambos os modos progenitor fecundíssimo de incontável prole.
Conjetura-se com bons fundamentos houvesse composto o seu poema nos últimos anos do século, com certeza depois do desastre de D. Sebastião em África, em 1578, a que já o poema se refere. Talvez nos arredores de 1596, que neste ano ainda vivia Jorge de Albuquerque e o poema foi composto quando ele vivo.
De Bento Teyxeyra, como ele o assinou, ou Bento Teixeira Pinto, como também lhe escreveram o nome, nada mais se sabe além da parca notícia do bibliógrafo Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, publicada em 1741; que nasceu em Pernambuco e era "igualmente perito na poética e na história". Não diz nem o lugar nem a data do nascimento.

VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Cultismo e Conceptismo são dois aspectos do Barroco que não se separam; antes, superpõem-se como as duas faces de uma mesma moeda. Às vezes, o autor trabalha mais ao nível da palavra, da imagem; busca mais o argumento, o conceito. Nada impede que o mesmo texto tenha, simultaneamente, aspectos Cultistas e Conceptistas. Com os riscos inerentes às generalizações abusivas, diz-se, didaticamente, que o Cultismo é predominante na poesia e o Conceptismo, predominante na prosa.







terça-feira, 10 de maio de 2011

REMBRANDT HARMENSZOON VAN RIJN E O BARROCO HOLANDÊS


“Ser artista é desvendar os segredos da vida e alcançar o verbo; é fazer nos traços e cores a luz Suprema.”


REMBRANDT nasceu em 15 de julho de 1606, na cidade universitária de Leida, próxima a Amsterdã.
Entre 1613 e 1620, Rembrandt estudou na Escola Latina, onde recebeu sua primeira formação escolar. Em 1620, matriculou-se na Universidade de Leida, porém seu destino não seria a Literatura e ao fim de poucos meses, abandonou a universidade.
Nessa época, Rembrandt tornou-se aprendiz do pintor holandês Jacob van Swanenburgh (1571-1638), que havia regressado a Leida após uma longa temporada na Itália. Van Swanenburgh demonstrava identificação com o ambiente renascentista italiano e era casado com a napolitana Margarita Cordona, modelo famosa por sua beleza.
Já decidido pela pintura e atraído pelo estilo do Renascimento, Rembrandt passou a visitar o ateliê de Jacob Symonszoon Pynas (1585-1648) e em, 1624 transferiu-se para Amsterdã e frequentou o estúdio de Pieter Lastman (1583-1633). Lastman havia recém retornado da Itália, onde trabalhara com Caravaggio e, era considerado o mais valorizado artista de quadros com temática histórica.
Rembrandt retornou a Leida a fim de complementar sua formação com o artista Joris van Schooten (1587-1651) e em poucos meses, montou o seu próprio ateliê.
Em 1625, pintou seu primeiro quadro datado: “A lapidação de Santo Estevão.”

“A lapidação de Santo Estevão”, 1625.


Essa obra marcou o início de uma série de trabalhos de temática religiosa, tendência que não abandonou ao longe da carreira. Nota-se no estilo do quadro o acentuado efeito de claro-escuro característico de Caravaggio, embora o tratamento da luz já revelasse uma busca própria e original.
O dinamismo de “A lapidação de Santo Estevão” constituía um avanço indiscutível na produção juvenil de Rembrandt, ainda fiel a um cromatismo no estilo de Lastman.
Na mesma linha, Rembrandt pintou “Tobias”, “Ana e o bode”, “A fuga para o Egito” e “A apresentação no templo”.
Nos anos em Leida, Rembrandt se dedicou à gravura com tal habilidade que se tornou o maior representante de todos os tempos dessa técnica visual.
Com os anos, o claro-escuro de Rembrandt ganhou traços bastante particulares a partir de contornos nos quais a luz se mostrava diluída por meio de filtros de sutil esplendor. I efeito gerava uma atmosfera fantástica, com reflexos que realçavam as personagens.
Em 1628, o então aprendiz Gerrit Dou (1613-1675) tornou-se o primeiro discípulo de Rembrandt.
Desde o Renascimento, o gênero do auto-retrato se tornara habitual entre os pintores. Era um modo de reforçar a imagem do artista com referência no novo paradigma da modernidade.
A quantidade de auto-retratos realizados por Rembrandt não encontra precedentes. Todos constituem um acervo bastante útil para compreender sua evolução pictórica em estreita relação com o desenvolvimento da própria vida.

“Auto-retrato”, 1629.


Por algum tempo, atribui-se a tendência ao auto-retrato ao fato de Rembrandt não ter dinheiro para contratar modelos. No entanto, a explicação mostra-se insustentável.
Pela forma como Rembrandt se auto-retratou é possível apreciar sua personalidade multifacetada e suas sucessivas transformações ao longo de mais de 40 anos de incessante atividade.
O “Auto-retrato” de 1629 mostra um Rembrandt jovem, cujo olhar, um tanto oculto na sombra, corresponde a quem, com tanta prudência quanto curiosidade, começa a perceber o mundo.
Seus lábios, ligeiramente entreabertos, conferem-lhes movimento por meio do uso do claro-escuro, parecendo mais próximos de balbuciar do que de querer dialogar. Um traço de cor escura separa o lábio superior do inferior, esboçando os dentes de baixo.
A ausência de um contorno claro gera a sensação de dinamismo.
Em 1630, o pintor Constantijn Huygens comentou que a obra de Rembrandt “podia ser comparada a tudo o que a Antiguidade e a Itália produziram: aqui, um adolescente, o imberbe filho de um moleiro, superou Protógenes, Apeles e Parrásio”.
As pinturas de Rembrandt e de seu emprego da técnica da gravura foram imediatamente reconhecidos.
O pintor também fez obras em referência ao desenvolvimento da natureza-morta. Esse ramo da pintura se servia de um arranjo extraordinário, encanto cromático e de uma iluminação fina para gerar no espectador um efeito de serenidade, bem-estar e harmonia.
Com frequência, especialmente no estilo barroco, a natureza-morta servia para canalizar um mundo de sentimentos contrastados e até dramáticos. No entanto, poucos pintores ousaram enveredar por esse caminho.
Surpreendentemente, Rembrandt o fez em especial em uma de suas obras mais elogiadas pelos críticos: “O boi esfolado”.
Neste caso, Rembrandt provocou o espectador com um tema que ninguém ousara representar, tanto que esta obra já serviu como referência para vários artistas contemporâneos.

“O boi esfolado”, 1630.


Não resta dúvida de que essa obra representa, por um lado, uma demonstração de força no terreno do desenho e do domínio da luz na descrição formal.
A luz que ilumina a peça do animal sacrificado provém de cima, embora não se localize sua origem. O boi esfolado foi pendurado pelos matarifes por suas extremidades em um varão de madeira.
A analogia formal entre o apetrecho e a cruz é evidente. Nesse sentido, o simbolismo da obra é bastante evidente: um toque de despertar para a dor e não apenas para a carne. E essa sensação de peso transforma a obra em uma magnífica e estremecedora metáfora da morte.
Em 1631, muitos dos mais considerados marchands disputavam seus retratos pintados por ele.
As melhores tradições italianas no tratamento do efeito claro-escuro, de Caravaggio a Ticiano, estão sintetizadas na obra “Filósofo meditando”, 1632.

“Filósofo mediando”, 1632.


