domingo, 22 de maio de 2011

MATISSE E A MAGIA DA COR


"Antes, o cotidiano me aborrecia. Ao pintar, passei a sentir-me gloriosamente livre e tranquilo", ele dizia.

(1869-1954)


Henri-Émile-Benoit Matisse nasceu em 31 de dezembro de 1869 em Le Cateau-Cambrésis, ao norte da França. De família da pequena burguesia, seu pai trabalhava numa loja de tecidos e a mãe, era costureira. Após residir vários anos na capital francesa, o casal transferiu-se para Bohain-em-Vermandois, onde abriu um pequeno comércio que, com o tempo, se transformou num próspero armazém de grãos e tintas.

Apesar das intensas transformações político-sociais no país (Guerra Franco-Prussiana, 1870-1871; derrota da França e destituição de Napoleão III) a infância de Henri transcorreu com tranquilidade. Criado no coração da indústria têxtil da França, Matisse manifestou desde cedo uma atração incomum por tecidos, a ponto de criar, em sua fase de sua vida, tapeçarias e vestuários para espetáculos teatrais e coreográficos, pintura em panos e desenhos de casulas para a Capela de Vence.
Em 1887, Matisse matriculou-se no curso de Direito em Paris.
De volta a Saint-Quentin, o jovem advogado, passou a frequentar o Museu Lecuyer e descobriu um quadro em que as cores e as formas eram diferentes das convencionais.
A estréia de Matisse como pintor ocorreu na casa dos avôs, onde recebeu a tarefa de cuidar da decoração. O sucesso na empreitada rendeu encomendas de familiares e vizinhos. Com a ajuda da família, Matisse retornou à capital, agora para se inscrever na “Académie Julian”, onde foi aluno de William-Adolphe Bouguereau e Gabriel Ferrier.
No entanto, o jovem pintor não demorou em perceber as limitações das lições de seus mestres: deles aprenderia a técnica do desenho, mas com risco de sacrificar, em nome do realismo convencional na reprodução da realidade, a riqueza das formas e, em especial, da cor.
Em 1892, Matisse se inscreveu na Escola de Belas-Artes de Paris. Começou a trabalhar no ateliê do mestre Gustave Moreau. Admirador tanto de Toulouse-Lautrec como de Veronés, Moreau costumava aconselhar os alunos a estudar as obras clássicas no Louvre antes de se aventurar a participar do Salão oficial.
Matisse também se inscreveu nos cursos noturnos da “École des Arts Décoratifs” e se dedicou especialmente a estudar a obra dos pintores franceses Poussin, Philippe de Champaigne, Watteau e Boucher, e dos holandeses: Van der Weyden e De Heem.

“A mesa posta”, 1897.


Esta obra de transição resume as influências clássicas e modernas recebidas por Matisse, ao mesmo tempo em que anuncia sua estética futura.
A composição associa objetos cotidianos de formas e materiais opostos: estilizadas garrafas e taças de cristal, frutas, fruteiras e pratos arredondados. O efeito de aproximação é resultado de uma técnica impressionista. Foi resolvido por meio da perspectiva em fuga da mesa cortada e do enquadramento, ajustado ao ângulo visível da mesa e à touca da moça.
A obra já sugere um novo tratamento da cor. Isso é evidente pelas laranjas da primeira fruteira. Na parte anterior da tela, a tampa de cristal da garrafa, solucionada com emprego de cores puras justapostas, resume a gama de cores que, mais tarde, caracterizará o fauvismo.
A descoberta da pintura ao ar livre abriu caminho para outra importante revelação: a das infinitas possibilidades da luz.
Em 1900, abalado pela morte de Moreau, que nunca havia deixado de apoiá-lo em suas buscas expressivas, Matisse decidiu abandonar a Escola de Belas-Artes.
Junto com Marquet, Matisse trabalhou na decoração do Grand Palais para a Exposição Universal de 1900.
Em 1901, participou do Salão dos Independentes, organizado por Paul Signac.
Em 1903, Matisse voltou a expor no Salão dos Independentes e também fez sua estréia no Salão de Outono, onde era apresentada uma retrospectiva póstuma de Gauguin. Entusiasmado pelas possibilidades da gravura, Matisse expôs águas-fortes e trabalhos a ponta-seca. Em pouco tempo, o artista organizou sua primeira mostra individual, expondo 45 telas e um desenho.
Convidado por Signac, Matisse passou o verão de 1904 em sua casa de Saint-Tropez. Nesse momento, pintou “Luxo, calma e volúpia”.
A obra mostrava o esforço do artista em aplicar rigorosamente a técnica do pontilhismo.

“Luxo, calma e volúpia”, 1904.


Esta obra mostra o domínio de Matisse sobre a técnica neo-impressionista da cor. Ao mesmo tempo, reflete magistralmente a transformação decorativa do desenho, traço reforçado por um tema que entrelaça o mitológico e o burguês.
A pincelada não era o pontilhismo de Seurat, mas pequenos retângulos de cor pura. Esse pincel alongado representou uma ruptura com o convencionalismo realista. Nesse sentido, a cor possui a pureza do arco-íris. A luz se separa do objeto representado e ganha autonomia. Assim, o prisma que decompõe a luz começa a refletir a realidade de maneira mais abstrata.
É certo que Matisse não pintou “Luxo, calma e volúpia” ao ar livre, mas o fez em seu ateliê. O artista recorreu à técnica clássica de esboçar um desenho na tela, realizado previamente com carvão sobre papel. Uma significativa linha diagonal divide o quadro da direita para a esquerda e delimita o espaço em que se situam as figuras e as ações.
Do outro lado, surge a natureza: o céu, a água e as montanhas do fundo, que constituem o elemento de maior estabilidade. Entre ambas as zonas, uma árvore e os mastros de um barco estabelecem o equilíbrio.
Nesse quadro, Matisse apresenta uma sensualidade sem frenesis, pulcramente cortesã, polidamente apurada. Sem que a multidão de seus nus femininos, suas insubordinadas “odaliscas” pudessem provocar sobressaltos e incomodo de nenhuma espécie.
Por sua vez, o mito que Matisse recria nessa obra remete ao poema “O convite à viagem”, de Charles Baudelaire.

Minha doce irmã,
Pensa na manhã
Em que iremos, numa viagem,
Amar a valer,
Amar e morrer
No país que é a tua imagem!
Os sóis orvalhados
Desses céus nublados
Para mim guardam o encanto
Misterioso e cruel
Desse olhar infiel
Brilhando através do pranto.



Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Os móveis polidos,
Pelos tempos idos,
Decorariam o ambiente;
As mais raras flores
Misturando odores
A um âmbar fluido e envolvente,



Tetos inauditos,
Cristais infinitos,
Toda uma pompa oriental,
Tudo aí à alma
Falaria em calma
Seu doce idioma natal.



Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.

Vê sobre os canais
Dormir junto aos cais
Barcos de humor vagabundo;
É para atender
Teu menor prazer
Que eles vêm do fim do mundo.
- Os sanguíneos poentes
Banham as vertentes,
Os canis, toda a cidade,
E em seu ouro os tece;
O mundo adormece
Na tépida luz que o invade.

Lá, tudo é paz e rigor,
Luxo, beleza e langor.


Em seus versos, o poeta francês recorda o mítico bem-estar que imperava na Idade de Ouro. No poema, essa referência transmite, em seus momentos de confrontação com o tédio burguês, certo tom irônico. Já em Matisse, o mito cumpre uma função diferente: assinalada a introdução do sentimento do sagrado no cotidiano.
A perspectiva de Baudelaire é assinada por quem contempla o mundo a partir da marginalidade. O ponto de vista de Matisse, por sua vez, responde a quem, inserido no mercado, ainda sem estar consciente disso, produz para se manter integrado a ele, porque vive de seu trabalho.
Na época, os críticos reprovaram o modo como Matisse modelou as formas pela redução progressiva da cor; apesar da contundência dos contornos. O artista estabeleceu o contraponto entre esse recurso e o valor da linha ao redor dos personagens e dos objetos. O que os críticos talvez não tenham percebido foi á presença oculta do “spleen” (tédio profundo “baudelairiano”) que Matisse traduziu nessa obra de um mundo burguês de “luxo, calma e volúpia”.
No verão de 1905, convidado por Dérain, Matisse foi para Collioure e a luz do sul que tanto o fascinava voltou a exaltar o tom de suas cores.
Em visita a Daniel de Montfreid em Corneilla-de-Conflent, Matisse conhecesse quadros de Paul Gauguin pintados no Taiti. O impacto dessas telas na produção de Matisse foi notório. As cores foram trabalhadas pelo pintor até o limite: as transições de uma cor para outra, despojadas da habitual gradação, foram depositadas nos tons mais claros. Ao mesmo tempo, a pincelada se tornou mais longa e o brilho da luz se mostrou mais intenso. Nessa época, Matisse pintou obras como “Os telhados de Collioure” e “Janela aberta em Collioure”, em que já se percebia a nova visão pictórica do artista.

“Janela aberta em Collioure”, 1905.


