terça-feira, 29 de outubro de 2024

OS RATOS, DYONÉLIO MACHADO - PRINCIPAIS PERSONAGENS

 


PERSONAGENS:

   As personagens criadas por Dyonélio Machado são esféricas, densas. Não há preocupação com aspectos exteriores, aflorando o lado íntimo ou psicológico.

Naziazeno Barbosa – Retrato fiel do modesto funcionário público pobre, que se desdobra em sacrifícios para manter um padrão de vida com o mínimo de dignidade para a família. É um homem comum rebaixado à condição de miserável, exposto à humilhação e ao anonimato que caracterizam o viver das aglomerações urbanas. Trata-se de um herói impotente diante de uma situação aparentemente simples: a fragilidade pela condição de penúria material, atormentado pela necessidade de saldar uma dívida com o leiteiro.

   Indivíduo de hábitos eminentemente urbanos, prevenido e observador; todavia fraco e indeciso, julgando constantemente ser inferir às outras pessoas, demonstrando incapacidade de ir além. Vive de imaginar que as coisas podem acontecer, sem, no entanto, tomar qualquer iniciativa.

   Naziazeno retrata a espécie de personagem carregada de densidade psicológica doentia, são os neuróticos urbanos, suas obsessões e ideias fixas.

Adelaide - Dona de casa, esposa de Naziazeno. Convive, diariamente, com as dificuldades de um orçamento familiar minguado, insuficiente para o sustento digno da família.


Mainho - Filho de Naziazeno e Adelaide, de quatro anos de idade, que sonha ter um automóvel de brinquedo.


Dr. Romeiro - Engenheiro e diretor da repartição pública onde Naziazeno trabalha. Há suspeitas de corrupção sobre ele. Certa vez, emprestou dinheiro a Naziazeno.


Cipriano – O insolente motorista do diretor.

Horácio, Clementino e Jacinto: Serventes. Funcionários da repartição.

Seu Júlio – Porteiro das obras. “Velho ranzinza e antipático”.

Otávio Conti – Advogado “com a carteira sempre cheia dos mil réis”.

Dr. Anacleto Mondina - Falso advogado; bom papo, simpático e gentil, bajulado por conta do dinheiro de que dispõe. Foi quem desembolsou o dinheiro para o grupo (Naziazeno, Alcides e Duque), permitindo ao herói voltar para casa com a quantia devida ao leiteiro.

Rocco - Agiota para quem Alcides já deve uma grana. Nega-se a fazer novo empréstimo.

Fernandes - Agiota que se nega a emprestar dinheiro (cem mil réis) a Duque.

Assunção
- Agiota da Rua Nova. Nega-se a emprestar dinheiro.

Alcides Kônrad - Amigo de Naziazeno. “Homem de bicos”, sempre andando pelas ruas, esquinas, sentado no banco das praças, parado nos cafés. Solteiro, vive com a velha mãe. Envolveu-se numa corretagem de automóvel com o Andrade e o Mr. Rees. Tem dívidas com o agiota Assunção e vive tentando fugir dos credores. Quando pressionado “desvia o olhar e fica sonolento, desligado do mundo”. É solidário com Naziazeno na pobreza e nas dificuldades, fazendo tudo para ajudá-lo.

Duque - Amigo de Naziazeno e de Alcides. Sujeito inteligente, “grande lábia”, está sempre dando um jeito de sair das dificuldades. Assim como Alcides, tem seus pontos na praça, em frente ao Banco Nacional, nos cafés, no mercado, no Restaurante dos Operários, etc. Jogador de talento, sorte e sapiência. Munido sempre de grandes idéias e iniciativa. Amigo de “negócios” de Anacleto Mondina e do Dr. Otávio Conti. Ganha alguns trocados com uma ou outra corretagem. Inspira confiança porque tem sempre uma solução para os problemas que envolvem dinheiro.

Fraga - Vizinho de Naziazeno. Parece ter uma vida bem arrumada e de “cumprimentos alegres” não precisando passar pelos vexames financeiros por que passa o protagonista.
Amanuense da Prefeitura – Vizinho dos fundos de Naziazeno. Tem mulher e filhos e anda sempre barbado. Tem “fama de não pagar ninguém”.

Rapaz silencioso – Mora numa casa contígua à de Naziazeno. Empregado de escritório da importadora. “Faz cara de quem não vê e não compreende nada”.


Costa Miranda – Cidadão baixote, cheio de pudores. Foi avalista de um empréstimo para o Alcides, que por sua vez não pagou. Amigo de Naziazeno; emprestou-lhe, na rua, cinco mil réis para o almoço.

Martinez - Dono da loja de penhores onde o anel de Alcides estava guardado. Mostrou boa vontade e foi, à noite, abrir a loja para devolver à jóia.

Mr. Rees: Gerente do New York Bank, que estava em viagem para o Rio de Janeiro.

Andrade – Corretor de valores, “lembra o Gonzaga, antigo dono de uma engraxataria, dinâmico, repleto de expediente”. Tem negócios com o Alcides.

Dupasquier - Dono de uma joalheria. Examina o anel de Alcides e oferece trezentos e cinquenta mil réis. Quando descobre que a proposta é de penhor, desiste do negócio.


segunda-feira, 21 de outubro de 2024

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA: “A COR PÚRPURA”, ALICE WALKER

 1. MULHER NEGRA:

A obra busca compreender e combater a exploração do trabalho feminino negro, o controle de imagens aplicado à opressão feminina negra e a dimensão política da expressão que negava às mulheres afro-estadunidenses direitos e privilégios, rotineiramente estendidos aos cidadãos do sexo masculino, brancos.

A desigualdade de gênero abordada anteriormente é um dos temas da obra reflete os dilemas da mulher negra, duplamente subjugada como negra e como mulher.

2. LITERATURA DE RESISTÊNCIA:

Os escritos de Walker denunciam e reconstroem o mundo por intermédio da linguagem e do mito, por meio de sua abordagem literária, questionam o conceito de identidade, direitos humanos e relações de gênero, mostrando-nos que para a autora, o trabalho da ficção não é apenas um escape do mundo, mas a intensa imersão e recriação pessoal da realidade vivida, verossimilhança, fingimento e desnudamento do psiquismo do ser.