A luz e a sombra se entrelaçam como um redemoinho, em um espaço marcado precisamente por uma escada em caracol. O centro é ocupado por uma porta fechada às costas do filósofo, que baixa a cabeça e contempla as mãos. Por suas características, a porta parece conduzir a um ambiente subterrâneo. Simboliza o oculto, o mistério.
Em contraste, como reivindicação do mundo exterior, de fora para dentro a luz ilumina a cena, em especial a mesa de trabalho e a figura do filósofo. Com provavelmente a fonte de luz externa deve se esvair, como o dia ou a vida, no canto inferior direito uma mulher clareia o lar.
A espiral da escada é um centro em movimento, que sobre e desce. Na quietude da cena, esse dinamismo encarna as meditações do filósofo.
A proporção das figuras humanas em relação ao cenário intensifica a sensação de interioridade. O simbolismo é claro: o pensamento se desloca nas sombras, buscando um pouco de luz.
Em 1632, o pintor fez uma de suas obras mais famosas: “A lição de anatomia do doutor Tulp”.

“A lição de anatomia do doutor Tulp”, 1632







Este quadro instiga ecos de diversas naturezas, das mais obscuras e sórdidas, como a origem do cadáver que jaz na mesa de dissecação até as mais elevadas, já que recria um instante do desenvolvimento de umdas mais importantes ciências modernas: a anatomia.
O cadáver era Adriaan Adriaanszoon, que havia agredido com gravidade um guarda da penitenciária de Utrecht e, depois de fugir para Amsterdã, havia golpeado um transeunte para roubá-lo.
Adriaan morreu na forca e seu corpo foi cedido aos cirurgiões da universidade para uma autópsia pública, conforme costume na Europa do século XVII.
Diferentemente de outros pintores que recriaram cenas similares, Rembrandt se limitou a representar o cadáver e oito espectadores. É possível que, de fato, houvesse apenas seis presentes, o personagem à esquerda e, o de cima foram adicionados mais tarde. Posteriormente foi pintada a lista de nomes na mão de um dos participantes.
A lista permite identificar os personagens e, ao que parece, tinha grande importância para o pintor. Não era para menos, porque os participantes pertenciam à elite de Amsterdã e haviam financiado a obra.
O doutor Nicolaes Tulp era o único com título acadêmico de cirurgião. Na tela, Tulp maneja a tesoura e conduz a demonstração. Na verdade, o sobrenome do médico era Pieterszoon, Tulp originou-se do ofício de seus pais, que se dedicavam à venda der tulipas. O fato de o filho de um vendedor de tulipas integrar a elite científica, além de ocupar várias vezes o cargo de prefeito da cidade, reforçava o anseio de Rembrandt, filho de um moleiro, de fazer parte da elite artística da capital.
A presença de Jacob de Witt, localizado no centro do quadro, acima da cabeça do cadáver, confirma o clima cultural predominante: De Witt era membro diretivo da associação dos cirurgiões, que incluía os barbeiros, já que estes também extraíam dentes e praticavam sangrias. Além disso, o sobrenome Witt identificava uma das famílias que lideraram a revolução democrática contra os Habsburgo.
Um dos seguidores dos Witt era o renovado filósofo Baruch Spinoza.
Sabe-se que Rembrandt foi criterioso na seleção dos observadores da “aula de anatomia” e que os convidou um a um para realizar retratos individuais em seu ateliê. Em compensação, sabe-se também que o braço dissecado foi pintado no transcorrer da autópsia.
Uma autêntica montagem com os personagens aglomerados de tal forma que não se pode identificar a posição exata do pintor; apesar de sabermos que ele está olhando de baixo para cima. A disparidade dos olhares reforça a ambiguidade espacial. Tudo isso em contaste com a representação realista de cada um dos integrantes.
A disposição do cadáver, cujos olhos estão cobertos pela sombra da morte. Como se esse detalhe fosse de um simbolismo muito sutil, não hesitou em apelar para uma cor amarelada a fim de ressaltar o “rigor mortis”. Sobre o corpo, leves sombras sugerem os volumes das diferentes tintas, em claro contraste com a sombra mais intensa que cobre os olhos.
O preto das vestes e os pontos de luz em meio ao espaço sombrio conferem mais unidade à cena.
Com essa obra, o pintor teve uma motivação econômica social, como já se afirmou. Ao mesmo tempo, respondeu ao espírito de uma época e ajudou a aprofundá-lo e a difundi-lo.

 
Os protagonistas observam o que o doutor Tulp faz com o instrumento na mão direita. A cena se destaca, porém, pela postura do médico. Sua autoridade é imposta acima da dissecação em si. Sua mão esquerda sublinha a condições de maestro.

Em 1634, Rembrandt casou-se com Saskia van Uylenburgh e transformou-se em um homem rico e, como tal, foi alçado à condição de prestigiado membro da alta sociedade holandesa.
Não tardou para que seu nome repercutisse na corte de Haia, de onde recebeu diversas encomendas. Fosse por suas convicções ou por mera conveniência, o artista se negou a assumir uma religião, o que lhe permitiu pintar para diferentes igrejas reformistas, bem como para famílias católicas e judias.
Diversos pintores se inspiraram no tema da incredulidade de São Tomé e Rembrandt não podia permanecer indiferente.
Para as artes plásticas, a citação do evangelho é duplamente crucial: a visão, essencial para a existência da pintura, é posta em julgamento, já que questiona a subordinação da fé à faculdade da própria visão.

“A incredulidade de São Tomé”, 1634.


Nesse quadro, o caráter divino de Cristo é a luz que o ilumina e que ocupa o centro do conjunto. Jesus é parte de uma ronda, formada por todas as figuras: São Tomé e os demais apóstolos, o que gera um lento movimento, como uma dança.
No canto inferior direito, um apóstolo dorme, pretensamente alheio ao que ocorre, embora, no clima de sonolência, cabe imaginar que tudo o que ocorre pode estar contido em seus sonhos.
Sobre ele, outro apóstolo o contempla e une suas mãos, como se rezasse, talvez porque perceba a “humana santidade” de seus sonhos ou ambos não necessitem da visão para crer. Ao tornar o tema da fé terreno e cotidiano, Rembrandt sublinhou sua transcendência.
Em 1635, Rembrandt criou “Rembrandt e Saskia na cena do filho pródigo em uma taverna”. Atualmente alguns críticos tendem a intitular a obra como “O filho pródigo no prostíbulo” ou “Casal feliz”.
Esta obra foi considerada tradicionalmente um auto-retrato de Rembrandt com sua esposa Saskia nos primeiros tempos de conforto econômico e afinidade sentimental.

