sexta-feira, 20 de setembro de 2024

ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA: “A COR PÚRPURA”, ALICE WALKER

 1. MULHER NEGRA:

A obra busca compreender e combater a exploração do trabalho feminino negro, o controle de imagens aplicado à opressão feminina negra e a dimensão política da expressão que negava às mulheres afro-estadunidenses direitos e privilégios, rotineiramente estendidos aos cidadãos do sexo masculino, brancos.

A desigualdade de gênero abordada anteriormente é um dos temas da obra reflete os dilemas da mulher negra, duplamente subjugada como negra e como mulher.

2. LITERATURA DE RESISTÊNCIA:

Os escritos de Walker denunciam e reconstroem o mundo por intermédio da linguagem e do mito, por meio de sua abordagem literária, questionam o conceito de identidade, direitos humanos e relações de gênero, mostrando-nos que para a autora, o trabalho da ficção não é apenas um escape do mundo, mas a intensa imersão e recriação pessoal da realidade vivida, verossimilhança, fingimento e desnudamento do psiquismo do ser.

Essas narrativas desvelam o interior do ser feminino, suas metamorfoses, sua fragmentação e revelam a mutilação do mundo na esfera do eu do ser humano contemporâneo.

O colonialismo, o racismo, as relações hierárquicas de gênero, a homofobia, a exploração da natureza e a opressão econômica possuem um sujeito ator comum que é o homem. Por isso, a autora transfigura a opressão feminina em suas obras, instaurando-as no campo da Literatura de resistência. A autora acredita que a Literatura também é um espaço de militância e utiliza a ficção literária como ferramenta para abordar as mais diversas formas de opressão exercidas sobre as mulheres ao redor do mundo. Walker (1998, p. 5) reflete que ao permitir que a linguagem do negro e o modo de fala dos antepassados sejam ouvidas, são revelados as profundezas de nosso conflito com nossos opressores e os séculos em que esse conflito tem se manifestado.

3. A ESCRAVIDÃO DO CORPO:

É possível observar a inserção do corpo feminino no discurso, posto que o corpo, está sempre inscrito tanto na economia do prazer e do desejo como na economia do discurso, da dominação e do poder.

Em diversas sociedades coloniais, a escravidão fomentou estereótipos que continuam a manifestar-se. Os trabalhos pesados aos quais foram submetidos os africanos e seus descendentes foram fundamentais na construção da imagem de força como sinônimo de barbárie. Isso, por um lado, permite ver as origens do preconceito da inferioridade das pessoas negras e de sua aptidão para trabalhos não qualificados, como o serviço doméstico, a coleta do lixo, o trabalho como porteiros ou cozinheiras; por outro lado, organizou uma gramática racial em torno da sexualidade. Dessa maneira, os corpos dos homens e das mulheres negras surgiram como um fetiche de superioridade e exotismo. O indivíduo negro visto como erótico está relacionado também com o primitivo, próximo à natureza; seu corpo é valorizado como sendo basicamente sexuado.

Neste sentido, é importante observamos que é na cama e através das relações sexuais que se centra a pretensão da autoafirmação do poderio do personagem Pai de A cor púrpura. Também é fazendo sexo, que o personagem caminha para a sua morte, como nos revela sua menina esposa Daisy:

“Como ele morreu? (...) ele morreu dormindo. Bom, não durmindo mesmo, ela falou. A gente tava passando o tempo junto na cama, você sabe, antes da gente durmir” (WALKER, 1986, p. 267). E é somente após sua morte que vem à tona o seu nome: “O homem que a gente conhecia como Pai ta morto. (...) Mas tarde dimais pra chamar ele de Alphonso” (WALKER, 1986, p. 267).

Durante a escravidão os corpos dos escravos pertenciam aos donos como se fossem corpos de animais. Assim, os brancos podiam manifestar livremente uma agressiva luxúria sobre as negras, e não raro sobre os negros (MOTT, 1988, p. 127). O mais doloroso de todos os preconceitos, é o estereótipo dos negros como fonte unicamente de prazer, como um animal feito para volúpia.

A personagem Sofia, em A cor púrpura, de forma perspicaz extrapola as perspectivas de qualquer universo fundamentado pela cultura machista: ainda enquanto solteira engravida e ao visitar o Sinhô, pai de Harpo seu futuro esposo, este lhe diz:

“Num pricisa pensar queu vou deixar meu minino casar com você só porque você é de família. Ele é novo e limitado. Moça bunita como você pode consiguir qualquer coisa dele” (WALKER, 1986, p. 43).

 De maneira soberana, Sofia responde:

 Pra que queu priciso casar com o Harpo? Ele ainda ta vivendo com o senhor. A Cumida e a roupa que ele tem, é o senhor que compra”; e diz para Harpo:

“Não, Harpo, você fica aqui. Quando você ficar livre, eu e o nenê vamo tá esperando” (WALKER, 1986, p. 43).

Entretanto, mesmo Sofia, sofre com o conflito étnico-social, conforme se percebe no fragmento seguinte:

Sofia e o campeão e todas as crianças entraram no carro de campeão e foram pra cidade. Ficaram desfilando como se fossem gente. Foi ai que o prefeito e a mulher dele apareceram.

Todas essas criança, a mulher do prefeito falou, fuçando na bolsa. Mas tão bunitinhas como butão, ela falou. Ela parou, botou a mão na cabeça de uma das crianças. E falou, esses dente branco tão forte.

Sofia e campeão num disseram nada. Esperaram ela passar. O prefeito também esperou, ficou um pouco pra trás, batendo o pé e olhando pra ela com um sorrisinho. Vamos Millie, ele falou. Sempre falando com os preto. A dona Millie passou a mão na criança um pouco mais, finalmente olhou pra Sofia e pro campeão. Ela olhou pro carro do campeão. Ela reparou no relógio de pulso da Sofia.

Ela falou pra Sofia, Todas as criança sua são tão limpa, ela falou você num que trabalhar para mim, ser minha impregada?

Sofia falou, Diabos não.

O prefeito olhou pra Sofia, puxou a mulher dele da frente. Esticou o peito. Moça, o que foi que você falou pra dona Milie?

Sofia falou. Eu falei Diabos não.

Ele deu um tapa nela.

Eu parei de falar bem ai.

Tampinha tava na beira da cadeira. Ela esperou. Olhou pra minha cara de novo.

Nem é preciso contar mais, Sinhô falou. Você sabe o que acontece se alguém dá um tapa na Sofia (WALKER, 1986, p. 101).

No excerto acima percebemos que a narradora protagonista Celie aceita prever em seu discurso o discurso de outrem, daqueles que viam os negros como animais irracionais, que não eram gente. Seu discurso de certa forma condescende com a ideia de que tanto a postura altiva de Sofia quanto à de Campeão não são apropriadas.

Neste sentido, apreendemos que não há um indivíduo único e, deste modo, seu discurso não pode ser único, mas sim multifacetado e fraturado, mostrando, assim, a própria fragmentação do indivíduo que o ecoa. Além disso, quando Celie traz a fala do prefeito que debocha da atitude de sua esposa em conversar com os pretos, a narradora traz para dentro do seu texto não só a fala de outrem, mas todo o imaginário social branco sulista americano da época.

Ao observar que o fato da esposa do prefeito ter reparado nos dentes brancos tão fortes da criança (como se observava no regime escravocrata), no carro do casal de negros, no relógio de pulso de Campeão, nos filhos limpos, deflagra-se a arrogância e a prepotência branca dessa personagem.

Ela não aceita os negros com dignidade e crê também no fato de que, por ser e manter os filhos tão asseados, Sofia tem a obrigação de lhe servir como empregada.

A mulher afrodescendente, além de contrapor-se à subordinação ao homem negro, busca também igualdade de direitos em relação à mulher de ascendência europeia. Essa condição amparada nas características históricas da sociedade escravista estadunidense transcorre o romance A cor púrpura e torna-se explícita no momento em que Sofia, exemplo da aversão à subordinação ao homem negro na narrativa, do mesmo modo arrisca-se a lutar contra a posição de doméstica de uma mulher branca. Ou seja, procura opor-se à discriminação étnico-racial e sua submissão à mulher branca.

Porém, na trama de Walker, se Sofia teve a capacidade de resistir à subjugação ao homem negro, o sistema em que as desigualdades de oportunidades são precisamente esboçadas, não consente sua não-servidão à mulher branca, como serviçal, ilustrando desta forma a opressão tanto de classe, quanto de gênero e etnia.

- Vale lembrar que a obra toda de Alice Walker estampa a marca popular no discurso das personagens, o que pode ser exemplificado pela impressão da norma não padrão da língua no texto de A cor púrpura. Isto objetiva fortalecer a imagem das raízes da produção narrativa afroamericana, e permite que a resistência da escrita se materialize além do campo do conteúdo e adentre a “textura”

- É importante observar que os artifícios de escrita usados por Alice Walker têm a finalidade de expressar as motivações do inconsciente e situar o leitor no exato local e tempo em que as cartas de Celie e Nettie são redigidas. Não se trata apenas de um uso metalinguístico, mas da recuperação da função fática da linguagem, ou seja, a de mostrar o suporte, pois o elemento fático presente nas cartas aponta para a possibilidade do papel que é o lugar de resistência até mesmo do que foi já dito.

- A escrita dessas cartas expõe forma e conteúdo como complementares: revelam a característica majoritária de seus personagens no que tange à falta de domínio e uso do dialeto da classe dominante, à opressão geracional (a visão de uma menina em relação ao universo adulto e masculino), étnica (os conflitos raciais em uma pequena cidade do Estado da Geórgia) e a manifestação do womanism de Celie.