Essas narrativas desvelam o interior do ser feminino, suas metamorfoses, sua fragmentação e revelam a mutilação do mundo na esfera do eu do ser humano contemporâneo.

O colonialismo, o racismo, as relações hierárquicas de gênero, a homofobia, a exploração da natureza e a opressão econômica possuem um sujeito ator comum que é o homem. Por isso, a autora transfigura a opressão feminina em suas obras, instaurando-as no campo da Literatura de resistência. A autora acredita que a Literatura também é um espaço de militância e utiliza a ficção literária como ferramenta para abordar as mais diversas formas de opressão exercidas sobre as mulheres ao redor do mundo. Walker (1998, p. 5) reflete que ao permitir que a linguagem do negro e o modo de fala dos antepassados sejam ouvidas, são reveladas as profundezas de nosso conflito com nossos opressores e os séculos em que esse conflito tem se manifestado.

3. A ESCRAVIDÃO DO CORPO:

É possível observar a inserção do corpo feminino no discurso, posto que o corpo, está sempre inscrito tanto na economia do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do poder.

Em diversas sociedades coloniais, a escravidão fomentou estereótipos que continuam a manifestar-se. Os trabalhos pesados aos quais foram submetidos os africanos e seus descendentes foram fundamentais na construção da imagem de força como sinônimo de barbárie. Isso, por um lado, permite ver as origens do preconceito da inferioridade das pessoas negras e de sua aptidão para trabalhos não qualificados, como o serviço doméstico, a coleta do lixo, o trabalho como porteiros ou cozinheiras; por outro lado, organizou uma gramática racial em torno da sexualidade. Dessa maneira, os corpos dos homens e das mulheres negras surgiram como um fetiche de superioridade e exotismo. O indivíduo negro visto como erótico está relacionado também com o primitivo, próximo à natureza; seu corpo é valorizado como sendo basicamente sexuado.

Neste sentido, é importante observamos que é na cama e através das relações sexuais que se centra a pretensão da autoafirmação do poderio do personagem Pai de A cor púrpura. Também é fazendo sexo, que o personagem caminha para a sua morte, como nos revela sua menina esposa Daisy:

“Como ele morreu? (...) ele morreu dormindo. Bom, não durmindo mesmo, ela falou. A gente tava passando o tempo junto na cama, você sabe, antes da gente durmir” (WALKER, 1986, p. 267). E é somente após sua morte que vem à tona o seu nome: “O homem que a gente conhecia como Pai ta morto. (...) Mas tarde dimais pra chamar ele de Alphonso” (WALKER, 1986, p. 267).

Durante a escravidão os corpos dos escravos pertenciam aos donos como se fossem corpos de animais. Assim, os brancos podiam manifestar livremente uma agressiva luxúria sobre as negras, e não raro sobre os negros (MOTT, 1988, p. 127). O mais doloroso de todos os preconceitos, é o estereótipo dos negros como fonte unicamente de prazer, como um animal feito para volúpia.

A personagem Sofia, em A cor púrpura, de forma perspicaz extrapola as perspectivas de qualquer universo fundamentado pela cultura machista: ainda enquanto solteira engravida e ao visitar o Sinhô, pai de Harpo seu futuro esposo, este lhe diz:

“Num pricisa pensar queu vou deixar meu minino casar com você só porque você é de família. Ele é novo e limitado. Moça bunita como você pode consiguir qualquer coisa dele” (WALKER, 1986, p. 43).

 

De maneira soberana, Sofia responde:

 

Pra que queu priciso casar com o Harpo? Ele ainda ta vivendo com o senhor. A Cumida e a roupa que ele tem, é o senhor que compra”; e diz para Harpo:

“Não, Harpo, você fica aqui. Quando você ficar livre, eu e o nenê vamo tá esperando” (WALKER, 1986, p. 43).

Entretanto, mesmo Sofia, sofre com o conflito étnico-social, conforme se percebe no fragmento seguinte:

 

Sofia e o campeão e todas as crianças entraram no carro de campeão e foram pra cidade. Ficaram desfilando como se fossem gente. Foi ai que o prefeito e a mulher dele apareceram.

Todas essas criança, a mulher do prefeito falou, fuçando na bolsa. Mas tão bunitinhas como butão, ela falou. Ela parou, botou a mão na cabeça de uma das crianças. E falou, esses dente branco tão forte.

Sofia e campeão num disseram nada. Esperaram ela passar. O prefeito também esperou, ficou um pouco pra trás, batendo o pé e olhando pra ela com um sorrisinho. Vamos Millie, ele falou. Sempre falando com os preto. A dona Millie passou a mão na criança um pouco mais, finalmente olhou pra Sofia e pro campeão. Ela olhou pro carro do campeão. Ela reparou no relógio de pulso da Sofia.

Ela falou pra Sofia, Todas as criança sua são tão limpa, ela falou você num que trabalhar para mim, ser minha impregada?

Sofia falou, Diabos não.

O prefeito olhou pra Sofia, puxou a mulher dele da frente. Esticou o peito. Moça, o que foi que você falou pra dona Milie?

Sofia falou. Eu falei Diabos não.

Ele deu um tapa nela.

Eu parei de falar bem ai.

Tampinha tava na beira da cadeira. Ela esperou. Olhou pra minha cara de novo.

Nem é preciso contar mais, Sinhô falou. Você sabe o que acontece se alguém dá um tapa na Sofia (WALKER, 1986, p. 101).

 

No excerto acima percebemos que a narradora protagonista Celie aceita prever em seu discurso o discurso de outrem, daqueles que viam os negros como animais irracionais, que não eram gente. Seu discurso de certa forma condescende com a ideia de que tanto a postura altiva de Sofia quanto à de Campeão não são apropriadas.

Neste sentido, apreendemos que não há um indivíduo único e, deste modo, seu discurso não pode ser único, mas sim multifacetado e fraturado, mostrando, assim, a própria fragmentação do indivíduo que o ecoa. Além disso, quando Celie traz a fala do prefeito que debocha da atitude de sua esposa em conversar com os pretos, a narradora traz para dentro do seu texto não só a fala de outrem, mas todo o imaginário social branco sulista americano da época.

Ao observar que o fato da esposa do prefeito ter reparado nos dentes brancos tão fortes da criança (como se observava no regime escravocrata), no carro do casal de negros, no relógio de pulso de Campeão, nos filhos limpos, deflagra-se a arrogância e a prepotência branca dessa personagem.