“O filho pródigo no prostíbulo” ou “Casal feliz”, 1635


Não resta dúvida de que se trata de Saskia sentada nos joelhos do marido em uma atitude que seguramente inquietou os holandeses mais puritanos.
Saskia usa um pesado vestido verde, enquanto Rembrandt ostenta um chapéu de pele com grande pluma branca, ao mesmo tempo em que, mantém erguida a taça de vinho. Em sua pose, o pintor parece desafiar o espectador com um brinde, enquanto ostenta sua “conquista”, à qual abraça com a mão esquerda.
Além do diversos conteúdos temáticos possíveis, esse quadro não apenas reflete um momento de indubitável felicidade do casal, como um momento bastante particular da sociedade holandesa.
É difícil, por exemplo, imaginar que um quadro similar fosse pintado na Espanha da Contra-Reforma, das qual os Países Baixos haviam se tornado independentes por volta da mesma época.
Cabe destacar que as igrejas integrantes da Reforma coincidiam em impedir a proliferação de imagens e ícones nos templos, que consideravam o ato uma forma de idolatria.
Essa convicção catalisou o rompimento entre a arte e a religião. Os artistas deveriam buscar novos temas, fosse na vida cotidiana, fosse na recriação de fatos históricos.
O ponto de vista do público também foi diversificado: os antigos compradores de obras de arte, que costumavam fazê-lo para efetuar doações à Igreja, passaram a adquirir objetos artísticos para decorar a própria residência ou os espaços públicos administrativos ou corporativos, antes um direito reservado aos nobres e agora também aos burgueses em ascensão, o que contribuiu para a inclusão dos temas cotidianos.
Rembrandt, que jamais pintou um quadro para igreja, é um exemplo dessa mentalidade.
O pintor recorreu a dezenas de quadros com temas do Antigo Testamento.
Em 1635, Rembrandt pintou “A festa de Baltasar”, baseando-se no Livro de Daniel (V, 1-9), da Bíblia, onde se encontra o seguinte relato:

O rei Belsazar (Baltasar) deu um grande banquete a mil dos seus senhores, e bebeu vinho na presença dos mil. [...] Então trouxeram os vasos de ouro, que foram tirados do templo da casa de Deus, que estava em Jerusalém, e beberam neles o rei, os seus príncipes, as suas mulheres e concubinas. Beberam o vinho, e deram louvores ao deuses de ouro, de prata, de bronze, de ferro, de madeira e de pedra. Na mesma hora apareceram uns dedos de mão de homem, e escreviam, defronte do castiçal, na caiadura da parede do palácio real; e o rei via a parte da mão que estava escrevendo. [...] Então o rei Baltasar perturbou-se muito, e mudou-se-lhe o semblante; e os seus senhores estavam sobressaltados”.

Este é o tema bíblico abordado nesse quadro.


“A festa de Baltasar”, 1635.


Esta obra destaca o mote dramático. Ou seja, não recria a história decorrida no século VI a.C. nem procura atingir um objetivo moralizante. Recorre à história, neste caso, um relato bíblico, para destacar o momento da ação. Rembrandt resgata da sequência episódica dos fatos o instante do estremecimento, quando a mão escreve na parede a mensagem fatídica: ”Mené, mené, tekel, upharsín” (Mené: contou Deus teu reino e o arrematou; Tekel: pesado foste em balança e foste considerado em falta; Upharsín: teu reino já foi destruído e será dado aos medes aos persas).
Novamente a cena se apresenta de forma dramática e cênica. O movimento dos integrantes provoca uma sensação espacial e temporal.
A luz emana da escritura, que Rembrandt reproduz com letras hebraicas desenhadas à perfeição. Na reprodução do texto, o pintor respeita a lenda: as palavras estão escritas no sentido vertical, o que torna sua leitura ainda mais indecifrável para os sábios babilônios convocados.
A mão que escreve o famoso “Mené, mené, tekel, upharsín” e a mão de Baltasar, para quem a mensagem é destinada, encontram-se espacialmente muito próximas, mas, ao mesmo tempo, tematicamente muito distantes. Esse contraste confere dinamismo: a mão que escreve se une ao foco de luz, que é a escritura; as mãos de Baltasar se ligam à instabilidade e aos comensais do banquete.
Como segundo foco situado na parte superior direita, o texto revela-se ao espectador até o ponto de impedir-lhe de reconhecer a parede e o espaço reproduzido na tela. Assim, a cena é privada de referências estabilizadoras.
O quadro é dominado por Baltasar, que se levanta de súbito e ergue o braço esquerdo para se proteger da luz, ao mesmo tempo em que tenta apoiar o corpo na mão direita. Um detalhe demonstra que não é capaz de se equilibrar: sua mão não se apóia na superfície da mesa, mas na tampa de uma bandeja, o que reforça a sensação de instabilidade.
Ao movimento do corpo deve-se destacar o giro da cabeça: se, como se supõe, até segundos antes se dirigia aos comensais, agora se volta para trás, com os olhos em direção do texto.
O impacto da escrita desata o dinamismo do quadro: para a direita, o impacto se torna físico, já que a mulher parece cair da cadeira, ao mesmo tempo em que derrama o líquido da taça. Enquanto os outros personagens são mostrados de perfil, ela é vista de cima: o olhar do espectador desliza pela nuca e pelo pescoço até o decote. Mediante uma perspectiva magistral, Rembrandt obteve um grande efeito de violência, conforme as melhores tradições do tenebrismo italiano.
Os olhos esbugalhados e os lábios marcadamente entreabertos descrevem o estado de espírito das principais figuras humanas atrás do rei. Ambos os corpos se aproximam, como se procurassem refúgio um no outro. As mãos da mulher se unem, a um passo da súplica. Ao inclinar-se para a esquerda, ambos sugerem a atitude de recuo.
Para a esquerda, entre as sombras, longe do foco da luz, chama a atenção um reflexo dourado que arremata a pluma de um chapéu e transfere o olhar para a menina que toca flauta, revelando a presença da música no banquete.
Em meio aos caos que impera na cena recriada, Rembrandt não se intimidou em mostrar com detalhismo extremo o manto do rei Baltasar. Onde o espectador põe os olhos, encontra no manto um elemento de ouro e prata e múltiplos adornos de pedraria minuciosamente pintados. A Rembrandt interessava destacar a opulência de Baltasar.
Desse modo, o pintor acentuava os conteúdos trágicos e a tensão do tema.
O ciclo dedicado às proezas de Sansão, reproduzido por diversos gravadores, ganhou espaço em toda a Europa. Da série que tem início com “Sansão recusado por seu sogro” até “As bodas de Sansão”, destaca-se “Sansão cegado pelos filisteus”, encomendado por Huygens. Ao finalizar essa obra, Rembrandt entregou-a com a seguinte anotação:

Senhor, pendurai esta pintura diante de uma luz bem forte, de modo que consiga ver a distância: apenas assim cobrará sua melhor forma”.

Rembrandt dando sequência á fama que adquirira de pintor narrativo, retratou diversas histórias de Sansão e Dalila.
Em “Sansão cegado pelos filisteus”, 1936, após Dalila cortar o cabelo de Sansão, acabando com sua invulnerabilidade, ele é exposto à violência dos filisteus para cegá-lo.
O pintor retratou um instantâneo de um momento e congelou a cena e através do jogo claro-escuro obteve uma sensação de tensão e suspense.

“Sansão cegado pelos filisteus”, 1936.


Rembrandt decidiu mudar seu ateliê para a região de Bloemgracht e, nesse período, sua produção artística extrapolou os temas bíblicos e incursionou para os mitológicos, entre as obras, destacam-se “O rapto de Ganimedes” e a célebre “Danae”.

“Danae”, 1636.


