“QUATRO
BAILARINAS EM CENA” (1885-1890)
Edgar
Degas – coleção MASP
“Um dos mais importantes pintores
impressionistas, Degas (1834-1917) é tema de exposição no MASP, em São Paulo,
nesse ano. Reconhecido como o grande mestre das figuras em movimento, Degas é
hábil desenhista e um grande inovador na arte do retrato, distinguindo-se pela
particular interpretação da luz. Suas técnicas eram originais, enfocando os temas
a partir de ângulos incomuns, muitas vezes de um ponto visto de cima. Com um
olhar fotográfico, quase sempre posicionava-se de forma descentralizada.” (FGV-2006)
“(...) Mas é bom avisar que, quanto ao tema
das bailarinas, que o senso comum entende indissociável do artista, não foi bem
assim. Na realidade, Degas não era um apaixonado por bailarinas, mas pelo
movimento, fosse o observado em um espetáculo de balé, uma corrida de cavalos
ou uma empregada doméstica passando roupas. O artista fazia até sutilíssimas
anotações da mobilidade das expressões faciais, o que tornou excelente
retratista.
Se há hoje uma predominância de bailarinas
em sua obra, isso se deve a fatores, digamos, práticos. Degas atendeu a uma
demanda do mercado de arte, exatamente quando a fortuna da família (era filho
de banqueiro) acabou. Não se imagine, porém, que houve concessões estéticas
ditadas pela pressa do lucro. Degas era perfeccionista e, já então, artista
consagrado e zeloso de sua reputação. Pintando ou modelando bailarinas, o
artista era plenamente consciente de que impulsionava a arte de seu tempo e
liderava um movimento.
Que razões, porém fazem dessas graciosas
personagens algo tão admirado? Uma delas é que há aí o resultado de um olhar
moderno, descolado da tradição. Isso fica bem evidente em suas pinturas. Observe
o enquadramento, o modo como a cena e os personagens ocupam os espaços da tela.
Note que, assim como nas fotografias instantâneas, há figuras parcialmente
capturadas no retângulo da imagem.
O artista parece frisar que a realidade é
muito maior, que não cabe inteira na representação possível dela. Observe os
ângulos escolhidos para fixar esses instantes. Podem estar em plano aéreo,
vendo a cena de cima para baixo, como a platéia dos camarotes de um teatro. Ou
podem mergulhar no poço da orquestra para, de baixo para cima, focar o palco
como detalhe e os músicos como assunto principal.
Esses enquadramentos não seriam possíveis
se, na época em que foram realizados, a fotografia (inventada em 1839) já não
estivesse estabelecendo um novo modo de comentar o mundo. Quanto ao fascínio
pelo movimento (Degas foi contemporâneo de Étienne Maray, inventor da
cronofotografia, precursora do cinema), cabe lembrar que o artista vivia em uma
das maiores metrópoles de um mundo que, graças às máquinas da Revolução
Industrial, ganhava um ritmo de vida acelerado. A velocidade passava a dominar
a vida urbana e Degas foi dos primeiros a fazer dela um tema artístico.
De formação clássica, Degas iria adentrar o
moderno. Ainda não louvava diretamente as máquinas como o faria, uma geração
depois, o Futurismo italiano. O pulso dos novos tempos foi sentido ainda na
pele e nos músculos de seus modelos. Era a busca do equilíbrio e do ritmo que o
fascinava. Daí as aulas de balé e, na mesma medida, os cavalos de corrida. Um
dos seus seguidores diretos, o pintor Toulouse-Lautrec (presente na mostra com
quatro obras, todas do acervo Masp) era mulherengo. Degas era até algo
misógino. Mas não lhe escapava a fatigante rotina de adestramento a que eram
submetidas as bailarinas, assim como os jóqueis e seus cavalos. Começava a
emergir aí, nos estúdios sombrios e na poeira das pistas de corrida, um pouco
do drama do indivíduo urbano confrontando com a dura rotina do cotidiano." (BRAVO! MAIO 2006)
“Até
hoje, Degas tem sabido captar o espírito da vida moderna melhor do que
ninguém.”
Edmond
de Goncout
Conhecido como “aquele terrível Monsieur
Degas”, o cáustico pintor se opunha a qualquer reforma social e não gostava de
crianças, flores e cachorros. “Há o amor e há o trabalho”, ele dizia, “mas nós
só temos um coração”. Quase cego e um amargo recluso, dizia: “Quando eu morrer
vão ver como trabalhei duro.”