O acentuado cromatismo das novas telas de Matisse escandalizou o público do Salão de Outono de 1905. Nas páginas acetinadas da revista “Gil Blas”, o crítico Louis Vauxcelles não hesitou em classificar Henri Matisse e seus amigos como “fauves”, ou seja, “feras”.

“O Fovismo não é tudo”, comentou Matisse, “é apenas o começo de tudo.”

Além da provocação, o fauvismo recuperou a liberdade de visão do artista, a cor como elemento básico da arte pictórica e o conceito plástico que regia sua obra acima do ato de representação.

“Não é possível pintar servilmente a natureza. Sou forçado a interpretá-la e a submetê-la ao espírito do quadro. Quando encontrar todas as minhas relações de tons, será um acorde cromático vivo, uma harmonia tal qual uma composição musical.”

Entusiasmados com o “dernier cri”, a nova onda das artes plásticas, a escritora americana Gertrude Stein e seu irmão Leo adquiriram “Mulher de chapéu”, em que Matisse havia retratado sua esposa.

“Mulher de chapéu”, 1905.


Esse quadro monopolizou á atenção da mostra motivado pelo desconcerto que provocava no público e na crítica.
Conta-se que uma assistente da exposição apontou horrorizada para o quadro e, indignada, disse a Matisse:

“Não existe uma mulher com o nariz amarelo!” ao que o pintor respondeu: “Não é uma mulher, senhora. É um quadro!”

A resposta de Matisse explicava por meio de uma singela ironia a nova sensibilidade plástica: recuperar a linguagem particular da pintura, dotando-a de autonomia em relação aos conteúdos ideológicos e à realidade imediata. Mesmo sem saber, Matisse acabava de abrir um caminho que, em poucos anos, chegaria ao cubismo e à abstração.

“A escolha de minhas cores não se baseia em nenhuma teoria científica, mas na observação, no sentimento, na experiência de minha sensibilidade. Procuro pôr cores que interpretem minha sensação”, diz Henri Matisse.

“Retrato com risca verde ou Senhora Matisse”, 1905.


Neste quadro, Matisse deu um passo decisivo em sua técnica de representar vivências e sensações por meio da força cromática e dos contrastes. Como resultado de intensa investigação sobre o comportamento da luz na definição da cor, o artista alcançou o limite cromático com o emprego do vermelho e de tonalidades alaranjadas. Ao mesmo tempo, confrontou-os com o verde, sua cor complementar, que ocupa a parte central do rosto e, em tom mais sóbrio e austero, o fundo que corresponde à parte direita da face.
Intensas e saturadas, as cores distribuem-se em áreas planas, especialmente nos fundos. No rosto da mulher, as cores estão empregadas com pinceladas soltas, conforme um ritmo que garante sentido à imagem e coerência na distribuição dos planos no espaço.
É preciso destacar que, embora a modelo da obra tenha sido sua esposa, não foi á intenção de Matisse refletir o rosto dela, mas reproduzi-lo tal como ele o via.
Era como um exercício para emanar sua vivência interior.
Nota-se que o olhar da mulher desvia ligeiramente para sua direita, evitando cruzar com os olhos do espectador. Somado ao contraste cromático entre as duas metades do rosto, o olhar resulta em uma evidente tensão. Tudo parece ser o resultado de um gesto emocional que acumula tons puros até extravasar a realidade imediata e aparente.
A destruição dessa realidade por meio da cor significou, para os critérios conservadores vigentes na época,o início das “agressões” pictóricas que marcam a arte de vanguarda do século XX. No entanto, a intenção de Matisse não era “destruir a realidade”, mas reconstruí-la a partir de uma nova visão.
No caso de “Retrato com risca verde”, o artista tentou reorganizar o rosto por determinados traços hieráticos, como o da risca verde que marca a linha vertical do nariz e divide, de maneira quase ritual, as duas metades do rosto em cores diferentes. Ao mesmo tempo, a forma rígida e majestosa do rosto está associada à fascinação de Matisse pela arte oriental.
Cabe lembrar que a máscara constitui uma representação simbólica da personalidade.
Em 1906, Matisse contava com 37 anos e reputação suficientemente digna para empreender jornadas mais insólitas.

“O pensamento de um pintor não deve ser considerado à parte de seus meios. Quanto mais profundo for o pensamento, mais completos têm de ser os meios e por completos não entenda complicados. Não posso distinguir entre o sentimento que tenho da vida e o modo como a traduzo”, defendia Matisse.

Desse modo, viajou para a Argélia, onde visitou Argel, Constantina e Biskra. Ali descobriu a luz e a arte do norte da África. Com a sensação de beber das mesmas fontes da nova sensibilidade artística pintou “A alegria de viver”, tela na qual deu forma ao mito do Paraíso.

“A alegria de viver”, 1905-6.



“Neste quadro, Matisse executa conscientemente pela primeira vez a sua intenção de desenhar toscamente as linhas do corpo humano para harmonizar e simplificar o valor artístico das cores puras, que utilizava apenas juntamente com o branco. Utiliza este desenho sistematicamente torcido da mesma forma que se usa a dissonância na música, o vinagre ou o limão na cozinha ou se aclara o café com casca de ovo.”

"Parafraseando Maurice Denis, “A alegria de viver”, em vez de ser uma pantomima arcádia com referências à mitologia antiga ou um agregado de nus na clareira de um bosque, é, acima de tudo, uma superfície plana coberta de cores dispostas em determinada ordem. Matisse nunca tinha deixado isso tão claro quanto no momento em que apresentou a todos essa obra-prima. (...) A existência de afastamentos da “natureza”, quanto a anatomia, perspectiva, escala e cor, tão variados e incoerentes, e derivados de fontes tão diversas é uma prova da coragem, da abertura a novas ideias e da criatividade de Matisse, e resultado de sua insistência sobre o direito do artista de tomar liberdades – com a natureza, com as convenções dos predecessores e mesmo com o ideal clássico da própria corrente estilística."

“Cigana (Busto de mulher)”, 1906.


O nu deitado, em especial o feminino, faz parte das figuras imaginadas por Matisse que, mais tarde, acabam por se tornar personagens corriqueiros de sua obra.
Esta figura aparece pela primeira vez em “A alegria de viver”. Naquela ocasião, tratava-se de uma jovem ninfa com traços de “art nouveau” em uma cena de amor bucólico, renascentista e equilibrado.
Na tela reproduzida aqui, por sua vez, a mesma pincelada de caráter apaixonado, convulsivo, aborda uma desordem quase torrencial no traço. Apenas a presença de cores plenas, como o amarelo, de um lado, e o preto e o azul, de outro, restabelecem o equilíbrio. É como um festival cromático que coloca Matisse no coração da pintura fauvista.
O sorriso da mulher, a exibição de seus seios, o vermelho que se destaca no enfeite de seu cabelo e o avermelhado de alguns contornos acentuam o transbordamento transmitido pela tela. Diferentemente de outros nus, nos quais o rosto costuma expressar evidente reserva, em “Cigana”, a mulher sorri, fita o espectador e se exibe com alegria e naturalidade.
Em 1907, o artista instalou seu ateliê no antigo convento de Sacré Coeur, sede do atual Museu Rodin.
Matisse como lembrança de sua viagem à Argélia em 1906, pintou o “Nu azul” que tem como subtítulo “Recordação de Biskra”.

“Nu azul”, 1907.


O visual estilizado das palmeiras como sentido decorativo mostra a influência da arte oriental durante a visita ao norte da África, bem como a presença do arabesco no desenho das flores e das folhas. O tratamento em volumes da figura é premonitório da atividade escultórica de Matisse.
Sobre uma gama de tons frios, que correspondem ao corpo nu, Matisse reparte equilibradamente os tons quentes: o rosa e os amarelos nos braços da mulher e nas palmeiras do fundo, e os vermelhos nos seios e na boca.
Em “Nu azul”, Matisse construiu um espaço no qual a “animalidade humana” pode se voltar a um prazer natural.
Em pouco tempo, a fama de Matisse extrapolou as fronteiras da França.
Em 1908, suas obras frequentaram as mais importantes galerias de Nova York, Moscou e Berlim.
Em “La Grande Revue”, Matisse publicou “Notas de um pintor”, em que procurou explicar suas investigações sobre a luz em relação à cor e sobre a linguagem particular das artes plásticas. O artigo suscitou debate entre pintores, críticos e colecionadores, que contestaram o conteúdo.
O texto de Matisse celebrava sua declaração de princípios, à qual sempre se manteve fiel:

“Sonho com uma arte equilibrada, aprazível, pura, cujo tema não seja inquietante nem perturbador, que chegue ao trabalhador intelectual, tanto ao homem de negócios como ao artista, que sirva como remédio mitigador, como calmante cerebral, algo semelhante a uma boa poltrona que sirva para o homem descansar de suas fadigas físicas”.

Os ecos da polêmica se propagaram nos círculos artísticos europeus e alcançaram a Rússia.

“Mesa posta (Harmonia em vermelho)”, 1908.