- Após ser separada de Celie, Nettie através de cartas incentiva sua irmã a se libertar do personagem Sinhô, que, no meio do romance, tem seu nome revelado: Albert. Ela ensina-lhe que nem todos os homens negros são ruins e nem todas as mulheres negras são espezinhadas como os exemplos que tiveram na infância:

Como o passar de mais anos, Harpo, o filho mais velho de Sinhô, casa-se com Sofia, mulher sábia, grande, forte e independente, tem consciência de que o desenvolvimento sentimental da mulher negra perpassa pela sua experiência existencial com os homens negros e o universo dos brancos e essa postura fascina Celie, já a mesma aceitou como normal um quotidiano de abusos de várias espécies.

E, é ao lado de sua nora que a personagem vai vivenciar a sua segunda experiência womanist, levando-a a apreender a importância da autoestima e da solidariedade.

Sofia, que não engoliu as agressões gratuitas da esposa do prefeito e a agrediu, acabou atrás das grades, em uma prisão de condições subumanas, que quase a mataram.

Conforme as palavras de sua personagem central Celie:

O jeito para você saber quem discubriu a América, Nettie falou, é pensar nos calombo. É parecido com Colombo. Eu aprendi tudo sobre Colombo no primeiro grau, mas parece que foi a primeira coisa que eu isqueci. Ela falou que Colombo veio aqui nos barco com nome de Nina, Pinta e Santamaría. Os índios foram ótimos pra ele e ele levou um monte deles forçado de volta com ele pra servir a rainha (WALKER, 1986, p. 19).

É curiosa essa referência a Colombo no texto de Alice Walker. Como sabemos os numerosos escritos de Cristóvão Colombo, onde se detalhava os nomes, as coisas que o explorador italiano viu e ouviu por ocasião de sua chegada à América, foram registrados em seu diário e, além disso, em cartas.

Ele foi o portador da primeira carta que chegou à América, do mesmo modo como foi o autor da primeira carta que saiu deste continente; onde noticiava o que lá encontrou.

Ora, as cartas em A cor púrpura perpassam os espelhos da memória. A personagem Nettie, em sua missão na África, resgata identidades submersas no chão dos seus antepassados. A memória configura-se aqui como via de conquista do que parecia ter naufragado nos percursos transatlânticos que espalharam os africanos no mundo inteiro em decorrência da escravidão: outra versão da História, figuras mitológicas, crenças, lendas, contos, cantos e versos.

O texto de Walker ilustra, dessa forma, a África que, mesmo inconscientemente, vive nas mentes, e na própria existência dos seus filhos exilados da diáspora. Trata-se de uma África espalhada pelo mundo inteiro, pois “afro”, neste texto, tem a dimensão de todo indivíduo, cultura, sociedade que possui na sua essência, a maternidade africana, ainda que em tempos e espaços diferentes. E, ao se espalhar, essa África também adquire diferentes identidades.

Neste sentido, cabe observar que, assim como o seu suporte epistolar, a textualidade desse romance manifesta o desejo de unir o que está implícito ou sugerido, isto é, aproximar o que está distante. Esse fato adquire extrema plasticidade no momento da narrativa em que a primeira carta de Nettie é entregue à sua irmã Celie:

Sábado de manhã a Doci botou a carta de Nettie no meu colo. A rainha gordinha da Inglaterra tava num selo, depois mais selo com amendoim, palmeira, seringueira e dizia África. Eu num sei onde é a Inglaterra. Também num sei onde é a África. Por isso, eu ainda num sei onde a Nettie tá (WALKER, 1986, p. 137).

Escrita e leitura são operações que aparecem diversas vezes na narrativa de Walker envoltos deste desejo, como vemos no texto da personagem Nettie sobre sua missão na África:

Eu nunca tinha percebido o tanto que eu era ignorante, Celie. O pouco que eu sabia sobre mim mesma não teria dado nem para encher um dedal. E imagine que a Dona Beasley sempre dizia que era a criança mais inteligente que ela já tinha ensinado! Mas eu agradeço a ela por uma coisa em particular que ela me ensinou, me mostrando como aprender por mim mesma, lendo e estudando e escrevendo claramente. E por ter mantido dentro de mim de alguma forma o desejo de SABER. Então quando Samuel e a Corrine perguntaram se eu iria com eles ajudá-los, a montar uma escola no meio da África, eu disse que sim. Mas só se eles me ensinassem tudo que sabiam para que eu fosse útil como missionária e para que eles não tivessem vergonha de me ter como amiga. Eles concordaram com esta condição, e a minha verdadeira educação começou ai  (WALKER, 1986, p. 151).

Desse modo, a inserção do gênero epistolar no romance de Walker traz no seu bojo a essência expressiva, a vontade de evadir e a aspiração libertária, visto que se escreve por não poder falar. Porém, não se pode, também, silenciar frente à distância, à separação ou ao exílio. Nas palavras do filósofo francês André Comte-Sponville:

Durante séculos a carta foi o único meio de dirigir-se aos ausentes, de levar o pensamento aonde o corpo não podia ir, aonde a visão não podia ir, e talvez esse seja o mais belo presente que a escrita deu aos viventes: Permitir-lhes vencer o espaço, vencer a separação, sair da prisão do corpo ao menos um pouco, ao menos pela linguagem, por esses pequenos traços de tinta sobre o papel (COMTESPONVILLE, 1997, p. 16).

4. CELIE E A SEXUALIDADE:

O ensaio sob a visão literária da personagem fictícia Celie da obra “A Cor Púrpura” é de cunho de denúncia social, pois o enredo evidencia através da trajetória vivida pela personagem principal fatores relevantes que abordam temáticas de preconceito racial e de gênero e violência psíquica e física, abordaremos também questões da delicada percepção da sexualidade de Celie.

Ela é um personagem redondo, ou seja, vai mudando na história.

Desde as primeiras páginas, o livro nos traz o drama vivido por Celie e nos relata sobre a história de sua vida, desde sua infância conturbada até a fase adulta, fatores que acarretaram na formação de sua personalidade passiva e submissa resultante de suas experiências de mundo.

Cabe ressaltar que esta obra literária, puramente fictícia, possui ligação direta com a realidade de muitas pessoas, e por ser de grande relevância social as temáticas presentes na obra, a avaliamos como grito de denúncia.

Já nas primeiras páginas do livro observamos na fase de sua infância os abusos cometidos contra Celie pelo homem que supostamente era seu pai, sob o olhar de hoje é claro e evidente os atos de pedofilia e maus tratos ocorridos, logo após, aos 14 anos de idade Celie é dada para casar cumprindo assim sua ‘função social’, excluindo sua sexualidade do ponto matrimonial.

A escritora deixa muito claro a questão dos abusos cometidos pelo padrasto e depois pelo marido da personagem, figuras masculinas e predadoras que mostra seu domínio submetendo Celie contra vontade a realizar suas vontades, anulando a condição humana da personagem, sendo vista apenas como objeto por seu marido e personagens que aparecem na história. As mulheres todas só prestam para... e não acaba. Dobra o jornal com a ajuda do queixo, como de costume. Faz-me lembrar o meu pai. O Harpo pergunta: Por que és casmurra? Mas não pergunta: Por que és mulher dele? Isso ninguém pergunta. Já nasci assim, suponho, respondo eu. Ele bate, como se bate às crianças. Só que não costuma bater nos filhos. Diz-me: Celie traz o cinto. As crianças estão lá fora a espreitar pelas gretas da porta. Só posso fazer o possível para não chorar. Transformar-me em madeira. Cellie és uma árvore, digo comigo mesma. É assim que descubro que as árvores têm medo dos homens. (WALKER, 1986, p. 23)

Na primeira frase observamos a fala de Albert colocando a mulher como figura de objeto. Cellie se equivale metaforicamente a madeira sem vida que não sente dor, a arvore tem medo do homem, mas aguenta o golpe do machado. As metáforas trazem um ar reflexivo filosófico, como meio comparativo entre o ser humano e a natureza selvagem subjugada ao seu desejo de impor suas vontades. O que a tua mão não quer fazer, vais tu fazer. E encostou-me aquela coisa à anca e começou a mexe-la e agarrou-me a mama e metia-me a coisa por baixo e, quando eu gritei, esganou-me e disse: O melhor é calares o bico e começares a te acostumar. Mas nunca me acostumei. (WALKER, 1986, p.6)

A violência sexual e domestica que assola Celie se caracteriza no texto de forma evidente pelos atos praticados por seu padrasto e seu marido Albert, esses tipos de violências estão relacionadas dentro do texto como formação social de reprodução da condição da mulher na sociedade da época e ainda é reproduzida nos dias de atuais. Celie teve a infância roubada pela trágica situação que foi imposta a ela, aos 14 anos de idade casou-se e continuou privada dos estudos, vedada ao trabalho doméstico e no campo e fadada a objeto sexual. O casamento é uma instituição social, que se apresentou à mulher de maneira radicalmente diferente para o homem e para a mulher. A condição que as mulheres se encontram não é determinada de forma natural, mas sim de forma cultural.

Vale ressaltar e destacar esses fatores relevantes que tanto atribuíram para o desenvolvimento da sexualidade de Celie. O asco desenvolvido por Celie para com os homens justifica-se pela sua experiência traumática, e seu desejo inato pelo sexo feminino, na história Shun desperta seu desejo e sua amizade.

