quinta-feira, 17 de abril de 2025

A ESCRITA E A LEITURA DE QUARTO DE DESPEJO: DIÁRIO DE UMA FAVELADA, 1960, CAROLINA MARIA DE JESUS (1914-1977)

CAROLINA MARIA DE JESUS ESCREVE PARA DENUNCIAR A FAVELA E PARA SAIR DELA; ESCREVE TAMBÉM PARA, DIFERENCIANDO-SE DOS OUTROS MORADORES, LUTAR CONTRA O REBAIXAMENTO A QUE ESTÃO SUJEITOS OS MISERÁVEIS, NUM MOMENTO EM QUE SE ANUNCIA NOVO SALTO MODERNIZADOR DE SÃO PAULO E DO PAÍS.

Carolina usava de uma originalidade incomum em sua escrita, mostrando que sua visão de mundo estava além da maioria de outras pessoas da sua época. Utilizando o recurso de um discurso do “EU”, INDIVIDUALISTA, a escritora se transforma em um “EU” SOCIAL para, dessa forma, tecer uma crítica contundente da realidade da favela onde vive.

- CAROLINA DE JESUS NÃO FOI LIDA POR POBRES E NEM OS INFLUENCIOU E SUA RELAÇÃO COM A COMUNIDADE DE CANINDÉ, NA QUAL VIVEU POR QUASE DEZ ANOS, FOI SEMPRE HOSTIL. AO MESMO TEMPO EM QUE FALAVA DA MISÉRIA, CLAMAVA COM FORÇA POR MUDANÇAS NA VIDA. MALDIZIA SEUS VIZINHOS E COMPANHEIROS DE INFORTÚNIO; ERA SURPREENDENTE E, AO MESMO TEMPO, CONTRADITÓRIA.

MORAR NA FAVELA ERA SE CONDENAR DUAS VEZES A POBREZA, AQUELA GERADA PELO MODELO ECONÔMICO E PELO MODELO TERRITORIAL.

1 - A ESCRITA E A LEITURA:

1.1 – ESCRITA COMO VÁLVULA DE ESCAPE E SALVAÇÃO:

“HÁ TEMPOS QUE EU PRETENDIA FAZER O MEU DIÁRIO. MAS EU PENSAVA QUE NÃO TINHA VALOR E ACHEI QUE ERA PERDA DE TEMPO” (QD,1960, p.30)

A VOZ DE CAROLINA EM SEUS REGISTROS DIÁRIOS, NÃO REPRESENTA APENAS A SI MESMA, MAS TODAS AS MULHERES QUE SE ENCONTRAM EM SITUAÇÕES ANÁLOGAS NA SOCIEDADE BRASILEIRA. O SEU POSICIONAMENTO DE NÃO SILENCIAMENTO REFLETE A NÃO RESIGNAÇÃO DIANTE DAS SITUAÇÕES DE EXCLUSÃO E INVISIBILIDADE.

CAROLINA ESCREVE PARA SALVAR A ESCRITA, PARA SALVAR SUA VIDA PELA ESCRITA, PARA SALVAR SEU PEQUENO “EU” (AS DEFORMAÇÕES QUE SE TINHAM CONTRA OS OUTROS, AS MALDADES QUE SE DESTILAM) OU PARA SALVAR SEU GRANDE “EU”, DANDO-LHE UM POUCO DE AR, E ENTÃO SE ESCREVE PARA NÃO SE PERDER NA POBREZA DOS DIAS.

FALTAVA-LHE O FEIJÃO, FALTAVA-LHE O PÃO, MAS NÃO LHE FALTAVAM PALAVRAS PARA JOGAR NA FOLHAS DE PAPEL.

EM VÁRIOS MOMENTOS DO DIÁRIO, A PRÁTICA DA LEITURA, SEMPRE PRESENTE NO COTIDIANO DA AUTORA, PREENCHE OS ESPAÇOS VAZIOS DO TEMPO.

QUANDO CHOVE E ELA SE VÊ IMPOSSIBILITADA DE SAIR PRA CATAR PAPEL, DEBRUÇA-SE SOBRE O LIVRO.

ANTES DE DORMIR, ELA LÊ PARA ACALMAR, RELAXAR E VIAJAR.