Matisse recorrer nesta obra a uma linguagem de sinais eminentemente plásticos e, em especial, à cor pura.
Em princípio, mostrou a perspectiva mediante a construção de linhas de fuga: a cadeia, a mesa, o marco da janela, a pequena casa; depois, reforçou-a com sucessivas zonas de cor (vermelho, azul, verde) à altura da janela; e concluiu por meio da ilusão de óptica que transforma a curva de alguns arabescos no vinco da toalha de mesa.
Matisse, porém, limitou a perspectiva ao suprimir parte da linha que delimita a mesa, ao contornar a cadeira, ao emoldurar a janela e ao encerrar em sua vista uma zona verde e outra azul.
A cor única como fundo descansa a vista e confere ao conjunto um caráter imaginário. As três cores primárias (vermelho, amarelo e azul), cumprem missões diferenciadas: o azul e o amarelo (e seu complementar, o verde) definem formas e conteúdos, enquanto o vermelho, numa arriscada aventura cromática, harmoniza o conjunto e atua no fundo.
Durante as aulas de pintura que ministrou entre 1907 e 1909, em Paris, Matisse costumava recomendar a seus alunos:

“Não devem estabelecer relações de cor entre o modelo e o quadro; unicamente devem considerar a equivalência existente entre as relações de cor de seus quadros e as do modelo”.


A tela “A argelina” mostra como o artista se empenhou em produzir uma síntese das sensações de cor fornecidas pelo motivo.

“A argelina”, 1909.


Nesse quadro, toda a superfície foi ativada pela tensão resultante da relação entre as diferentes combinações de cores complementares.
As superfícies cromáticas, praticamente justapostas, anularam a perspectiva tradicional das três dimensões. Embora, neste caso, Matisse tenha criado certa sensação de profundidade pelo uso do preto junto ao braço apoiado. O sentido de distância também é sugerido pelo espaço aberto na faixa vertical à direita do quadro, além do olhar da mulher, que parece se perder em algum ponto longínquo.
Além disso, a mulher sentada reforça a existência de um espaço de três dimensões que é apresentado apenas pela posição dos joelhos e do braço que se apóia sobre as pernas.
Para Matisse, “o prumo, determinando a direção vertical, forma com seu oposto, a horizontal, a bússola do desenhista”.
Em 1909, “A dança” e “A música” seriam expostos no Salão de Outono de 1910 e suscitariam a rejeição do público tradicional e o entusiasmo dos amantes da vanguarda.

“A dança”, 1909-1910.


Pode-se afirmar que “A dança”, de Matisse, e “Guernica”, de Picasso, constituem duas obras paradigmáticas das artes plásticas do século XX.
“A dança” evoca a liberdade, a alegria e a comunhão. A obra de Picasso, por sua vez, remete ao horror da guerra e à raiva impotente. Não é casual: os dois extremos configuram os limites de um século que, de um lado, abraçou as mais belas utopias e, de outro, padeceu com mortes em massa e a destruição em guerras.
É importante confrontar as diferentes visões dos dois artistas. Em “Guernica”, o cubista Picasso reconstruiu os planos fragmento por fragmento, como se fizesse alusão a uma realidade destroçada; Matisse, como pintor “decorativo”, montou os planos por meio de movimentos e, com certo esteticismo, sobrepôs-se à realidade.

“Coloco-me no lugar do visitante. O primeiro painel é oferecido a ele. É preciso transmitir uma sensação de alívio. Assim, meu primeiro painel representa “A dança”, esta roda que se eleva sobre a colina”, declarou Matisse.

O círculo de dançarinos é uma reelaboração da roda já representada em “A alegria de viver”. Por outro lado, o novo conjunto constitui um autêntico regresso à temática do Éden. Por outro, em “A dança” a cor adquire um protagonismo que prevalece sobre as figuras temáticas. Essa diferença implica uma reordenação substancial na visão do artista: o novo círculo se afasta do paraíso e pede um novo significado.
As três cores: vermelho, verde e azul, usadas na máxima intensidade, e as amplas pinceladas garantem uma cena dionisíaca ausente em “A alegria de viver”.
“A dança” renuncia ao sossego e à serenidade; ao contrário, a tela transmite força, dinamismo e movimento.
Conjuntos como o que se destaca em “A dança” têm antecedentes longínquos. No mínimo, a corrente de corpos remonta a “Os combates dos gregos e das amazonas”, do século V a.C., e às “Moças exercitando-se nos jogos”, tal como figuram nos mosaicos das tradicionais vilas romanas do século II.
Sem dúvida, porém, “A dança” encontra referência mais imediata nos cartazes dos Jogos Olímpicos celebrados em Paris em 1900, aos quais, Matisse não se manteve alheio. Esses cartazes representavam uma tradução do estado de ânimo e das expectativas dos franceses. Os Jogos modernos, resgatados dos antigos gregos pelo barão de Coubertin, afirmavam, de certo modo, a cidadania clássica de uma sociedade “sem logos nem mitos”, segundo palavras do ensaísta e crítico alemão Walter Benjamin.
Em contraste com a imagem congelada, que caracterizou os impressionistas, “A dança” impõe a decomposição em sequências cinematográficas, o que ressalta a torção de cada membro. Com a total ocupação do espaço pelas figuras, Matisse buscou transmitir uma dimensão essencial de intemporalidade e simplicidade.

“Compus “A dança” cantando a mesma melodia que havia escutado em Le Moulin de la Galette, embora a composição e os bailarinos estejam compassados e dancem no mesmo ritmo.”


Nesse contexto, ao mesmo tempo em que o ritmo desencadeia a união dos corpos, o movimento também transforma os corpos femininos: suas curvas se integram, como elos de uma mesma corrente, conforme o girar da dança.
Matisse não apresenta individualidades, mas unidades que integram um conjunto.
Por sua vez, a plenitude das cores procura realçar a autonomia dos movimentos.

“Um formoso azul para o céu, o verde para as colinas e o vermelhão para os corpos”, registrou o próprio Matisse a respeito de sua obra.

No entanto, a intensidade e a pureza das cores, a disposição frontal do desenho e a redução da nudez de um vermelho uniforme lembram o espectador que ele se encontra em frente a um quadro e não diante da realidade ou que esses elementos sugiram que a realidade possa ser outra.
Nem todos os bailarinos estão de mãos dadas, em duas das figuras, as mãos estão soltas, quase encostadas, mas sem unir. Mas, esse fato não faz diferença, porque a unidade da dança é assegurada pelo movimento do conjunto e pelo dinamismo.
Apenas em um bailarino, o rosto está retratado, os rostos das figuras restantes, levadas pela velocidade da dança e pela torção dos corpos, permanecem ocultos. A unidade é tal que o rosto descoberto se converte num coletivo com absoluta naturalidade.
A recuperação da cor como elemento primordial da linguagem plástica é um dos méritos de Matisse. Neste caso, o azul profundo é o céu; o verde, o mundo terreno; e o vermelhão dos bailarinos, o barro da criação.
O dinamismo da composição se expressa por traços curvos. Estes, por sua vez, condicionam as linhas, formando os círculos que os bailarinos traçam no ar.

“A música”, 1910.


Este quadro compôs o segundo painel encomendado pelo colecionador Sergei Shchukin para ornamentar seu palacete em Moscou. Ao receber a encomenda, Matisse registrou:

“A partir do segundo andar chega-se a moradia, a seu espírito, a seu silêncio. Vejo uma cena de música com personagens que estejam a escutar”.

Assim, Matisse criou uma alegoria da música compota pelo silêncio dos corpos nus. Os rostos se dirigem ao espectador; em uma proposta de identificação e participação. A tela é preenchida por figuras opacas, porém etéreas, que mal tocam o solo, ao mesmo tempo em que, como elementos sutis, recortam-se sobre cores planas.
Essa sensação é acentuada pela distância entre as figuras. O que poderia ser interpretado como ausência de comunicação entre elas revela-se uma nova forma de sintonia.
A assepsia da paisagem e a falta de vestimentas reforçam a impressão de intemporalidade e ausência de ambiente terreno. Nessa tela, Matisse atingiu um grau supremo de universalidade.
Repetindo a experiência de Delacroix, Matisse desvendou o sentido do sagrado na religiosidade do povo marroquino. A descoberta gerou diversos quadros, entre os quais sobressaem: “O café marroquino” e “Paisagem em Tanger vista de uma janela”.


Nesse período, o meio familiar se transformou num tema especial. Em “A família do pintor”, 1911, aparecem Amelie, Marguerite, Pierre e Jean. É uma de suas telas mais marcadas pela estética persa.

“A família do pintor”, 1911.


O quadro somente se completa quando todas as cores alcançaram o limite do espectro e concordam entre si em seus valores máximos, como zonas luminosas e expandidas, cujas fronteiras não correspondem a limites, mas a um “novo arremesso”. As cores colorem todo o espaço, somando-se umas às outras:

“As linhas não são contornos, mas arabescos coloridos que asseguram a circulação, a irradiação cromática de todo o tecido pictórico.”


Ainda em 1911, as ferramentas e os utensílios habituais do pintor foram captados pelo artista fora do cumprimento de suas funções, na tela “O ateliê vermelho”.

“O ateliê vermelho”, 1911.