O corpo de Celie desconhecia o prazer e seus sentidos, além das questões que ela sofria de ataques psicológicos a sua autoestima sendo em diversos momento chamada de feia, burra e preta, ainda somava a esses fatores a questão de abusos físicos. Tudo isso desencadeou em sua personalidade passiva, um critério de sobrevivência desumana, de submissão total.

Na história a paixão que despertou por Shug acende Celie, desperta também uma tomada sutil e vagarosa de consciência e busca pela independência e autonomia de sua vida.

Celie passa por um longo período de repressão de sua sexualidade por falta de conhecimentos, desconhecendo até mesmo sua própria anatomia. Suas principais descobertas estão ligadas ao seu laço com Shug. Seu contato eminente com aquela mulher sedutora e ousada totalmente oposta a ela a deixa confusa, pois não saberia distinguir ao certo o que estava sentindo se não teve nenhuma orientação que a ajudasse com relação a seus impulsos sexuais devaneios. A primeira vez que vi o corpo todo da Shug Avery, comprido e escuro, com mamilos cor de ameixa, como a boca, pensei que me tinha transformado em homem. (WALKER, 1986, p. 25)

Celie se apaixona por uma mulher que eventualmente era amante de seu marido Albert, a qual passou umas temporadas na casa dele, foi durante a estadia de Shug na fazenda, que ela despertou o interesse da doce Celie enquanto ela cuidava dela. Há qualquer coisa, nas veias finas e macias que vejo ou nas grandes, que faço por não ver, que me assusta. É como se me empurrassem para frente. Se não desvio os olhos vou pegar naquela mão e descobrir a que é que sabem os dedos dela na minha boca. (WALKER, 1986, p.26).

As insinuações de pretensão sexual deixam evidente seu desejo ainda reprimido. Com o passar do tempo Shug e Celie se tornam amigas, essa proximidade da margem a troca de carícias entre elas, Shug inicia Celie como passagem para a descoberta de seu próprio corpo e o prazer. Escuta, diz ela, mesmo aí na tua passarinha há um grelo que fica a ferver quando fazes aquilo que sabes com alguém. Fica cada vez mais quente e depois se derrete. Essa é a parte boa. Mas também há outras. Muito trabalho de mãos e de língua. Grelo? Mãos e língua? A minha cara está tão quente que é capaz de ser ela a derreter-se. Toma, pega neste espelho e olha para ti, aí em baixo. [...] Deito-me de costas na cama e levanto o vestido. Baixo os meus culotes. Seguro o espelho entre as pernas. Uíl Tanto pêlo! Depois uns lábios que parecem negros. E na parte de dentro uma rosa úmida. É muito mais bonita do que julgavas, não é? diz ela da porta. É minha. Onde fica o grelo? Mesmo em cima. Essa parte que sai um bocado. Olho e toco-lhe com o dedo. Tremo um bocadinho. Não é grande coisa mas chega para saber que é aí que se deve tocar. Talvez. A Shug diz: Já que estás a ver, olha também para as mamas. (WALKER, 1986, p. 51).

Celie desconhecia totalmente a anatomia humana e a função da genitália, pois durante toda vida nunca sentiu prazer, o ato sexual era visto por ela como sua obrigação. Aquela atitude traquina de fazer algo em segredo com Shug e descobrir novidades já faz parte de sua transformação na história. A cumplicidade entre as parceiras não toma posição de dominado objeto e dominante dono, ambas se doam uma a outra. A relação de Celie e Shug se deu a partir de sua aproximação de amizade. Após dividir suas dores e frustrações, de conhecerem bem uma a alma da outra, Celie se sentia protegida com a presença de Shug. [...] Enquanto lhe aparava o cabelo ele olhava para mim de uma maneira esquisita. Também estava um bocado nervoso, mas eu não sabia porquê até ele me agarrar e me filar entre as pernas dele.[...] Magoou-me, sabes, digo eu. Inda ia fazer catorze anos. Nem nunca tinha pensado que os homens tinham ali em baixo uma coisa tão grande. Só de a ver me assustei. E a maneira como entrava em mim e crescia[...] E choro, choro, choro.[...]. Como magoava e como eu estava admirada. Como ardia enquanto acabava de lhe aparar o cabelo. Como o sangue pingava pelas minhas pernas abaixo e me sujava a meia. (WALKER, 1986, p.55).

Nota se o flagelo da situação que a protagonista foi submetida, a imagem clara do estupro e de sua ignorância, Celie, não sabia como contornar a situação ou o que fazer, estava assustada e era vítima e refém das infelizes circunstâncias, um mero objeto acuado nas mãos de um predador.

[...] Nunca ninguém gostou de mim, digo. Ela diz: Eu gosto de ti, Miss Celie. E depois levanta-se e beija-me na boca. Uhm, diz ela, como se estivesse admirada. Eu beijo-a também e também. Beijamo-nos tanto que já quase não podemos mais. Então tocamos uma na outra. Eu não sei nada disto, explico à Shug. [...] É uma coisa quente e macia, e sinto os peitos grandes da Shug a bailarem sobre os meus braços como bolas de sabão. Parece o céu, é com isso que se parece, não é nada como dormir com o Sr. (WALKER, 1986, p.56).

Neste trecho do livro é expresso o encontro amoroso e a descrição do ato lesbiano entre as duas, fato de não haver um ser dominante e a cumplicidade entre ambas, torna essa descoberta sexual para Celie como a libertação de seus desejos, na comparação que ela própria faz o coito com Shug em nada se parece com sua obrigação conjugal com seu marido. Celie consegue enfim se libertar da ignorância que a aprisionava e encontra a real felicidade.

 

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL, In: Libertinagem, de Manuel Bandeira

 

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barraco sem [número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

                                                (In: Libertinagem, de Manuel Bandeira)

“Poema tirado de uma notícia de jornal” é um poema narrativo, onde o eu lírico se transforma em uma informação jornalística e rotineira de suicídio.

A narração em 3ª pessoa é neutra, imparcial e objetiva confrontando a linguagem poética (versos, ritmos poéticos e musicalidade) com o tom prosaico - uma paródia da linguagem jornalística, denunciando o destino violento de pessoas simples.

João Gostoso não possui características precisas: sem nome próprio (representa uma alegoria de muitos brasileiros que vivem na marginalidade das grandes cidades brasileiras. “Gostoso” é provavelmente, uma alcunha); sem moradia fixa (“morava no morro da Babilônia num barraco sem número”) e sem emprego definido (“carregador de feira livre”) cumpre seu destino para a morte e transforma-se num anonimato de ocorrência policial, virada do avesso pela indeterminação.

Aos versos longos iniciais e de ritmo aliterante (“eRa  caRRegadoR de feiRa livRe e moRava  no moRRo da Babilônia num baRRaco sem númeRo”); segue a expressão “uma noite” fugindo da precisão objetiva da notícia midiática; para em seguida, apresentarem versos dissílabos, que culminam num único verso horizontal (a superfície da lagoa), representando visualmente a trajetória de João Gostoso do princípio (vida) para o fim (morte).

Essa sequência imita, na expressão, o movimento de descida inevitável para o fim da vida enfatizado até visualmente pela oposição entre a verticalidade rápida dos versos curtos e a horizontalidade espraiada dos versos longos.

A espacialização do poema inicialmente se dá com indeterminação: barraco sem número, no entanto, no morro da Babilônia que pode referir-se ao substantivo, “babilônia” (baderna, a falta de organização) ou ao alto espaço da miséria anônima e até, ironicamente ao famoso Jardim Suspenso.

A aproximação da personagem à rua (exterior) se dá, na tranquilidade, através da experiência do ser solitário que olha ou escuta de onde descortina o mundo lá fora, assim ressalta a importância de um espaço físico em detrimento de uma individualidade humana.

O bar, por sua vez, é identificado por “Vinte de Novembro”, assim, João Gostoso sai do espaço indiferenciado e entra num espaço público, denominado e oposto a sua vida – um lugar de prazer.

A dança de morte de João Gostoso se imprime nas angulosidades do ritmo do poema. Com um ritmo acelerado próprio para retratar a rápida alegria dionisíaca, a necessidade física e o caos da vaidade, antecipa o seu declínio de morro abaixo, após momentos de êxtase.

É importante ressaltar que o Morro da Babilônia (lugar alto e pobre) contrasta com a Lagoa Rodrigo de Freitas (lugar baixo e de riqueza no Rio de Janeiro).



 



terça-feira, 3 de setembro de 2024

“AUTO DA COMPADECIDA”, ARIANO SUASSUNA

 

I – AUTOR:

Ariano Suassuna (1927 - 2014) foi um escritor brasileiro. "O Auto da Compadecida", sua obra-prima, foi adaptada para a televisão e para o cinema. Sua obra reúne, além da capacidade imaginativa, seus conhecimentos sobre o folclore nordestino. Foi poeta, romancista, ensaísta, dramaturgo, professor e advogado. Em 1989, foi eleito para a cadeira nº 32 da Academia Brasileira de Letras. Em 1993, foi eleito para a cadeira nº 18 da Academia Pernambucana de Letra e em 2000, ocupou a cadeira nº 35 da Academia Paraibana de Letras.