Ela não aceita os negros com dignidade e crê também no fato de que, por ser e manter os filhos tão asseados, Sofia tem a obrigação de lhe servir como empregada.

A mulher afrodescendente, além de contrapor-se à subordinação ao homem negro, busca também igualdade de direitos em relação à mulher de ascendência europeia. Essa condição amparada nas características históricas da sociedade escravista estadunidense transcorre o romance A cor púrpura e torna-se explícita no momento em que Sofia, exemplo da aversão à subordinação ao homem negro na narrativa, do mesmo modo arrisca-se a lutar contra a posição de doméstica de uma mulher branca. Ou seja, procura opor-se à discriminação étnico-racial e sua submissão à mulher branca.

Porém, na trama de Walker, se Sofia teve a capacidade de resistir à subjugação ao homem negro, o sistema em que as desigualdades de oportunidades são precisamente esboçadas, não consente sua não-servidão à mulher branca, como serviçal, ilustrando desta forma a opressão tanto de classe, quanto de gênero e etnia.

- Vale lembrar que a obra toda de Alice Walker estampa a marca popular no discurso das personagens, o que pode ser exemplificado pela impressão da norma não padrão da língua no texto de A cor púrpura. Isto objetiva fortalecer a imagem das raízes da produção narrativa afroamericana, e permite que a resistência da escrita se materialize além do campo do conteúdo e adentre a “textura”

- É importante observar que os artifícios de escrita usados por Alice Walker têm a finalidade de expressar as motivações do inconsciente e situar o leitor no exato local e tempo em que as cartas de Celie e Nettie são redigidas. Não se trata apenas de um uso metalinguístico, mas da recuperação da função fática da linguagem, ou seja, a de mostrar o suporte, pois o elemento fático presente nas cartas aponta para a possibilidade do papel que é o lugar de resistência até mesmo do que foi já dito.

- A escrita dessas cartas expõe forma e conteúdo como complementares: revelam a característica majoritária de seus personagens no que tange à falta de domínio e uso do dialeto da classe dominante, à opressão geracional (a visão de uma menina em relação ao universo adulto e masculino), étnica (os conflitos raciais em uma pequena cidade do Estado da Geórgia) e a manifestação do womanism de Celie.

- Após ser separada de Celie, Nettie através de cartas incentiva sua irmã a se libertar do personagem Sinhô, que, no meio do romance, tem seu nome revelado: Albert. Ela ensina-lhe que nem todos os homens negros são ruins e nem todas as mulheres negras são espezinhadas como os exemplos que tiveram na infância:

Como o passar de mais anos, Harpo, o filho mais velho de Sinhô, casa-se com Sofia, mulher sábia, grande, forte e independente, tem consciência de que o desenvolvimento sentimental da mulher negra perpassa pela sua experiência existencial com os homens negros e o universo dos brancos e essa postura fascina Celie, já a mesma aceitou como normal um quotidiano de abusos de várias espécies.

E, é ao lado de sua nora que a personagem vai vivenciar a sua segunda experiência womanist, levando-a a apreender a importância da autoestima e da solidariedade.

Sofia, que não engoliu as agressões gratuitas da esposa do prefeito e a agrediu, acabou atrás das grades, em uma prisão de condições subumanas, que quase a mataram.

Conforme as palavras de sua personagem central Celie:

O jeito para você saber quem discubriu a América, Nettie falou, é pensar nos calombo. É parecido com Colombo. Eu aprendi tudo sobre Colombo no primeiro grau, mas parece que foi a primeira coisa que eu isqueci. Ela falou que Colombo veio aqui nos barco com nome de Nina, Pinta e Santamaría. Os índios foram ótimos pra ele e ele levou um monte deles forçado de volta com ele pra servir a rainha (WALKER, 1986, p. 19).

É curiosa essa referência a Colombo no texto de Alice Walker. Como sabemos os numerosos escritos de Cristóvão Colombo, onde se detalhava os nomes, as coisas que o explorador italiano viu e ouviu por ocasião de sua chegada à América, foram registrados em seu diário e, além disso, em cartas.

Ele foi o portador da primeira carta que chegou à América, do mesmo modo como foi o autor da primeira carta que saiu deste continente; onde noticiava o que lá encontrou.

Ora, as cartas em A cor púrpura perpassam os espelhos da memória. A personagem Nettie, em sua missão na África, resgata identidades submersas no chão dos seus antepassados. A memória configura-se aqui como via de conquista do que parecia ter naufragado nos percursos transatlânticos que espalharam os africanos no mundo inteiro em decorrência da escravidão: outra versão da História, figuras mitológicas, crenças, lendas, contos, cantos e versos.

O texto de Walker ilustra, dessa forma, a África que, mesmo inconscientemente, vive nas mentes, e na própria existência dos seus filhos exilados da diáspora. Trata-se de uma África espalhada pelo mundo inteiro, pois “afro”, neste texto, tem a dimensão de todo indivíduo, cultura, sociedade que possui na sua essência, a maternidade africana, ainda que em tempos e espaços diferentes. E, ao se espalhar, essa África também adquire diferentes identidades.

Neste sentido, cabe observar que, assim como o seu suporte epistolar, a textualidade desse romance manifesta o desejo de unir o que está implícito ou sugerido, isto é, aproximar o que está distante. Esse fato adquire extrema plasticidade no momento da narrativa em que a primeira carta de Nettie é entregue à sua irmã Celie:

Sábado de manhã a Doci botou a carta de Nettie no meu colo. A rainha gordinha da Inglaterra tava num selo, depois mais selo com amendoim, palmeira, seringueira e dizia África. Eu num sei onde é a Inglaterra. Também num sei onde é a África. Por isso, eu ainda num sei onde a Nettie tá (WALKER, 1986, p. 137).