A decoração é composta por uma alegre mistura dos mais diversos objetos. As pinturas que se observam, bem como o prato de cerâmica e as esculturas, são obras do próprio Matisse e correspondem à época fauvista.
As peças desempenham o papel de imagens decorativas, ao mesmo tempo em que estabelecem os indícios e os limites do espaço interior do ateliê.
Os lápis se mostram como naturezas-mortas ao lado das facas, os apoios das esculturas localizam-se próximos à cômoda, as molduras se amontoam á espera de serem trabalhadas.
Na extremidade esquerda da tela encontra-se uma figura retangular pintada em azul-claro. Não é possível adivinhar se constitui o futuro suporte de um quadro ou se é uma janela.
Os móveis e a louça não ocultam seu sentido funcional e utilitário. Eles parecem flutuar em meio a um ambiente lúdico, imaterial, no qual o espaço e o tempo não podem ser mensurados, porque não encontram correspondência com nenhum instrumento de medição. Daí o fato de serem transparentes. Através deles, torna-se presente o vermelho que tudo tinge e compenetra. Talvez o relógio do pêndulo constitua o símbolo mais representativo deste quadro: o objeto não tem ponteiros nem pêndulo, tampouco pesos ou mecanismos.
Em “O ateliê vermelho”, Matisse não pintou o artista em seu local de trabalho, como havia feito Gustavo Courbet. Nesta tela, o pintor não existe como trabalhador, mas como uma espécie de criador que torna a arte possível.
Essa diferença na concepção da produção plástica implica a mudança de um emaranhado de relações. Entre outros elementos, essas relações envolvem o pintor, o marchand, o mercado de arte e o próprio público consumidor; de modo que até o estúdio onde a produção é desenvolvida adquire caráter onírico.
Nesse contexto, o orientalismo que impregna esse quadro não ocorre ao acaso. A cor predominante remete à placa de cobre vermelho característica da cerâmica árabe, que o pintor conheceu em suas viagens ao norte da África. Mas essa linguagem plástica se transfigura nas mãos de Matisse: o orientalismo transmite um clima em que predomina o mágico, o que só ocorre como fato fantástico, carente de materialidade.
“O ateliê vermelho” constitui um claro exemplo de como Matisse, ao representar um espaço repleto de objetos, consegue redefini-los. Aqui o objeto deixa de ser uma parcela recortada da realidade para se converter numa geometria de interseções, fugas e interposições, espírito que se esparrama pela totalidade do quadro.
As linhas dos arabescos, por exemplo, conduzem a todas as direções e se perdem no espaço. Em consequências, todos os rumos possíveis estão contidos na própria tela, o que gera um dinamismo que se alimenta e se resolve em si mesmo.
O suporte da transformação é a cor. O amarelo assume a responsabilidade de traçar o desenho. O vermelho atua como unificador do espaço, tanto nos objetos como na atmosfera. O verde, cor complementar do vermelho, aparece esporadicamente por meio de leves traços ou toques de pincel feitos em alguns objetos.
As duas estatuetas constituem uma recriação que Matisse fez de duas obras de sua autoria. O traço do pincel acentua a torção que caracterizou as obras escultóricas, nas quais predomina o dinamismo dos volumes sobre a representação realista. Por sua vez, o vaso ao lado, também de formas sinuosas, revive as formas características da cerâmica clássica.
Nesse quadro há um elemento que reivindica transparência: a taça de cristal. O fundo avermelhado avança através dela. A taça, por sua vez, possui vida autônoma graças aos leves traços que a sustentam praticamente no ar.
O relógio de pé, ao fundo, no centro da tela, transmite um sugestivo simbolismo, já que marca um tempo inexistente, de caráter metafísico. Em seu quadrante não se mostram as horas, porque não há ponteiros. Também não se vêem o pêndulo nem os pesos. O relógio encontra-se desprovido de qualquer mecanismo.
“O ateliê vermelho” não está apenas suspenso no espaço como também no tempo.
Na esquerda, há uma série de curvas que giram como arabescos: as flores que escorregam do vaso e os desenhos que decoram o prato e, à direita, a cadeira amarela ajuda a dinamizar os elementos.
Em contradição com o restante dos elementos do quadro, a suposta janela que se insinua à esquerda da tela acentua a sensação de que, além do ateliê que protagoniza a obra, há um espaço exterior não acessível visualmente.
O impacto da cor vermelha produz em nossa retina a sua complementar, ou seja, a cor verde. Sob esse efeito, tem-se a sensação da “presença na ausência”.
Era mais um recurso de um mago das cores.
Essa maneira de estar na ausência significa um passo decisivo no desenvolvimento da modernidade: essa “abstração” remete à essência da chamada arte abstrata.
O jogo das cores, o traço das pinceladas e a perspectiva a partir do ponto em que o tema é visualizado formam a chave de “Peixes vermelhos”, obra sem linhas retas.

“Peixes vermelhos”, 1912.


Assim como as flores e as plantas que circundam o aquário, os peixes vermelhos constituem elemento bastante frequente na obra de Matisse. Além disso, remetem a outros conteúdos representativos, inclusive religiosos, já que o peixe é um símbolo do cristianismo. No sentido plástico, os peixes eram uma reafirmação da liberdade da cor pura, à qual Matisse e os fauvistas mostravam tanto apreço.
Inseridos no coração da tela, os peixes compõem uma espécie de epicentro que condiciona o conjunto, giram até mesmo ao redor de si. Seu reflexo vermelho na superfície da água e o formato circular do aquário, reforçam o movimento giratório.
O tamanho do aquário é ressaltado pelo contraste com o pé que o sustenta e pelo balaústre que se insinua no ângulo inferior esquerdo da tela.
Aliás, o traçado do balaústre, notadamente ascendente, indica que ali se encontra uma escada. Ainda pode sugerir o respaldo de um banco de jardim. Seja como for, percebe-se que a linha desse elemento transporta para fora do quadro, para um ponto desconhecido. Enquanto isso, os peixes não deixam de girar, como se eles soubessem que o seu destino ou a cor pura que representam, não é ir para nenhum lugar, mas simplesmente girar.
Nesse sentido, Matisse, impõe ao espectador uma escolha: fugir com o movimento ascendente da linha esverdeada à esquerda; ou permanecer com o movimento circular dos peixes.
A aposta de Matisse é clara: o movimento não significa o inevitável deslocamento de um ponto de partida para outro de chegada; a permanência, afinal, não é ausência de movimento. Bem como a cor abre a porta para outra dimensão de tempo e espaço, a linha pode sugerir outro tipo de dinamismo. O quadro oferece desde o início a possibilidade de questionar a modernidade industrial. Ou seja, a história não era necessariamente um caminho ascendente para um estágio superior de civilização. Talvez nem Matisse nem seu espectadores tenham se dado conta do significado dessa opção.
Ao longo daquela década, Matisse começou a trabalhar em cerâmica.


Em 1912, o artista realizou sua primeira exposição de esculturas em Nova York.


Quando a chamada Grande Guerra teve início, Matisse e sua família se encontravam em Issy-les-Moulineaux. Poucas semanas antes da Batalha do Marne, o pintor viajou de Paris para Toulouse e, em seguida, para Collioure. Ali Matisse conheceu Juan Gris, que mostrou as tendências do cubismo. Influenciado pela simplificação geométrica, Matisse pintou “Madame Yvonne Landsberg”, “Cabeça branca e rosa” e “Banhistas no rio”.

“Madame Yvonne Landsberg”, 1914.


“Banhistas no rio”, 1909-1916.


Diferentemente de “A dança” e “A música”, esse quadro abandona o simbolismo para focar o tratamento geométrico do espaço. Matisse se aproximou, assim, da abstração. A divisão da tela em quatro faixas verticais e a monocromia impedem uma leitura em profundidade, ao mesmo tempo em que formula uma sequência de planos.
A vegetação na margem do rio constitui o único indício para um reconhecimento temático.
Em 1918, pouco antes do término da Grande Guerra, Matisse viajou para Bohain-em-Vermandois, onde a casa de seus pais havia sido bombardeada. Algumas semanas depois, a morte de sua mãe acentuou sua desolação.
A guerra não havia deixado apenas um rastro de destruição e morte. Havia abalado o mundo artístico e, por consequência, paralisado o movimento das galerias e os negócios dos colecionadores.
Os países escandinavos, que permaneceram à margem da guerra, abrigaram o mercado artístico. Em Oslo, com “A lição de piano”, Matisse atingiu a fama e foi convidado por diversas instituições e galerias para realizar exposições.

“A lição de piano”, 1916.