Esta obra foi objeto de diferentes reelaborações cerca de dez anos depois. Alguns críticos sustentam que o personagem não representa á mítica Danae, mas “Vênus esperando Marte”, “Raquel esperando Jacó” ou “Sara esperando Abraão”. Entre outras considerações, o episódio mitológico constitui um fato circunstancial e até secundário, porque o tema central é a nova visão do mundo feminino, expressada por uma nova linguagem plástica.
Na mitologia grega, Danae era filha de Acrísio, rei de Argos, e Eurídice, filha de Lacedemon. Decepcionado por não ter herdeiros varões, Acrísio pediu um oráculo para saber se teria um filho homem. O oráculo lhe disse que, mesmo no fim do mundo, seria assassinado pelo filho de Danae. Como ela ainda não tinha filhos, Acrísio prendeu-a em uma torre de bronze para que tudo continuasse como estava. Zeus, transformado em chuva de ouro, burlou o cárcere de Danae e a engravidou. Fruto dessa relação nasceu Perseu, outro herói mitológico. Em cumprimento do destino, Perseu matou Acrísio.
Danae foi uma personagem recriada por diversos pintores, de Ticiano a Poussin, todos em função de referências plásticas e conceituais distintas.
Rembrandt mostrou uma Danae que saúda alguém – seria Zeus?
O aceno direciona o olhar de Danae e da criada, que segura o cortinado.
Esse “alguém” não é mostrado, mas sugerido. Embora olhe e aceno em outra direção, Danae, ao mesmo tempo, gira seu corpo nu e de plena sensualidade para o espectador. Desse modo, Rembrandt uniu dois planos: o imaginário, do que se intui além da cortina, e o real, de quem observa a tela, ou seja, nós.
Desde a época de Pedro, o Grande, os czares demonstravam grande apreço pelas obras holandesas. É o que explica o fato de os museus russos conservarem “Danae” entre diversas outras obras de Rembrandt.
Em 1985, a tela foi danificada por um mitomaníaco que, em nome da moral, derramou um frasco de ácido sobre a obra e esfaqueou duas vezes. Imediatamente foi iniciado o processo de recuperação da tela, trabalho que se estendeu por muitos anos.
Entre 1640 e 1647, o processo criativo de Rembrandt se desenvolveu sob a influência das diversas tendências do barroco.
Em 1642, o artista pintou um de seus quadros mais famosos e que inscreveu seu nome na história como “A ronda noturna”, embora seu verdadeiro título seja “A companhia do capitão Banningh Cocq e do tenente Willem van Ruytenburch.”
A modificação do título é, pois bem ilustrativa do pendor narrativo da obra em detrimento do seu caráter original, um retrato coletivo. Aliás, o retratado parece ver o seu protagonismo ser dissolvido na pormenorizada narrativa da companhia que se põe em marcha, não obstante ocupar o primeiro plano da tela.
Porém são os pequenos detalhes das personagens secundárias que fornecem o fio narrativo da pintura e que ao observador se revelam como um momento de ação dinâmica: o momento em que uma companhia militar se prepara para iniciar a sua patrulha. Por outro lado a luz, incidindo em focos alternados e específicos, iluminando em clarões os principais pólos de ação cria quase que uma ambiência cinematográfica (incongruência temporal que afirma a modernidade do seu autor) que remete a ação para uma visão noturna, ainda que esta seja uma indução não um fato. Por outras palavras, Rembrandt manipula a luz de acordo com os seus propósitos ilustrativos e não como uma condicionante imposta pela natureza do retrato. A luz aqui, como em todo o trabalho de Rembrandt, é desprovida de caráter mimético, mesmo quando o autor aborda a paisagem. Pelo contrário, a luz é um instrumento de enfatização e de composição cênica, dando ou anulando o protagonismo a determinadas ações e personagens dotando a tela de um efeito dramático singular ao mesmo tempo em que, lhe confere uma dinâmica suplementar.
Mas se é a ação o cerne da pintura de Rembrandt, este não se irá confinar à mestria da sua execução. De fato, o objetivo subjacente ao gesto de Rembrandt visa o envolvimento do observador na obra que lhe é apresentada. Mais do que qualquer outro pintor, Rembrandt pinta para o observador e será este quem irá quem irá complementar a obra ao lhe conceder o significado final. É que o trabalho pictórico de Rembrandt só verdadeiramente se complementa quando o espectador se incorpora na ação e, assim, toma lugar diretamente no ato criativo de modo a finalizá-lo. Será este apelo à criatividade secundária que conduz toda a dinâmica pictórica do mestre holandês, tornando-o numa figura singular da pintura e um dos seus maiores expoentes, transversal ao tempo e às vanguardas que, de uma forma ou de outra, irão a ele beber um pouco da sua inspiração. É que a perfeição de Rembrandt não está na exatidão mimética da sua pincelada, nem no virtuosismo da descrição e execução de ambientes. Se não forem compreendidas e devidamente contextualizadas, muitos dos traços de Rembrandt poderão ser tidos como grosseiros ou, até, incompletos. A perfeição não é, pois um atributo inerente à obra produzida, mas fruto da sua complementaridade com o observador, já que é este último quem a acaba ao lhe fornecer o sentido final e aí observar todo o esplendor do ato criativo.

“A ronda noturna”, 1642


Rembrandt fez um excelente trabalho em seu quadro sobre a milícia de Amsterdã, além de ter produzido uma obra conforme seus pontos de vista, em vez do conjunto de retratos que lhe haviam sido encomendados. Realmente, esta obra, em qualquer sentido que possa ser valorizada, sobreviverá a quantas queiram competir com ela, porque está tão pictoricamente concebida, tão flamejantemente movimentada e tão poderosamente executada que todos os demais quadros presentes, então parecem ao seu lado cartas de baralho,” afirmou o pintor Samuel van Hoogstraten.

