terça-feira, 10 de junho de 2025

“PROSAS SEGUIDAS DE ODES MÍNIMAS”, de José Paulo Paes

 


Publicado em 1992, “Prosas seguidas de odes mínimas”, de José Paulo Paes, pertence ao 3º Tempo Modernista e é composto de duas partes contendo vinte textos em prosa poética e treze odes curtas (à exceção "A minha Perna").

O autor recorre nos títulos de poemas a uma nomenclatura da lírica tradicional: canção, noturno, balada, ode, e abordam aspectos memorialísticos, literários, existenciais e sociais, e têm a presença constante da esposa do autor, Dora.

A obra começa falando de morte e termina falando em nascimento, mostrando, ao que parece ser, uma experiência de separação.
O livro é uma mistura de temas que vão do lirismo à crítica política e fazem com que o leitor tenha uma ideia geral da obra. Por esses motivos é um dos livros mais completos. O autor repassa por toda sua trajetória e é como se tivesse a preocupação de lapidar novamente toda sua forma e estilo.

Em “Escolha de túmulo”, coloca o pós-morte como uma nova vida, um novo voo. Faz mais uma nova leitura em “Canção de exílio” do poema de Gonçalves Dias. Existe a presença da figura de seu pai no poema “Um retrato”, uma homenagem que também contém a morte como tema de reflexão. Esse mesmo tema encontra-se embutido no poema “Reencontro”, onde o autor se encontra em sonho com o teatrólogo Osman Lins, falecido anos atrás. O crédito de maior destaque pode ser dado ao poema: “À minha perna esquerda”. Trata-se de uma sequência de poemetos de características epigramáticas, num total de sete, onde conta sobre si mesmo de maneira tétrica e sarcástica sobre a perda de sua perna esquerda. É forte a intenção interpretativa que se embute no inevitável sacrifício. Nos poemas finais, tece uma quase crônica dos detalhes, sintetiza no cotidiano de objetos e lugares sua poética de forma condensada e rebuscada para dentro de si mesmo.

Contém nesta coletânea: “Escolha de túmulo”, “Noturno”, “Canção de exílio”, “Um retrato”, “Outro retrato”, “A casa”, “Iniciação”, “Nana para Glaura”, “Balancete”, “Reencontro”, “Balada do Belas-Artes”, “À minha perna esquerda”, “À bengala”, “Aos óculos”, “À tinta de escrever”, “Ao shopping center”, “Ao espelho”, “Ao alfinete” e “A um recém-nascido”.

É uma obra de caráter extremamente conciso, que remonta em alguns aspectos à literatura de Oswald de Andrade, como a paródia, o trocadilho, o humor, a poesia sintética, o espírito satírico. No entanto, o poeta não se aproxima apenas de Oswald de Andrade. Sente-se nele uma familiaridade com Drummond, principalmente no aspecto gauche de alguns poemas. Basta ler o texto "Canção do adolescente" transcrito abaixo:

Se mais bem olhardes
notareis que as rugas
umas são postiças
outras literárias.
Notareis ainda
o que mais escondo:
a descontinuidade
do meu corpo híbrido.
Quando corto a rua
para me ocultar
as mulheres riem
(sempre tão agudas!)
do meu corpo.
Que força macabra
misturou pedaços
de criança e homem
para me criar?
Se quereis salvar-me
desta anatomia,
batizai-me depressa
com as inefáveis
as assustadoras
águas do mundo.

Neste poema o eu-lírico se descreve como uma junção um tanto desajeitada do adolescente com o amadurecido, criando um híbrido dotado de uma anatomia que inspira compaixão ou riso. Mas o tom drummondiano também é percebido pelo cansaço com que enxerga a geração humana. E, assim como Drummond, o desencanto com a espécie humana não é suficiente para anular de maneira niilista o desejo por viver. É o que se vê abaixo, em “Mundo Novo”.

Como estás vendo, não valeu a pena tanto esforço:
a urgência na construção da Arca
o rigor na escolha dos sobreviventes
a monotonia da vida a bordo desde os primeiros dias
a carestia aceita com resmungos nos últimos dias
os olhos cansados de buscar um sol continuamente adiado.
E no entanto sabias de antemão que seria assim.
Sabias que a pomba iria trazer não um ramo de oliva mas de espinheiro.
Sabias e não disseste nada a nós, teus tripulantes,
que ora vês lavrando com as mesmas enxadas de Caim e Abel a terra mal enxuta do Dilúvio.
Aliás, se nos dissesses, nós não te acreditaríamos.

Veja que se assume o tom de “no entanto, prosseguimos animadamente vivendo” de algumas peças preciosas do Rosa do Povo, de Drummond, pois ocorre também a defesa da existência.

Além de vincular-se a Drummond, José Paulo Paes apresenta a mesma afetividade com que Bandeira recupera, por meio da memória, personagens do seu círculo familiar, principalmente as que povoaram sua infância. É o que pode ser visto, entre tantos exemplos, no texto abaixo, que resume as características das várias personagens descritas na obra, em poemas individualizados.

A CASA

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.

É interessante perceber que o estilo abreviado adotado pelo autor acaba por tornar todo o poema densamente carregado de significado. Tudo contribui para o sentido geral do texto. Basta notar as referências, explícitas ou implícitas, à ideia de morte em quase todas as personagens: “avisos fúnebres”, “romances policiais”, “caixão”, “mortalhas”, “outro mundo”, “morreu”. Olhar para o passado e relembrar figuras que não existem mais é ter consciência da passagem do tempo, o que implica a noção de envelhecimento e morte.

Outro aspecto importante e que constitui uma pista interpretativa bastante útil deixada pelo autor, é o fato de que a recuperação do seu passado é obtida graças à asa dos sonhos. Podem ser vistos aqui traços que prestar atenção ao caráter romântico (sonho, fantasia, emotividade) e algo entre simbolismo e surrealismo, principalmente este último.
José Paulo Paes detona um conjunto de imagens de relação absurda entre si, como que ditadas por um pensar em delírio e, portanto, livre das peias racionalistas. No entanto, é esse pássaro dos sonhos que lhe dá fôlego suficiente para ter, absurdamente ou não, uma visão ousadamente perfeita de nossa realidade.
Dentro ainda do campo do absurdo, deve-se lembrar que um esquema muito comum no poeta é a utilização das antíteses e principalmente paradoxos (figuras de linguagem ligadas à oposição) na expressão de sua realidade.
O que José Paulo Paes parece fazer é juntar elementos completamente contrários e por meio da forte tensão que se forma dessa união ganhar energia suficiente para que se enxergue mais eficientemente a realidade do que pela lógica racional (pode-se lembrar que tal procedimento era muito comum em Machado de Assis, que enxergava a realidade como algo dilemático. Mas se no autor realista essa elaboração se encaminhava para a fria análise da condição humana, em José Paulo Paes é lastreada por uma forte emotividade. É provável que haja mais familiaridade com o Barroco, famosa arte das oposições. No entanto, a sofisticação da linguagem da escola seiscentista, gerando textos que eram verdadeiras elucubrações, é bastante diferente do tom simples assumido em Prosas seguidas de odes mínimas).

É o que se vê, entre tantos casos, no trecho abaixo:

OUTRO RETRATO

O laço de fita
que prende os cabelos
da moça do retrato
mais parece uma borboleta.
Um ventinho qualquer
e sai voando
rumo a outra vida
além do retrato.
Uma vida onde os maridos
nunca chegam tarde
com um gosto amargo
na boca.

Deve-se observar que a ideia de laço, numa análise superficial, está ligada a prisão, opondo-se, portanto, a voo. No entanto, de forma surrealista, o nó corredio é facilmente associado a borboleta. Um estudo profundo revela que tal associação não é, porém, absurda, já que remonta à ideia de que todo retrato faz retomar um passado em que sonhos, desejos eram montados cheios de idealização. Dessa forma, o poema acaba por avaliar agudamente o presente, que se desviou grosseiramente das expectativas de um passado ingênuo.