Ariano Vilar Suassuna (1927-2014) nasceu na cidade de Nossa Senhora das Neves, hoje João Pessoa, capital da Paraíba, em 16 de junho de 1927. Filho de João Suassuna, ex-governador da Paraíba, e Rita de Cássia Villar passou os primeiros anos de sua infância na fazenda Acauham, no sertão do Estado. Durante a Revolução de 1930, por motivos políticos, seu pai foi assassinado. A família mudou-se para Taperoá, interior do estado, onde morou entre 1933 e 1937 e lá iniciou seus estudos. Teve os primeiros contatos com a cultura regional assistindo uma apresentação de mamulengos e um desafio de viola.

Em 1938, a família muda-se para a cidade do Recife, Pernambuco, onde Ariano entra para o Colégio Americano Batista. Em seguida estuda no Ginásio Pernambucano, importante colégio do Recife. Ingressou na Faculdade de Direito, onde fundou o Teatro do Estudante de Pernambuco. Em 1947, escreve sua primeira peça "Uma Mulher Vestida de Sol". No ano seguinte escreve "Cantam as Harpas de Sião".

Em 1950, conclui o curso de Direito. Dedicou-se à advocacia e ao teatro. Em 1955, escreveu a peça "O Auto da Compadecida". A partir de 1956, passou a dar aulas de Estética na Universidade Federal de Pernambuco. Em 1970 cria e dirige o Movimento Armorial, com o objetivo de valorizar os vários aspectos da cultura do Nordeste brasileiro, como a literatura de cordel, a música, a dança, teatro, entre outros.

Ariano Suassuna iniciou em 1971, sua trilogia com o "Romance d'a Pedra do Reino" e o "Príncipe do Sangue que Vai-e-Volta", tendo por subtítulo "Romance Armorial - Popular Brasileiro", que teria sequência em 1976, com a "História d'o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana". Em 1994, se aposenta pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi Secretário de Cultura (PE) no governo de Eduardo Campos.

Se sua poesia teve modesta repercussão, o teatro, com a força do humor, o consagrou. Ariano recebia inúmeros convites para realizar "aulas-espetáculos" em várias partes do país onde, com seu estilo próprio e seus "causos" imaginativos, deixava o público encantado.

Ariano Suassuna faleceu no Recife, no dia 23 de julho de 2014, decorrente das complicações de um AVC hemorrágico.

 

OBRAS LETERÁRIAS DE ARIANO SUASSUNA:

Uma Mulher Vestida de Sol, 1947
Cantam as Harpas de Sião (ou o Despertar da Princesa), 1948
Os Homens de Barro, 1949
Auto de João da Cruz, 1950 (Prêmio Martins Pena)
Torturas de um Coração, 1951
O Arco Desolado, 1952
O Castigo da Soberana, 1953
O Rico Avarento, 1954
Ode, 1955 (poesia)
O Auto da Compadecida, 1955
O Casamento Suspeito, 1956
Fernando e Isaura, 1956
O Santo e a Porca, 1958
O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna, 1958
A Pena e a Lei, 1959
A Farsa da Boa Preguiça, 1960
A Caseira e a Catarina, 1962
O Pasto Incendiado, 1970 (poesia)
Romance d'a Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta, 1971 (partes da trilogia)
Iniciação à Estética, 1975
A Onça Castanha e a Ilha Brasil, 1976 (Tese de Livre Docência)
História d'o Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça Caetana, 1976 (parte da trilogia)
Sonetos Com Mote Alheio, 1980 (poesia)
Poemas, 1990 (Antologia)
Almanaque Armorial, 2008

II - CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:

 

Quando “Auto da Compadecida” foi escrita, em 1955, o clima era de atenção naquele momento. A Segunda Guerra Mundial terminara havia menos de 10 anos, e uma nova configuração mundial se estabelecia tendo como polos distintos os Estados Unidos da América e a União Soviética. Era o início da Guerra Fria, com muita ação das redes de espionagem universal: de um lado, CIA (USA); do outro, KGB (URSS). Esse período também foi marcado pela corrida armamentista e pela explosão da primeira bomba de Hidrogênio (bomba H), em 1952. A década de 1950, portanto, marcou a transição entre o período das grandes guerras e o período do desenvolvimento tecnológico da segunda metade daquele século.

No Brasil, esse período também foi de turbulência na política externa. Com a vitória dos aliados, o país teve que decidir de qual lado ficaria. Optou pelos EUA e rompeu relações diplomáticas com a União Soviética em 1947. Por sua vez, na política interna  foi um período  de instabilidade. Ocupando a presidência da República o Brasil teve Getúlio Vargas (PTB), cujo mandato foi de 31 de janeiro de 1951 até 24 de agosto de 1954, quando diante de uma forte crise política cometeu suicídio. Assumiu o comando do país o vice-presidente João Café de 24 de agosto de 1954 a 9 de novembro de 1955. Depois, interinamente, Carlos Coimbra da Luz, de 9 a 11 de novembro de 1955 e Nereu de Oliveira Ramos, de 11 de novembro de 1955 a 31 de janeiro de 1956. Em 31 de janeiro de 1956 assumiu a presidência Juscelino Kubitschek, permanecendo no cargo até 31 de janeiro de 1961. Com o forte desenvolvimento industrial impulsionado pelos governos de Vargas e de Kubitschek, o êxodo rural atingiu níveis nunca vistos antes. A construção de Brasília atraiu muita gente, de todas as partes do país. A cidade de São Paulo, apenas nessa década, passou de 2,2 para 3,8 milhões de habitantes.

É nesse cenário de agitação política e de mudanças sociais que “Auto da Compadecida” é escrita. As dificuldades da vida no sertão nordestino por causa do clima adverso e da falta de investimentos governamentais são retratadas na obra. Ariano Suassuna, criado no sertão da Paraíba, na Fazenda Acauhan, município de Taperoá, conheceu bem a vida sertaneja e imprimiu de forma vívida este conhecimento em suas obras. Em uma entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo, em julho de 2012, questionado sobre a importância do sertão em sua obra, ele respondeu: “Todo universo de um escritor se forma na infância e na adolescência. E tudo na minha obra se passa dentro dos valores, das histórias e das personagens que conheci até os 20 anos. ” Em outra entrevista, ele declarou: “... foi a infância que me deu, digamos assim, o território poético no qual toda a minha obra se desenvolve. Todos os livros que escrevi até hoje são passados no sertão, onde passei a infância. ”

 

III – TEMÁTICA:

A peça teatral “Auto da Compadecida” foi escrita por Ariano Vilar Suassuna em 1955 e encenada pela primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, na capital pernambucana, pelo grupo “Teatro Adolescente do Recife. ”  Em janeiro de 1957 o mesmo grupo representou a peça no 1º Festival de Amadores Nacionais, no Teatro Dulcina, Rio de Janeiro, sob a direção de Clênio Wanderlei. Vinte grupos de teatro de todo o Brasil concorreram à medalha de ouro, mas “Auto da Compadecida” venceu o festival e ganhou o primeiro lugar do espetáculo.

A obra foi baseada em romances e histórias populares do Nordeste e o estilo de apresentação sugerido pelo autor, aos futuros diretores, foi o da simplicidade, em atmosfera circense.

A primeira peripécia narrativa da peça, o enterro do cachorro, pode ser encontrada em diversas obras anteriores, como no cordel "O Dinheiro", de Leandro Gomes de Barros (1865-1918). Nesse cordel, um cachorro também deixara uma soma em dinheiro no testamento com a condição de que fosse “enterrado em latim”.
As duas próximas peripécias, ambas encontradas na segunda parte da peça (que pode ser dividida em três atos), apresentam um gato que supostamente “descome” dinheiro e de um instrumento musical que seria capaz de ressuscitar os mortos. Essas duas estruturas narrativas estão no romance de cordel "História do Cavalo que Defecava Dinheiro", também de Leandro Gomes de Barros.
Na peça, porém, Suassuna substituiu o cavalo por um gato, certamente para facilitar a encenação. Esse é um exemplo de como uma necessidade prática pode influir na narrativa, obrigando o autor a transformá-la conforme as necessidades impostas pela forma de apresentação.
A apropriação da tradição, ao contrário de ser facilitada pela tematização prévia, é dificultada, pois, ao imitar, é preciso fazer jus a quem se imita, superando-o ou pelo menos igualando-se a ele em qualidade e inventividade. No texto de Leandro Gomes, o instrumento musical capaz de levantar defuntos era uma rabeca e, em Suassuna, passa a ser uma gaita, provavelmente também por causa de uma necessidade cênica.

Nessa obra, Ariano Suassuna consegue realizar uma magnífica síntese de duas tradições: a dos autos da era medieval e a da literatura picaresca espanhola. Na era medieval, a cultura era indissociável da religião, mesmo porque a Igreja controlava tudo com mão de ferro. A Igreja cultivava os autos dramáticos de devoção aos santos para doutrinar e tolerava os autos cômicos para divertir o povo. A tradição da literatura picaresca espanhola vem da cultura popular e chega ao ápice no Dom Quixote, de Cervantes.

Segundo o autor, a peça nasceu da fusão de três folhetos de cordel: O enterro do cachorro, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo da soberba.

A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Católica.

Abordando temas universais como a avareza humana e suas amargas consequências, por meio de personagens populares, Suassuna, nesta obra, prepara o espectador para um desfecho moralizante conforme os preceitos do cristianismo católico.
A visão cristã da vida presente no Auto traz uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não como uma coisa formal e solene, difícil e mesmo penosa. Essa intimidade com Deus, e a ideia de simplicidade nas relações dele com os homens, essa compreensão da vida e fé na misericórdia, parecem aspectos primordiais no sentido religioso da obra: a compreensão das faltas humanas, atribuída à Nossa Senhora, que, como mulher, simples e do povo, explica-as e pede para elas a compaixão divina.