“A ronda noturna”, uma das mais famosas de Rembrandt, foi objeto de diversas modificações em função de diferentes alocações. Foi pintada sobre três faixas horizontais de tela para a corporação dos arcabuzeiros e destinada à grande sala do Kloveniersdoelen, o quartel-general da Guarda Cívica, situado na Nieuwe Doelenstraat, em Amsterdã. Suas dimensões originais eram 388 X 479 centímetros.
Em 1715, a obra foi transferida para a pequena sala do Tribunal Militar, no segundo andar do Nieuwe Stadhuis, atual Palácio Real. Para ser fixada em uma parede, a tela foi reduzida em cerca de, 29 centímetros no sentido vertical, sobretudo no flanco superior. Para isso, o arco do fundo precisou ser cortado.
Na parte inferior, o corte foi suficiente para eliminar a faixa de pavimento sob o pé do protagonista, que agora roça a borda da tela.
Mais 30 centímetros foram cortados à esquerda e outros 10, à direita.
Com a mutilação da tela, desapareceram do quadro original as figura de dois homens e de uma menina, pintadas por Rembrandt na porção esquerda, bem como parte da imagem do timbaleiro, no flanco direito. Graças a uma aquarela de 14,5 X 19 centímetros, pintada antes de 1665 em um álbum familiar do capitão Cornelis Bicker, marchand de Amsterdã pode-se ter um panorama completo do quadro original.
Pela realização da obra Rembrandt teria recebido uma quantia de 1,6 mil florins, conforme declaração feita pelo comerciante de tecidos Jan Pietersen Bronchorstum, um dos retratados na tela. A quantia foi reunida com aportes individuais de dezoito dos personagens do quadro. Um a um, eles teriam visitado o ateliê do pintor para serem retratados. Posteriormente, Rembrandt organizou a montagem da obra.
As demais figuras, como as crianças, foram adicionadas pelo pintor sem recompensa financeira. Cabe ressaltar que Rembrandt está auto-retratado. Foram criados elementos pelo pintor para preencher os espaços vazios e complementares a composição geral.
Enigmáticas são as figuras infantis ao centro, já que receberam tratamento especial quanto à luz. A menina em primeiro plano carrega pendurado do cinto, um galo, o que estimulou, ao longo do tempo, toda sorte de interpretações fantásticas.
Em princípio, embora seja uma criança, seu rosto tem traços adultos. Percebe-se que os pés foram trabalhados em minúcia. Os críticos costumam interpretar que se trata do emblema de uma antiga sociedade de tiro de Amsterdã: a dos Kloveniers. “Kloven” significa “culatra de espingarda”, mas provém de “Klauw”, que significa “garra.”
Do mesmo modo, o menino que corre, à esquerda, porta um cartucho de pólvora, o que também é difícil de explicar.
Há interpretações de que a menina, com luz sobrenatural e que apresenta claramente os traços da sua esposa falecida na mesma época, seja uma homenagem.
A cena se passa durante o dia, no dramático momento em que o grande capitão no centro dá a milícia, ordem de se pôr em marcha.
De fato, o quadro representa mais um desfile festivo da milícia que uma ronda de guarda formal. Por isso, em um dinâmico movimento geral, 28 adultos, duas crianças e um cachorro se movem desordenadamente, gerando no espectador uma sensação de confusa vivacidade.
“A ronda da Noite” é o título tradicional e não pedante (adquirido no séc. XIX, quando o quadro foi coberto de verniz marrom) que seria mantido. A representação de grupo cívico foi o principal tipo de encomendas públicas aberto aos artistas holandeses do séc. XVII.
As pulsantes mudanças de luz e cor a aguda evidência retratista de todos os personagens e o pleno domínio da composição conferem à obra um caráter excepcional.
As figuras finamente trajadas e dramaticamente iluminadas, com tambores rufando e estandarte desfraldado, estão formadas num padrão de complexidade barroca, seus líderes “caminhando para fora” do quadro na direção do espectador.
Rembrandt não adotou o clichê de fileiras ordenadas, mas, sim, captou um momento de ação coletiva, dando uma sensação de atividade febril por meio dos recursos barrocos de luz, movimento e pose.
O capitão e o tenente estão prestes a dar um passo para entrar no espaço do espectador, enquanto os contrastes entre focos de luz e fundo escuro, obrigam um olhar em ziguezague pela tela.
As linhas diagonais cruzadas de lanças, mosquetes, bandeiras, tambor e pessoas fazem á cena parecer desordenada. Mas, como convergem em ângulos retos, os elementos são parte de um padrão geométrico oculto que os mantém unidos. A harmonia de cores no uniforme do tenente e no vestido da menina, o vermelho da faixa e do uniforme do mosqueteiro também dão unidade ao quadro.
Por trás do homem que ergue o estandarte, em terceiro ou quarto plano, mal visível, observa-se a presença de um homem de baixa estatura, cuja boina lhe cobre um olho e grande parte da testa, não há dúvida de que se trata de Rembrandt.
A milícia retratada era constituída por bravos burgueses de Amsterdã. Nela imperava a vontade, mas não a disciplina. As lanças se entrecruzam sem ordem. Chama a atenção esta longa haste em diagonal que cumpre a função visual de conduzir o olhar do espectador para o centro e para fora da cena.
Rembrandt desenvolveu ao máximo o sentido barroco do movimento e do claro-escuro, “o movimento maior e natural”, conforme suas palavras, como se observa em obras como “Sagrada Família” e “A descida da cruz”.

“Sagrada Família”, 1645.


São variados os quadros de Rembrandt dedicados ao tema da Sagrada Família.
A presente obra é conhecida sob diferentes títulos, como “Sagrada Família com anjos” ou “Sagrada Família na carpintaria”. Sem dúvida, este tema bíblico inspirou no pintor um destacado espírito poético, além de um acentuado humanismo.
Não fosse pela presença dos anjos e pela leve idealização observada no rosto da Virgem Maria, o quadro teria poucos elementos que distinguiriam a cena bíblica de uma proposta eminentemente cotidiana.
A aparição dos anjos juntos à janela, a partir do canto superior esquerdo, marca o local de procedência da luz. Efetivamente, nota-se José absorto em seu trabalho de carpinteiro. A seu redor estão dispostas as ferramentas que habitualmente utiliza. Rembrandt, porém, encarrega-se d mostrar que nem por isso José está desconectado do que ocorre às suas costas; enquanto sua esposa, sentada junto ao fogo, distrai-se da leitura do livro para assistir seu filho, que dorme no berço.
Efetivamente, na mesma altura encontram-se os anjos que adentram a moradia: juntos, ocupam a metade superior da tela.
O quadro se apresenta como um espetáculo de humilde intimidade. Apesar de a tela estar envolta em um halo de mistério, a pintura demonstra a maestria de Rembrandt para elevar o cotidiano à categoria de uma experiência sobrenatural e divina. A estrutura subjacente da composição se revela como um brilhante estudo elaborado previamente, no qual já haviam sido calculados o efeito da luz, as linhas, os volumes e o dinamismo. O pintor delineou as figuras e, em um cálculo certeiro de profundidade, estabeleceu com precisão sua localização em quatro planos inconfundíveis: o Menino, a Virgem, os anjos e, ao fundo, José.
Na sequência de seu plano, esboçado em diferentes desenhos conservados até hoje, Rembrandt apresentou o interior da carpintaria com um jogo mágico de luzes e sombras, sem se esquecer de detalhes tão reais como o berço e o fogo. Curiosamente, Rembrandt se valeu do estrito realismo para acentuar a atmosfera dominante de elevada espiritualidade.
As pinceladas foram traçadas de modo a transmitir a cor, a forma e a textura do tom dominante. As cores: vermelho, verde, dourado e ocre atuam em perfeita harmonia, apesar da grande variedade e riqueza de múltiplos matizes.
Em sua fase de grande produtividade, Rembrandt também pintou outras obras-primas, como “A visitação” e “A reconciliação entre Davi e Absalom.”
Com a morte de sua esposa em 1642, Rembrandt revelou um estilo mais complexo. Com o desenvolvimento de um cromatismo bastante rico, obteve esfumados inovadores, que emanavam reflexos quase mágicos.
A aparência era terrosa, preparada sobre a base de um ocre aglutinado com resina de cola animal. Era a adaptação pessoal de uma fórmula aplicada por Ticiano, que, plasticamente, se traduzia em uma evolução sutil dos tons escuros para os mais claros.
Rembrandt praticamente deixou de fazer esboços e desenhos prévios e passou a pintar diretamente com a cor. O artista marcava o perfil das figuras com contornos contrastados a partir dos efeitos luminosos de determinados objetos, em especial de certas jóias e enfeites metálicos.
O resultado era uma constelação de pontos de luz que, conforme o ponto de vista do observador; traduziam uma sensação de movimento. Dois exemplos da aplicação da técnica podem ser contemplados em “Aristóteles e o busto de Homero”, 1653 e “A conspiração dos batavos”, 1661.

“Aristóteles e o busto de Homero”, 1653


A figura humana adquiriu nessa fase artística um valo especial, como ocorreu com os diversos auto-retratos da época. A vontade de se aprofundar na alma humana é nítida nos retratos ”Nicolaes Bruyningh”, 1652 e “Jan Six”, 1654, em “Dama com leque de plumas de avestruz”, “Homem com uma lente na mão” e “Dama com um cravo na mão”, os três últimos de 1668.

“Jan Six”, 1654


Este exemplo do estilo de Rembrandt data da parte final de sua carreira, quando ele já deixara de modelar as formas, traçando os seus contornos e passara a usar manchas e chapadas irregulares de tinta para fixar as posições de formas e indicar a direção de suas linhas de força.
Os retratos coletivos, como “Os síndicos do grêmio de tecidos”, 1662, transformaram-se em um exercício de composição e em um verdadeiro estudo do caráter dos personagens, para que nenhum deles perdesse a individualidade eram habilmente dispostos, mantendo ao mesmo tempo, a harmonia do conjunto.