DEGAS, nome real Edgar-Germain-Hilaire de
Gás, nasceu em 19 de julho de 1838. A família vivia no padrão burguês de
conforto e Degas nunca passou por necessidade financeira, exceto por um breve
período após a morte de seu pai. Bonito,
rico, elegante e culto, afetava quase arrogância na compostura um tanto
empertigada. De temperamento anti-social, matriculou-se na faculdade de direito
da Universidade de Paris, mas passava a maior parte de suas tardes no
departamento de reproduções gráficas da Biblioteca Nacional, onde pesquisava e
copiava obras dos grandes mestres da pintura. Além de estudar as gravuras,
também visitava o Louvre para observar pinturas originais dos grandes artistas.
Logo sentiu necessidade de ateliê próprio.
Seu primeiro professor foi Barrias, substituído pouco tempo depois por Louis
Lamothe, discípulo medíocre de Ingres, mas que pelo menos passava a Degas o que
aprendia com seu próprio mestre.
As lições foram fundamentais, pois Degas
nunca esqueceu a obra de Ingres, que tanto o influenciou, nem as palavras que
dele ouviu num de seus raros encontros: “Nunca desenhe a partir da natureza,
meu jovem. Desenhe sempre de memória e segundo o trabalho dos grandes mestres!”
Talvez seja esse o motivo que, em 1855
Degas após ser aceito na Escola das Belas-Artes, preferiu viajar à Itália e
conhecer a paisagem, a atmosfera e as cores que haviam inspirado Giotto,
Botticelli, Bronzino, Leonardo, Rafael e Paolo Uccello.
Os esboços e comentários que registrou nos
cadernos de viagem até hoje documentam seu desenvolvimento artístico.
Entre muitas viagens que fez à Itália, a mais
importante foi a de 1858. Foi durante esse período que ele escreveu sobre Luca
Signorelli e seu “amor pelo movimento”, sobre o surpreendente senso de drama e
expressão de Giotto e sobre a emoção que sentiu quando compreendeu, pelas
próprias obras dos grandes mestres, que toda “essa gente possuía muita
consciência da vida e não negava”.
Em Florença, hospedado na casa de uma tia,
talvez já tivesse pensado em pintar um retrato da família, pois antes fizera
esboços de uma das primas. Anos depois, em seu ateliê em Paris, ele usaria
estudos e desenhos feitos naquela viagem para produzir “A Família Bellelli”, o
primeiro de um novo gênero de retrato.
O quadro talvez tenha sido um dos mais
modernos da época, em parte pelo nítido contraste entre o rigor do desenho
clássico e certos detalhes intencionalmente imprecisos (o tapete e as flores do
papel de parede) e, em parte, pelas expressões das figuras.
As pessoas parecem pegas de surpresa, em
poses naturais e a meio pensamento; as posturas não parecem estudadas. Uma das
meninas olha o pintor, enquanto o barão está de costas para o observador. É um
quadro cheio de energia, mas que enfatiza, na observação cuidadosa das pessoas
retratadas, mais a natureza íntima da composição do que seu aspecto imediato.
Como os velhos mestres, Degas sentia
impaciente necessidade de transpor para a tela a experiência pessoal da vida de
sua época. Por isso, entre 1860 e 1865, quando estava trabalhando em “A Família
Bellelli”, também ia desenvolvendo outros motivos que refletiam seu poderoso
desejo de enriquecer a própria vivência. Desenvolveu grandes quadros históricos
que eram sua homenagem aos pintores clássicos. Entre eles, “Jovens Espartanos
Praticando Exercícos”, “Semíramis Fundando Babilônia”, “A Filha de Jeftá”,
“Alexandre e Bucéfalo”, “Cenas de Guerra na Idade Média” ou “Os Infortúnios da
Aldeia de Orleans”. O fato é que, embora inferiores às que vieram depois, essas
obras impressionam pelo apuro e pela leveza de seus matizes.
Em 1872, Degas pintou um quadro com fôlego
novo: “Nas Corridas”. Degas captou como motivo o momento em que os cavalos
estão para largar, nas imagens, a cor se converte em movimento. Os jóqueis no
primeiro plano mostram relação visual com os espectadores no plano
intermediário, e estes, por sua vez, vão relacionar-se com os cavaleiros de
fundo.
Outro quadro que surpreende se comparado a
outros do período, é “Mulher com Crisântemos”, de 1865. Com sua figura tão
natural e imediata parece quase fotografia. A mulher, deslocada à direita na
composição, está absorta e distante, alheia a quem a observa; o que de fato
domina a cena é o vaso de flores.