DEPOIS DE RECEBER GÊNEROS ALIMENTÍCIOS DOADOS POR UM CERTO CENTRO ESPÍRITA, CAROLINA ACALMA A FOME E OS ÂNIMOS E ESCREVE:

“O NERVOSO QUE EU SENTIA AUSENTOU-SE. APROVEITEI A MINHA CALMA INTERIOR PARA EU LER” (QD. p. 10).

“QUANDO EU NÃO TINHA NADA O QUE COMER, EM VEZ DE XINGAR, EU ESCREVIA. TEM PESSOAS QUE, QUANDO ESTÃO NERVOSAS, XINGAM OU PENSAM NA MORTE COMO SOLUÇÃO. EU ESCREVIA O MEU DIÁRIO” (QD, p. 195).

GOSTAVA MUITO DE LER E RELATAVA QUE, AO LER, O INDIVÍDUO ADQUIRIA BOAS MANEIRAS E FORMAVA O CARÁTER.

A VIDA NA FAVELA ERA FEITA DE MUITA LUTA, ESCREVER O DIÁRIO SERVIA COMO FORMA DE DESABAFO E DENÚNCIA DA “FALTA DE TUDO” QUE AQUELES MORADORES TINHAM.

“(...) LAVEI AS LOUCAS E VARRI O BARRACO. DEPOIS FUI DEITAR. ESCREVI UM POUCO. SENTI SONO, DORMI. ACORDEI VÁRIAS VEZES NA NOITE, COM AS PULGAS QUE PENETRA NAS NOSSAS CASAS, SEM CONVITE” (QD, p. 117).

- A ESCRITA E A LEITURA A MANTINHAM VIVA, VISTO QUE ERA POR MEIO DESSAS, QUE ELA ENCONTRAVA FORÇAS PARA COLOCAR PARA FORA TODAS SUAS REVOLTAS, ANSEIOS E ESPERANÇAS, DE REGISTRAR SUA CONDIÇÃO DE SUBALTERNIDADE E AS MÁCULAS QUE LHE FERIAM ENQUANTO SER HUMANO E AOS DEMAIS QUE A RODEAVAM.

(...) “AS VEZES MUDAM ALGUMAS FAMILIAS PARA A FAVELA, COM CRIANÇAS. NO INICIO SÃO IDUCADAS, AMAVEIS.

DIAS DEPOIS USAM O CALÃO, SÃO SOEZES E REPUGNANTES. SÃO DIAMANTES QUE SE TRANSFORMAM EM CHUMBOS.

TRANSFORMAM SE EM OBJETOS QUE ESTAVAM NA SALA DE VISITA E FORAM PARA O QUARTO DE DESPEJO (QD, p. 39).

ESCREVER ERA A VÁLVULA DE ESCAPE ALIADO À SUA RESISTÊNCIA, MAS TAMBÉM A OPORTUNIDADE DE FAZER PARTE DA SALA DE VISITAS COMO DIZ DURANTE A NARRATIVA:

“DEIXEI O LEITO PARA ESCREVER. ENQUANTO ESCREVO VOU PENSANDO QUE RESIDO NUM CASTELO COR DE OURO QUE RELUZ NA LUZ DO SOL. QUE AS JANELAS SÃO DE PRATA E AS LUZES BRILHANTES. QUE A MINHA VISTA CIRCULA NO JARDIM E EU COMTEMPLO AS FLORES DE TODAS AS QUALIDADES (...). EU PRECISO CRIAR ESTE AMBIENTE DE FANTASIA, PARA ESQUECER QUE ESTOU NA FAVELA” (QD,1960, p.60)

1.2 - A LEITURA E A ESCRITA DISTINGUEM A AUTORA DOS DEMAIS MORADORES DA FAVELA.

CAROLINA SE TORNOU LEITORA POR MEIO DE LIVROS, REVISTAS, JORNAIS, ENTRE OUTROS GÊNEROS DE ESCRITAS QUE ENCONTRAVA NOS LIXOS E ISTO, A DIFERE DOS DEMAIS MORADORES DA FAVELA, CONFERINDO-LHE UM CERTO STATUS SOCIAL.

CAROLINA CONTA QUE PELO SEU JEITO DE SER E AGIR ERA HOSTILIZADA PELAS PESSOAS DA FAVELA. FALA SOBRE AS IMPLICÂNCIAS E PERSEGUIÇÕES SOFRIDAS POR SEUS FILHOS QUE MUITAS VEZES ERAM VÍTIMAS DE MAUS-TRATOS POR PARTE DOS MORADORES E ATÉ MESMO DE COMO UM DE SEUS MENINOS CHEGOU A SER ACUSADO DE ASSEDIAR UMA GAROTA MENOR QUE ELE.