O piano, na época, era o instrumento musical mais significativo do romantismo e se instalou nos lares mais abastados como passaporte para o mundo da cultura; representante de paixões e intensidade expressiva. Assim, o instrumento se tornou um sinônimo de vida burguesa tranquila, aprazível e “normal”.
Em “A lição de piano”, no entanto, Matisse gerou uma reviravolta na “normalidade burguesa”: a tela transmite um clima metafísico e inquietante.
O quadro constitui uma verdadeira síntese de diversas técnicas utilizadas por Matisse até aquele momento. O lavabo mostrado ao fundo sugere uma forma feminina cercada de clima fantasmagórico que estabelece uma diagonal com a escultura localizada no ângulo inferior esquerdo. A escultura, por sua vez, reproduz uma obra do próprio Matisse: “Figura decorativa”, de 1908.
Em meio a um grande predomínio de linhas verticais, compensadas por algumas horizontais, o tempo marca presença no metrônomo e na vela.
O metrônomo destaca-se como uma estrutura piramidal calada, talvez definitivamente em silêncio. O menino sentado diante do piano parece observá-lo com o único olho à mostra, já que do outro olho nada se vê por estar coberto por uma sombra.
O ritmo, que dá vida à música, não existe.
A pequena chama que coroa a vela é o único traço que crepita. Símbolo de vida, seu vermelho é vivaz, diferente do vermelho intenso que cobre a mesa no qual a vela está apoiada.
A existência de uma sombra triangular cinza no rosto do menino o converte num conjunto de formas e objetos simbólicos, semelhante a um quadrante solar.
O contorno acentua o rosto redondo, mas, ao mesmo tempo, confere irrealidade. Apenas o olho aberto salva essa face de ser uma das máscaras, às quais Matisse recorre habitualmente. Causa impacto a firmeza do olhar, atento à partitura que pretensamente interpreta e observa o metrônomo, que parece imóvel sobre o piano. Seu outro olho está na sombra. A boca são dois traços soltos que prenunciam o silêncio.
O personagem em questão é Pierre, filho de Matisse, que o artista havia tirado da escola para que estudasse música.
Em “A lição de piano”, os elementos são reduzidos a um esquema construtivo, com alto grau de abstração. Diferentes zonas de cor definem, de modo sintético, os três espaços presentes na obra.
A grade da varanda traça movimentos circulares, bem como os arabescos do piano.
Diante do geometrismo predominante: abundância de retas horizontais e verticais, destacam-se os arabescos, como os do balaústre do balcão e da tampa do piano. Recordam as diversas telas decorativas pintadas por Matisse em sua fase sob influência do orientalismo.
É interessante como o pintor registra, da direita para a esquerda, como o reflexo do espelho, a palavra “Pleyel”, marca do tradicional fabricante do piano.
A inscrição não é casual. Na prática, Pleyel é praticamente sinônimo de piano, já que é uma das mais conceituadas marcas do mercado. Com essa inscrição no piano, Matisse resumiu com genialidade a dualidade contraditória de música e subsistência, de arte e necessidade. Nota-se que a inscrição se situa estrategicamente entre o rosto-máscara do menino, tão compenetrado e enigmático, e o metrônomo.
A cor também adquire um estilo musical: os tons suaves e vivos, o vermelho do piano, o verde do jardim e o alaranjado da parede assemelham-se a forças de resistência em um dos universos plásticos mais austeros criados por Matisse.
Essa austeridade sugere uma música que, ao que tudo indica, reverbera com monotonia. Afinal, é um espaço em que o elemento episódico familiar é levado quase á inexistência, a cabeça do menino é mais um símbolo do que uma presença, e onde não há decoração que amorteça os sons. Cabe imaginar como as notas do piano, misturadas ao tique-taque do metrônomo, batem na opacidade puramente abstrata da paisagem exterior e na neutralidade dos muros, que aparecem como uma sombra cinza.
Ao mesmo tempo, no ângulo inferior esquerdo, como mero detalhe decorativo de qualquer lar de classe média, a escultura – recriação pictórica de uma obra do próprio Matisse irrompe com sua nudez. A sensualidade evocada pela escultura contrasta com a rotina burguesa de uma casa onde se tomam lições de piano. A propósito, a escultura sem rosto não vê nem ouve nem fala.
Mesmo no pós-guerra, Matisse experimentou um período de grande vitalidade e diversidade de tarefas.
Em 1921, durante veraneio em Étretat, pintou “Interior em Nice: a sesta”.

“Interior em Nice: a sesta”, 1921-1922.


Nessa época, Matisse produziu uma abundante saga de odaliscas. Foi uma época de reconhecimento generalizado e marcada por viagens constantes.

“Odalisca com calças vermelhas”, 1922.


Esta tela integra a série de odaliscas do primeiro período de Nice e evidencia a maestria de Matisse na elaboração do espaço e, em especial, da profundidade. O domínio do elemento decorativo remete o espectador além da referência ao corpo feminino.
Os planos e as cores se organizam como uma exaltação da própria vida, brindada por meio de uma maravilhosa riqueza visual.
O fundo do quadro é fragmentado em planos verticais, enquanto o divã reintroduz uma perspectiva direta. Os efeitos de delineado estão reservados nos seios e no ventre da odalisca. Graças à posição das pernas, as calças vermelhas são mostradas quase de frente, sensação reforçada pela relação que se estabelece com o amarelo da parede à esquerda.
Desse modo, o quadro irradia um clima de sensualidade: os elementos decorativos estão equilibrados por meio do contorno do respaldo, enquanto a unidade do chão é selada pela uniformidade absoluta do vermelho. Em contraste, destacam-se a gama de cores, as linhas sinuosas do corpo e os motivos dos biombos.










A segunda versão de “A dança” foi concluída em maio de 1933. Foi um trabalho desgastante e, ao final, o artista de 63 anos se sentia cansado.

A partir da amizade com Apollinaire, a poesia fazia parte de sua intimidade. Matisse ilustrou em água-forte um livro editado por Albert Skira com as “Poésies”, de Mallarmé. Ainda como ilustrador, o pintor realizou em 1930 uma série de gravuras para uma edição de “Ulisses”, de James Joyce.
Em 1943, Matisse mudou-se para a vila Le Revê, na cidade francesa de Vence. Em seu interior misturavam-se máscaras africanas, aves exóticas, plantas variadas e cerâmicas de origens diversas. Sua grande afinidade com a poesia encontrou o ápice em 1944, quando realizou uma série de gravuras para “As flores do mal”, de Charles Baudelaire.
Os anos de guerra foram inquietantes para a família do pintor. A Gestapo, polícia secreta nazista, desviou o quadro “A pianista e os jogadores de damas” e o desenho “Odalisca com babuchas”, talvez como amostra da “arte degenerada francesa”.
Com o fim da guerra, o ambiente onírico de Vence fez Matisse recuperar um estranho equilíbrio interior.
O público recebeu algumas de suas grandes obras: “Bailarina sentada”, “Natureza-morta com magnólia”, “Tabac Royal” e “Grande interior vermelho”, entre outras.


“Natureza-morta com magnólia”, 1941.


“Tabac Royal”, 1943.


“Grande interior vermelho”, 1947.


As 20 colagens produzidas em 1944 popularizaram o nome de Matisse em todo o mundo.
Além isso, a publicação de “Jazz”, a cargo do editor Emmanuel Tériade, abriu novos horizontes para Matisse avançar na descoberta de novas técnicas: em especial, a partir da possibilidade de desenhar com o uso de tesoura.



Assim que seus assistentes recobriam com guache as folhas de papel, o artista recortava diretamente suas formas, sem a necessidade de esboçar desenhos prévios.

Desse modo, o pintor passou a definir simultaneamente o contorno e a superfície colorida. O papel tomou forma de material artístico e, nas palavras do artista, a tesoura permitiu “adquirir mais sensibilidade no traçado em comparação com o lápis ou o carvão”.



Poucos quadros como este “Ícaro”, em guache recortado, feito por Matisse para o livro “Jazz”, de 1947, sintetizam sua arte: a liberdade humana, o céu entre estrelas no azul mais puro do espaço.

Também em 1947, Matisse pintou uma de suas obras mais consagradas: “Silêncio habitado das casas”. Como em seus melhores tempos, o artista voltou a pesquisar o que sempre o fascinara: o mistério da luz na figuração plástica.

“Silêncio habitado das casas”, 1947.


Em 1948, o pintor decidiu pôr em prática sua obra-prima: a Capela de Vence.
Conta-se que Picasso até tentou dissuadi-lo da empreitada. Em tom de brincadeira, mas com teor sério, o artista espanhol propôs que construísse um mercado.

“Poderia pintar frutas, verduras”, disse Picasso.

A resposta de Matisse foi sagaz: “Meus verdes são mais verdes do que as peras e meus alaranjados são mais alaranjados do que as abóboras. Então, para que um mercado?”


Matisse dedicou quatro anos à realização do que considerava sua obra-prima. Primeiro, trabalhou nos vitrais da nave e do coro, e fez diversos estudos do retábulo “A Crucificação”, de Grünewald.

 
"Esta capela - afirmou Matisse – representa para mim o fim de toda uma vida de trabalho e a florescência de um esforço enorme, sincero e difícil. Não se trata de um trabalho que escolhi, mas antes de um trabalho para o qual fui escolhido pelo destino, para culminar uma carreira que eu continuo consoante as minhas pesquisas. Esta capela dá-me ocasião de as fixar e reunir”.


 
Com cristais azuis, verdes e amarelos, de tonalidade intensa, o artista elaborou a série “A árvore da vida”, em que tudo emana energia e vitalidade. Com igual vivacidade, produziu grandes painéis de terracota esmaltada em branco.