Escrita e leitura são operações que aparecem diversas vezes na narrativa de Walker envoltos deste desejo, como vemos no texto da personagem Nettie sobre sua missão na África:

Eu nunca tinha percebido o tanto que eu era ignorante, Celie. O pouco que eu sabia sobre mim mesma não teria dado nem para encher um dedal. E imagine que a Dona Beasley sempre dizia que era a criança mais inteligente que ela já tinha ensinado! Mas eu agradeço a ela por uma coisa em particular que ela me ensinou, me mostrando como aprender por mim mesma, lendo e estudando e escrevendo claramente. E por ter mantido dentro de mim de alguma forma o desejo de SABER. Então quando Samuel e a Corrine perguntaram se eu iria com eles ajudá-los, a montar uma escola no meio da África, eu disse que sim. Mas só se eles me ensinassem tudo que sabiam para que eu fosse útil como missionária e para que eles não tivessem vergonha de me ter como amiga. Eles concordaram com esta condição, e a minha verdadeira educação começou ai  (WALKER, 1986, p. 151).

Desse modo, a inserção do gênero epistolar no romance de Walker traz no seu bojo a essência expressiva, a vontade de evadir e a aspiração libertária, visto que se escreve por não poder falar. Porém, não se pode, também, silenciar frente à distância, à separação ou ao exílio. Nas palavras do filósofo francês André Comte-Sponville:

Durante séculos a carta foi o único meio de dirigir-se aos ausentes, de levar o pensamento aonde o corpo não podia ir, aonde a visão não podia ir, e talvez esse seja o mais belo presente que a escrita deu aos viventes: Permitir-lhes vencer o espaço, vencer a separação, sair da prisão do corpo ao menos um pouco, ao menos pela linguagem, por esses pequenos traços de tinta sobre o papel (COMTESPONVILLE, 1997, p. 16).

4. CELIE E A SEXUALIDADE:

O ensaio sob a visão literária da personagem fictícia Celie da obra “A Cor Púrpura” é de cunho de denúncia social, pois o enredo evidencia através da trajetória vivida pela personagem principal fatores relevantes que abordam temáticas de preconceito racial e de gênero e violência psíquica e física, abordaremos também questões da delicada percepção da sexualidade de Celie.

Ela é um personagem redondo, ou seja, vai mudando na história.

Desde as primeiras páginas, o livro nos traz o drama vivido por Celie e nos relata sobre a história de sua vida, desde sua infância conturbada até a fase adulta, fatores que acarretaram na formação de sua personalidade passiva e submissa resultante de suas experiências de mundo.

Cabe ressaltar que esta obra literária, puramente fictícia, possui ligação direta com a realidade de muitas pessoas, e por ser de grande relevância social as temáticas presentes na obra, a avaliamos como grito de denúncia.

Já nas primeiras páginas do livro observamos na fase de sua infância os abusos cometidos contra Celie pelo homem que supostamente era seu pai, sob o olhar de hoje é claro e evidente os atos de pedofilia e maus tratos ocorridos, logo após, aos 14 anos de idade Celie é dada para casar cumprindo assim sua ‘função social’, excluindo sua sexualidade do ponto matrimonial.

A escritora deixa muito claro a questão dos abusos cometidos pelo padrasto e depois pelo marido da personagem, figuras masculinas e predadoras que mostra seu domínio submetendo Celie contra vontade a realizar suas vontades, anulando a condição humana da personagem, sendo vista apenas como objeto por seu marido e personagens que aparecem na história. As mulheres todas só prestam para... e não acaba. Dobra o jornal com a ajuda do queixo, como de costume. Faz-me lembrar o meu pai. O Harpo pergunta: Por que és casmurra? Mas não pergunta: Por que és mulher dele? Isso ninguém pergunta. Já nasci assim, suponho, respondo eu. Ele bate, como se bate às crianças. Só que não costuma bater nos filhos. Diz-me: Celie traz o cinto. As crianças estão lá fora a espreitar pelas gretas da porta. Só posso fazer o possível para não chorar. Transformar-me em madeira. Cellie és uma árvore, digo comigo mesma. É assim que descubro que as árvores têm medo dos homens. (WALKER, 1986, p. 23)

Na primeira frase observamos a fala de Albert colocando a mulher como figura de objeto. Cellie se equivale metaforicamente a madeira sem vida que não sente dor, a arvore tem medo do homem, mas aguenta o golpe do machado. As metáforas trazem um ar reflexivo filosófico, como meio comparativo entre o ser humano e a natureza selvagem subjugada ao seu desejo de impor suas vontades. O que a tua mão não quer fazer, vais tu fazer. E encostou-me aquela coisa à anca e começou a mexe-la e agarrou-me a mama e metia-me a coisa por baixo e, quando eu gritei, esganou-me e disse: O melhor é calares o bico e começares a te acostumar. Mas nunca me acostumei. (WALKER, 1986, p.6)

A violência sexual e domestica que assola Celie se caracteriza no texto de forma evidente pelos atos praticados por seu padrasto e seu marido Albert, esses tipos de violências estão relacionadas dentro do texto como formação social de reprodução da condição da mulher na sociedade da época e ainda é reproduzida nos dias de atuais. Celie teve a infância roubada pela trágica situação que foi imposta a ela, aos 14 anos de idade casou-se e continuou privada dos estudos, vedada ao trabalho doméstico e no campo e fadada a objeto sexual. O casamento é uma instituição social, que se apresentou à mulher de maneira radicalmente diferente para o homem e para a mulher. A condição que as mulheres se encontram não é determinada de forma natural, mas sim de forma cultural.

Vale ressaltar e destacar esses fatores relevantes que tanto atribuíram para o desenvolvimento da sexualidade de Celie. O asco desenvolvido por Celie para com os homens justifica-se pela sua experiência traumática, e seu desejo inato pelo sexo feminino, na história Shun desperta seu desejo e sua amizade.

O corpo de Celie desconhecia o prazer e seus sentidos, além das questões que ela sofria de ataques psicológicos a sua autoestima sendo em diversos momento chamada de feia, burra e preta, ainda somava a esses fatores a questão de abusos físicos. Tudo isso desencadeou em sua personalidade passiva, um critério de sobrevivência desumana, de submissão total.

Na história a paixão que despertou por Shug acende Celie, desperta também uma tomada sutil e vagarosa de consciência e busca pela independência e autonomia de sua vida.