“NUNCA VI UMA PRETA GOSTAR TANTO DE LIVROS COMO VOCÊ”.

ALÉM DE TODAS AS LIMITAÇÕES QUE ENCONTRAVA PARA SOBREVIVER, AINDA SOFRIA PRECONCEITO ÉTNICO E DE GÊNERO.

AO ESCREVER CAROLINA FOGE DA PELE PRETA QUE A ENCARCERA E DO LUGAR PRETO ONDE MORA.

SEU PRÓPRIO “POVO”, QUESTIONAVA O SEU INTERESSE PELA LEITURA, DEIXANDO TRANSPARECER QUE UMA MULHER NEGRA E POBRE NÃO TINHA QUE GASTAR TEMPO COM LIVROS.

QUANDO QUESTIONADA SOBRE O QUE ESCREVE, RESPONDE:

“TODAS AS LAMBANÇAS QUE PRATICA OS FAVELADOS, ESTES PROJETOS DE GENTE HUMANA” (QD, p. 20).

QUANDO ENFRENTADA, AMEAÇA:

“VOU ESCREVER UM LIVRO REFERENTE A FAVELA. HEI DE CITAR TUDO O QUE AQUI SE PASSA. E TUDO O QUE VOCÊS ME FAZEM. EU QUERO ESCREVER O LIVRO, E VOCÊS COM ESTAS CENAS DESAGRADAVEIS ME FORNECEM OS ARGUMENTOS” (QD, p. 17).

ALÉM DISSO, VÊ EM SUA PRODUÇÃO AUTOBIOGRÁFICA UMA OPORTUNIDADE DE GANHAR DINHEIRO E SAIR DA FAVELA.

NAS ANOTAÇÕES DE 27 DE JUNHO DE 1958, ELA APONTA PARA O CARÁTER VICIOSO DA LEITURA:

“TEM MUITAS PESSOAS AQUI NA FAVELA QUE DIZ QUE EU QUERO SER MUITA COISA PORQUE NÃO BEBO PINGA [...] EU NÃO BEBO PORQUE NÃO GOSTO, E ACABOU-SE. EU PREFIRO EMPREGAR MEU DINHEIRO EM LIVROS DO QUE NO ÁLCOOL” (QD, p. 65).

AO ASSOCIAR A LEITURA AO VÍCIO DA BEBIDA, A AUTORA INDICIA QUE TAL PRÁTICA PERMITE A ELE “EMBRIAGAR-SE” E FUGIR DA DURA REALIDADE NA QUAL ESTÁ IMERSA.

1.3 – A ESCRITA COMO INSTRUMENTO DE DEFESA: DENUNCIAR A FAVELA E PARA SAIR DELA

AO DOCUMENTAR NOS SEUS CADERNOS O COTIDIANO DA FAVELA, AO TORNAR PÚBLICO O QUE É APARENTEMENTE PRIVADO, CAROLINA TORNA-SE INDESEJADA NO AMBIENTE ONDE VIVE.

ELA PASSA A USAR A ESCRITA PARA SE DEFENDER: DIANTE DAS AGRESSÕES VERBAIS O ARGUMENTO É SEMPRE O MESMO: REGISTRAR NOS CADERNOS O NOME DAQUELES QUE A INSULTAM.

CAROLINA SEMPRE EMPUNHAVA A ARMA MAIS FATAL, QUE NÃO VERTE SANGUE AO ATINGIR, MAS PROPÍCIA REFLEXÕES E PENSAMENTOS, COMO ELA MESMA DIZIA:

“NÃO TENHO FORÇA FÍSICA, MAS AS MINHAS PALAVRAS FEREM MAIS DO QUE ESPADAS. E AS FERIDAS SÃO INCICATRISAVEIS” (QD, p. 49).

“HÁ DE EXISTIR ALGUÉM QUE LENDO O QUE EU ESCREVO DIRÁ ... ISTO É MENTIRA! MAS, AS MISÉRIAS SÃO REAIS. ... O QUE EU REVOLTO É CONTRA A GANÂNCIA DOS HOMENS QUE ESPREMEM UNS AOS OUTROS COMO SE ESPREMESSE UMA LARANJA” (QD, p. 47).