Também é necessário lembrar que José Paulo Paes possui um ponto de contato com uma qualidade comum a Bandeira e Drummond: a emotividade retirada das coisas simples, cotidianas. Consegue da mesma forma que os dois pilares da poesia modernista, ter os mesmos passos de um cronista moderno, alçando vôos líricos altíssimos.

Assemelha-se ainda a João Cabral de Melo Neto nos seguintes aspectos: linguagem enxuta, densidade e materialidade verbal, fixação de elementos concretos, recortados em versos breves, lucidez vigilante, recusa do supérfluo e do sentimentalismo, rigor intelectual e a imaginação plástica, escassez de adjetivação e gosto pela rima toante.
Curioso é perceber que os trechos apresentados até agora, tratados como poemas, na realidade correspondem à primeira parte da obra, composta de “prosas”. Sua elaboração, no entanto, recebe um trato de linguagem tal que se aproximam por demais da poesia. Pode-se tratar, portanto, de um famoso gênero criado pelos simbolistas, o da prosa poética, já percorrido por Cruz e Sousa, Aníbal Machado e Rubem Braga.
Os poemas têm, tradicionalmente, um tom grandioso. No entanto, o poeta engrandece coisas simples, como um alfinete, um fósforo, uma garrafa ou até mesmo a tinta de escrever, como se vê a seguir

À TINTA DE ESCREVER

Ao teu azul fidalgo mortifica
registrar a notícia, escrever
o bilhete, assinar a promissória
esses filhos do momento. Sonhas
mais duradouro o pergaminho
onde pudesses, arte longa em vida breve
inscrever, vitríolo o epigrama, lágrima
a elegia, bronze a epopeia.
Mas já que o duradouro de hoje nem
espera a tinta do jornal secar,
firma, azul, a tua promissória
ao minuto e adeus que agora é tudo História.

Segundo Antonio Candido, há em José Paulo Paes uma predileção pelo pequeno, pelo mínimo, que lhe alimenta de fôlego suficiente para não só engrandecê-lo, mas também de buscar o gigantesco.


terça-feira, 27 de maio de 2025

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA: MONOTONIA, FRAGMENTAÇÃO E IDEAL EM “QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA”, 1960, CAROLINA MARIA DE JESUS.

 1. A MONOTONIA DA ESCRITA E DOS DIAS:

- O DIÁRIO É A PRISÃO AO COTIDIANO.

- A DESCRIÇÃO DOS ACONTECIMENTOS DOS SEUS DIAS INICIA-SE SEMPRE DA MESMA FORMA, OU SEJA, É MARCADA PELA ROTINA:

- LEVANTAR, BUSCAR ÁGUA, CUIDAR DOS FILHOS, SAIR EM BUSCA DE ALGO QUE POSSA VENDER PARA PODER COMPRAR COMIDA, REALIZAR TAREFAS DOMÉSTICAS, ESCREVER, DESCANSAR O CORPO.

- NESSA REPETIÇÃO PASSAM-SE OS DIAS E NADA MUDA.

- É COMO SE O MAL SOCIAL APRESENTADO PELA AUTORA FOSSE IMUTÁVEL, POSSUINDO APENAS PEQUENAS VARIAÇÕES DE QUANTIDADE DE COMIDA QUE SE POSSUI, UNS DIAS MAIS, OUTROS MENOS, OUTROS AINDA, NADA.

- CURIOSO É QUE EM DETERMINADO MOMENTO DO LIVRO A REPETIÇÃO PARECE INCOMODAR A PRÓPRIA ESCRITORA, AO ANOTAR NO DIA 16 DE JUNHO:

- “[...] VOCÊS JÁ SABEM QUE EU VOU CARREGAR ÁGUA TODOS OS DIAS.

- AGORA VOU MUDAR O INÍCIO DA NARRATIVA DIURNA, ISTO É, O QUE OCORRE COMIGO DURANTE O DIA” (QD, p. 110).

- A PARTIR DE ENTÃO A DESCRIÇÃO MINUCIOSA CEDE LUGAR A UMA FRASE ENXUTA: “FIZ MEUS DEVERES”.

- O FATO DE O LIVRO ACABAR COM UM REGISTRO DO DIA 01 DE JANEIRO DE 1960, NO QUAL SE LÊ:

- “LEVANTEI AS 5 HORAS E FUI CARREGAR ÁGUA” (QD, p. 167).

- PERMITE QUE SE VISUALIZE A FORMA COMO A ESPERANÇA DE CAROLINA E SUA ATIVIDADE ROTINEIRA SE SUCEDEM “INTERMINAVELMENTE” OU RESULTADO DA POBREZA QUE A OBRIGA VIVER NESSA SEQUÊNCIA DE REPETIÇÕES.

2. A FRAGMENTAÇÃO: MOSAICO DO COTIDIANO

- A FRAGMENTAÇÃO DECORRE PRINCIPALMENTE PELO CONTÍNUO DAS ANOTAÇÕES PRÓPRIAS DO DIÁRIO QUE, AMPARADAS PELA NECESSIDADE DE CONTAR O COTIDIANO, ACABAM POR COMPOR UM TEXTO REPLETO DE PEQUENAS PARTES, COMO UMA COLCHA DE RETALHOS.

- O ESCRITOR DE DIÁRIOS SEGUE O COMPASSO DO CALENDÁRIO, CUJAS DATAS ALÉM DE PROCURAR ORGANIZAR UMA POSSÍVEL EXISTÊNCIA, CLASSIFICAM OS ACONTECIMENTOS DENTRO DA NARRATIVA CRIANDO UM ELO QUE UNE, MUITAS VEZES, ACONTECIMENTOS SEM NENHUMA LIGAÇÃO ENTRE SI.

- O RESULTADO É UM CONJUNTO DE ENXERTOS QUE SEGUEM UMA LINHA CRONOLÓGICA DE FORMA DESCONTÍNUA E DÃO CONTA DE APRESENTAR AS IDAS E VINDAS DE CAROLINA E DE SEUS FILHOS.

3. CAROLINA E SEU IDEAL:

- NO DIA 02 DE JUNHO DE 1958, O DIÁRIO TRAZ A SEGUINTE REFLEXÃO:

- “ (...)  O HOMEM NÃO HÁ DE GOSTAR DE UMA MULHER QUE NÃO PODE PASSAR SEM LER. E QUE LEVANTA PARA ESCREVER. E QUE DEITA COM LÁPIS E PAPEL DEBAIXO DO TRAVESSEIRO.

- TODOS TEM UM IDEAL. O MEU É GOSTAR DE LER” (QD, p. 23).

- “POR ISSO É QUE EU PREFIRO VIVER SÓ PARA O MEU IDEAL” (QD, p. 44).

- O PRIMEIRO MOTIVO ANOTADO PELA AUTORA PARA REFUTAR A UNIÃO REFERE-SE A SUA IDADE: 44 ANOS, COM TRÊS FILHOS E SEM PERSPECTIVAS DE VIDA, PREFERE CONTINUAR SOZINHA...

- NO ENTANTO, A AUTORA APRESENTA OUTRA JUSTIFICATIVA: A IMPOSSIBILIDADE DE COMPARTILHAR LEITURA, ESCRITA E UNIÃO AFETIVA.

- NESSE SENTIDO, ELEGE COMO ÚNICA COMPANHIA EM SEU LEITO OS LIVROS E OS CADERNOS ACHADOS NOS LIXOS NOS QUAIS ANOTA SUAS REFLEXÕES E ANGÚSTIAS.

- A AUTORA DEMONSTRA O ENTENDIMENTO DA AMEAÇA QUE A ESCRITA DA MULHER PODE REPRESENTAR: A DIFICULDADE PARA O HOMEM VER-SE PRETERIDO EM FAVOR DE OUTRO DESEJO E DE OUTRO PRAZER QUE NÃO ANCORE NELE.

- EM VÁRIOS MOMENTOS DO DIÁRIO CAROLINA DEIXA CLARO O QUANTO PREZA A SUA LIBERDADE AO AFIRMAR QUE CRIA SOZINHA OS FILHOS, QUE MANTÉM SOZINHA SUA FAMÍLIA, QUE É DONA DE SI E QUE DOMINA SEUS IMPULSOS.