A obra trata-se de uma farsa que é igualmente uma reflexão sobre as relações entre Deus e os homens: um milagre de Nossa Senhora, como os medievais, apresentado sob a forma de uma pantomima de circo. Até o seu catolicismo é popular, favorecendo os humildes contra os ricos, menos por influência política do que por uma profunda simpatia cristã pelos fracos e desprotegidos.
Assim, o que Suassuna passa é que o homem do sertão deve ser perdoado, de seus pecados, por experimentar inúmeras dificuldades, tanto de ordem climática, quanto social. O sofrimento passado em vida já é capaz, por si só, de absolver todos os pecados – consequências de seu cotidiano exigente e de sua luta por sobreviver. O sertão é terra de ninguém, deserto ameaçador donde emergem deuses e diabos, sob a égide do acaso, do caos e da fatalidade. Esses seres-ameaçadores espreitam o homem por dentro e por fora. Em meio ao caos que os alimentam, estabelecem continuamente a recriação da ordem, num processo infinito de auto-eco-organização.

O autor mostra um povo religioso, de pé no chão, acuado pela seca, atormentado pelo fantasma da fome e em constante luta contra a miséria. Traça o perfil dos sertanejos nordestinos que estão submetidos à opressão a que foram, e ainda hoje são, subjugados por famílias de poderosos coronéis que possuem terras e almas por vastas áreas do Brasil.
Dentro desse contexto, João Grilo é a figura que representa os pobres oprimidos, é o homem do povo, é o típico nordestino amarelo que tenta viver no sertão de forma imaginosa, utilizando a única arma do pobre, a astúcia, para conseguir sobreviver.
Suassuna leva a julgamento almas, diante do tribunal, dirigido por Deus e o diabo, que são pecadoras devido às condições sociais existenciais, que se apresentam mais fortes que os valores morais. São acusados o bispo e o padre João, por se utilizarem da autoridade religiosa para enriquecerem. No entanto, com a intercessão de Nossa Senhora, a sentença é atenuada e eles se encaminham para o purgatório. O padeiro, por ser sovina, e sua mulher, por adultério, também recebem a sentença final de ocuparem, juntamente com o padre, o bispo e o sacristão, os cinco lugares vagos do purgatório. São acusados também o cangaceiro Severino e o cabra dele, por tirarem a vida das pessoas sem autorização divina.
A oposição bem x mal, tipicamente da visão maniqueísta cristã, que consequentemente divide o mundo em céu e inferno, é característica que consta na peça. O julgamento é moral, portanto condenam-se os vícios e as vaidades e glorifica-se a modéstia e a humildade.
Se encontra também uma severa crítica aos maus costumes dos representantes da Igreja, que abusam de seu poder, contribuindo para a corrupção da instituição, uma vez que favorecem os ricos e têm hábitos que são condenados pela própria Igreja.

IV - TÍTULO:


O título da obra remete à noção de que o homem é um ser passível de erro, mas é possível que seja perdoado, por intermédio da “Compadecida”, Nossa Senhora, que, na Igreja Católica, é considerada pelos fiéis a advogada capaz de interceder pelos pecadores junto a Jesus Cristo.
Dessa forma, em diversas passagens da obra, podem-se interpretar tanto o comportamento de Manuel, como o da Compadecida, como mais humanizados e condescendentes com as falhas humanas, retratados, às vezes, até com uma boa dose humor.
O autor permite-se o exercício de um diálogo simultaneamente complementar e antagônico entre morte e vida. Por meio dele abre-se uma brecha, que introduz a dimensão da imortalidade desvelada, por exemplo, na ressurreição do personagem João Grilo.

No título, a designação “auto” refere-se a uma peça de teatro com apenas um ato, de tema religioso e caráter alegórico. Os autos foram muito comuns na Idade Média. Um autor que se destacou nesse gênero foi o português Gil Vicente, tendo escrito, entre outros, o “Auto da Barca do Inferno. ” Quanto ao “Compadecida”, que completa o nome, refere-se à Maria, mãe de Jesus, conhecida no Catolicismo Romano como “Nossa Senhora”.


V - ESPAÇO:

A peça se embasa em determinadas tradições localistas e regionalistas do folclore nordestino, com vistas à sua sublimação como instrumento pitoresco de comunicação com o público. 

O autor não pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela moralizar os homens, isto é, dinamizar nas suas consciências a noção do dever humano e da responsabilidade de cada um em relação a seus semelhantes e em relação a Deus, onisciente e onipresente.

A criação desses personagens possibilita que se enxergue a sociedade de uma cidadezinha do Nordeste. É por isso que a peça pode ser chamada sátira social, pois procura reformar os costumes, moralizar e salvar as instituições de sua vulgarização. Com isso, nota-se que a realidade regional brasileira, especificamente a realidade nordestina, está presente através de seus instrumentos culturais mais significativos, as crenças e a literatura de cordel. 

VI - LINGUAGEM:

Ariano Suassuna procura definir a forma final de seu texto através dos seguintes elementos:

1- O autor não propõe, nas indicações que servem de base para a representação, nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista.

2- O autor busca encontrar uma expressão uniforme para todas a personagens, na presunção de que a diferença entre os atores estabeleça a diferença nos chamados registros da fala.

3- A composição da linguagem é a mais próxima possível da oralização, isto, é, o texto serve de caminho para uma via oral de expressão.

4- Os únicos registros diferentes ocorrem, como indicados no próprio texto:
a) do Bispo, "personagem medíocre, profundamente enfatuado" (p.72), como se nota nesta passagem: Deixemos isso, passons, como dizem os franceses (p.74).
b) de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras desataviadas, embora divinas, porque são concebidas como encarnadas em pessoas comuns, como o próprio João Grilo:

MANUEL: Foi isso mesmo, João. Esse é um dos meus nomes, mas você pode me chamar de Jesus, de Senhor, de Deus... Ele / isto é, o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas você, se quiser, pode me chamar de Jesus. (p.147)

A COMPADECIDA: Não, João, por que iria eu me zangar? Aquele é o versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço. Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo (p.171).

5- Quatro denominações de personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: João Grilo, Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chicó. Quanto ao Encourado, o autor dá a seguinte explicação:

Este é o diabo, que, segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro. (p.140)


6- Na estrutura da peça, isto é, na forma final do texto é que se revela o estilo do Autor, concebido com o a linguagem através da qual ele cria e comunica sua mensagem fundamental.

 

VII - ESTRUTURA:

A peça não se apresenta dividida em atos. Como o autor dá plena liberdade ao encenador e ao diretor para definirem o estilo da representação, convém anotar que são por ele sugeridos três atos, cuja divisão ou não por conta dos responsáveis pela encenação:

 

Aqui o espetáculo pode ser interrompido, a critério do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continuá-lo, com a entrada do Palhaço (p.71).
Se se montar a peça em três atos ou houver mudança de cenário, começará a aqui a cena do Julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando (p.137).

Do ponto de vista técnico, o autor concebe a peça como uma representação dentro de outra representação.

/.../ o Autor gostaria de deixar claro que seu teatro é mais aproximado dos espetáculos de circo e da tradição popular do que do teatro moderno (p.22).

 

A representação dentro da representação caracteriza-se:
a) pela apresentação do Auto da Compadecida como parte de um espetáculo circense, espetáculo esse simbolizado no Palhaço, que faz a apresentação da peça e dos atores.
b) pela apresentação do Auto propriamente dito, com suas personagens. Como a representação ocorre num circo, o Palhaço marca as situações técnicas e estabelece a ligação entre o circo e a representação no circo.
c) Ariano Suassuna dá plena liberdade ao diretor, no que respeita à definição do cenário, que poderá "apresentar uma entrada de igreja à direita, com um apequena balaustrada ao funda /../. Mas tudo isso fica a critério do ensaiador e do cenógrafo, que podem montar a peça com dois cenários /.../” (p.21).
d) Percebe-se, portanto, que a técnica de composição da peça segue uma linha simplista, solicitada pelo próprio autor, o que faz residir a importância da mesma apenas na proposição dos diálogos e no decurso da ação consequente.

O Auto da Compadecida apresenta os seguintes elementos que permitem a identificação de sua participação num determinado estilo de época da evolução cultural brasileira: 

1- O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é basicamente religioso. Assim o entendeu Paula Vicente, filha de Gil Vicente, quando publicou os textos de seu pai, no século XVI, ordenando-os principalmente em termos de autos e farsas.
Essa proposta conduz a que a primeira intenção do texto está em moldá-lo dentro de um enquadramento do teatro medieval português, ou mais precisamente dentro das perspectivas do teatro de Gil de Vicente, que realizou o ideal do teatro medieval um século mais tarde, isso no século XVI, portanto, em plano Quinhentismo [estilo de época]. 
2- O texto propõe-se como resultado de uma pesquisa sobre a tradição oral dor a romanceiros e narrativas nordestinas, fixados ou não em termos de literatura de cordel. Propõe, portanto, um enfoque regionalista ou, pelo menos, organiza um acervo regional com vistas a uma comunicação estética mais trabalhada. 
3- A síntese de um modelo medieval com um modelo regional resulta, na peça, como concebida pelo Autor. Se verificarmos que as tendências mais importantes do Modernismo se definem no esforço por uma síntese nacional dos processos estáticos, poderemos concluir que o texto do “Auto da Compadecida” se insere nas preocupações gerais desse estilo de época, deflagrado a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Um modelo característico dessa síntese se encontra em “Macunaíma”, de Mário de Andrade, de 1927, e em “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa [1956], entre outros.