Celie passa por um longo período de repressão de sua sexualidade por falta de conhecimentos, desconhecendo até mesmo sua própria anatomia. Suas principais descobertas estão ligadas ao seu laço com Shug. Seu contato eminente com aquela mulher sedutora e ousada totalmente oposta a ela a deixa confusa, pois não saberia distinguir ao certo o que estava sentindo se não teve nenhuma orientação que a ajudasse com relação a seus impulsos sexuais devaneios. A primeira vez que vi o corpo todo da Shug Avery, comprido e escuro, com mamilos cor de ameixa, como a boca, pensei que me tinha transformado em homem. (WALKER, 1986, p. 25)

Celie se apaixona por uma mulher que eventualmente era amante de seu marido Albert, a qual passou umas temporadas na casa dele, foi durante a estadia de Shug na fazenda, que ela despertou o interesse da doce Celie enquanto ela cuidava dela. Há qualquer coisa, nas veias finas e macias que vejo ou nas grandes, que faço por não ver, que me assusta. É como se me empurrassem para frente. Se não desvio os olhos vou pegar naquela mão e descobrir a que é que sabem os dedos dela na minha boca. (WALKER, 1986, p.26).

As insinuações de pretensão sexual deixam evidente seu desejo ainda reprimido. Com o passar do tempo Shug e Celie se tornam amigas, essa proximidade da margem a troca de carícias entre elas, Shug inicia Celie como passagem para a descoberta de seu próprio corpo e o prazer. Escuta, diz ela, mesmo aí na tua passarinha há um grelo que fica a ferver quando fazes aquilo que sabes com alguém. Fica cada vez mais quente e depois se derrete. Essa é a parte boa. Mas também há outras. Muito trabalho de mãos e de língua. Grelo? Mãos e língua? A minha cara está tão quente que é capaz de ser ela a derreter-se. Toma, pega neste espelho e olha para ti, aí em baixo. [...] Deito-me de costas na cama e levanto o vestido. Baixo os meus culotes. Seguro o espelho entre as pernas. Uíl Tanto pêlo! Depois uns lábios que parecem negros. E na parte de dentro uma rosa úmida. É muito mais bonita do que julgavas, não é? diz ela da porta. É minha. Onde fica o grelo? Mesmo em cima. Essa parte que sai um bocado. Olho e toco-lhe com o dedo. Tremo um bocadinho. Não é grande coisa mas chega para saber que é aí que se deve tocar. Talvez. A Shug diz: Já que estás a ver, olha também para as mamas. (WALKER, 1986, p. 51).

Celie desconhecia totalmente a anatomia humana e a função da genitália, pois durante toda vida nunca sentiu prazer, o ato sexual era visto por ela como sua obrigação. Aquela atitude traquina de fazer algo em segredo com Shug e descobrir novidades já faz parte de sua transformação na história. A cumplicidade entre as parceiras não toma posição de dominado objeto e dominante dono, ambas se doam uma a outra. A relação de Celie e Shug se deu a partir de sua aproximação de amizade. Após dividir suas dores e frustrações, de conhecerem bem uma a alma da outra, Celie se sentia protegida com a presença de Shug. [...] Enquanto lhe aparava o cabelo ele olhava para mim de uma maneira esquisita. Também estava um bocado nervoso, mas eu não sabia porquê até ele me agarrar e me filar entre as pernas dele.[...] Magoou-me, sabes, digo eu. Inda ia fazer catorze anos. Nem nunca tinha pensado que os homens tinham ali em baixo uma coisa tão grande. Só de a ver me assustei. E a maneira como entrava em mim e crescia[...] E choro, choro, choro.[...]. Como magoava e como eu estava admirada. Como ardia enquanto acabava de lhe aparar o cabelo. Como o sangue pingava pelas minhas pernas abaixo e me sujava a meia. (WALKER, 1986, p.55).

Nota se o flagelo da situação que a protagonista foi submetida, a imagem clara do estupro e de sua ignorância, Celie, não sabia como contornar a situação ou o que fazer, estava assustada e era vítima e refém das infelizes circunstâncias, um mero objeto acuado nas mãos de um predador.

[...] Nunca ninguém gostou de mim, digo. Ela diz: Eu gosto de ti, Miss Celie. E depois levanta-se e beija-me na boca. Uhm, diz ela, como se estivesse admirada. Eu beijo-a também e também. Beijamo-nos tanto que já quase não podemos mais. Então tocamos uma na outra. Eu não sei nada disto, explico à Shug. [...] É uma coisa quente e macia, e sinto os peitos grandes da Shug a bailarem sobre os meus braços como bolas de sabão. Parece o céu, é com isso que se parece, não é nada como dormir com o Sr. (WALKER, 1986, p.56).

Neste trecho do livro é expresso o encontro amoroso e a descrição do ato lesbiano entre as duas, fato de não haver um ser dominante e a cumplicidade entre ambas, torna essa descoberta sexual para Celie como a libertação de seus desejos, na comparação que ela própria faz o coito com Shug em nada se parece com sua obrigação conjugal com seu marido. Celie consegue enfim se libertar da ignorância que a aprisionava e encontra a real felicidade.

 

domingo, 6 de outubro de 2024

“O OVO APUNHALADO, CAIO FERNANDO ABREU - ANÁLISE CRÍTICA-LITERÁRIA DO CONTO GRAVATA

 GRAVATA, CAIO FERNANDO ABREU

 


A primeira vez que a viu foi rapidamente, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus. Mesmo assim, teve certeza de que havia sido feita apenas para ele. No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la. Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque. Disfarçado, observou o preço e, em seguida, retomou o caminho. Cara demais, pensou, e enquanto pensava decidiu não pensar mais no assunto.

Quase conseguiu — até o dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia.

Pelo vidro da janela analisou sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras. Em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar — mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão, surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la.

Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais. Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume. Na manhã seguinte, tomou a decisão: dentro de um mês, ela seria sua. Passou na loja, mandou reservá-la, quase envergonhado por fazê-la esperar tanto. Que ela, sabia, também ansiava por ele.

Trinta dias depois ela estava em suas mãos. Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela — o trivial não seria suficientemente expressivo, nem mesmo o meramente correto seria capaz de atingi-la: metafísicas, budismos, antropologias.