- ASSIM, A INSERÇÃO DE UM HOMEM EM SUA VIDA PODE SER VISTA COMO UMA AMEAÇA, A PARTIR DO MOMENTO EM QUE ESTE SE CONFIGURA COMO ELEMENTO DE DOMINAÇÃO CAPAZ DE PARALISAR O SEU PROCESSO DE AFIRMAÇÃO ENQUANTO MULHER, MÃE E ESCRITORA.

 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

A ESCRITA E A LEITURA DE QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA, 1960, CAROLINA MARIA DE JESUS (1914-1977)

CAROLINA MARIA DE JESUS ESCREVE PARA DENUNCIAR A FAVELA E PARA SAIR DELA; ESCREVE TAMBÉM PARA, DIFERENCIANDO-SE DOS OUTROS MORADORES, LUTAR CONTRA O REBAIXAMENTO A QUE ESTÃO SUJEITOS OS MISERÁVEIS, NUM MOMENTO EM QUE SE ANUNCIA NOVO SALTO MODERNIZADOR DE SÃO PAULO E DO PAÍS.

Carolina usava de uma originalidade incomum em sua escrita, mostrando que sua visão de mundo estava além da maioria de outras pessoas da sua época. Utilizando o recurso de um discurso do “EU”, INDIVIDUALISTA, a escritora se transforma em um “EU” SOCIAL para, dessa forma, tecer uma crítica contundente da realidade da favela onde vive.

- CAROLINA DE JESUS NÃO FOI LIDA POR POBRES E NEM OS INFLUENCIOU E SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE DE CANINDÉ, NA QUAL VIVEU POR QUASE DEZ ANOS, FOI SEMPRE HOSTIL. AO MESMO TEMPO EM QUE FALAVA DA MISÉRIA, CLAMAVA COM FORÇA POR MUDANÇAS NA VIDA. MALDIZIA SEUS VIZINHOS E COMPANHEIROS DE INFORTÚNIO; ERA SURPREENDENTE E, AO MESMO TEMPO, CONTRADITÓRIA.

MORAR NA FAVELA ERA SE CONDENAR DUAS VEZES A POBREZA, AQUELA GERADA PELO MODELO ECONÔMICO E PELO MODELO TERRITORIAL.

1 - A ESCRITA E A LEITURA:

1.1 – ESCRITA COMO VÁLVULA DE ESCAPE E SALVAÇÃO:

“HÁ TEMPOS QUE EU PRETENDIA FAZER O MEU DIÁRIO. MAS EU PENSAVA QUE NÃO TINHA VALOR E ACHEI QUE ERA PERDA DE TEMPO” (QD,1960, p.30)

A VOZ DE CAROLINA EM SEUS REGISTROS DIÁRIOS, NÃO REPRESENTA APENAS A SI MESMA, MAS TODAS AS MULHERES QUE SE ENCONTRAM EM SITUAÇÕES ANÁLOGAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA. O SEU POSICIONAMENTO DE NÃO SILENCIAMENTO REFLETE A NÃO RESIGNAÇÃO DIANTE DAS SITUAÇÕES DE EXCLUSÃO E INVISIBILIDADE.

CAROLINA ESCREVE PARA SALVAR A ESCRITA, PARA SALVAR SUA VIDA PELA ESCRITA, PARA SALVAR SEU PEQUENO “EU” (AS DEFORMAÇÕES QUE SE TINHAM CONTRA OS OUTROS, AS MALDADES QUE SE DESTILAM) OU PARA SALVAR SEU GRANDE “EU”, DANDO-LHE UM POUCO DE AR, E ENTÃO SE ESCREVE PARA NÃO SE PERDER NA POBREZA DOS DIAS.

FALTAVA-LHE O FEIJÃO, FALTAVA-LHE O PÃO, MAS NÃO LHE FALTAVAM PALAVRAS PARA JOGAR NA FOLHAS DE PAPEL.

EM VÁRIOS MOMENTOS DO DIÁRIO, A PRÁTICA DA LEITURA, SEMPRE PRESENTE NO COTIDIANO DA AUTORA, PREENCHE OS ESPAÇOS VAZIOS DO TEMPO.

QUANDO CHOVE E ELA SE VÊ IMPOSSIBILITADA DE SAIR PRA CATAR PAPEL, DEBRUÇA-SE SOBRE O LIVRO.

ANTES DE DORMIR, ELA LÊ PARA ACALMAR, RELAXAR E VIAJAR.

DEPOIS DE RECEBER GÊNEROS ALIMENTÍCIOS DOADOS POR UM CERTO CENTRO ESPÍRITA, CAROLINA ACALMA A FOME E OS ÂNIMOS E ESCREVE:

“O NERVOSO QUE EU SENTIA AUSENTOU-SE. APROVEITEI A MINHA CALMA INTERIOR PARA EU LER” (QD. p. 10).

“QUANDO EU NÃO TINHA NADA O QUE COMER, EM VEZ DE XINGAR, EU ESCREVIA. TEM PESSOAS QUE, QUANDO ESTÃO NERVOSAS, XINGAM OU PENSAM NA MORTE COMO SOLUÇÃO. EU ESCREVIA O MEU DIÁRIO” (QD, p. 195).

GOSTAVA MUITO DE LER E RELATAVA QUE, AO LER, O INDIVÍDUO ADQUIRIA BOAS MANEIRAS E FORMAVA O CARÁTER.

A VIDA NA FAVELA ERA FEITA DE MUITA LUTA, ESCREVER O DIÁRIO SERVIA COMO FORMA DE DESABAFO E DENÚNCIA DA “FALTA DE TUDO” QUE AQUELES MORADORES TINHAM.

“(...) LAVEI AS LOUCAS E VARRI O BARRACO. DEPOIS FUI DEITAR. ESCREVI UM POUCO. SENTI SONO, DORMI. ACORDEI VÁRIAS VEZES NA NOITE, COM AS PULGAS QUE PENETRA NAS NOSSAS CASAS, SEM CONVITE” (QD, p. 117).

- A ESCRITA E A LEITURA A MANTINHAM VIVA, VISTO QUE ERA POR MEIO DESSAS, QUE ELA ENCONTRAVA FORÇAS PARA COLOCAR PARA FORA TODAS SUAS REVOLTAS, ANSEIOS E ESPERANÇAS, DE REGISTRAR SUA CONDIÇÃO DE SUBALTERNIDADE E AS MÁCULAS QUE LHE FERIAM ENQUANTO SER HUMANO E AOS DEMAIS QUE A RODEAVAM.

(...) “AS VEZES MUDAM ALGUMAS FAMILIAS PARA A FAVELA, COM CRIANÇAS. NO INICIO SÃO IDUCADAS, AMAVEIS.

DIAS DEPOIS USAM O CALÃO, SÃO SOEZES E REPUGNANTES. SÃO DIAMANTES QUE SE TRANSFORMAM EM CHUMBOS.

TRANSFORMAM SE EM OBJETOS QUE ESTAVAM NA SALA DE VISITA E FORAM PARA O QUARTO DE DESPEJO (QD, p. 39).

ESCREVER ERA A VÁLVULA DE ESCAPE ALIADO À SUA RESISTÊNCIA, MAS TAMBÉM A OPORTUNIDADE DE FAZER PARTE DA SALA DE VISITAS COMO DIZ DURANTE A NARRATIVA:

“DEIXEI O LEITO PARA ESCREVER. ENQUANTO ESCREVO VOU PENSANDO QUE RESIDO NUM CASTELO COR DE OURO QUE RELUZ NA LUZ DO SOL. QUE AS JANELAS SÃO DE PRATA E AS LUZES BRILHANTES. QUE A MINHA VISTA CIRCULA NO JARDIM E EU COMTEMPLO AS FLORES DE TODAS AS QUALIDADES (...). EU PRECISO CRIAR ESTE AMBIENTE DE FANTASIA, PARA ESQUECER QUE ESTOU NA FAVELA” (QD,1960, p.60)

1.2 - A LEITURA E A ESCRITA DISTINGUEM A AUTORA DOS DEMAIS MORADORES DA FAVELA.