“Os síndicos do grêmio de tecidos”, 1662


Esta tela resultou da encomenda da corporação dos fabricantes de tecidos de Amsterdã e foi feita sobre a base de retratos individuais prévios.
A luz incide nos rostos e nas mãos e organiza o movimento em relação às linhas retas da mesa e da parede do fundo.
No conjunto figuram personalidades que ostentavam na época os cargos do grêmio. Sua função consistia em exercer o controle dos tecidos e a análise das amostras. Seus cargos são indicados por diversos elementos: o livro aberto sobre o qual Willem van Doeyenburg apóia sua mão como se prestasse explicação e no qual o personagem sentado a sua direita parece marcar a página; a bolsa de dinheiro do tesoureiro, à direita do quadro, e o livro de anotações com o qual Volckert Jansz, meio levantado, se apóia sobre a mesa. O administrador Frans Hendrickert Bel está em pé, ao fundo do quadro, com a cabeça descoberta.
O realismo das obras da última fase de Rembrandt mostra o uso do claro-escuro, efeito que marca a atmosfera predominante.
Nota-se em seu trabalho maior grau de misticismo e um apurado sentimento de solidão, especialmente em suas pinturas religiosas. É o caso de “Cristo em Emaús” e “Cabeça de Cristo” e em suas pinturas de temática bíblica, como “Jacó abençoa os filhos de José”, “Saul e Davi” e, em especial, o sublime “Bathsheba banhando-se e segurando a carta do rei Davi.”

“Bathsheba banhando-se e segurando a carta do rei Davi”, 1654


Bathsheba, em hebraico, quer dizer “a sétima filha” ou “a filha do juramento”. De acordo com o Antigo Testamento, Bathsheba, esposa de Urias, guerreiro a serviço do rei Davi, cometeu adultério com o próprio Davi. Da união de ambos nasceu o rei Salomão, símbolo de poesia e da sabedoria por excelência.
A associação entre pecado e virtude constituiu uma antecipação do tratamento do adultério feito por Cristo no Evangelho de João (VIII, I-II), cabe lembrar que Jesus reivindicava pertencer à linhagem do rei Davi. No Evangelho de Mateus (I,6), a “adúltera” Bathsheba figura expressamente como ancestral de Cristo: “E Jessé gerou o rei Davi; e o rei Davi gerou Salomão da que foi mulher de Urias”. Essa história é narrada no segundo livro de Samuel (XI, I a XII, 25).
A Bíblia diz que a corrente subsequente de intrigas, assassinatos e lutas internas que fizeram parte da vida posterior de Davi foi um castigo divino pelo crime cometido contra Urias.
Curiosamente, em uma história tão repleta de conflitos e paixões, Rembrandt optou por um momento de reflexão, em meio a todas as possibilidades de ocorrências desse episódio.
A luz ressalta a beleza de Bathsheba e seu rosto demonstra dúvida.
A falta de comunicação com a criada, escondida nas sombras, dá ênfase ao silêncio e sublinha sua concentração, gerando um clima de sensualidade, bondade e tristeza.
A coloração dourada da cena foi influenciada pelas pinturas venezianas de Ticiano e Verenose e na beleza de Bathsheba, pode-se reconhecer os traços de Hendrickje. Uma das obras mais célebre de Rembrandt que revela a maestria pictórica do artista no tratamento da luz.
Nessa época, Rembrandt envolveu-se com vários problemas judiciais e dívidas. A evolução estilística do pintor tornou suas obras menos competitivas no mercado das artes plásticas. Em 1656, a alta instância judicial designou ao síndico de massa falida para proceder à liquidação dos bens do artista.
Primeiro, foram vendidos todos os seus quadros, entre eles cerca de 70 de sua autoria, além de objetos de arte de sua coleção particular. Em seguida, foram leiloadas a casa, a mobília e as demais utilidades domésticas. Até as paletas e os pincéis constavam da lista. Por fim, foram vendidos desenhos e gravuras.
Rembrandt tornou-se empregado do próprio filho e de sua criada e amante. Três dias após, Rembrandt se instalou, junto com Hendrickje, Titus e a pequena Cornélia, em uma modesta moradia no popular bairro de Jordaan, na parte velha da cidade.
Na mesma época, Rembrandt teve dois quadros devolvidos: “Homero” e “Juno”, argumentaram que as obras não cumpriam os requisitos da encomenda.

 “Homero”, 1661
 
 
“Juno”, 1664-65


Em 1668, Rembrandt pintou dois auto-retratos: em um deles, mostrou-se senil e derrotado; no outro, seu sorriso aparentava sarcasmo, como se o artista fixasse o olhar no mundo que primeiro o enalteceu e que, naquele momento, o deixava cair na miséria.

 

“Auto-retrato com as mãos juntas”, 1669



Este é o último auto-retrato realizado por Rembrandt. Não se sabe o significado do gesto das mãos: se de quem vai orar ou de quem terminou sua tarefa. Embora seja difícil verificar ideias que não foram expressas por meio de palavras, nem sequer por correspondências, mas apenas pela pintura, tudo leva a crer que Rembrandt, filho de seu país e de sua época, nutria mais esperança no trabalho do que na oração.
Seja como for, as mãos unidas constituem um detalhe significativo do auto-retrato, uma vez que o próprio Rembrandt o decidiu destacar no título.
Curiosamente, as formas em geral são imprecisas e estão mescladas com o fundo. As vestimentas escuras ajudam a obter tal efeito: a figura humana mal se deixa entrever. Apenas reflexos mínimos sugerem a gola do casaco e um botão.
Efetivamente, as sombras predominam em todo o quadro. Somente uma luz crepuscular ilumina o rosto e, de maneira exígua, quase por um resplendor longínquo, as mãos.
Significativamente, as mesmas mãos estão alheias a qualquer contorno. Em uma genial antecipação da plástica posterior, inclusive “vanguardista”, não se distinguem os dedos, como se o auto-retrato desejasse transcender abertamente o figurativo.
Destaca-se a faixa branca que surge por baixo do estranho barrete e gera um efeito que ajuda a emoldurar o rosto. Se o observador se fixar na parte superior da face, descobrirá um olhar de profunda tristeza. Ao contrário, se cobrir a parte superior, verá como nos lábios se percebe um leve sorriso.
Sem dúvida e talvez inevitavelmente, por ser o último auto-retrato do artista, é de se imaginar que as mãos unidas não apenas simbolizem o trabalho consumado, mas a consumação da própria vida.
Rembrandt morreu poucos meses depois de realizar essa obra.
Após ter sido reconhecido por seus contemporâneos como o grande pintor de Amsterdã, de ter ascendido socialmente e de conhecer o sucesso financeiro e a glória, Rembrandt se encontrava mergulhado na miséria. Sem refúgio para tantos infortúnios, apenas a morte libertaria Rembrandt.
Sua morte passou despercebida por quase todos.      

Em 4 de outubro de 1669, o pintor morreu.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

ANDREA DEL VERROCCHIO (1435-1488) E A ESCULTURA DO RENASCIMENTO


Andrea di Francesco di Cione, conhecido como Andrea del Verrocchio, nasceu em Florença e de inicio foi aprendiz do ourives Giuliano Verrocchi, cujo nome, ao que parece, adotou.