Permaneceu deitado durante muito tempo, a observá-la sobre a colcha azul. Dos mais variados ângulos, ela continuava a mesma, terrivelmente bela, vaga e inatingível — mesmo ali, sobre a cama dele, mesmo com a nota de compra e o talão de cheques um pouco mais magro ao lado. Olhava os sapatos, as meias, a calça, a camisa — e não conseguia evitar uma espécie de sentimento de inferioridade: nada era digno dela. Um pouco mais tarde abriu o guarda-roupa e então deixou que um soluço comprimisse subitamente seu peito de coração ardente, como duas mãos que apertassem para depois libertá-lo em algumas lágrimas desiludidas. Não era possível. Não podia obrigá-la, tão nobre, a servir de companhia àqueles ternos, sapatos e camisas antigos, gastos, vulgares, cinzentos. Foi depois de olhar perdido para o assoalho que teve como um repente de lucidez. Então encarou agressivo a impassibilidade da gravata e disse:

– Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la à hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma. Você...

Não conseguiu ir adiante. A voz dele estremeceu e falhou bem no meio de uma palavra dura, exatamente como se estivesse blasfemando e Deus o houvesse castigado.

Um Deus de plástico, talvez de acrílico ou néon. Olhou desamparado para o sábado acontecendo por trás das janelas entreabertas e, sem cessar, para a colcha azul sobre a cama, logo abaixo da janela e, mais uma vez, para a gravata exposta em seu suporte de veludo pesado, vermelho.

Ele enxugou os olhos, encaminhou-se para a estante. Abriu um dicionário. Leu em voz alta:

Gravata S. f: lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço. Golpe no pescoço, em algumas lutas esportivas. Golpe sufocante, aplicado com o braço no pescoço da vítima, enquanto um comparsa lhe saqueia as algibeiras.

Suspirou, tranquilizado. Não havia mistério. Colocou o dicionário de volta na estante e voltou-se para encará-la novamente. E tremeu. Alguma coisa como um pressentimento fez com que suas mãos se chocassem de repente num entrelaçar de dedos. E suspeitou: por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento. Mas não era medo, embora já não tivesse certeza de até que ponto o olhar dele mesmo revelava uma verdade óbvia ou uma outra dimensão de coisas, inatingível se não a amasse tanto. Essa dúvida fez com que oscilasse, de tal maneira precário que novamente precisou falar:

– Você não passa de um substantivo feminino — disse, e quase sem sentir acrescentou - ... mas eu te amo tanto, tanto.

Recompôs-se, brusco. Não, melhor não falar nada. Admitia que não conseguisse controlar seus pensamentos, mas admitir que não conseguisse controlar também o que dizia lançava-o perigosamente próximo daquela zona que alguns haviam convencionado chamar loucura. E essa era a primeira vez que se descobria assim, tão perto dessas coisas incompreensíveis que sempre julgara acontecerem aos outros — àqueles outros distanciados, melancólicos e enigmáticos, que costumava chamar de os-sensíveis — jamais a ele. Pois se sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas.

Então, admitiu o medo. E admitindo o medo permitia-se uma grande liberdade: sim, podia fazer qualquer coisa, o próximo gesto teria o medo dentro dele e, portanto, seria um gesto inseguro, não precisava temer, pois antes de fazê-lo já se sabia temendo, já se sabia perdendo-se dentro dele — finalmente, podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela.

Todo enleado nesse pensamento, tomou-a entre os dedos de pontas arredondadas e colocou-a em volta do pescoço. Os dez dedos esmeraram-se em laçadas: segurou as duas pontas com extremo cuidado, cruzou a ponta esquerda com a direita, passou a direita por cima e introduziu a ponta entre um lado esquerdo e um lado direito. Abriu a porta do guarda-roupa, onde havia o espelho grande, olhou-se de corpo inteiro, as duas mãos atarefadas em meio às pontas de pano. Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo. Vou viver uma madrugada de domingo — disse para dentro, num sussurro. — Basta apertar. Mas antes de apertar uma coisa qualquer começou a acontecer independente de seus movimentos. Sentiu o pescoço sendo lentamente esmagado, introduziu os dedos entre os dois pedaços de pano de cor vagamente indefinível, entremeado por pequenas formas coloridas, mas eles queimavam feito fogo.

Levou os dedos à boca, lambeu-os devagar, mas seu ritmo lento opunha-se ao ritmo acelerado da gravata, apertando cada vez mais. Ainda tentou desvencilhar-se duas, três, quatro vezes, dizendo-se baixinho do impossível de tudo aquilo, o pescoço queimava e inchava, os olhos inundados de sangue, quase saltando das órbitas. Quando tentou gritar é que ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, boca aberta revelando algumas obturações e falhas nos dentes, inúmeras rugas na testa, escassos cabelos despenteados, duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito, uma das mãos cerradas com força e a outra estendida em direção ao espelho — como se pedisse socorro a qualquer coisa muito próxima, mas inteiramente desconhecida.

ANÁLISE CRÍTICA-LITERÁRIA:

“[...] podia partir para qualquer coisa, porque de qualquer maneira estaria perdido dentro dela”.

Caio Fernando Abreu

 

No conto “Gravata”, de Caio Fernando Abreu, há uma clara referência ao fator econômico na construção do enredo e na estruturação das personagens, em um contexto marcado por intensas transformações políticas e sociais.

O texto de Abreu apresenta uma metáfora do indivíduo que é dominado e sufocado pela sociedade, como uma crítica ao mercado, ao consumo excessivo que impera na sociedade capitalista. A solidão do sujeito e a busca do amor em um objeto retratam uma sociedade pautada na lógica do mercado.

Este sufocamento se dá a partir da submissão da identidade individual do sujeito aos padrões de consumo estimulados pelo sistema capitalista.

No conto, a subjetividade do protagonista eleva-se em oposição à objetividade do mercado consumidor, reproduzindo os dilemas mais íntimos dos sujeitos que viviam no ambiente urbano e integravam a força produtiva da época.

O conto “Gravata” apresenta um narrador onisciente que nos expõe a conturbada relação entre um homem e um objeto (a gravata).

Desde seu início, este conto revela-se como uma reflexão acerca da repressão imposta pelo brutalismo característico da sociedade brasileira da década de 1970, entusiasmada com uma promessa de progresso e cada vez mais desumana.