Os painéis serviram como suporte para desenhos de traços pretos e finos que, entre outros motivos e símbolos religiosos, representaram “A Virgem e o Menino”, “A Via Crucis” e “São Domingo”.


As três grandes composições não passam de um simples jogo de linhas: o imenso São Domingos, de tamanho maior que o natural, está reduzido ao óvalo de uma cabeça e às pregas de um manto. A Virgem do Menino é apenas sugerida por uma: silhueta dupla, cercada por um canteiro de flores ligeiramente esboçadas. E a Via Sacra, na sábia desordem duma composição que precisa de uma grande análise para seu entendimento completo, lembra uma página de um caderno de esboços.


O edifício, de aparência singela, irradia espiritualidade por sua brancura exterior, sublinhada por duas pequenas peças de cerâmica de grafismo negro. No exterior, a única intervenção de cor está reservada ao teto, cujas telhas azuis e brancas parecem espelhar o céu. Sobre o telhado à italiana se eleva uma haste de ferro a mais de 12 metros de altura, recurso utilizado por Matisse para sugerir a elevação ao céu.





Assim como a fachada externa, a decoração interior também responde à mesma busca de leveza e elevação física e espiritual.

As formas exteriores da capela são simples, discretas, de uma nudez que atinge a mais pura graça. Os altos vãos da pequena nave, os vãos mais largos que haviam de servir de coro, o achado delicadíssimo das telhas romanas, envernizadas de azul e branco, e, sobretudo, aquele resguardo para um campanário que o ferro forjado desenha no céu, fala-se de concentração interior e, ao mesmo tempo, de realização estética.


A difusão da luz através dos vitrais confere ao ambiente interno uma tonalidade entre rosa e lilás, que deriva em novos tons com o transcorrer do dia.

Matisse estava consciente de que, na história da arte e, em particular, na da Igreja, aquela era a primeira vez que um pintor contemporâneo tinha em suas mãos a possibilidade de conceber e controlar a totalidade de um templo religioso e manter a unidade do projeto até em seus mínimos detalhes.


O artista desenhou até as casulas dos sacerdotes, nas quais procurou associar com sutileza os elementos característicos de sua linguagem pictórica com o simbolismo cristão.

Matisse dedicou o mesmo cuidado ao cibório, aos tecidos sagrados, aos candelabros, ao crucifixo, às cadeiras do coro, à porta do confessionário, ao altar e ao piso.
A Capela de Vence foi oficialmente inaugurada em 25 de junho de 1951. Seu valor artístico foi prontamente reconhecido.
Até seus últimos dias Matisse continuou a trabalhar intensamente, entusiasmado com sua técnica dos papéis coloridos recortados.
Em 3 de novembro de 1954, em Nice, ainda na plenitude de sua criatividade, uma crise cardíaca pôs fim a sua vida.

terça-feira, 17 de maio de 2011

BARROCO LITERÁRIO


“Pérola irregular”, “Jóia falsa”, “Mau gosto”, “Classicismo imperfeito”, “Escola espanhola”, “Estética religiosa”, “Escola da Contra-Reforma”, “Seiscentismo”...afinal o que é o Barroco??!!

I – INTRODUÇÃO:


O estilo Barroco é um dos mais complexos da literatura. A historiografia e a crítica têm oscilado entre posições que vão da seca recusa do Barroco, por alegada pobreza temática e exagerada manipulação da palavra, á quente apologia que fazem à escola os anatomistas do estilo, maravilhados com a engenhosidade e agudeza das produções da época. A posição mais conservadora, mais tradicionalista, tende a ver no Barroco uma “pérola irregular”, um classicismo imperfeito e obtuso.
A posição mais recente, que se abre com os estudos de Heinrich Wölfflin, tende a ver no Barroco uma constante universal na arte, expressiva dos períodos marcados por graves conflitos espirituais, e cuja essência é a irregularidade, a exasperação, o retorcimento, o exagero, características opostas à sobriedade e à disciplina clássica.
Observe a expressão de angústia das fisionomias, na tela “A Trindade”, de El Greco, traço marcante do Barroco.

 
II – LOCALIZAÇÃO:


III – CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL:

PORTUGAL: 1580-1756
BRASIL: 1601-1768

 
Se o início do século XVI, principalmente seus primeiros vinte e cinco anos, pode ser considerado o apogeu de PORTUGAL, não é menos verdade que os vinte cinco anos finais desse mesmo século representam o período mais negro de sua história.

O comércio e a expansão do império ultramarino levaram PORTUGAL a conhecer uma grandeza aparente. Lisboa era considerada a capital mundial da pimenta, porém a agricultura portuguesa era abandonada.
As colônias conquistadas, principalmente o Brasil, não deram a PORTUGAL retorno de riquezas imediatas; com o declínio do comércio das especiarias orientais observa-se uma falência da economia lusa.
Concomitantemente a decadência econômica, PORTUGAL vive uma crise dinástica: em 1578, o adorado e cristão rei D. Sebastião almejando ampliar a fé cristã e transformar PORTUGAL num grande império, “desaparece” numa batalha em Alcácer-Quibir, na África (“Mito do Sebastianismo”); dois anos depois, D. Felipe II da Espanha consolida a unificação da Península Ibérica.
Portanto, a partir de 1580, PORTUGAL passa a ser de domínio espanhol e tal situação permanecerá até 1640, quando ocorre a Restauração e PORTUGAL recupera sua autonomia.
A unificação da Península veio favorecer a luta conduzida pela Companhia de Jesus em nome da Contrarreforma: o ensino passa a ser quase um monopólio dos jesuítas e a censura eclesiástica torna-se um obstáculo a qualquer avanço no campo científico-cultural. Enquanto a Europa conhecia um período de efervescência no campo científico, com as pesquisas e descobertas de Francis Bacon, Galileu, Kepler e Newton, a Península Ibérica era um reduto da cultura medieval.
Com o Concílio de Trento (Norte da Itália, 1545-1563), o Cristianismo se divide. De um lado os estados protestantes (seguidores de Lutero, introdutor da Reforma) que propagavam o "espírito científico", o racionalismo clássico, a liberdade de expressão e pensamento, a diminuição do poder do Papa, a livre leitura da bíblia e o retorno à simplicidade dos apóstolos. De outro, os redutos católicos (a Contrarreforma) que seguiam uma mentalidade mais estreita, marcada pela Inquisição (processo administrativo), pelo Santo Ofício (investigação e julgamento) e pelo Index (uma espécie de censura) e pelo teocentrismo medieval.
Os padres jesuítas assumiram posição de destaque na defesa e difusão do catolicismo, como forma de combate ao protestantismo ameaçador. As escolas e universidades jesuítas criaram um estilo próprio de arte e arquitetura, ricamente ornamentadas por querubins e virgens celestiais, parecem tentar comover o coração da mesma forma que o pregador buscava seduzir o intelecto.
A tensão gerada pela reação católica ao protestantismo se fará notar na definição desse novo estilo que será mais intensa quanto mais intensa tiver sido a situação da Reforma Protestante ou da Contra-Reforma Católica.
Assim, teremos:

BARROCO IBÉRICO-JESUÍTICO: na Espanha, Itália, Portugal e com projeções na América Latina.
BARROCO REFORMISTA e LUTERANO: Alemanha, Inglaterra e Hollanda.
BARROCO: “tênue”: na Suécia e países nórdicos.

IV - CARACTERÍSTICAS:

“Arte de ornamentação rica retratando o sofrimento.”

É importante ressaltar que a época barroca, o século XVII, foi das mais conturbadas que o homem ocidental viveu. E mais, coincide com o apogeu do Absolutismo monárquico e com a implantação sistemática do capitalismo e sua extensão a áreas coloniais. É notório quem se a Literatura é a expressão do homem e de seu tempo, o estilo barroco haveria de refletir os contrastes, incertezas e o desespero do homem que viveu essa época difícil.
Não se pode falar em ruptura entre o Renascimento e o Barroco; na verdade, o que se observa é um processo de transformação e continuidade, que redefine perspectivas artísticas, mas não as invalida como se pode observar na poética camoniana.
Como movimento cultural e artístico, o Barroco é um estilo muito complexo pela falta de temática ao mesmo tempo pelo rebuscamento da palavra.
Assim, o período do Barroco é marcado por uma profunda dualidade. Por um lado, é o desdobramento do humanismo clássico e do Renascimento com seus apelos ao racionalismo, ao prazer, ao “carpe diem”. Por outro lado, o homem é pressionado pela Igreja Católica e pelo protestantismo mais vigoroso a um regresso ao teocentrismo medieval, à postura estóica, à renúncia aos prazeres, à mortificação da carne e à observância plena do “amar a Deus sobre todas as coisas”, princípio capitular do teocentrismo medieval.

“Enterro do conde de Orgaz”, El Greco.