CAROLINA SE TORNOU LEITORA POR MEIO DE LIVROS, REVISTAS, JORNAIS, ENTRE OUTROS GÊNEROS DE ESCRITAS QUE ENCONTRAVA NOS LIXOS E ISTO, A DIFERE DOS DEMAIS MORADORES DA FAVELA, CONFERINDO-LHE UM CERTO STATUS SOCIAL.

CAROLINA CONTA QUE PELO SEU JEITO DE SER E AGIR ERA HOSTILIZADA PELAS PESSOAS DA FAVELA. FALA SOBRE AS IMPLICÂNCIAS E PERSEGUIÇÕES SOFRIDAS POR SEUS FILHOS QUE MUITAS VEZES ERAM VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS POR PARTE DOS MORADORES E ATÉ MESMO DE COMO UM DE SEUS MENINOS CHEGOU A SER ACUSADO DE ASSEDIAR UMA GAROTA MENOR QUE ELE.

“NUNCA VI UMA PRETA GOSTAR TANTO DE LIVROS COMO VOCÊ”.

ALÉM DE TODAS AS LIMITAÇÕES QUE ENCONTRAVA PARA SOBREVIVER, AINDA SOFRIA PRECONCEITO ÉTNICO E DE GÊNERO.

AO ESCREVER CAROLINA FOGE DA PELE PRETA QUE A ENCARCERA E DO LUGAR PRETO ONDE MORA.

SEU PRÓPRIO “POVO”, QUESTIONAVA O SEU INTERESSE PELA LEITURA, DEIXANDO TRANSPARECER QUE UMA MULHER NEGRA E POBRE NÃO TINHA QUE GASTAR TEMPO COM LIVROS.

QUANDO QUESTIONADA SOBRE O QUE ESCREVE, RESPONDE:

“TODAS AS LAMBANÇAS QUE PRATICA OS FAVELADOS, ESTES PROJETOS DE GENTE HUMANA” (QD, p. 20).

QUANDO ENFRENTADA, AMEAÇA:

“VOU ESCREVER UM LIVRO REFERENTE A FAVELA. HEI DE CITAR TUDO O QUE AQUI SE PASSA. E TUDO O QUE VOCÊS ME FAZEM. EU QUERO ESCREVER O LIVRO, E VOCÊS COM ESTAS CENAS DESAGRADAVEIS ME FORNECEM OS ARGUMENTOS” (QD, p. 17).

ALÉM DISSO, VÊ EM SUA PRODUÇÃO AUTOBIOGRÁFICA UMA OPORTUNIDADE DE GANHAR DINHEIRO E SAIR DA FAVELA.

NAS ANOTAÇÕES DE 27 DE JUNHO DE 1958, ELA APONTA PARA O CARÁTER VICIOSO DA LEITURA:

“TEM MUITAS PESSOAS AQUI NA FAVELA QUE DIZ QUE EU QUERO SER MUITA COISA PORQUE NÃO BEBO PINGA [...] EU NÃO BEBO PORQUE NÃO GOSTO, E ACABOU-SE. EU PREFIRO EMPREGAR MEU DINHEIRO EM LIVROS DO QUE NO ÁLCOOL” (QD, p. 65).

AO ASSOCIAR A LEITURA AO VÍCIO DA BEBIDA, A AUTORA INDICIA QUE TAL PRÁTICA PERMITE A ELE “EMBRIAGAR-SE” E FUGIR DA DURA REALIDADE NA QUAL ESTÁ IMERSA.

1.3 – A ESCRITA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA: DENUNCIAR A FAVELA E PARA SAIR DELA

AO DOCUMENTAR NOS SEUS CADERNOS O COTIDIANO DA FAVELA, AO TORNAR PÚBLICO O QUE É APARENTEMENTE PRIVADO, CAROLINA TORNA-SE INDESEJADA NO AMBIENTE ONDE VIVE.

ELA PASSA A USAR A ESCRITA PARA SE DEFENDER: DIANTE DAS AGRESSÕES VERBAIS O ARGUMENTO É SEMPRE O MESMO: REGISTRAR NOS CADERNOS O NOME DAQUELES QUE A INSULTAM.

CAROLINA SEMPRE EMPUNHAVA A ARMA MAIS FATAL, QUE NÃO VERTE SANGUE AO ATINGIR, MAS PROPÍCIA REFLEXÕES E PENSAMENTOS, COMO ELA MESMA DIZIA:

“NÃO TENHO FORÇA FÍSICA, MAS AS MINHAS PALAVRAS FEREM MAIS DO QUE ESPADAS. E AS FERIDAS SÃO INCICATRISAVEIS” (QD, p. 49).

“HÁ DE EXISTIR ALGUÉM QUE LENDO O QUE EU ESCREVO DIRÁ ... ISTO É MENTIRA! MAS, AS MISÉRIAS SÃO REAIS. ... O QUE EU REVOLTO É CONTRA A GANÂNCIA DOS HOMENS QUE ESPREMEM UNS AOS OUTROS COMO SE ESPREMESSE UMA LARANJA” (QD, p. 47).

O REPÚDIO A AUTORA ERA TANTO QUE NO DIA EM QUE IA SE MUDAR DA FAVELA, DEPOIS DO SUCESSO DO LIVRO, FOI APEDREJADA PELOS VIZINHOS.

1.4 – A ESCRITA COMO UM LIVRO DE CONTABILIDADE:

“QUARTO DE DESPEJO” A AUTORA REGISTRA O DINHEIRO QUE RECEBE DEPOIS DE LEVAR A UM DEPÓSITO OS PAPÉIS, FERROS E MATERIAIS RECICLÁVEIS RECOLHIDOS NAS RUAS.

“COMPRO PÃO OU SABÃO? COMPRO MACARRÃO OU GORDURA? ”

“FUI FAZER COMPRAS NO JAPONÊS. COMPREI UM QUILO E MEIO DE FEIJÃO, 2 DE ARROZ E MEIO DE AÇÚCAR, 1 DE SABÃO. MANDEI SOMAR. 100 CRUZEIROS. O AÇÚCAR AUMENTOU. A PALAVRA DA MODA, AGORA, É AUMENTOU” (QD, 1960, p.129).

1.5 – A ESCOLHA DAS PALAVRAS:

“OS BONS EU ENALTEÇO, OS MAUS EU CRITICO. DEVO RESERVAR AS PALAVRAS SUAVES PARA OS OPERÁRIOS, PARA OS MENDIGOS, QUE SÃO ESCRAVOS DA MISÉRIA” (QD, p. 54).

1.6 – A LIMITAÇÃO DA ESCRITA:

- A AUTORA REGISTRA A DIFICULDADE DE SIMBOLIZAR “O QUE ESTÁ PARA ALÉM DA SUA REALIDADE SOFRIDA”.

“HÁ COISAS BELAS NO MUNDO QUE NÃO É POSSÍVEL DESCREVER-SE” (QD, 2000, p. 39).

 1.7 – A ESCRITA COMO POSSIBILIDADE DE ASCENSÃO SOCIAL:

É ATRAVÉS DA PUBLICAÇÃO DO SEU LIVRO QUE ELA VISUALIZA A POSSIBILIDADE DE SAIR DO “QUARTO DE DESPEJO”, LUGAR ESTE, QUE CAUSA EM CAROLINA UM ENORME DESCONFORTO.

O DESCONFORTO EXPLICA PORQUE A AUTORA NUNCA RECONHECE A FAVELA ENQUANTO UM ESPAÇO QUE SEJA SEU, MAS O VÊ COMO UM ESPAÇO TEMPORÁRIO, LUGAR DE TRANSIÇÃO.

ALGUMAS VEZES IRRITA-SE POR REGISTRAR EM SEUS CADERNOS A PALAVRA “CASA” AO SE REFERIR AO BARRACO ONDE MORA.