Trabalhou por muito tempo como ourives, o que resultou em sua inclinação pela escultura. Observando algumas de suas obras, notam-se detalhes decorados que lembram as minúcias do trabalho de um ourives.
Na corte de Lorenzo de Médici e foi considerado um dos pintores florentino italiano que mais esteve ativo durante a Renascença.


Entre seus alunos incluem-se Leonardo da Vinci, Sandro Botticelli, Perugino e Ghirlandaio. Também influenciou Michelangelo e foi um escultor de primeira grandeza. Não se sabe se foi aprendiz de Donatello. Suas primeiras pinturas são de 1460, quando trabalhava com Filippo Lippi.

Entre suas características primordiais: buscava representar o homem tal como ele é na realidade, mantendo a sua relação com a realidade, com profundidade e perspectiva.
Com a morte de Donatello, em 1466, Verrocchio tornou-se o artista favorito dos Medici, para cujas recepções e festividades, o artista concebeu vários estandartes e outros elementos decorativos.
Sua primeira obra de porte foi o suntuoso sepulcro de Pedro e João de Medici, na igreja de San Lorenzo em Florença, concluído em 1472 e notável pelo uso de mármore e pórfiro coloridos em associação com ornatos de bronze.
Em 1474 e 1475, pintou “O Batismo de Cristo”, agora na Galeria Uffizi, em Florença.

“Batismo de Jesus Cristo”


Escultor por temperamento, Verrocchio não se interessou profundamente por pintura e em geral, deixava que seus quadros fossem terminados por discípulos, segundo a compreensão pessoal deles. Mesmo quando pintava, Verrochio almejava obter resultados de movimento como na escultura através de marcações incisivas e da linha enérgica.
O artista utilizava-se de efeitos de forma viva e vibrante mediante soluções de claro-escuro, como se pode observar na barriga de Cristo parecendo ser de carne e os cabelos e a barba, sem contornos, confundindo-se com a sombra, trazendo para a arte a natureza.
Há controvérsias sobre essa obra, no entanto, é seguramente de Verrocchio, principalmente, na imagem do Batista, o anjo voltado para frente e a parte mais próxima da paisagem.
O anjo da esquerda, ao contrário, é certamente obra de Leonardo jovem, que com toda probabilidade pintou Jesus e criou a paisagem do fundo, requintadamente pictórica e com todas as pesquisas naturalistas que caracterizam o artista.
É importante observar a barriga de Cristo parecendo ser de carne e os cabelos e a barba, sem contornos, confundindo-se com a sombra, trazendo para a arte a natureza. Segundo Giorgio Vasari, Andrea decidiu então nunca mais pintar, pois Leonardo tinha o ultrapassado em técnica e genialidade.
Em 1475, Verrocchio começou a se dedicar quase inteiramente à escultura e consagrou-se com o juvenil "David" do Bargello em Florença, anterior a 1476.

“David”






O “Davi” de Verrocchio mede 1,26 m, constituída em bronze e retrata um adolescente ágil e elegante, em sua túnica enfeitada, cujos detalhes lembram o trabalho de ourives.

A escultura representa a personagem bíblica Davi, que venceu o gigante Golias, poderoso soldado de um exército inimigo do povo de Israel e, inevitavelmente, remete ao “Davi” de Michelangelo.
Em 1478, Verrocchio começou seu trabalho mais importante, uma estátua equestre de Bartolomeo Colleoni, que tinha morrido três anos antes. O trabalho foi encomendado pela República de Veneza. Era a primeira tentativa de produzir uma estátua com uma das pernas do cavalo não tocando o chão.


A estátua é também notável pela expressão firme de comando no rosto de Colleoni, em Veneza.

Verrocchio enviou para seus clientes um modelo de cera em 1480 em 1488, ele finalmente mudou-se para Veneza para ajudar na fundição da estátua. Contudo, ele morreu antes de terminar o trabalho. A obra foi fundida pelo escultor veneziano Alessandro Leopardi e inaugurada em 1496.
Em Florença, sua obra em bronze mais importante é talvez "Cristo e São Tomás" (1467-1483), na fachada do Or San Michele.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

FAUVISMO E AS "FERAS" DA COR


Como afirma Matisse a respeito de "A Dança" (1910):

"Para o céu um belo azul, o mais azul dos azuis, e o mesmo vale para o verde da terra, para o vermelhão vibrante dos corpos".



I – INTRODUÇÃO:


Desde os anos setenta do século XIX, a cor passa a ser vista como um meio de expressão íntimo; disposta a levantar-se com claros ânimos de protagonismo e subversão aos outros valores da pintura acreditados anteriormente.
A excludente qualificação cromática do Impressionismo foi o decisivo primeiro passo para a substantivação da cor e, produziu um revelador escândalo, em 1874; alterando e agredindo a rotina visual artística.
Sem dúvida que por seu modo de exercer a cor, os quatro grandes pintores do Pós-Impressionismo: Cézanne, Gauguin, Van Gogh e Toulouse-Lautrec tiveram que mover-se de forma rebelde. Embora já com alguma compreensão, a arte dos Nabis teve que ser e estar dentro de um evidente grau de alienação por causa da sua potenciada sensitividade colorista, ainda à margem do sócio-culturalmente consagrado e aplaudido pelos demais.
Trinta e cinco anos de intensificações cromáticas a contar desde 1874 não eram ainda bastantes, em 1905, para dar por vencidos os hábitos visuais e artísticos, contraídos ao longo de um século, o século XIX, no qual a arte esteve tanto perante os olhos das pessoas e a imensa maioria do que foi pintado foi feito nada mais que para agradar nobres pardos. Nem tão sequer Paris naquela época, encontrava-se em condições de aceitar completa e prazerosamente os avanços inovadores das cada vez mais atrevidas empresas coloristas.
Não devemos esquecer, estas eram insólitas para o olho e seus costumes, e o que se dá em chamar “a toda Paris”, símbolo inquestionável da universidade cultural da França, era muito conservadora, acadêmica e intelectualmente burguesa.
Diante dos salões oficiais de Paris, as inovações artísticas eram rejeitadas prontamente. Assim, em 1884, se criaria o Salão dos Independentes, organizado na primavera e em 1903, o Salão de Outono.
Dois anos depois de seu nascimento, na data historicamente de 1905, durante a celebração deste último, expõe em uma de suas salas, um grupo de pintores liderados por Matisse que tem como eixo comum a exploração das amplas possibilidades colocadas pela utilização da cor; rodeando por acasos da instalação um par de esculturas de corte florentina, em certo modo neoquatrocentista.

A Sala 7 foi á escolhida para a aberração pictórica, a loucura das cores e as fantasias difíceis de explicar.”