O REPÚDIO A AUTORA ERA TANTO QUE NO DIA EM QUE IA SE MUDAR DA FAVELA, DEPOIS DO SUCESSO DO LIVRO, FOI APEDREJADA PELOS VIZINHOS.

1.4 – A ESCRITA COMO UM LIVRO DE CONTABILIDADE:

“QUARTO DE DESPEJO” A AUTORA REGISTRA O DINHEIRO QUE RECEBE DEPOIS DE LEVAR A UM DEPÓSITO OS PAPÉIS, FERROS E MATERIAIS RECICLÁVEIS RECOLHIDOS NAS RUAS.

“COMPRO PÃO OU SABÃO? COMPRO MACARRÃO OU GORDURA? ”

“FUI FAZER COMPRAS NO JAPONÊS. COMPREI UM QUILO E MEIO DE FEIJÃO, 2 DE ARROZ E MEIO DE AÇÚCAR, 1 DE SABÃO. MANDEI SOMAR. 100 CRUZEIROS. O AÇÚCAR AUMENTOU. A PALAVRA DA MODA, AGORA, É AUMENTOU” (QD, 1960, p.129).

1.5 – A ESCOLHA DAS PALAVRAS:

“OS BONS EU ENALTEÇO, OS MAUS EU CRITICO. DEVO RESERVAR AS PALAVRAS SUAVES PARA OS OPERÁRIOS, PARA OS MENDIGOS, QUE SÃO ESCRAVOS DA MISÉRIA” (QD, p. 54).

1.6 – A LIMITAÇÃO DA ESCRITA:

- A AUTORA REGISTRA A DIFICULDADE DE SIMBOLIZAR “O QUE ESTÁ PARA ALÉM DA SUA REALIDADE SOFRIDA”.

“HÁ COISAS BELAS NO MUNDO QUE NÃO É POSSÍVEL DESCREVER-SE” (QD, 2000, p. 39).

 1.7 – A ESCRITA COMO POSSIBILIDADE DE ASCENSÃO SOCIAL:

É ATRAVÉS DA PUBLICAÇÃO DO SEU LIVRO QUE ELA VISUALIZA A POSSIBILIDADE DE SAIR DO “QUARTO DE DESPEJO”, LUGAR ESTE, QUE CAUSA EM CAROLINA UM ENORME DESCONFORTO.

O DESCONFORTO EXPLICA PORQUE A AUTORA NUNCA RECONHECE A FAVELA ENQUANTO UM ESPAÇO QUE SEJA SEU, MAS O VÊ COMO UM ESPAÇO TEMPORÁRIO, LUGAR DE TRANSIÇÃO.

ALGUMAS VEZES IRRITA-SE POR REGISTRAR EM SEUS CADERNOS A PALAVRA “CASA” AO SE REFERIR AO BARRACO ONDE MORA.

FICA FELIZ AO SAIR NAS RUAS E AS PESSOAS BATEREM-LHE COM AS PORTAS NA CARA, POIS ASSIM NÃO PRECISA PARAR E CONVERSAR COM OS VIZINHOS.

1.8 – O MOMENTO DA ESCRITA E O MOMENTO DA DOR:

- CAROLINA AO COLOCAR NO PAPEL SUAS IMPRESSÕES ACERCA DA SUA VIDA FUNCIONA COMO UM DESABAFO, UMA FORMA DE COMPREENDER-SE. POR OUTRO LADO, AO ESCREVER SUAS IMPRESSÕES CAROLINA ESTARIA TRAZENDO PARA O INSTANTE DA ESCRITA O MOMENTO DO TRAUMA, DA DOR.

1.9 – INTERTEXTUALIDADE:

CAROLINA TAMBÉM ERA CONHECEDORA DE LITERATURA COMO NOS MOSTRA AO DIALOGAR COM ESCRITAS DOS POETAS CASTRO ALVES E CASIMIRO DE ABREU (1837-1860):

“(...) TOQUEI O CARRINHO E FUI BUSCAR MAIS PAPEIS. A VERA IA SORRINDO. E EU PENSEI NO CASEMIRO DE ABREU, QUE DISSE:

“RI CRIANÇA. A VIDA É BELA”.

- SÓ SE A VIDA ERA BOA NAQUELE TEMPO. PORQUE AGORA A EPOCA ESTÁ APROPRIADA PARA DIZER: CHORA CRIANÇA. A VIDA É AMARGA” (QD, p. 37).

 

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