FICA FELIZ AO SAIR NAS RUAS E AS PESSOAS BATEREM-LHE COM AS PORTAS NA CARA, POIS ASSIM NÃO PRECISA PARAR E CONVERSAR COM OS VIZINHOS.

1.8 – O MOMENTO DA ESCRITA E O MOMENTO DA DOR:

- CAROLINA AO COLOCAR NO PAPEL SUAS IMPRESSÕES ACERCA DA SUA VIDA FUNCIONA COMO UM DESABAFO, UMA FORMA DE COMPREENDER-SE. POR OUTRO LADO, AO ESCREVER SUAS IMPRESSÕES CAROLINA ESTARIA TRAZENDO PARA O INSTANTE DA ESCRITA O MOMENTO DO TRAUMA, DA DOR.

1.9 – INTERTEXTUALIDADE:

CAROLINA TAMBÉM ERA CONHECEDORA DE LITERATURA COMO NOS MOSTRA AO DIALOGAR COM ESCRITAS DOS POETAS CASTRO ALVES E CASIMIRO DE ABREU (1837-1860):

“(...) TOQUEI O CARRINHO E FUI BUSCAR MAIS PAPEIS. A VERA IA SORRINDO. E EU PENSEI NO CASEMIRO DE ABREU, QUE DISSE:

“RI CRIANÇA. A VIDA É BELA”.

- SÓ SE A VIDA ERA BOA NAQUELE TEMPO. PORQUE AGORA A EPOCA ESTÁ APROPRIADA PARA DIZER: CHORA CRIANÇA. A VIDA É AMARGA” (QD, p. 37).

 

sábado, 5 de abril de 2025

MÚSICA ZERA A REZA, CAETANO VELHOSO

 


ZERA A REZA, CAETANO VELOSO

Vela leva a seta tesa

Rema na maré

Rima mira a terça certa

E zera a reza

Zera a reza, meu amor

Canta o pagode do nosso viver

Que a gente pode entre dor e prazer

Pagar pra ver o que pode

E o que não pode ser

A pureza desse amor

Espalha espelhos pelo carnaval

E cada cara e corpo é desigual

Sabe o que é bom e o que é mau

Chão é céu

E é seu e meu

E eu sou quem não morre nunca

Vela leva a seta tesa

Rema na maré

Rima mira a terça certa

E zera a reza

  “Zera a reza”, primeira letra do disco “Noites do Norte” (2000) revela mais uma demonstração da arte neobarroca de Caetano Veloso, artista engajado com seu tempo, cujas letras são, quase sempre, tidas como complexas e de difícil entendimento, ou seja, o receptor desfruta a letra e a melodia, mas encontra dificuldades para entender a mensagem.

O neobarroco, que segundo Chiampi (1998), é uma reciclagem do barroco histórico feita nos dias atuais, surge como característica do “fim das utopias”. Severo Sarduy (1979), em seu ensaio O barroco e o neobarroco, apontam três mecanismos de artificialização que são á base da teoria neobarroca, a saber: substituição, troca do objeto-foco por outro, que faz referência àquele; proliferação, a multiplicação de metonímias do objeto-foco através da repetição de termos e mesmo sequências de significantes; e condensação, fusão de dois dos termos de uma cadeia de significantes, de cujo choque resulta um terceiro termo que resume semanticamente os dois primeiros.

“As palavras da letra são uma brincadeira nada rigorosa com inversões e espelhamentos” (Veloso, 2003).

Esta definição feita pelo compositor refere-se aos quatro primeiros versos da letra, em que os anagramas: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; zera-reza, utilizados aqui como ludismo, desviam a atenção do receptor para o texto sob a letra.
Em “Zera a reza” apresenta um dualismo pois, citando a reza, momento sagrado em que o ser se comunica com o divino, e a música/dança, momento de profanação do corpo e, o pecado, Caetano Veloso parodia veladamente com a letra Deus e o Diabo (1989), de sua autoria, em que o verso “O carnaval é a invenção do Diabo / que Deus abençoou”, fortalece a correlação entre espírito e corpo; perdão e pecado; virtude e prazer, características fundamentais do estilo barroco.
Nos versos: “Zera a reza meu amor / canta o pagode do nosso viver” há um convite para que o receptor, evocado através da expressão “meu amor”, abandone seu estado contemplativo, principalmente, a reza, e aproveite ao máximo sua vida, pois tudo é transitório e a vida breve. Há aqui a intertextualidade com os versos da canção Deixa sangrar (1989), também de Caetano: “Deixa o mar ferver, deixa o sol despencar / deixa o coração bater, se despedaçar / chora depois mas agora deixa sangrar, deixa o carnaval passar”, ou seja, é preciso zerar a reza, livrar-se das convenções e extravasar os sentimentos e as emoções.

O carnaval é um conjunto de festividades populares que ocorrem em diversos países e regiões católicas nos dias que antecedem o início da Quaresma, principalmente do domingo da Quinquagésima à chamada terça-feira gorda, “a terça certa”.

A própria origem do carnaval é obscura, embora seja encontrado já no latim medieval, como carnem levare ou carnelevarium, palavra dos séculos XI e XII, que significava a véspera da quarta-feira de cinzas, isto é, a hora em que começava a abstinência da carne durante os quarenta dias nos quais, no passado, os católicos eram proibidos pela igreja de comer carne.
É possível que suas raízes se encontrem num festival religioso primitivo, pagão, que homenageava o início do Ano Novo e o ressurgimento da natureza, mas há quem diga que suas primeiras manifestações ocorreram na Roma dos césares, ligadas às famosas saturnálias, de caráter orgíaco. Contudo, o rei Momo é uma das formas de Dionísio, o deus Baco, patrono do vinho e do seu cultivo; e isto, faz recuar a origem do carnaval para a Grécia arcaica, para os festejos que honravam a colheita. Sempre uma forma de comemorar, com muita alegria e desenvoltura, os atos de alimentar-se e beber, elementos indispensáveis à vida. É, portanto “entre dor e prazer” que acontece o pagode, o samba, o carnaval, feito, em grande parte, por pessoas que passam a maior parte do ano em meio a dor, pela marginalidade social imposta.
Dessa maneira, é preciso “pagar pra ver o que pode / e o que não pode ser”, arriscar-se, extravasar-se com toda coragem, sem medo e sem culpas, mesmo que seja por poucos dias.
Segundo Bakhtin (1999), em seus estudos sobre o contexto de Rabelais, “os bufões não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário, eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida. Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte”. Bakhtin (1999) observa ainda que os atores assistiam às funções do cerimonial sério, para parodiá-los. O carnaval ignora toda distinção entre atores e expectadores, pois os expectadores vivem o carnaval. Obviamente, as representações carnavalescas atuais são outras, mas ainda percebe-se esta essência do carnaval como uma “segunda vida”, principalmente para aqueles que trabalham durante o ano preparando a festa, apesar da turistização, e de se fazer hoje um carnaval com palco (Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; entre outros).
O folião é um participante essencial para a existência do carnaval, seu sujeito e objeto; ator e expectador, onde o “chão é céu” por onde as estrelas, que são os passistas desfilam e brilham no palco ilimitado para o show de uma vida “que pode e o que não pode ser”, livre das convenções morais, sociais, religiosas e, com a própria realidade.
Há uma citação de um verso da letra Gente (1977), do mesmo autor, em que diz que “Gente é pra brilhar”. O carnaval permite a elevação do povo, inclusive os mais carentes, ao céu e às estrelas.
Não há hierarquia, desigualdades e nem diferenças. O essencial é festejar a vida com toda a expressividade que o corpo permite, libertando o “eu reprimido” até na “terça certa”, a “terça-feira gorda”, o último dia da festa.
Para Bakhtin (1999) “convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância”.
O verso “E eu sou o que não morre nunca”, parodia com outros, “o samba não vai morrer”, da canção Desde que o samba é samba (1993); “o samba é pai do prazer, o samba é filho da dor” e atenta para o fato de que, o eu-lírico incorpora o próprio samba, zerando o sagrado, transcendendo e imortalizando como um deus.
Nos versos: “A pureza desse amor / espalha espelhos pelo carnaval” apontam para as pessoas que ideologicamente e passionalmente trabalham o ano todo, envolvidas na expectativa do carnaval e em seu brilho.
Os espelhamentos, quase anagramáticos desenvolvendo novas técnicas poéticas em “Espalha-espelhos e cada-cara” retomam a ideia inicial do jogo como recurso para desviar a atenção do leitor tal como observa Affonso Ávila (1994), ao tratar do artista barroco. Ao fazer o jogo de espelhamentos com as palavras do refrão: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; zera-reza, e ao dizer que “espalha espelhos” Caetano Veloso trabalha criando um processo de metalinguagem na letra.
A proliferação dos significantes: “pagode do nosso viver”; “pode entre dor e prazer”; “vê o que pode e o que não pode ser”, “espelho”, “conhece o bom e o mau”, “que não morre nunca”, resulta no significado “samba”, simbolizado no título por “zera a reza”.
Não é por acaso que Zera a reza abre o disco Noites do Norte (2000), um disco que, inspirado pelo pensamento do abolicionista Joaquim Nabuco, tem fortemente impresso nas letras a questão da cultura afra-descendência. Portanto iniciá-lo falando do samba, dança de origem africana, herança dos negros trazidos como escravos, e do carnaval, festa popular que, no Brasil, incorporou o samba, além do frevo e hoje do axé, como ritmos matrizes. Todavia, Caetano Veloso faz essa homenagem de forma velada, através do jogo significante/significado, das proliferações e substituições que caracterizam a obra neobarroca.