Nesse período conheceu Manet e, por
intermédio deste, Bazille, Cézanne, Pissarro, Renoir, Sisley e Zola.
Como Manet, Degas também sentia desejo e necessidade
de “pertencer a seu tempo e pintar o que via”. A partir dessa época, empolgado
pela ressaca da maré cultural e artística, e influenciado pelas técnicas de
Manet, Degas deu à cor função mais decisiva em seu trabalho, passou a usá-la
para destacar rostos, pequenos detalhes de um quarto, movimentos de toda uma
cena.
Nem por isso desprezava a precisão dos
artistas holandeses ou as regras aprendidas com outros grandes mestres do
passado. Inspirava-se também em gravuras japonesas como as do grande inovador
Hokusai.
Em muitos sentidos, Degas estava adiante de
época. Inclusive da fotografia, pois vinte anos antes da projeção das primeiras
fotografias de um cavalo a galope produzidas por Eadwearch Muybridge, Degas já
fizera quadros “de instantâneo”.
Degas após conhecer a orquestra da Ópera,
passou a observar os músicos, o seu trabalho e começou a desenhar o que via.
Num apontamento para si mesmo, escreveu:
“Série sobre os instrumentos e instrumentistas, suas formas, os braços
torcidos, os ombros e o pescoço do violinista, por exemplo, as bochechas
infladas e os lábios do fagotista, o oboísta...” Tomava nota e pintava.
“A Orquestra da Ópera” é apenas um título em
longa série de quadros que tinham por tema o mundo dos espetáculos, o teatro
visto do lado de lá da ribalta, do lado dos que o faziam e o viviam. Depois de
reunir muitos desenhos e croquis, ele os arquivava na mente e reconstruía as
cenas com realismo; dava às imagens novo senso de espaço e luz. Mas foi só em
1872 que começaram a aparecer grupos inteiros de bailarinas, na barra ou ao
espelho, como em “Sala de Ensaio de Balé no Teatro da Ópera.”
Outro retrato representativo do cotidiano
foi o que pintou em 1869, “A Passadeira”.
“À Beira-Mar”, pastel da mesma época, destoa
da temática predominante em Degas, por contrapor indivíduos e natureza. Quanto
a isso, ele próprio explicou: “É corajoso representar a natureza em seus
grandes planos e linhas e é covarde fazê-lo em facetas e detalhes”. Era uma
crítica a outros pintores, um julgamento franco como o que fez a respeito da
pintura impressionista ao ar livre: “Um quadro é antes de tudo um produto da
imaginação do artista, não deve nunca ser uma cópia. O ar que se vê nos quadros
dos mestres não pode ser respirado.”
Em contraste com Manet, Degas não
improvisava. Era impossível para ele se deixar levar apenas por inspiração e
impulsos do momento.
Em 1872, dois anos depois da guerra
franco-prussiana, Degas viajou para Nova Orleans. Em Louisiana, começou a
retratar diferentes membros da família. Apesar de reunir as figuras do tio e do
irmão, “A Corretora de Algodão em Nova Orleans” não tem a mesma atmosfera
familiar do retrato da família Bellelli. A cena é a de um escritório na bolsa
de algodão e reproduz com realismo quase exasperante a atmosfera de um ambiente
de trabalho burguês do século XIX.
Quando voltou a Paris, Degas fechou-se no
ateliê e retomou o trabalho. Embora tivesse exposto com regularidade no Salão
todo ano, de 1865 a 1869, ninguém ainda o notara.
Em 1870 decidiu não inscrever nenhuma obra
para a exposição do Salão. Era uma atitude de protesto contra o júri, de cujas
ideias discordava, e um ato de solidariedade com um grupo de artistas que,
principalmente por pintarem o cotidiano como ele próprio, encontrava sistemática
rejeição por parte dos conservadores, o grupo dos “impressionistas”.
A partir de então, exceto em 1882, Degas
participou de todas as exposições anuais dos impressionistas, até a última, em
1886.
A imprensa acabou por descobri-lo: “A série
de novas idéias também se origina da mente de um desenhista, um dos nossos,
alguém que já expôs no Salão, homem de raro talento e espírito ainda mais
raro”, escrevia Edmond Duranthy.
Mas Degas não se julgava parte do grupo dos
impressionistas, preferia ser chamado de realista: em vez de pinta ao ar livre,
preferia o estúdio, onde trabalhava de memória; em vez da tranqüilidade do
campão, preferia a cidade buliçosa, com sua vida noturna e mulheres livres.
Quanto a estas, as que mais desenharam e
pintou foram as bailarinas, às quais dedicou mais tempo e às quais deve a
melhor parte de sua fama.