 

VIII – PERSONAGENS:

As personagens de Auto da Compadecida são alegóricas, ou seja, não representam indivíduos, mas tipos que devem ser compreendidos de acordo com a posição estrutural que ocupam. A peça apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligação e comando do espetáculo. As personagens assumem uma posição simbólica, e é desse simbolismo que deriva a importância do texto.

JOÃO GRILO é a personagem principal porque atua como criador de tosa as situações da peça. Ele é o protagonista, personagem pobre e franzino, que usa de sua infinita astúcia para garantir a sobrevivência. Já foi comparado a Macunaíma, o herói sem caráter. Tal comparação, no entanto, revela-se inadequada, já que João Grilo, ao contrário do personagem criado por Mário de Andrade, trabalha de forma dura, ajuda seu grande amigo Chicó e tem como justificativa de suas traquinagens ser assolado por uma pobreza absoluta. O mais acertado seria compará-lo ao personagem picaresco, encontrado no romance medieval Lazarilho de Tormes. Mas nem é preciso ir tão longe, pois Pedro Malazarte – cuja origem ibérica está em Pedro Urdemalas – é o personagem popular mais próximo de João Grilo. 
A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo.

JOÃO GRILO: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada" [p.24].

Mas a importância inequívoca de João Grilo na estrutura da peça define-se a partir do fato de que as situações do Auto da Compadecida são todas desenvolvidas por essa personagem: 

1. A benção do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: "Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se pela. Não viu a diferença? Antes era " Que maluquice, que besteira!", agora "Não veja mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!" [p.33]. 

2. A loucura do Padre João, como justifica para o Major Antônio Morais. JOÃO GRILO: /.../ "É que eu queria avisar para Vossa Senhoria não ficar espantado: o padre está meio doido". [p.40]. "Não sei, é a mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro"[p.41]. 

3. O testamento do cachorro. JOÃO GRILO: "Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses últimos tempos, já doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. Até que meu patrão entendeu, coma a minha patroa, é claro, que ele queria ser abençoada e morrer como cristão. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patrão prometesse que vinha encomendar a benção e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de réis para o padre e três para o sacristão" [p.63-64]. 

4. O gato que "descome dinheiro". JOÃO GRILO: "Pois vou vender a ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descomo dinheiro" [p.38]. "Então tiro. [Passa a mão no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostões]. Está aí, cinco tostões que o gato lhe dá de presente"[p.96]. 

5. A gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOÃO GRILO: "Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer" [p.122]. 

6. A "visita" ao Padre Cícero. JOÃO GRILO: "Seu cabra lhe dá um tiro de rifle, você vai visitá-lo. Então eu toco na gaita e você volta" [p.127].
Essa situação decorre da anterior, mas pode ser considerada com o independente. 

7. O julgamento pelo Diabo [o Encourado]. JOÃO GRILO: "Sai daí pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!"[p.144]. 

8. O apelo à misericórdia [à Virgem Maria]. JOÃO GRILO: "Ah, isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?" [p.169]. 

PALHAÇO: O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica – trecho fora do enredo dramático em que as ideias e as intenções ficam claramente expressas:

PALHAÇO: “Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua lama é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo e tem direito a certas intimidades” (p.23-24).

... Espero que os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes (p.137).

O PALHAÇO, representando o autor, liga o circo à representação do Auto da Compadecida. Uma história altamente moral e um apelo à misericórdia. 
Ele é o anunciador da peça e também o grande comentador das situações. Suas falas apresentam muitas vezes um discurso mais direto, que dá a impressão de vir do autor. Na verdade, o Palhaço exerce função metalinguística no espetáculo, ao refletir sobre o próprio mecanismo mágico de produção da imitação e ao suprimir a distância entre realidade e representação. 

Outras: Chicó, Padre João, Sacristão, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antônio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demônio.

CHICÓ – é o contador de causos, o mentiroso ingênuo que cria histórias apenas para satisfazer um desejo inventivo. Chicó se aproxima do narrador popular, e suas histórias revelam muito do prazer narrativo desinteressado da cultura popular. Chicó e João Grilo são como a dupla de palhaços entre os quais a esperteza é mal repartida — um sempre a tem de mais e o outro, de menos. Companheiro constante de João Grilo e, especialmente, seu diálogo. Chicó envolve-se nos expedientes de João Grilo e é seu parceiro, mais por solidariedade do que por convicção íntima. Mas é um amigo leal.

PADRE JOÃO, O BISPO e o SACRISTÃO: Essas personagens, embora de atuação diversa, estão concentradas em torno de simonia e da cobiça, relacionada com a situação contida no testamento do cachorro.

PADRE JOÃO – mau sacerdote local, preocupado apenas em angariar fundos para sua aposentadoria.

SACRISTÃO – outro exemplo de mau religioso. 

BISPO – juntamente com o padre João e o sacristão, ajudará a compor o quadro de representação da Igreja corrompida. 

ANTÔNIO MORAES – típico senhor de terras, truculento e poderoso, que se impõe pelo medo, pelo dinheiro e pela força.  É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda.

O PADEIRO e sua MULHER: Encarnam, um lado, a exploração do homem pelo homem e, de outro, o adultério.

PADEIRO – representante da burguesia interessada apenas em acumular capital, explora seus empregados e tem acordos com as autoridades da Igreja. 

MULHER DO PADEIRO – esposa infiel e devassa, tem amor genuíno apenas por seus animais de estimação. 

FRADE – bom sacerdote, serve, no enredo da peça, para salvaguardar a instituição Igreja das críticas do autor. 

SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na sequência de número cinco, porque nessa sequência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.

SEVERINO DO ARACAJU – cangaceiro violento e ignorante. 

CANGACEIRO – ajudante de Severino, seu papel é apenas puxar o gatilho e executar outras personagens. 

DEMÔNIO – ajudante do Diabo, parece disposto a condenar todos os personagens mortos no final do segundo ato. 

O ENCOURADO (O DIABO) – segundo uma crença nordestina, o diabo utiliza roupas de couro e veste-se como um boiadeiro. Funciona como uma espécie de antagonista de João Grilo; como ele, também é astuto, mas acaba sendo derrotado pelo herói. Julgam, aguardando seu benefício, isto é, o aumento da clientela do inferno. É importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justiça, encarnado em Manuel (O Cristo).
O ENCOURADO  é o acusador no Julgamento Final. Suassuna diz que, “segundo uma crença do sertão do Nordeste, é um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro.”

Não consegue olhar diretamente para Manuel (Jesus) e para a Compadecida (Maria). É caracterizado por Suassuna como um sujeito sério. Em um momento do julgamento, ele diz:

“Protesto contra essas brincadeiras. Isso aqui é um lugar sério. ”  Em outro momento: “É, você está muito engraçado agora, mas Manuel é justo e quando ele me entregar vocês, há de ver que com o diabo não se brinca. ”  e “... tem razão, porque o que vai lhe acontecer é coisa muito séria.”  Duas vezes ele pede respeito aos interlocutores: “Homem, dê-se a respeito! ”  e “Vá vendo a falta de respeito, viu?”  E reclama da intercessão da Compadecida: “Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar todo mundo! Termina desmoralizando tudo. ”

MANUEL (NOSSO SENHOR JESUS CRISTO) – personagem que simboliza o bem, porém um bem sem misericórdia. É representado por um ator negro, a fim de que isso produza um efeito de estranhamento no público. É o Cristo negro, justo e onisciente, encarnação do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudência mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogância, da simonia, da preguiça. Personagem a personagem têm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudência.

É quem dirige o julgamento. É caracterizado por Suassuna como “um preto retinto, com uma bondade simples e digna nos gestos e nos modos. ” Ao contrário do Encourado, que é sério, Manuel tem certa irreverência. No julgamento ele faz algumas piadas. Em um momento, quando João Grilo estranha o fato dele ser negro, responde:

Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça? ” Sobre a questão do racismo, trataremos adiante. O que deve ser ressaltado aqui é a imagem de irreverência atribuída a Jesus.

Eis outros momentos de piada, de Manuel: “É brincadeira minha, mas, depois que João chamou minha atenção, notei que o diabo tem mesmo um jeito assim de sacristão.”  (...) “Calma, rapaz, você não está no inferno. Lá, sim, é um lugar sério. Aqui pode-se brincar. Faça a acusação do sacristão.”  (...) “Pois desanote. Não está vendo que é brincadeira? João sabe lá o que é livre arbítrio, homem?”  (...) “É besteira do demônio. Esse sujeito é meio espírita e tem mania de fazer mágica.”  (...) “Deixe de chicana, João, você pensa que isso aqui é o palácio da justiça? Pode acusar.”  (...) “Esse respeito de que você fala, foi coisa que eu nunca soube impor, graças a Deus.”  (...)  “Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer, meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou.”  “Que é que eu posso fazer? Esse aí era um bispo avarento, simoníaco, político...”  (...) “Não. Vou deixar que você volte, porque minha mãe me pediu, mas só deixo com uma condição. Você me fazer uma pergunta a que eu não possa responder. Pode ser?” (...) “Eu sei, mas para que você não fique cheio de si, vou lhe confessar que já sabia que você ia-se sair bem. Minha mãe já tinha combinado tudo comigo, mas você estava precisado de levar uns apertos. Estava ficando muito saído.”  (...) “Se a senhora continuar a interceder desse jeito por todos, o inferno vai terminar como disse Murilo: feito repartição pública, que existe mas não funciona. ” 

E, para terminar: “JOÃO GRILO: Isso é que é conhecer a Bíblia! O Senhor é protestante? MANUEL: Sou não, João, sou católico.