À vista dos quadros lá expostos, a crítica se encrespa, não somente o público ingênuo, espectador trivial. Camille Mauclair clama sentindo aquilo como um insulto, como “uma lata de pintura arrojada à cara das pessoas”.
Ao mais avançado Gustave Geffroy lhe parece não mais que excentricidade de tinta em cor. Quem sem demorar também satiriza e batizaria o Cubismo, Louis Vauxcelles, publicaria no “Gil Blas” de 17 de outubro, um artigo no qual, referindo-se a uma das citadas esculturas, diria que lhe parecia “um Donatello rodeado de feras”, de fauves. Como já tinha acontecido com o pejorativo batismo do Impressionismo, o epíteto de Fauves teve sucesso, se generalizou rapidamente entre a multidão dos inimigos de quaisquer inovações.
Os próprios artistas o tomaram com o melhor dos humores, talvez porque lhes agradava a ideia de que lhes considerassem “feras”; ao ser esta qualificação não tão pejorativa para eles e até mesmo lisonjeira.
Entre obras de Derain, Vlaminck, Manguin, Camoin, Marquet e Van Dongen, sobressaíam os quadros de Matisse.
A partir daí, o nome deste artista ficou associado com o Fauvismo, um dos movimentos plásticos de vanguarda que mais ricamente incidiu na arte do século XX.
Os “fauves” nunca discutiram a sátira imposta por Vauxcelles. Porém, o caso é que muito provavelmente, aos franceses seja o que literalmente significa. E, sempre em francês, passou à História e se universalizou sem que ninguém o traduza ao idioma em que fala ou escreve; de modo que, concretamente em português, tendo em mente o significado de Matisse e a maioria de seus colegas do Fauvismo, se rejeita e evita com toda espontaneidade falar de “feras”, fauves, e “ferismo”, fauvisme, sem que isso tenha nada de estranho e arbitrário.
Os críticos acreditaram que estavam diante de um fato inédito. Porém, a “fera” que acabara de despertar naquele Salão de Outono vinha rugindo há tempos contra o realismo herdado do Neoclassicismo e do Romantismo. Por sua vez, Delacroix, Cézanne, Gauguin e Van Gogh não se dispuseram a servir a nada mais do que à pintura.
Matisse e seus amigos da Sala 7 também não.


Para mim, o tema de um quadro e o fundo dele tem o mesmo valor ou, para ser mais claro, nenhum ponto é mais importante que outro. O que vale é a composição, o padrão geral. Um quadro é feito pela combinação de superfícies diferentemente coloridas”, registrou Matisse no final de 1905.


Aprofundar-se cada vez mais nessa afirmação seria a constante busca de Matisse.
Não teve nada de feroz o Fauvismo francês comparecido publicamente no parisiense Salão de Outono de 1905.
Os ferozes seriam os do segundo, talvez terceiro, embate Expressionista que, da Alemanha, no mesmo ano de 1905, sincronizam á perfeição com os Fauvistas franceses para proporcionar ambos primeiros movimentos inovadores.
Não se demoraria em encontrar por outras partes, tantas maravilhas como a da arte do fauve Matisse, colorista ao extremo, porém não colorista selvagem.

II – CARACTERÍSTICAS:

Quatro diferentes procedências tiveram os primeiros e na verdade caracterizados fauvistas.
Um grupo se formou no ateliê regido na Escola de Belas Artes pelo simbolista Moreau; outro proveio da academia livre atendida por Carriére; um terceiro, bem curto, foi em um princípio residente em Chatou; sendo o último a chegar o procedente do paisagismo de Le Havre.
No de Moreau se encontraram Matisse, Marquet, Rouault, Camoin e Manguin, recebendo um ensino demasiado liberal, nada escolástico, atento ao desenvolvimento de cada temperamento individual.
Moreau dizia a seus discípulos que ele era a ponte sobre a que alguns deles teriam de passar; isto é, graças ao qual iriam além dele. Já no ateliê de Gustave Moreau, Matisse manifesta certa preponderância sobre seus condiscípulos, pela força de sua personalidade e predestinado como estava a ser a figura mais relevante do Fauvismo, pintor estelar da pintura francesa do século XX.
Em 1898 falece Moreau e o sucede outro professor, Cormon, de caráter diametralmente oposto, dispersando aqueles jovens que, por instinto, o ambiente avançado e o magistério de Moreau, procuravam desejosos novas formas de dicção.
Assim, enquanto em um espontâneo paralelo se formavam com muito parecidos empenhos outros artistas, Marquet, Manguin, Camoin e Puy.
Com o tempo, Derain e Vlaminck compartilham um mesmo ateliê em Chatou; e Friesz e Braque trabalham em Le Havre.
De qualquer maneira, ainda coincidentes os artistas entre si, o Fauvismo não foi uma estética laminadora da personalidade agregante. Pelo contrário, pode-se dizer que seus princípios eram mínimos e, com certeza, nada dogmáticos ou rígidos.
Estribava sua medula conceitual básica na acentuação da cor certo aproveitamento do sintetismo gauguiniano e a pronta inclinação a um contornismo “cloisonnisme”, ainda mais sintetizado que o predicado por Gauguin, disposto de modo que pareça sem habilidade, pela consciente despreocupação por qualquer propósito de desenho minimamente cuidadoso.
Não se tratava mais que de um tratamento decidido e colorista do visível, as figuras humanas, os interiores e a paisagem a que, em particular, se sentiram muito afeiçoados. Em alguns casos, com ainda perceptíveis reminiscências do Impressionismo; em outros, de maior estirpe Pós-Impressionista e, por último, também com um manchismo rápido e alterador da forma. Com tão nula base teórica, os fauvistas foram do princípio ao fim de sua atividade facilmente diferenciáveis, bem livres de desenvolver sem sérias travas seus respectivos temperamento e visão.
Os Vlaminck e Derain de primeira época, de tempos essencialmente fauvistas, dados a intensificar vermelhos, azuis, verdes e amarelos. Sendo Marquet, por exemplo, mais ponderado de paleta; e mais verista, também; dado que até certo ponto, o Verismo cabia dentro da ferocidade que pejorativamente se atribuiu ao Fauvismo.
Os salões dos Independentes e de Outubro, de Paris e 1906, foram à pronta afirmação do Fauvismo.
Nesse ano se encontra junto ao grupo fauvista francês o holandês Kees Van Dongen, mais tenso de expressão e Die Brücke que se ativa na Alemanha.
Em 1907, o Fauvismo começa a eclipsar-se sob as ousadias do Cubismo, mas todos os componentes da tendência e muito em particular Matisse, veriam como se consagraria e acoplaria seu achado durante não poucos anos do século XX; embora, alguns de seus realizadores encontrariam outro modo pessoal e não intensamente colorista, de expressar-se.
Segundo Henry Matisse em "Notes d'un Peintre" pretendia-se com o Fauvismo:

"Uma arte do equilíbrio, da pureza e da serenidade, destituída de temas perturbadores ou deprimentes".

O Fauvismo é a arte avançada mais em breve assimilada, degustada e colecionada; inclusive os mais conservadores. Domina nela algo em extremo francês: o hedonismo.
Tende a ser agradável; elimina qualquer mínima possibilidade de dramatização do visível; desenvolve-se em grandes manchas de cor que delimitam planos, onde a ilusão da terceira dimensão se perde; a cor aparece pura, sem sombreados, fazendo salientar os contrastes, com pinceladas diretas e emotivas; autonomiza-se do real, pois a arte deve refletir a verdade inerente; a linguagem é plana; as cores são alegres, vivas e brilhantes, perfeitamente harmonizadas, não simulando profundidade, em total respeito pela bidimensionalidade da tela; a temática não é relevante, não tendo qualquer conotação social, política ou outra.
A liberdade com que usam tons puros, nunca mesclados, manipulando-os arbitrariamente, longe de preocupações com verossimilhança, dá origem a superfícies planas, sem claros-escuros ilusionistas. As pincelas nítidas constroem espaços que são, antes de mais nada, zonas lisas, iluminadas pelos vermelhos, azuis e alaranjados e as linhas e as cores devem nascer impulsivamente e traduzir as sensações elementares, no mesmo estado de graça das crianças e dos selvagens.