quarta-feira, 13 de março de 2024

“Alma minha gentil, que te partiste”, Camões

 

Alma minha gentil, que te partiste

Tão cedo desta vida, descontente,

Repousa lá no Céu eternamente

E viva em cá na terra sempre triste.

 

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

Memória desta vida se consente,

Não te esqueças daquele amor ardente

Que já nos olhos meus tão puro vistes.

 

E se vires que pode merecer-te

Alguma cousa a dor que me ficou

Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

 

Roga a Deus, que teus anos encurtou,

Que tão cedo de cá me leve a ver-te,

Quão cedo de meus olhos te levou.

 

   O soneto, que os biógrafos associam à morte de Dinamene (Tinanmen), amante chinesa com que Camões viveu em Macau, é um dos mais conhecidos. Segundo a tradição, acusado de delitos administrativos, Camões e Dinamene teriam sido levados da China para a Índia, onde seria julgado o poeta. Na viagem, por volta de 1560, o navio naufraga nas costas do rio Mekong. Camões teria conseguido salvar-se e salvar “Os Lusíadas”, que trazia quase concluído, mas teria perdido Dinamene, a sua “alma gentil”, relembrada em elevado tom elegíaco, quase místico.

   O Platonismo revela-se, no soneto, pela sublimação eternizadora da amada, a partir de sua morte. O poeta contempla a amada transubstanciada em puro espírito (“lá no assento etéreo”), por via do muito amar.

   O apelo aos sentidos é transcendentalizado, imaterializado, buscando Dinamene no Céu, em Deus, entendidos como valores filosóficos, míticos e não apenas religiosos ou cristãos.

   A morte implica uma espécie de purificação. A amada que partiu para esse “mundo das ideias e formas eternas”, também se torna objeto de elevação e saudade. Mas a “reminiscência”, neste caso, tem mão dupla: do poeta, que se eleva à beleza imaterial da amada, como usual, e também na direção oposta, pois o poeta sugere a possibilidade de que a amada se lembra dele, “lá do assento etéreo”.

   O poeta clássico equilibra a expressão de seus transes existenciais com a disciplina clássica. Emoção e razão, expressão pessoal e imitação modelam uma dicção sóbria, contida, mas nem por isso menos comovente. Mesmo quando aproveita o material autobiográfico, não há o desequilíbrio desesperado dos românticos.

   A morte da amada serve também ao exercício poético da imitação, no caso, do modelo petrarquista: “Questa anima gentil Che si diparte” e “Anima bella, da quel nodo sciolta.”

   A situação conflitiva que o poeta retrata projeta uma tensão que se aproxima do Maneirismo e, por essa via, do Barroco: a presença da morte, o tom fatalista, o dualismo que opõe vida e morte, passado e presente, serenidade e sofrimento.

 

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