Como afirma Ana Paula Ohe (2009):

O “milagre econômico” brasileiro proporcionou ao país um crescimento da economia em ritmo acelerado. O ingresso maciço de capitais e empresas estrangeiras possibilitara a ampliação do mercado interno e externo. É nesse período, que pela primeira vez, a produção brasileira encontrara um mercado consumidor significativo em outros países, fazendo com que a transitoriedade dos modismos rompesse os limites territoriais para inscrever-se num âmbito global, tornando visível as mudanças nos padrões tanto de produção como de consumo. (OHE, 2009, p. 7)

Este contexto, regido pela lógica do consumo, é refletido no conto a partir da busca do personagem por se sentir incluído socialmente, através da aquisição de um bem material capaz de diferenciá-lo dos demais:

“No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia” (ABREU, 2008, p. 24).

A percepção de que a vida de algumas pessoas em sociedade se tornou efêmera e corriqueira pode ser relacionada com o consumismo, com o acúmulo de bens materiais e, consequentemente, de trabalho e de informação.

Assim, o indivíduo busca sentir-se melhor por meio da aderência a modismos, no caso do conto em análise, através da compra de uma gravata, que além de ser capaz de destacá-lo entre seus iguais – outros homens com o mesmo padrão de vestimenta e, que assim como ele, utilizam transporte coletivo –, também, por si só se constitui em um símbolo de marcação de status.

Pouco sabemos sobre o protagonista: trata-se de uma alegoria do homem comum. Desconhecemos seu nome, somos informados sobre algumas de suas características físicas (apresenta obturações e falhas nos dentes, rugas na testa e escassos cabelos) somente no último parágrafo, até então o destaque era dado apenas à gravata) e sobre parte de sua rotina de trabalho repetido por ele diariamente (trajeto de casa de ônibus para ir ao trabalho, vive sozinho, prepara o próprio jantar, fuma) e a cada saída para o trabalho ele passa pelos mesmos lugares.

A construção desta personagem oferece pistas substanciais para reflexão do distanciamento nas relações pessoais, do sentimento de solidão e perda de identidade que o homem experimenta nas situações características da vida urbana, que aglomera os seres, mas não os aproxima.

A racionalidade predomina em suas ações e torna suas posturas mecânicas, repetitivas.

A personagem está conectada com o mundo através dos meios de comunicação de massa, o que o torna presa fácil de campanhas publicitárias e ideológicas, que como ainda hoje, empurram os indivíduos para um consumo desenfreado e inconsequente, como pode ser constatado em trechos:

Deitado, a cama pareceu menos vazia que de costume” (Id. p. 25) e “em casa, atarefado na cozinha, dispondo pratos, panelas e talheres para o próprio jantar, conseguiu por alguns momentos não pensar – mas um pouco mais tarde, jornal aberto sobre os joelhos, olhar perdido num comercial de televisão [...]” (Id., p. 24).

Não há no texto referência aos sujeitos que o protagonista possa conhecer ou encontrar ao repetir diariamente o mesmo trajeto. Quando o narrador menciona os demais homens que viajam no mesmo ônibus, estes surgem sem rostos, sem traços físicos, sendo identificados apenas pelas roupas que portam. As roupas, assim, são o elemento que equipara todos os homens, enquanto que, suas características físicas e psicológicas não são levadas em consideração.

As marcas urbanas, como as ruas, os ônibus, o asfalto e as lojas, são sobrepostas aos aspectos humanos no texto.

No ônibus, observou impiedoso as gravatas dos outros homens, todas levemente desbotadas e vulgares em suas colorações precisas, sem a menor magia. Pelo vidro da janela analisou a sua própria gravata, e decepcionou-se constatando-a igual a todas as outras” (ABREU, 2001, p. 26).

Sua rotina de trabalho estabelece certa “objetividade” em sua vida. Essa objetividade, no entanto, é abalada pelo encantamento que ele passa a sentir em relação a um objeto (uma gravata). Almejar um objeto novo, supostamente superior ao que possuía, converte o protagonista em apenas mais um dos tantos sujeitos que vivem na urbe, que fazem parte do sistema capitalista que nela impera.

Após ver a gravata pela primeira vez em uma vitrine, entre um tropeço e uma corrida para não perder o ônibus, delineia-se uma relação sentimental entre o homem e o objeto que se torna alvo de seu desejo e tem certeza de que ela havia sido feita apenas para ele e que não poderia mais esquecê-la, então, passou a organizar sua vida objetivando adquiri-la.

“No dia seguinte quando, voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela” (ABREU, 2001, p. 26).

O que surge como diferencial no texto é o fato do protagonista devotar um sentimento tão forte para a gravata (denominado por ele de “amor”), dando ao objeto um status único, equiparando-o a uma pessoa numa espécie de amor platônico:

“No ônibus, não houve tempo para pensá-la mais detidamente, mas, no dia seguinte, saindo mais cedo do trabalho, parou em frente à vitrine para observá-la” (ABREU, 2008, p. 24).

“[...] voltando pela mesma rua, tornou a defrontar-se com ela, no mesmo lugar, sobre um suporte de veludo vermelho, escuro, pesado. Um suporte digno de tanta dignidade, pensou. E imediatamente soube que já não poderia esquecê-la. [...] surpreendeu-se a fazer contas, forçando pequenas economias que permitissem possuí-la. Na verdade, era mais fácil do que supunha. Alguns cigarros a menos, algumas fomes a mais (ABREU, 2008, p. 24-25).

Nesse momento, a gravata ganha vida no texto, assume superioridade como pode constatar no título do conto. Ocupa o espaço dos demais indivíduos nas relações pessoais (objeto humanizado de um lado e sujeito coisificado de outro). Enquanto a ausência de uma precisão na caracterização do protagonista remete a uma equiparação entre todos os “homens”, entre todos os indivíduos que possuem rotinas de trabalho, que tomam ônibus e vivem sozinhos, convertendo-o em apenas mais um sujeito no meio da multidão, a impossibilidade de descrever com precisão a gravata devido à complexidade com que se apresenta para o personagem dá ao objeto um lugar de maior destaque do que o que é conferido ao sujeito. O desejo, a necessidade pelo objeto se apodera do indivíduo de tal forma, que este se vê absolutamente seduzido pela imagem da mesma:

“Era nada menos que perfeita na sua cor vagamente indefinível, entremeada de pequenas formas coloridas, em seu jeito alongado, na consistência que pressentia lisa e mansa ao toque” (ABREU, 2001, p. 24), tanto é, que mesmo após concluir que não dispunha de meios para pagá-la, não conseguiu desistir de comprá-la.