Na avaliação de Oscar Henrique “esses e outros trechos do Cristo e de Nossa Senhora dão uma concepção da religião como algo simples, agradável, doce e não como uma coisa formal, solene, difícil e mesmo penosa.”

Outro aspecto a ser notado é que, na cabeça de Suassuna, Jesus não é tão humano, tão próximo quanto Maria:

MANUEL: E por quem eles iriam gritar? JOÃO GRILO: Por alguém que está mais perto de nós, por gente que é gente mesmo. MANUEL: E eu não sou gente, João? Sou homem, judeu, nascido em Belém, criado em Nazaré, fui ajudante de carpinteiro... Tudo isso vale alguma coisa. JOÃO GRILO: O senhor quer saber de uma coisa? Eu vou lhe ser franco: o senhor é gente, mas não muito não. É gente e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande. Meu negócio é com outro.  (...) “Não é o que eu digo, Senhor? A distância entre nós e o Senhor é muito grande. Não é por nada não, mas sua mãe é gente como eu, só que gente muito boa, enquanto que eu não valho nada.

A COMPADECIDA (NOSSA SENHORA
) – heroína da peça, funciona como uma advogada de João Grilo e de seus conterrâneos, derrotando com seus argumentos cheios de misericórdia os planos do Encourado de levar todos ao inferno. É Nossa Senhora, invocada por João Grilo, o ser que lhe dará a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericórdia, intervindo a favor de quem nela crê, João Grilo.

É a intercessora que defende todos os acusados. Sua característica predominante é a misericórdia. Na segunda fala da peça, o Palhaço anuncia: “A intervenção de Nossa Senhora no momento propício, para triunfo da misericórdia. ”  De mesma forma que Manuel, a Compadecida aprecia a alegria, ao contrário do Encourado. Respondendo a um gracejo de João Grilo ela diz: “Tem umas graças, mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza é o diabo. ”  Esta crítica à formalidade e à reverência também ficam evidentes nesta fala da Compadecida ao Encourado: “É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado.”

Ela é chamada também, por João Grilo de “mãe da justiça”  e “grande advogada.”  Na concepção de Suassuna, Maria tem tanto poder (ou mais) que Jesus Cristo. No roteiro da peça, nas anotações ao diretor, encontramos estas instruções: “O Encourado, furioso, volta-se para João, mas nesse momento, ou dá um grande grito e corre para o inferno, ou deita-se no chão e rasteja até onde está a Virgem para que ela lhe ponha o pé sobre a nuca (cf. Gênesis, 3, 15), saindo após. ” Suassuna atribui o pisar na cabeça da serpente a Maria e não à semente da mulher, Jesus, como é claramente descrito na Escritura. Quanto à defesa que Maria faz de todos os acusados no Julgamento Final, veremos adiante.


IX - CONSIDERAÇÕES FINAIS:

 

1. Crítica moralizante:

Fica patente o cunho de sátira moralizante da peça, que assume uma posição cujo foco está na base da pirâmide social, a melhor maneira de desvelar os discursos mentirosos das autoridades e integrar os homens e mulheres por meio da compaixão, a qual só os desprendidos podem desenvolver. Nesse aspecto, a moral que se depreende da peça é muito semelhante à do cristianismo primitivo, que se baseava no preceito “amai-vos uns aos outros”.

 

2. Compaixão pelos que sofrem:

A ambientação da peça no sertão nordestino, tendo como personagens principais João Grilo e Chicó, dois jovens sofredores que passam fome e necessidade por causa das condições difíceis da sua região revelam um traço bem humanístico na obra de Suassuna. Embora o autor tenha tido dificuldades em sua vida com a morte de seu pai aos 3 anos de idade, não se verifica na bibliografia dele algum tipo de sofrimento com relação ao dinheiro. Sua mãe, viúva de um político influente, governador do Estado da Paraíba, com ligação direta ao presidente Getúlio Vargas, dificilmente teria ficado desamparada, do ponto de vista financeiro. Na ocasião, ela vendeu as terras e o gado do marido e arrendou uma fazenda para ter recursos para criar os filhos.  Isso aumenta o mérito de Suassuna, ao retratar as condições de pobreza de seus conterrâneos sem experimentar na pele essas condições.


3. Repudio à opressão:

Assim como é perceptível a compaixão de Suassuna pelos pobres, é evidente a crítica feita em “Auto da Compadecida” aos ricos opressores. Estes opressores aparecem nas personagens do padeiro e sua mulher, do major Antônio Morais e na figura dos religiosos, o bispo, o padre e o sacristão.

A mulher do padeiro, por exemplo, gosta mais de bichos de estimação do que de pessoas: “Ai, João, traga para eu ver! Chega a me dar uma agonia. Traga, João, já estou gostando do bichinho. Gente, não, é povo que não tolero, mas bicho dá gosto. ”  E trata melhor os animais do que os pobres. Em certo momento da peça João Grilo se queixa dela a Chicó:

Está esquecido da exploração que eles fazem conosco naquela padaria do inferno? Pensam que são o cão só porque enriqueceram, mas um dia hão de me pagar. E a raiva que eu tenho é porque quando estava doente, me acabando em cima de uma cama, via passar o prato de comida que ela mandava para o cachorro. Até carne passada na manteiga tinha. Para mim, nada, João Grilo que se danasse. Um dia eu me vingo.68 


4. Crítica ao racismo:

O tema do racismo é levantado em “Auto da Compadecida”. Manuel, o Jesus da peça, é negro. Depois da admiração de João Grilo e de todos por sua cor, ele explica:

Muito obrigado, João, mas agora é sua vez. Você é cheio de preconceitos de raça. Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?69 

Na opinião de Henrique Oscar, que prefacia a edição aqui utilizada, a frase se deve ao contato que brasileiros tiveram com os americanos quando, na segunda Guerra Mundial, estabeleceram bases no Nordeste:

Ora, em primeiro lugar, durante a guerra houve bases americanas no Nordeste, cujo ambiente e mentalidade a peça evoca. Possivelmente seus ocupantes, com a inabilidade característica que manifestam no trato com outros povos, deram abundantes provas desse seu lamentável sentimento. Portanto, a repulsa pode ali ser suficientemente forte, para que o autor se sentisse levado a trazê-la para sua peça.70 

Muito tempo depois, o próprio Suassuna arrependeu-se de ter incluído esta fala na peça. Ele explicou o porquê em uma entrevista a alunos do departamento de Jornalismo Impresso da Universidade Federal do Ceará:

Tem um protesto lá contra o preconceito de raça, contra a discriminação racial. E tem uma frase que o Cristo diz assim, o Cristo reclamando contra João Grilo diz a ele: “Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça? ” Olhe, isso mostra de minha parte uma visão totalmente falsa do Brasil, eu estava certo naquele tempo que nós estávamos muito na frente dos Estados Unidos nisso, e não é verdade, o preconceito de raça no Brasil é profundamente enraizado, só que disfarçado. Então isso é um dos erros que cometi no decorrer da minha obra.71 

5. A morte:

No Auto da Compadecida, a narrativa adquire um sentido preciso ao se consumar a morte das personagens. Nas longas sequências iniciais da obra, são retratadas em detalhes as idiossincrasias, qualidades morais, sentimentos e respostas às injunções do cotidiano de cada uma das personagens; o pobre esperto e atrapalhado, a mulher adúltera, o marido avarento, o padre pusilânime, o bispo político, o sacristão cúpido, o cangaceiro implacável têm os significados plenos de suas identidades substancializadas no momento do julgamento final. Os embates anteriores à morte surgiam em função das vicissitudes estruturais, existenciais ou políticas das personagens; eram expressos pelas máscaras da inocência, da dissimulação, do exercício do poder, da ignorância ou da manipulação. Finados, as máscaras se desintegram diante da percepção essencial de cada indivíduo perpetrada por Deus, pela Compadecida e pelo Diabo. A própria Compadecida reduz os comportamentos apresentados em vida por cada suplicante a manifestações de medo, ao que o bispo retruca ser medo da morte.

Vimos que “Auto da Compadecida” relativiza a moral e a ética ao justificar pecados e suavizar suas consequências. Vimos também a condenação bíblica de Deus sobre os pecados, tendo o seu ápice na cruz de Cristo. Agora, tendo verificado o ensino bíblico sobre a questão, podemos analisar um pouco a origem cultural dessa tendência pecaminosa.

6. Desigualdade social:

Considerações sobre a morte servem de pretexto também para estabelecer os critérios de desigualdade entre pessoas através da observação do comportamento; Chicó - um dos pobres do Auto - diz que "esse povo rico é cheio de agonia com os mortos. Eu, às vezes, chego a pensar que só quem morre completamente é pobre, porque com os ricos a agonia continua por tanto tempo depois da morte, que chega a parecer que ou eles não morrem direito ou a morte deles é outra". Mas, como na Idade Média, a morte também todos igualam; o mesmo Chicó fala:" encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre".