Em síntese, o homem do período Barroco foi marcado por oposições, conflitos íntimos, pessimismo, dúvidas, medo, insegurança e uma profunda angústia existencial.
O homem dessa época vive dividido entre a razão X emoção; equilíbrio/harmonia X desequilíbrio/instabilidade; corpo X alma; prazer (“carpe diem”) X virtude (mortificação da carne); materialidade X espiritualidade; consciência do pecado (deixar de pecar era impossível para o ser humano) X castigo de Deus e o arrependimento etc.
A Igreja nessa época converte-se numa espécie de espaço cênico, num teatro sacro onde são encenados os dramas humanos.
Dentre os traços característicos da estética barroca, merecem destaque:

- FEÍSMO: preferência por aspectos cruéis, dolorosos e repugnantes, numa tentativa de mostrar a miséria do ser humano.
- FUSIONISMO: associação entre o racional e o irracional, entre a razão e a fé.
- CONFLITO ENTRE O “EU” E O MUNDO: incapaz de compreender o mundo em que vive, o homem se isola, criando um mundo particular solitário e pessimista.
- BREVIDADE DA VIDA, FUGACIDADE e EFEMERIDADE DO TEMPO ou gozar ao máximos os prazeres mundanos.
- REBUSCAMENTO LINGUÍSTICO: uma linguagem trabalhada com excessos de recursos imagéticos e de figuras, principalmente de antíteses, paradoxos, oximoros associando o racional e o irracional e as metáforas, na tentativa de emprestar à literatura a riqueza visual da pintura e da escultura como também driblar a censura da Igreja.

V – ESTILOS:

O virtuosismo, a ornamentação exagerada, o jogo sutil de palavras e ideias, visando a surpreender o leitor pela espantosa engenhosidade da construção do texto, assumindo uma atitude lúdica com o leitor, propondo-lhe um labirinto de significantes e significados, provocando a surpresa da novidade, pela ousadia das metáforas e associações.
Este verdadeiro jogo de esconde-esconde tem duas explicações: por um lado, a necessidade de ludibriar a censura inquisitorial e, de longa data, a metáfora é o recurso linguístico para sugerir ideias, sutilmente; por outro, já está visto que o espírito barroco é contraditório, eivado de incertezas.
Os estilos da estética barroca expressam-se através de duas tendências:

CULTISMO/GONGORISMO: EXPRESSIVIDADE – JOGO DE PALAVRAS

Cultismo ou Gongorismo são as denominações que recebeu, na Península Ibérica, e em colônias ultramarinas, o aspecto do Barroco voltado para o rebuscamento da forma; para a ornamentação exagerada do estilo; por meio de vocabulário precioso, erudito, eivado de latinismos, para a inversão da ordem direta da frase, imitando a sintaxe do latim clássico; ornamentação; beleza; estética; exuberância; burilamento da forma verbal; imagens que envolvam o leitor por meio de estímulos sensoriais (com destaque para as camadas fônica e cromática do texto); descrição; aparências e aspectos exteriores.
O termo Cultismo deriva da obsessão barroca pela linguagem culta, e o termo Gongorismo alude ao autor espanhol Luís de Gôngora, expoente maior desse procedimento literário, criador de uma verdadeira escola que tem como seguidores, entre nós, Manuel Botelho de Oliveira e, em alguns momentos, Gregório de Matos Guerra.
O aspecto exterior imediatamente visível no Cultismo ou Gongorismo é o abuso no emprego de figuras de linguagem:
As semânticas:
- metáforas: é a figura de linguagem em que se emprega um termo por outro, mantendo-se entre eles uma relação de semelhança.
- antíteses: é a figura de estilo que consiste na exposição de ideias opostas. Ocorre quando há uma aproximação de palavras ou expressões de sentidos opostos. O contraste que se estabelece serve, essencialmente, para dar uma ênfase aos conceitos envolvidos que não se conseguiria com a exposição isolada dos mesmos.
- hipérboles: também, conhecida como intensificação, é a figura que consiste na ênfase resultante do exagero deliberado, quer no sentido negativo, quer no positivo.
As sintáticas:
- hipérbato: é a figura sintática que consiste numa inversão violenta da ordem da ordem direta da frase.
- perífrase: também denominada circunlóquio, consiste na substituição de uma palavra por uma série de outras, de modo que estas se refiram àquela, indiretamente. Utilizada, em geral, para evitar a monotonia das expressões gastas ou para criar novas relações metafóricas.
- anáforas: consiste na repetição intencional de palavras, no início dos versos ou frases.
- anadiplose: é a reiteração do(s) termo(s) final(ais) de um verso ou oração, no início do verso.

DESENGANOS DA VIDA HUMANA, METAFORICAMENTE


É a vaidade, Fábio, nesta vida,
Rosa, que da manhã lisonjeada,
Púrpuras mil, com ambição dourada,
Airosa rompe, arrasta presumida.



É planta, que de abril favorecida,
Por mares de soberba desatada,
Florida galeota empavesada,
Sulca ufana, navega destemida.



É nau enfim, que em breve ligeireza,
Com presunção de Fênix generosa,
Galhardias aprestas, alentos preza:



Mas ser planta, ser rosa, nau vistosa
De que importa, se aguarda sem defesa
Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa?



Gregório de Matos


VOCABULÁRIO:

Airosa – esbelta.
Presumida – vaidosa, presunçosa.
Abril favorecida – favorecida pela primavera, que, na Europa, se inicia em abril.
Soberba – orgulho.
Empavesada – protegida, ornada.
Ufana – triunfante.
Fênix – divindade da miologia egípcia, símbolo da imortalidade, personificada numa ave que renascia das próprias cinzas.
Galhardias – garbo, elegância.
Apresta – apronta.
Alentos – entusiasmos, estímulos.

Exemplo do estilo Cultista, o próprio título do soneto, “Dos Desenganos da Vida Humana Metaforicamente”, alude ao emprego intensivo da metáfora.
O poema se entretece a partir de três metáforas da vaidade: Rosa, Planta e Nau.
O seu tema é o da precariedade de todas as coisas diante da adversidade do tempo, que tudo arrasta para a “tarde”, o crepúsculo final que se sucederá à “manhã” de nossas vidas. Note-se o tratamento indireto da “vaidade” (palavra que significa, originalmente, “coisa vã, vazia”), à qual são associadas sucessivas imagens (“rosa”, “planta”, “nau”), disseminadas no poema e recolhidas em seu verso final, num procedimento chamado Disseminação e Recolha que é comum na poesia barroca.
A metaforização intensiva do texto Barroco estabelece, quase sempre, uma identificação sensorial, resultando no aspecto cromático e criando associações surpreendentes.
Registre-se ainda a presença da mitologia antiga, através da Fênix, o pássaro-deus egípcio, símbolo da imortalidade, e com o qual a vaidade presumidamente se identifica. Note-se como, no verso final, temos a segunda recolha dos termos antes disseminados, confrontados com seus contrários (“ferro” é a lâmina que corta a planta; “penha”, o penhasco que destrói a “nau”, e “tarde”, o momento em que morre a “rosa”).
Esse soneto ao organizar de forma complexa e ornamentada um pensamento simples: parte da ideia de que a vaidade, apesar de sua aparência, não tem nenhuma substância na vida; desdobra esse pensamento em três metáforas resplandecentes, desdobradas em outras metáforas, que se distribuem simetricamente pelas três primeiras estrofes e são reunidas na quarta, acopladas aos seus contrários.
Na primeira estrofe, entenda-se: ”da manhã lisonjeada” como envaidecida pela juventude, indicada pela metáfora “manhã; “airosa”, como altiva e “presumida”, como “cheia de presunção”.
A vaidade é como uma rosa que abre (“rompe”), altiva, a “púrpura” de suas pétalas com “ambição dourada”, isto é, com ambição de brilhar, de se comparar ao ouro.
Na segunda estrofe: “que de abril favorecida”, significa animada pela primavera européia, que acontece em abril. Primavera também conota juventude; “soberba desatada” como arrogância incontida; “galeota empavesada” como uma embarcação equipada com defesas ou, em outro sentido, enfeitada e “sulca ufana” como navega orgulhosa.
Na terceira estrofe: “em breve ligeireza” refere-se ao vento brando; “com presunção de Fênix generosa” como pensando ser uma Fênix capaz de muitas ressurreições, por isso generosa e “galhardias apresta, alentos preza” como prepara valentias, preza estímulos do vento.
Na quarta estrofe, o último verso chamado “plurimembre”, é composto da enumeração de três pares de elementos antitéticos (contrapostos), recapitulando as três metáforas anteriores em ordem inversa à de seu aparecimento (nau, planta, rosa) e confrontando-as com os elementos que as hão de destruir, em três rápidas imagens da morte (penha, ferro, tarde).
O hipérbato resulta em certa dificuldade de leitura, como se verifica nos quatro primeiros versos do poema de Gregório de Matos, acima.
Reescrevendo-os, na ordem direta, teríamos: “Fábio, a vaidade nesta vida é rosa que, lisonjeada de manhã, arrasta presumida mil púrpuras e rompe airosa com ambição doirada.”