sábado, 22 de março de 2025

ZELIG (1983), WOODY ALLEN

 


 “Uma reflexão sobre as pressões das organizações e da sociedade sobre o indivíduo e as ameaças à identidade individual.” 

A Ku Klux Klan, que via Zelig como judeu, e que podia se transformar em negro e em índio, o encarava como uma tripla ameaça.”

Tenho um caso interessante. Estou tratando dois pares de gémeos siameses com dupla personalidade. Sou cobrado oito vezes mais!” (Leonard Zelig, fala insana nº 1 do filme “Zelig”)

ELENCO:

Woody Allen (Leonard Zelig)
Mia Farrow (Dra. Eudora Fletcher)
John Buckwalter (Dr. Sindell)
Marvin Chatinover (Médico)
Stanley Swerdlow (Médico)
Paul Nevens (Dr. Birsky)
Sol Lomita (Martin Geist)
Mary Louise Wilson (Irmã Ruth)
Richard Litt (Charles Koslow)
Sharon Ferrol (Miss Baker)
Stephanie Farrow (Meryl)

FICHA:

Título Original: Zelig
País de Origem: EUA
Ano de Lançamento: 1983
Gênero: Comédia / Fantasia
Duração: 1h 29Min
Idioma: Inglês

HISTÓRICO:


Comédia dramática dirigida e protagonizada por WOOD ALLEN.
Com este hilariante “Zelig” (1983), Wood Allen se entrega a um trabalho inédito de sua carreira: a metalinguagem. 
“Zelig” é, sob muitos pontos de vista, um dos mais atípicos filmes de Allen. Contrariando a sua média de um filme por ano, o realizador concentrou-se por muito tempo na realização desta obra, devido a dificuldades técnicas e ao seu perfeccionismo levado ao extremo. 
Os problemas na montagem e finalização foram tantos que Allen ainda rodou e distribuiu “A Midsummer night’s sex comedy” e “Broadway Danny Rose” enquanto “Zelig” se encontrava em pós-produção com testes de laboratório, manipulação da película e preparação dos efeitos especiais. 
A principal razão para todos estes problemas prende-se a determinação de Allen em atingir ao máximo a dicotomia entre a realidade e a ficção, criando um “autêntico documentário”, alicerçando-se nos códigos do formato jornalístico, porém de um protagonista fictício.
A sua forma de narrar a história em questão, apesar de não ser completamente inédita, é o que mais desperta atenção nesse filme. 
Allen já havia utilizado desse recurso em outros de seus filmes, “Um Assaltante Bem Trapalhão”, 1969; “Maridos e Esposas”, 1992 e “Poucas e Boas”, 1999.

No entanto, nesses títulos, há uma mistura de falso documentário e ficção normal, algo que não ocorre em “Zelig”. O diretor, em “Zelig” imprime uma bizarra narrativa que intercala testemunhos da atualidade (ou pelo menos da atualidade em que o filme foi rodado, em indícios dos anos 80) com imagens de arquivo dos anos 20-30, juntando cenas de antigos documentários com sequências novas de ficção, conseguindo ótimos resultados e propiciando ao diretor de fotografia Gordon Willis a oportunidade de um trabalho magistral.

A fita aprimorou a técnica de montagem de cenas rodadas com material antigo, reunindo depoimentos de intelectuais reais e permitindo que Allen, contracenasse com personalidades falecidas para dar um aspecto de maior fidedignidade, o que resultou num filme considerado o mais criativo. Dessa forma, o filme fascina na medida em que a presença de Zelig distorce a história verdadeiramente documentada no passado, como por exemplo, a passagem ficcional de Zelig pelos Estados Unidos nas décadas de 20 e 30; sua ida a Europa durante a ascensão de Hitler; a confusão que causou no vaticano; os resquícios deixados na dança e música daquela época, bem como no cinema.


TÉCNICA E MONTAGEM:


Com recursos praticamente zerados e ainda levando-se em consideração que, no início dos anos 80, os efeitos especiais ainda eram uma lenda urbana, Allen realizou um trabalho esteticamente perfeito. 
Wood Allen sempre flertou com diferentes modos de narrar. Em “Zelig” as personagens e o conflito humano são apresentados através da reunião de diversos depoimentos extraídos de cinejornais, fotos e filmes noticiosos da época, alguns originais, retocados ou modificados, outros simplesmente produzidos e envelhecidos, permitindo a inclusão, no filme, de alguns momentos significativos do século XX. 
O contraste conseguido com as imagens em preto e branco versus as cenas da atualidade fotografadas em cores (época em que o filme foi rodado), dá-lhe um caráter de verossimilhança tão perfeito que chega, muitas vezes, impressionar o espectador. Allen e Gordon Willis, diretor de fotografia, para conseguirem essa proeza utilizaram-se de várias câmeras e lentes próprias da década de 20 e 30, filmando com Super8, câmeras de TV, câmeras de 35 mm, simulando danos aos negativos para fazer com que o produto final se confunda com antigo. Para tanto, pisaram em cima dos mesmos, jogaram-nos na água, arranharam, colocaram na geladeira etc. Além de recorrerem a técnica do “chroma key” de processamento de imagens cujo objetivo é eliminar o fundo de uma imagem para isolar as personagens ou objetos de interesse que posteriormente são combinados com uma outra imagem de fundo para registrar a aparição de Zelig,
entre as diversas personalidades da época. Entre elas, Zelig ao lado do Papa Pio XI, entre convidados famosos no “garden party” do escritor Scott Fitzgerald; ao lado de Hitler; Charles Lindbergh, Al Capone, William Randolph Hearst , Marion Davies, Charlie Chaplin, Josephine Baker, Fanny Brice, Carole Lombard, Dolores Del Rio, Adolf Hitler, Josef Goebbels, Hermann Göring, James Cagney, Jimmy Walker, Lou Gehrig, Babe Ruth, Bobby Jones; incluindo, também, a ensaísta Susan Sontag, o psicólogo Bruno Bettelheim, o escritor vencedor do Prêmio Noberl Saul Bellow, o autor político Irving Howe, o historiador John Morton Blum e a empresária da noite de Paris Bricktop, buscando, dessa forma, ultrapassar a barreira da ficção.
O resultado, além de ser perfeito, graças a essa engenhosa montagem é recheado pelo humor famoso do cineasta. 
Há um distanciamento entre o espectador, os atores e suas falas, exceto em algumas filmagens sonoras, como as sessões de análise gravadas pela Dra. Fletcher.
No entanto, mesmo com limitado tempo de fala, as personagens apresentam-se fortemente marcadas, sempre presentes, pois esses recursos se tornam imperceptíveis, centralizando-se na narrativa e nunca chamando a atenção para si mesmo.
O filme “Zelig” surpreende não só pela direção, fotografia e roteiro. A trilha sonora do filme também merece destaque. Nela, encontra-se: “I’m Sitting on Top of the World” e “Five Feet Two, Eyes of Blue”, de Ray Henderson, Sam Lewis e Joe Young; “Sunny Side Up”, de Henderson, Lew Brown e Buddy G. DeSylva; “Ain’t We Got Fun”, de Richard A. Whiting, Ray Egan e Gus Kahn; “Charleston”, de James P. Johnson e Cecil Mack; “I’ll Get By”, de Fred E. Ahlert e Roy Turk; “I’ve Got a Feeling I’m Falling”, de Fats Waller, Harry Link e Billy Rose; “I Love My Baby (My Baby Loves Me)”, de Harry Warren e Bud Green; “A Sailboat in the Moonlight”, de Carmem Lombardo e John Jacob Loeb; “Chicago (That Toddlin’ Town)”, de Fred Fisher; e “Anchors Aweigh”, de Charles A. Zimmerman e Alfred Hart Miles. Dick Hyman também compôs diversas canções supostamente inspiradas pelo fenômeno Zelig, incluindo “Leonard the Lizard,” “Reptile Eyes,” “You May Be Six People, But I Love You,” “Doin’ the Chameleon,” “”The Changing Man Concerto,” e “Chameleon Days” – esta executada por Mae Questel, a voz de Betty Boop.