Recorrendo ao conceito apresentado no próprio conto, uma gravata é um “lenço, manta ou fita que os homens, em trajes não-caseiros, põem à roda do pescoço e por cima do colarinho da camisa, atando-a adiante com um nó ou laço” (ABREU, 2008, p. 26), ou seja, algo inapropriado, ou ainda, improvável para um sujeito que em seu trabalho realize atividades que envolvam esforço físico – as quais são desvalorizadas e até vistas com preconceito pela sociedade.

A gravata é usada, comumente, em conjunto com um terno e com sapatos, sendo associada a um traje mais formal e pertencente a ambientes de trabalho que requerem o emprego da razão em oposição à força física. Vinculada ao ambiente urbano, a gravata erige-se como uma marca da rotina de trabalho do protagonista na urbe.

Quando, enfim, consegue adquiri-la, o protagonista se vê em meio a sentimentos opostos: ao mesmo tempo em que busca racionalizar o que sente na tentativa de perceber a gravata como um objeto e, então, fazer uso dela, ele percebe a impossibilidade de controlar suas emoções: o protagonista debate-se entre o objetivo (a lógica do mercado) e o subjetivo (seus sentimentos).

“A cama pareceu menos vazia que de costume” (ABREU, 2001, p. 27), fazendo as vezes de um par romântico:

“Apalpou-a sôfrego, enquanto sentia vontade de usar adjetivos pomposos e cintilantes, de recriar toda a linguagem para comunicar-se com ela” (ABREU, 2001, p. 27).

Mas, seus sentimentos não podem ser facilmente racionalizados. O sujeito do conto de Abreu vê-se perdido, atordoado, pois o fato da gravata ser um objeto não impede que ele a ame. No texto, o narrador nos mostra a gravata com traços humanos, atribuindo-lhe também sentimentos:

“Que ela, sabia, também ansiava por ele” (ABREU, 2001, p. 27).

Ao tentar racionalizar o que sente, busca na falta de humanidade da gravata uma justificativa para a impossibilidade de amá-la:

“Você é minha. Você não passa de um objeto. Não importa que tenha vindo de longe para pousar entre coisas caras na vitrine de uma loja rica. Eu comprei você. Posso usá-la a hora que quiser. Como e onde quiser. Você não vai sentir nada, porque não passa de um pedaço de pano estampado. Você é uma coisa morta. Você é uma coisa sem alma“ (ABREU, 2001, p. 28).

E essa relação intensifica-se: “eu te amo tanto, tanto” (ABREU, 2001, p. 29).

O ato de vivenciar algo desconhecido, algo que ele não consegue racionalizar “por mais que tentasse racionalizá-la ou enquadrá-la, ela sempre ficaria muito além de qualquer tentativa de racionalização ou enquadramento” (ABREU, 2001, p. 29) coloca-o em conflito existencial, surge a loucura em oposição à razão.

“Pois sempre fora tão objetivo. Suportava apenas as superfícies onde o ar era plenamente respirável, e principalmente onde os sentidos todos sentiam apenas o que era corriqueiro e normal sentir. Subitamente pensava e sentia e dizia coisas que nunca tinham sido suas” (ABREU, 2001, p. 29).

Quando o protagonista assume seu medo, ele consegue ir além da objetividade que o mantinha atrelado a sua rotina, que o fazia medir suas ações, que o limitava: “sim, podia fazer qualquer coisa” (ABREU, 2001, p. 29).

A personagem ao reconquistar seu equilíbrio, restabelecer sua totalidade e sair do estado de alienação, no qual estava imersa, tenta lidar com o objeto. Há um respeito e uma veneração do sujeito para com o objeto, mas aquele rompe a barreira que os separava e assume o objeto como seu.

“Sentia-se aliviado. Já não era tão cedo nem era mais sábado, mas se se apressasse podia ainda quem sabe viver intensamente a madrugada de domingo” (ABREU, 2001, p. 30).

Nesse momento, o objeto (gravata) que havia catalisado essa tomada de consciência assume vida e sufoca o protagonista: a vida presente na gravata tira a vida do protagonista.

“Ergueu os olhos para o espelho e, antes de rodar sobre si mesmo para cair sobre o assoalho, ainda teve tempo de ver um homem de olhos esbugalhados, [...] duas pontas de seda estrangeira movimentando-se feito cobras sobre o peito [...]” (ABREU, 2008, p. 28).

O final do conto parece conduzir para uma visão fatalista, retratando a impossibilidade do indivíduo de desvencilhar-se do contexto, do mercado, do capitalismo, acabando por ser aniquilado. Entretanto, em seu sentido menos aparente, encontramos um texto que alerta para as relações impessoais e superficiais estabelecidas pela sociedade capitalista.

A desintegração progressiva das ligações sociais, a crescente atomização da sociedade, a intensificação do isolamento dos indivíduos, uns em relação aos outros, e a solidão, necessariamente inerente a essas tendências, torna o sujeito o próprio produto da alienação.

Abreu faz uma crítica a esse modo de vida, no qual as identidades individuais entram em conflito diante dos padrões e papéis sociais que necessitam exercer. Dessa forma, a gravata, metáfora de “mercado”, impede que o indivíduo recobre sua humanidade, sua totalidade, anulando sua existência.

O conto, assim, mergulha na subjetividade do protagonista para mostrar-nos o debate entre o objetivo e o subjetivo e a necessidade de conciliá-los. O sujeito fragmentado, incompleto, surge alienado, como o reflexo do mercado. Sua ambição está no consumo do melhor produto, na aparência. Porém, o consumo continua mantendo-o incompleto.

Abreu nos apresenta uma sociedade automatizada nas relações de produção e consumo e mesmo nas relações sociais. Essa mudança teve como resultado sujeitos alienados que perderam a noção de totalidade (de dominantes passaram a dominados). Na sociedade capitalista moderna, o elemento subjetivo da realidade social surge separado do elemento objetivo, como se fossem duas substâncias independentes: subjetividade vazia de um lado e objetividade coisificada de outro; de um lado o automatismo da situação dada e de outro a psicologização e a passividade do sujeito.

A única forma de romper com essa automatização é através da reflexão de que o homem é o portador verdadeiro do movimento social, tanto no processo produtor e reprodutor de sua vida.