“Nós Matamos o Cão Tinhoso” é a única prosa
publicada em Moçambique, no período colonial, referenciada como marco histórico
e testemunhal, como também um manifesto, pois representa a luta do colonizado
moçambicano e a coletividade da qual ele participa e pela qual ele fala.
A partir da edição de 1980,
é composto por sete contos: “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, “Inventário de Imóveis
e Jacentes”, “Dina”, “A Velhota”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos dos Pretos” e
“Nhinguitimo”.
Na publicação brasileira
realizada pela Editora Kapulana em 2017, há também um conto do autor nunca
antes publicado em livro, “Rosita, até morrer”.
De acordo com Honwana,
alguns dos contos presentes no “Nós Matamos o Cão Tinhoso” foram divulgados,
antes de 1964, em periódicos:
“Os contos que compõem o
“Nós Matámos o Cão Tinhoso” foram escritos entre 1961 e 1963 e o livro foi
publicado antes da minha prisão (que ocorreu em dezembro de 1964).
O conto "Inventário de Imóveis e Jacentes" foi o primeiro a ser publicado na imprensa moçambicana (Suplemento literário de A Tribuna).
“INVENTÁRIO DE
IMÓVEIS E JACENTES”: típica
família moçambicana e sua residência.
Narrativa, ainda que simples, permite o levantamento
de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não
dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser
contada”.
Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de
uma descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que
acomete sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que
minucioso, do seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que
nos ajuda a pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta
pelo sistema colonial.
Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto
ele quanto o seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio
letárgico, possuem um posicionamento diferente.
Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já
foi presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial,
só nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da
descolonização.
Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.
Além do quarto em que
estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a
sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo
fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É ocupada por uma mesa
já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um
armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no canto, atrás da
porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se
no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato de alumínio [...]
Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim [...]. (HONWANA, 1980,
p.36-37).
Em uma de suas descrições do lar narra que existem
livros que só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse,
apenas, de sua mãe.
Nota-se que os livros ocupam um espaço de prestígio
na casa a julgar pela cortina que os esconde:
Entre a porta que dá para a casa de banho e a que dá para este
quarto, encostada à parede do Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas
cheias de livros. Tem a cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das
cortinas da sala de visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo
pano. Só neste quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e
amarelado. A Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2
cortinas e com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu
me lembrasse ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).
Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a
realidade da família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a
leitura do estado de “zumbi”.
A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação
pois, o zumbi é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e
a razão, deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.
O estado de zumbi justifica-se diante da violência
do poder colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se,
momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem
sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.
Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como o pai, lê livros:
Debaixo desta cama está guardado o meu material de desenho e
pintura, contido em dois caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com
livros. Debaixo da cama que está o Papá há mais caixotes com livros. As
revistas estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As
mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o
aparador, sobre a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse
ler uma revista ia direitinho à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as
“Times” e as “Cruzeiros” mais recentes. Na mesa do centro está também o
“Reader’s”, mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa. O
Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã
costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por isso que não tenho assim
tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980,
p.38-39).
Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de
seu gosto, tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que
é de preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas
pelo pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências
colonizadoras – Inglaterra, Portugal.
Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a ideia
de morte em vida:
As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta de
dormir com as portas e as janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é
por causa da doença mas eu acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no
nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que
dormisse numa cama dura, o que se improvisou no nosso quarto, já que não
convinha mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).
A mãe do garoto aparece, também, como um dos
“assimilados” da província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas,
o ronga e o português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela
fala em português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e
trabalha, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma mulher
empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo, talvez por
ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.
Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos. Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados, mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação, em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual goza o “assimilado”.
Com relação as fases de tomada de consciência, por
parte do colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo
sistema colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que
vive sua família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa
solução para o problema e então não sente:
“Vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).
A assimilação, nesse caso, é a única saída para o
colonizado tornar-se sujeito, indivíduo. Infere-se que esse estágio de
zumbificação em que se encontra a família do narrador, pode figurar como um
interregno entre os dois momentos:
1. Momento em que o indígena recorre ao
embranquecimento, como investimento para acessar a categoria de homem, o que
envolvia autorrecusa, aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que
culmina em revolta e reações repreendidas violentamente pelo sistema;
2. Momento de recusa à assimilação e de retomada aos
valores e tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é
um investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a
colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo
próprio sistema europeu.
- Além de, como os demais componentes da família,
dormir um sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:
O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A
meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando
fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem
bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina.
Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que também ressonarei
quando adormecer? (HONWANA, 1980, p.36).
É importante salientar, contextualizando a obra e
seu contexto histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo
referência não era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de
colonização, percebe-se um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a
Ditadura Nacional, o que levou novos comandos de opressão para suas colônias.
Como dito anteriormente, o colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram
asseguradas pelo Estatuto do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década
de 1960) e passou a viver, sem distinção entre indígenas e assimilados,
explorados pelo trabalho.
Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse
estado de “morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo
entre o primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o
momento de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa
realidade, por isso uma ação mais organizada e sistematizada.
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