As mesmas atitudes dissonantes entre a prática popular e o entendimento do clero sobre os animais fazem deslanchar a trama do Auto; afigura-se o problema da benção do cachorro da mulher do padeiro; a conversa entre Chicó e João Grilo, no intento de mostrar a naturalidade do fato alude a outros animais bentos como o cavalo bento de Chicó. O problema do enterro do cachorro e de seu testamento é também pretexto para toda a sequência em que o clero é desmoralizado pela sua avareza. O cachorro morto, por ter deixado em testamento dinheiro para o padre, o sacristão e o bispo, é considerado por estes como inteligente, possuidor de nobres sentimentos e mesmo de uma alma, ou de algo semelhante passível de provocar assombrações.

7. Personagens e seus pecados:

A peça “Auto da Compadecida” revela uma moral relativa, circunstancial e tolerante. As personagens são praticantes de vários pecados do Decálogo e estes pecados são evidentes na peça. O de João Grilo, a falsidade, um herói do sertão nordestino, trapaceiro; o de Chicó, a mentira; o do Padeiro, a avareza; o da sua Mulher, o adultério; os pecados do Padre, a cobiça e a preguiça; do Sacristão, a cobiça; do Bispo, a cobiça e orgulho; o pecado de Severino e seu amigo Cangaceiro, o furto e o homicídio. Porém, se há apontamento de pecados há também tolerância e justificativa para os delitos.

Laivos de heresia também no Auto; a questão da identidade entre Jesus e Cristo e da dualidade divindade-humanidade do Cristo parecem muito complexas e duvidosas para João Grilo; Cristo afirma ser homem, mas Grilo retruca que: "o senhor é gente, mas não muito não. É gente e ao mesmo tempo é Deus, é uma misturada muito grande. Meu negócio é com outro". Sem o saber, João Grilo reaviva uma discussão candente dos primeiros tempos do cristianismo, quando facções teológicas disputavam na teoria e na prática, através de massacres, as questões da consubstanciação ou da transubstanciação do Cristo. O próprio Cristo, por sua vez, acusa o diabo de desvios religiosos; considera-o "meio espírita", alguém que "tem mania de fazer mágica". A magia, de fato, associava-se ao demo nos tempos medievais, mas o espiritismo é uma herança do século XIX, aliás fortemente arraigada nas crenças do povo brasileiro.

X – CONCLUSÃO:

Compadecida deve ser entendida dentro do espírito que guiava as montagens do TEP e as criações de Suassuna na década de 40 e início de 50:" despertar o povo, fazê-lo sentir que era a origem e era o fim, que a arte dramática brasileira encontrava nele seu filão criador (...) fazer uma arte popular total, fundamentada na tradição e na dramaturgia do Nordeste".

No entanto, devemos notar que este despertar do povo - cultural, portanto político - reveste-se de muita prudência e ambiguidade; a intenção de Suassuna de realizar um teatro de conscientização nem sempre segue as próprias tradições.

No Auto, os poderosos, por exemplo, não acabam no inferno, como no imaginário popular, porque João Grilo deles se apieda e encontra uma solução intermediária ao negociar a opção de um espaço também intermediário, o Purgatório. A relação dos cangaceiros - heróis populares nordestinos - com as demais personagens é complexa; o cangaceiro representa um poder desestruturador da opressão cotidiana - Severino afugenta a polícia, rouba dos representantes da Igreja e do padeiro, critica o comportamento da mulher do padeiro - no entanto, na hora de matar não tem qualquer deferência para com os pobres; poupa apenas o frade, mas por superstição - matar frade dá azar. Outra ambiguidade transparece na relação entre o discurso de busca das raízes brasileiras autênticas, populares, do passado ibérico, e a ufania do major, uma personagem ociosa, detentora dos poderes locais, ao se considerar um produto da mais pura cepa portuguesa: "Meu nome todo é Antonio Noronha de Brito Morais e esse Noronha de Brito veio do Conde dos Arcos, ouviu? Gente que veio nas caravelas, ouviu?".

A consciência social está presente nas personagens divinas; o Cristo do Auto - negro e de nome Manuel - discursa contra o bispo - "indigno de minha Igreja, mundano, autoritário, soberbo. (...) Sua obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer" - e a favor da sinceridade do pobre João, apesar de seu preconceito de raça, como se fora um americano. No Cristo de Suassuna não há "contradição entre justiça e misericórdia". O Cristo de Buenaventura igualmente admira os pobres e compreende suas fraquezas, como no caso da avidez de Peraltona. Mas, no fundo, tratam-se de discursos morais.

A obra começa com Chicó, amigo de João Grilo, contando a estória do “cavalo bento”, um animal que correu atrás de uma garrota e um boi durante todo o dia, indo de Taperoá, Paraíba, até Propriá, Sergipe. Depois, João Grilo e Chicó enganam o padre para que ele benzesse o cachorro da mulher do padeiro. A seguir, Chicó conta a estória do peixe pirarucu que o arrastou no rio Amazonas durante três dias e três noites e, com a morte do cachorro da mulher do padeiro, João Grilo convence o sacristão e o padre a fazerem o sepultamento do animal. Tal logo morreu o cachorro, e João Grilo, por quinhentos mil réis, vende um gato que “descome dinheiro” para a mulher do padeiro. Severino, o temido cangaceiro entra em cena, acompanhado de outro cangaceiro, gerando pavor em todos.

Antes do momento final da peça, o narrador, o Palhaço, torna explícito o tom da crítica moral:
“Muito bem, com toda essa gente morta, o espetáculo continua e terão oportunidade de assistir seu julgamento. Espero que todos os presentes aproveitem os ensinamentos desta peça e reformem suas vidas, se bem que eu tenha certeza de que todos os que estão aqui são uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao próximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, ótimos patrões, excelentes empregados, sóbrios, castos e pacientes. E basta, se bem que seja pouco. Música.”54 

Severino, o cangaceiro, em pleno roubo, torna-se confrontador de pecados. Primeiro do Padre:

PADRE: Tenho, não vou negar. Aqui estão dois contos, Senhor Severino. É o que posso lhe dar, no momento. SEVERINO, irônico: É mesmo, padre? Não é possível! Numa terra em que o bispo tem seis contos, o padre deve ter no mínimo uns três. (Severo.) Deixe ver os bolsos. Olhe lá, eu não disse? Fazendo jogo sujo, hem, padre? Quem diria, um ministro de Deus! Enfim, isso é um fim de mundo.

Depois, Severino confronta o comportamento adúltero da mulher do padeiro:

MULHER sedutora: Então venha trabalhar comigo na padaria. Garanto que não se arrepende. SEVERINO, severo: Mostre a mão esquerda. MULHER, cariciosa: Pois não, com muito gosto. SEVERINO: É uma aliança? MULHER: É, sou casada com essa desgraça aí, mas estou tão arrependida! Só gosto de homens valentes e esse é uma vergonha. SEVERINO: Vergonha é uma mulher casada na igreja se oferecer desse jeito. Aliás, já tinha ouvido falar que a senhora enganava seu marido com todo mundo.

Na sequência, confronta a avareza do padeiro:

PADEIRO: Não ligue ao que ela diz, mas o senhor podia vir mesmo trabalhar comigo na padaria. Não se ganha muito, mas dá para viver. SEVERINO: Então ganha-se pouco na padaria? PADEIRO: Muito pouco, eu mesmo não tenho aqui, veja. SEVERINO: Não preciso, eu acredito. O que você tinha deixou no cofre e eu tirei tudo, de passagem por lá. PADEIRO: Ai!

Observe que o autor anuncia a denúncia do pecado da Igreja, o mundanismo; reconhece seu comportamento pecaminoso, na frase “sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia”; mas justifica estes comportamentos com base nas crises existenciais do povo: “porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades.”

Na cena do Julgamento Final, a Compadecida, justifica a todos os pecados:

A COMPADECIDA: É verdade que não eram dos melhores, mas você precisa levar em conta a língua do mundo e o modo de acusar do diabo. O bispo trabalhava e por isso era chamado de político e de mero administrador. Já com esses dois a acusação é pelo outro lado. É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens: começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não presta, quase sem querer. É medo.59 

O elemento motivador e justificador do pecado é o medo:

ENCOURADO: Medo? Medo de quê? BISPO: Ah, senhor, de muitas coisas. Medo da morte... PADRE: Medo do sofrimento... SACRISTÃO: Medo da fome... PADEIRO: Medo da solidão. Perdoei minha mulher na hora da morte, porque a amava e porque sempre tive um medo terrível da solidão. MANUEL: E é a mim que vocês vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai! A COMPADECIDA: Era preciso e eu estava a seu lado. Mas não se esqueça da noite no jardim, do medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue, como qualquer outro e, como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do sofrimento. JOÃO GRILO: Ouvi dizer que até suar sangue o senhor suou. MANUEL: É verdade, João, mas você não sabe do que está falando. Só eu sei o que passei naquela noite. A COMPADECIDA: Seja então compassivo com quem é fraco.

Esse medo e sofrimento são usados pela Compadecida para livrar a todos da condenação. A Mulher do padeiro é justificada de seus adultérios por ter sofrido nas mãos do marido, no início do casamento. Severino e o cangaceiro são justificados por terem enlouquecido, depois que a polícia matou a família deles. João Grilo, o de situação mais complicada no julgamento, recebe a chance de voltar à vida, tendo seus pecados perdoados com base em seu sofrimento: “A COMPADECIDA: João foi um pobre como nós, meu filho. Teve de suportar as maiores dificuldades, numa terra seca e pobre como a nossa. Não o condene, deixe João ir para o purgatório.”

Na impossibilidade de ir ao purgatório, A Compadecida pede a Manuel outra chance para João Grilo e lhe é concedido o direito de ele voltar à vida na terra.