TEMPO E NARRADOR: 

A técnica criativa do filme disponibiliza recursos audaciosos, como o uso de depoimentos posteriores ao tempo da trama e o uso de um narrador constante sem afetar seu mérito. 
Allen consegue fazer humor satírico e contar a história através de diversos pontos de vista, passando para o espectador o clima de comoção de diferentes segmentos da sociedade em relação a Leonard.
A história se passa em meio ao ritmo alucinante entre os anos de 1920 e 1930, na efervescência do “American way of life”. Porém, apresenta um retrato específico não só da América (os anos loucos, à ascensão do fascismo na Europa, o surgimento das estrelas que começavam a emergir e à exploração mediática das suas vidas em mudança), como do próprio mundo, tal como Zelig. 
Allen ainda aproveita as circunstâncias para ironizar a imprensa, suas raízes judaicas, os relacionamentos, o K.K.K. e o Partido dos Trabalhadores (Labor Party), por quem Leonard é odiado.

RESUMO DO ENREDO:

“Zelig” não se resume apenas numa comédia divertida Trata-se de uma história lírica, comovente, sociológica, histórica, psicanalítica, reflexiva etc.
Leonard Zelig é o protagonista desse virtuosismo filme, interpretado pelo próprio Wood Allen que sem afastar emocionalmente o espectador da sua personagem, leva-o questionar sobre a perda de personalidade e sobre a aceitação do indivíduo pela sociedade.
Para o protagonista, somente os outros eram interessantes e para suprir a falta de amor próprio, adquire a misteriosa capacidade de transformar sua personalidade e fisionomia na presença das pessoas que o cercam, tornando-se um legítimo camaleão-humano, objetivando integrar-se e ser aceito na sociedade. De tão acostumado a absolver a personalidade de outros, Zelig despreza sua própria, abdicando assim de sua humanidade, vivendo uma não existência, que, fugindo de si mesmo, perde sua individualização e cai num coletivo padronizado.


A cultura o exilou no seio do seu próprio ser, para que pudesse ser sujeito. Introduziu no que era próprio o alheio, o outro. E, é principalmente neste tema que o filme se debruça: na transformação e perda de personalidade por parte de um homem, em detrimento da sua integração, do desejo de se misturar nas multidões e não se destacar.

Sabe-se que o camaleão é um réptil que, para se adequar ao ambiente ao seu redor e passar despercebido pelos seus inimigos, muda sua cor. No caso de Zelig, não se trata de performances dramáticas, a sua metamorfose ocorre involuntariamente, forma de adaptação ao interesse do momento de acordo com o ambiente em que se encontra inserido
Zelig é observado inicialmente numa festa, por F. Scott Fitzgerald, que nota que, ao mesmo tempo em que circula entre os convidados comportando-se de forma refinada e culta, em outro momento, o protagonista se mistura aos criados na cozinha, vociferando enfurecidamente contra os “gatos gordos” em linguagem coloquial.
Identificado aos poucos, pelo seu dom de transformação, Zelig ganha notoriedade e passa a ser o centro de curiosidade da mídia, das manchetes internacionais; de médicos; psicólogos; curiosos e de pesquisadores de universidades especializadas para que se possa detectar a anormalidade que o atormenta.
Essa particularidade o faz uma aberração e também, uma celebridade, em meio ao ritmo alucinante dos anos 20, na efervescência dos EUA, quando a imprensa vive de escândalos, de novidades escabrosas e chocantes.

Sua foto e seu martírio são espalhados por jornais de variadas tendências da época e o seu caso é tratado com extremo sensacionalismo, dividindo opiniões públicas, ora sendo amado ora sendo odiado.
Zelig é internado num hospital psiquiátrico e muitos cientistas empenham-se em diagnosticar este estranho fenômeno, mas todas as pesquisas não atingem êxito. Entre os diagnósticos, das mais variadas espécies, encontra-se os de caráter psiquiátrico até os físicos, provenientes de mau funcionamento de determinados órgãos, inclusive prenúncio estipulando tempo de vida curta para o paciente. 


Sua anomalia desperta o interesse profissional de uma psiquiatra, a única pessoa que realmente parece preocupar-se com Zelig, a Dra. Fletcher (Mia Farrow), que ao contrário dos outros, acredita que seja uma perturbação mental. 
Ela vê Zelig não como um títere manipulado pela sociedade ou uma experiência científica e, sim, como um ser humano que anseia ser aceito, amado e compreendido. 
Eudora pretende tratá-lo clinicamente, através do uso da hipnose, mas esbarra nos interesses de sua família, que visão capitalizar esse “dom” de Zelig e exibi-lo como um espetáculo lucrativo.


A médica descobre que Zelig anseia tão fortemente por aprovação que se altera fisicamente, na esperança de se adequar aos que o cercam. A determinação da Dra. Fletcher permite eventualmente que ela o cure, não sem, no entanto, algumas complicações; ela acaba por elevar tanto a autoestima de Zelig que ele termina desenvolvendo temporariamente uma personalidade que é violentamente intolerante a respeito das opiniões de outras pessoas.
A médica descobre que está se apaixonando por Zelig. Devido à cobertura feita pela mídia do caso, tanto o paciente quanto a doutora tornam-se parte da cultura popular de seus tempos. No entanto, a fama é a principal causa de sua divisão; a mesma sociedade que fez de Zelig um herói acaba por destrui-lo.


Médica e paciente se apaixonam, entretanto, ela não aceita o seu pedido de casamento enquanto Zelig não se libertar de suas personagens.
Outra oportunidade o coloca novamente em contato com Eudora Fletcher que após estudar o seu caso, realizar muitas entrevistas e consultas consegue fazer com que ele entenda a sua importância como ser humano único, singular, com beleza própria e inconfundível.
A doutora Fletcher o encontra na Alemanha, trabalhando com os nazistas, pouco antes da Segunda Guerra Mundial. Juntos, fogem e retornam aos EUA, onde são proclamados heróis (depois que Zelig, usando mais uma vez sua habilidade, imita as habilidades de pilotagem de Fletcher e pilota o avião que lhes traz de volta, cruzando o Atlântico, de ponta cabeça).
O tratamento psiquiátrico, um autêntico resgate daquela prisão que era o seu fenômeno de homem-camaleão, transforma-se numa história de amor. Assim, diante de uma história de alguém que se perdeu em si próprio e que, apenas com a ajuda de uma psiquiatra dedicada (Mia Farrow) e, em última instância, do amor, terá Zelig alguma hipótese de se reencontrar.
Não mais encontrando sentido no medo do sobre-eu, que estava no fundo de todo relacionamento, o eu perde o medo do outro. Para sobreviver, ele não mais precisa ser como o outro, nem corresponder ao seu desejo. Ele deixa de ser objeto “ser-para-os-outros” e conquista a condição de sujeito “ser-para-si”. 
A Dra. Eudora Fletcher confirma a Zelig que é a ele que ama, e não, as outras pessoas por ele representadas. Promete a Zelig o seu amor quando ele vir amar a si mesmo. Indica-lhe o caminho da cura, salvando-o de seus fantasmas e acabam se casando. No entanto, começam a pulular vários processos para que ele reconheça a paternidade de várias crianças; as mulheres que ele iludiu quando assumia outras personalidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:


“Zelig” é uma crítica social sarcástica, eficiente do cinema contemporâneo.
O filme é interessantíssimo sob o ponto de vista psicológico e humano: a capacidade mimética do “eu é outro” e a necessidade de “ser famoso por não se ser ninguém em concreto”, traz ainda um questionamento sociológico.
Zelig ao proceder à multiplicação interior e exterior, paga um alto preço: a de sua despersonalização enquanto indivíduo, o da desintegração do “eu”.
Allen registra autobiograficamente seus conflitos em Zelig, desbloqueando as barreiras que normalmente se erguem na percepção do eu e do outro. Allen é uma referência no que diz respeito à dualidade da personalidade, atribuindo ao ator (a gagueira, a fala apressada de um nova-iorquino, etc.) às principais características do autor e brincando com as fronteiras que separam a história, da realidade inventada das suas narrativas cinematográficas.
O filme contém, também, alguns dos elementos temáticos do cinema de Allen: uma crítica sutil a sociedade; a questão judaica, o fato de não conseguirem um espaço dentro da sociedade; o racismo dentro dos EUA, “um judeu que pode se transformar em índio ou negro é uma tripla ameaça” e a necessidade de produzirem ídolos.
Woody Allen demonstra toda a sua cultura e faz exatamente aquilo que os regimes totalitários faziam: a perda da identidade para se fazer parte da massa, Zelig é exatamente isso e, para criticá-los, cria uma análise crítica sobre a farsa, travestida de realidade. 
A criação deste personagem fantástico também permite ao cineasta discutir como há uma exploração midiática de casos e eventos semelhantes. Com a mesma velocidade, sofreu acusações e foi rejeitado pela imprensa e pela sociedade. 


Zelig é a concretização do nosso tempo, da busca por uma identidade e da construção dela própria a partir do outro. Para se sentir mais seguro, usando as palavras do próprio personagem. Ergin Goffman, citado no início, diz que “(…) o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os papéis desempenhados pelos outros presentes e, ainda, esses outros também constituem a plateia” (GOFFMAN, 1999).
Além disso, o filme mostra que o “fenômeno Zelig” rendeu canções, brinquedos, até mesmo um filme hollywoodiano contando sua história, enfim, foi um grande modismo nos anos 20 e 30. E mostra como a cultura americana pode transformar um cidadão comum no inimigo público número 1 e logo em seguida, perdoá-lo, elevá-lo a herói como quem muda de roupa e subitamente ser esquecido nas décadas seguintes.

Fernando Pessoa ao criar seus heterônimos também procede à multiplicação, porém somente interior: uma poli personalidade. Mediante essa dispersão anímica, o poeta se habilita a ver o mundo como os outros o veem. Os seus heterônimos são, por isso, meios de conhecer a complexidade cósmica, impossível para uma única pessoa e de forma consciente. 

“Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo.
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me.” 

                           Fernando Pessoa – Álvaro de Campos 

Leonard Zelig no início de seu tratamento psicológico afirma que a sua primeira experiência com a multiplicidade dos seus “eus”, foi quando se sentiu inferiorizado por não ter lido “Moby Dick”, de Herman Melville e; ironicamente, quando Leonard Zelig está prestes a morrer, sentiu grande tristeza por não ter terminado a leitura do referido livro como se sentisse ainda incompleto.

“Moby Dick” (1851) é uma obra que transita pelos gêneros da aventura, crônicas de viagem, memorialismo, misticismo, filosofia, ciência, história, teatro e muito humor. Esta obra que é tão complexa, ao mesmo tempo é um feito inigualável, pela redução das personagens e pelo curto tempo que foi escrita.
Com uma colossal baleia branca, um capitão, um navio, o oceano e alguns coadjuvantes, Melville reproduziu com rigorosa perfeição o fluxo da vida em toda a sua complexidade: a essência da literatura, a partir de um mínimo de elementos.

O narrador, Ismael, um sujeito meio apagado e irônico ao extremo, embarca num navio baleeiro em Nantucket, na costa leste americana, para trabalhar alguns meses como membro da tripulação de um navio, o Pequod, caçando baleias de uma espécie gigantesca, muito valiosa pelo seu óleo.
Ahab, o capitão do Pequod, perdeu uma perna, quarenta anos antes, na caçada a Moby Dick, a “baleia assassina”. A baleia conseguiu escapar. Ao contrário do resto da tripulação, que embarcou por dinheiro ou aventura. O único objetivo de Ahab nesta viagem era capturar Moby Dick e matá-la. Dizê-lo “movido pelo desejo de vingança” seria simplificar demais as coisas: a caçada é a existência inteira de Ahab e seu sentido único.
Enquanto não chega o momento da perseguição definitiva a Moby Dick, várias tramas paralelas se desenvolvem na viagem: os marinheiros do Pequod caçam algumas baleias, interagem com outros navios em alto-mar, bebem e se divertem, enquanto Melville aproveita para interromper a narrativa, a toda hora, para fazer digressões sobre o mundo das baleias, sua fisiologia, técnicas de caças etc.
O foco narrativo é deslocado para a terceira pessoa, adquirindo um narrador onisciente e relatando através de um monólogo interior, o fluxo de consciência de Ahab e de alguns outros marinheiros.
Nesse enredo tão simples, Melville recombina várias narrativas e alegorias da Bíblia, fazendo de sua obra um livro de profecias, as quais todas se cumprem. Tudo, em “Moby Dick” há presságios do destino final, desde os mais óbvios (como o sermão do padre Mapple, antes do embarque) aos mais ocultos, do mesmo modo como a natureza, por meio de sinais, anuncia o clima vindouro.
Os navios que o Pequod encontra pelo oceano fornecem pistas de que uma grande tragédia está para acontecer com Ahab e sua tripulação. Mas todos os homens do Pequod, aos poucos, vão sendo contaminados pela obsessão.
Ahab termina por ceder, traindo a própria consciência por fraqueza de caráter ou excesso de fidelidade. Ele mais do que ninguém, não pode deixar de caminhar para a morte e levar a tripulação consigo. 
A revolta de Ahab contra o destino, contra a submissão do homem às forças da natureza, é acompanhada de uma completa ignorância de que seria possível subtrair-se completamente a tal submissão.
Há também na tripulação um menino louco, Pip, cuja aceitação tranquila da própria desgraça inspira em Ahab certa curiosidade, afeto e simpatia; a consciência desses sentimentos poderá contribuir para sua possível “conversão”.
No capítulo “A Sinfonia”, depois de uma veemente confissão a Starbuck, Ahab parece enfim perceber a própria insanidade, e resolve desistir de seus planos. Mas a alquimia espiritual requerida é muito mais exigente e complexa: no momento em que está para consolidar sua decisão, ele sente o cheiro de Moby Dick. É a prova final; mas, cego pelas sensações, ele rejeita em definitivo o chamado. Sua obsessão, como não poderia deixar de ser, ressurge com ainda maior fúria, e ele parte, sem vacilar, para sua nêmese.
No terceiro dia que luta contra a baleia, Moby Dick destrói o Pequod e Ismael (como no livro de Jô, “E só eu escapei para vos dar a notícia”), relata friamente como foi o único a sobreviver ao naufrágio, agarrado ao caixão (coffin) de um dos arpoadores do navio, Queequeg. É interessante notar que Ismael e Queequeg se conheceram, pouco antes de embarcar, na estalagem.