Com perseverança, tenacidade e curiosidade
crescente, ele analisou cada um de seus gestos, movimentos, atitudes e
posturas. De frente e por trás, de perfil ou viés, antes, durante e após o
balé. Focalizou sua leveza, equilíbrio, agilidade, o esforço e a tensão da
dança. Retratou-as atando as sapatilhas, sozinhas ou em grupo, em repouso ou
exaustas após um ensaio ou espetáculo.
Em algumas telas empregou linhas geométricas
de arquitetura para subdividir o espaço em áreas onde arranjava as figuras com
agudo senso de perspectiva.
Degas nunca se casou. Mas as mulheres sempre
foram o motivo principal de sua arte. Ele as usou para transmitir à posteridade
um vislumbre de sua concepção pessoal da realidade e da vida cotidiana da
sociedade de seu tempo. Passadeiras e lavadeira que trabalham em Montmartre,
mulheres pesadamente maquiladas que passavam as tardes em cafés ou salões de
beleza, meretrizes e cortesãs se banhando ou se penteando, mulheres de cena ou
platéia em teatro, todas interessavam a sua visão meticulosa, mas
descomprometida, isenta da sensualidade do voyeur.
Ente 1876-77, Degas produziu suas obras mais
importantes, entre as quais “Absinto” e “Café-Concerto Les Ambassadeurs”. Estas
representam duas cenas parisienses que Degas bem conhecia. Cabarés e cafés de
Paris eram parte do mundo dele.
Degas pretendia expor em “Absinto”, com uma
nota de denúncia moralista, o contraste entre essa atmosfera festiva, com tanta
gente animada, e solidão que muitas vezes oprimia os protagonistas de seus
quadros. Os dois personagens entorpecidos e emudecidos pela bebida atestam uma
realidade marginal do “fin de siècle”.
Em “Café-Concerto Lês Ambassadeurs”, Degas
recorre a uma fórmula expressionista que leva ao impiedoso exagero do aspecto
grotesco da cantora. Pode-se dizer o mesmo de “Cabaré”, pintado em 1876.
O pintor não parava aí, utilizou-se de novas
técnicas e variados meios de expressão. Nanquim, guache e aquarela eram apenas
alguns dos recursos, e os mais simples. Inventou “monótipos”, desenhos que
fazia recobrindo uma chapa de cobre com preto não oleoso, para depois nela
criar uma imagem, com luz e sombra definidas a pincel duro ou trapo.
Mais tarde, depois da morte de Manet, ele
adotou técnicas mais próximas das impressionistas e continuava a experimentar.
O que mais lhe interessava era o problema de
representar o espaço. Os elementos enquadravam-se harmoniosamente, arranjados
em composição perfeita, na qual as linhas cortavam e dividiam o campo em seções
regulares, cada uma delas estudada em separado.
Degas também se interessou pela escultura,
“arte de homem cego”, assim Degas chamava a escultura. Quase cego, ele dependia
do toque para moldar figurinos de cera de dançarinas e cavalos, que foram
copiados em bronze após a sua morte. Enquanto Renoir comentava sobre as
esculturas de Degas: “Desde Chartres até hoje, tivemos apenas um escultor:
Degas. Aquele que fez as catedrais pode dar-nos a idéia da eternidade, a
preocupação da época. Degas encontrou meio de exprimir a doença de nossos
contemporâneos, devo dizer, o movimento. Somos inquietos, e inquietos são os
cavalos e cavalheiros de Degas.”
Conforme os olhos enfraqueciam, as cores de
Degas se intensificaram, e ele simplificou as composições. Nos últimos pastéis,
afrouxou a forma de manipular os pigmentos, fazendo-os explodir em riscos
livres, vigorosos, em cores vivas, colocadas juntas para provocar o impacto de
ambas. Ele fazia contornos decisivos nas formas, preenchendo-as com manchas de
cor pura. Como sempre, os quadros de nus parecem apresentar um arranjo casual;
tendo sido, entretanto, a estrutura subjacente, composta com firmeza e audácia.
Os últimos anos de Degas não foram felizes.
Os olhos embaçavam as imagens e acabaram por se tornar opacas.
Morreu cego, aos 83 anos de idade. Muitos
preferem lembrar-se dele como descrito por um amigo, Paul Lafond: “fronte alta,
larga e arredondada, coroada pelo sedoso cabelo castanho; olhos vivazes,
astutos e inquisitivos, sombreados por sobrancelhas circunflexas: boca fina e
inteligente sob a barba macia”.