CONCEPTISMO: RACIONALISMO – JOGO DE IDEIAS

Define-se o Conceptismo ou Quevedismo como o aspecto construtivo do Barroco voltado para o jogo das ideias, para a argumentação sutil, para a dialética cerrada, que opera por meio de associações inesperadas, ainda fundadas na metáfora e, especialmente, nos procedimentos da lógica formal, como o silogismo, o sofisma e o paradoxo.
Enquanto os Cultistas ou Gongóricos consideravam que a percepção cognoscitiva das coisas deveria processar-se pela captação de seus aspectos sensoriais e plásticos (contorno, forma, cor, volume), produzindo como resultado um verdadeiro frenesi cromático, visando a apreender o como dos objetos, os Conceptistas pesquisavam a essência íntima dos objetos, buscando saber o que são, visando à apreensão da face oculta, apenas acessível ao pensamento, ou seja, aos conceitos; assim, a inteligência, a lógica e o raciocínio ocupam o lugar dos sentidos, impondo a concisão e a ordem, onde reinavam a exuberância e o exagero. Assim, é usual a presença de elementos da lógica formal, como:

- SILOGISMO: dedução formal tal que, postas duas proposições, chamadas premissas, delas se tira uma terceira, nelas logicamente implicada, chamada conclusão. Assim, temos como exemplo: “Todo homem é mortal (premissa maior); ora, eu sou homem (premissa menor); logo, eu sou mortal (conclusão).

A CRISTO S.N. CRUCIFICADO ESTANDO O POETA NA ÚLTIMA HORA DE SUA VIDA


Meu Deus, que estais pendente de um madeiro,
Em cuja lei protesto de viver,
Em cuja santa lei hei de morrer,
Animoso, constante, firme e inteiro:



Neste lance, por ser o derradeiro,
Pois vejo a minha vida anoitecer,
É meu Jesus, a hora de ser ver
A brandura de um Pai, manso Cordeiro.



Mui grande é vosso amor e o meu delito;
Porém pode ter fim todo o pecar,
E não o vosso amor, que é infinito.

Esta razão me obriga a confiar,
Que, por mais que pequei, neste conflito
Espero em vosso amor de me salvar.


Este poema se baseia a crença de que o poeta, velho e arrependido da vida desregrada que levara, reconciliou-se com a religião, e, como Bocage, um século depois, compôs sonetos de arrependimento em seus últimos dias.
Expressa a cosmovisão barroca: a insignificância do homem perante Deus, a consciência nítida do pecado e a busca do perdão. Ao lado de momentos de verdadeiro arrependimento, muitas vezes o tema religioso é utilizado como simples pretexto para o exercício poético, desenvolvendo engenhosos jogos de imagens e conceitos.
Nas duas primeiras estrofes, o poeta expressa a contrição religiosa e a crença no amor infinito de Cristo, para manifestar, no final, a certeza do perdão.
Observe a construção dos tercetos finais de um soneto sacro de Gregório de Matos, que encobre uma formulação silogística, que se pode expressar dessa maneira:
O amor de Cristo é infinito (verso 11) – Premissa Maior;
O meu pecado, por maior que seja, é finito, e menor que o amor de Jesus (versos 9 e 10) – Premissa Menor;
Logo, por maior que seja o meu pecado, eu espero salvar-me (versos 13 e 14) – Conclusão.

- SOFISMA: é o argumento que parte de premissas verdadeiras e que chega a uma conclusão inadmissível, que não pode enganar ninguém, mas que se apresenta como resultante de regras formais do raciocínio, não podendo ser refutado. É um raciocínio falso, elaborado com a função de enganar.

VI – BARROCO NO BRASIL:



1601 – “PROSOPOPÉIA”, poema épico de autoria do português, radicado no Brasil, Bento Teixeira.

Considerado o mais antigo poeta brasileiro, “Prosopopéia”, escrito em moldes camonianos, onde se cantam os feitos do governador Jorge de Albuquerque Coelho, surge como primeiro documento poético com uma referência local, brasileira, com especial relevo para uma descrição do Recife.
Em 1601 saía em Lisboa, da imprensa de Antônio Alvarez, um opúsculo de dezoito páginas, in-4º, trazendo no alto da primeira do texto este título: “Prosopopéia”, dirigida a Jorge Dalbuquerque Coelho, Capitão, e Governador de Pernambuco, Nova Lusitana, etc. O nome do autor Bento Teyxeyra vinha, assim escrito, embaixo do Prólogo, no qual fazia ao seu herói o oferecimento da obra.
É um poema de noventa e quatro oitavas, em verso endecassílabo, sem divisão de cantos, nem numeração de estrofes, cheio de reminiscências, imitações, arremedos e paródias d’Os Lusíadas.
Não tem propriamente ação, e a “Prosopopéia” donde tira o nome está numa fala de Proteu, profetizando “post facto”, os feitos e a fortuna, exageradamente idealizados, dos Albuquerques, particularmente de Jorge, o terceiro donatário de Pernambuco, ao qual é consagrado.
Não tem mérito algum de inspiração, poesia ou forma. Afora a sua importância cronológica de primeira produção literária publicada de um brasileiro, pouquíssimo valor tem. No meio da própria ruim literatura poética portuguesa do tempo — aliás, a só atender à data em que possivelmente foi este poema escrito, a melhor época dessa literatura — não se elevaria este acima da multidão de maus poetas iguais.
O poeta ou era de si medíocre, ou bem novo e inexperiente quando o escreveu. Confessa aliás no seu Prólogo, já gongórico que eram as suas "primeiras primícias". Não se sabe se veio a dar fruto mais sazonado. Nos seus setecentos e cinquenta e dois versos apenas haverá algum notável, pela ideia ou pela forma. São na maioria prosaicos, como banais são os seus conceitos. A língua não tem a distinção ou relevo, e o estilo traz já todos os defeitos que maculam o pior estilo poético do tempo, e seriam os distintivos da má poesia portuguesa do século seguinte, o vazio ou o afetado da ideia e a penúria do sentimento poético, cujo realce se procurava com efeitos mitológicos e reminiscências clássicas, impróprios e incongruentes, sem sombra do gênio com que Camões, com sucesso único, restaurara esses recursos na poesia do seu tempo.
Conforme a regra clássica, começa o poema pela invocação. É de justiça reparar que começa com uma novidade, a invocação é desta vez dirigida ao Deus dos cristãos. Além do Deus, invoca a Jorge de Albuquerque "o sublime Jorge em que se esmalta a estirpe de Albuquerque excelente" com versos diretamente imitados de “Os Lusíadas”. A memória fresca do poema de Camões está por todo o poema do nosso patrício, em que não há só reminiscências, influências mas versos imitados, parodiados, alguns quase integralmente transcritos, e ainda alusões à grande epopéia portuguesa.
Depois da invocação preceitual segue-se no poema de Bento Teixeira, como também era de regra, a "narração" expressamente designada do livro.
A ação do poema é falada ou narrada. Proteu a diz de sobre o Recife de Pernambuco. Seis estrofes o descrevem, de um modo insípido, pura e secamente topográfico:

Para a parte do sul onde a pequena
Ursa, se vê de guardas rodeada,
Onde o Céu luminoso mais serena,
Tem sua influição, e temperada.
Junto da nova Lusitânia ordena,
A natureza, mãe, bem atentada,
Um porto tam quieto e tam seguro,
Que pera as curvas naus serve de muro.

É este porto tal, por estar posta,
Uma cinta de pedra, inculta, e viva,
Ao longo da soberba, e larga costa,
Onde quebra Neptuno a fúria esquiva,
Entre a praia, e pedra descomposta,
O estranhado elemento se deriva,
Com tanta mansidão, que uma fateixa,
Basta ter à fatal Argos aneixa.



Em o meio desta obra alpestre, e dura,
Sua boca rompeu o Mar inchado,
Que na língua dos bárbaros escura,
Paranambuco, de todos é chamado
De Paraná que é Mar, Puca - rotura,
Feita em fúria desse Mar salgado,
Que sem no derivar cometer míngua,
Cova do Mar se chama em nossa língua.

Em seguida, por ordem de Netuno, profetiza Proteu, num largo canto em louvor dos Albuquerques e nomeadamente de Jorge, a quem se endereça esta prosopopéia. Vê Proteu:

A opulenta Olinda florescente
Chegar ao cume do supremo estado
Será de fera e belicosa gente
O seu largo distrito povoado
Por nome terá, Nova Lusitânia,
Das leis isenta da fatal insônia.

Esta Lusitânia será governada por Duarte Pacheco "o grão Duarte" que o poeta, pela voz de Proteu, compara a Enéias, a Públio Cipião, a Nestor e a Fábio. E tudo o que até então tinha passado com os Pachecos e Albuquerques, já celebrados por Camões, ocorre a Proteu que o profetiza posteriormente desmedindo-se no louvor e encarecimento. Acaba o poema pouco originalmente, com as despedidas do poeta, repetindo a promessa de voltar com um novo canto:

Por tal modo que cause ao mundo espanto.

Jorge de Albuquerque Coelho, o motivo senão o herói deste poema, era filho de Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, onde Jorge nasceu, em Olinda, em 1539. O enfático padre Loreto Couto, falando dele como de sujeito verdadeiramente extraordinário, assevera que "ainda que Pernambuco não tivera produzido outro filho bastaria este para a sua imortal glória". E mais, que "foi este insigne pernambucano um daqueles espíritos raros para cuja produção tarda séculos inteiros a natureza, pois à sua rara virtude e insigne valor, acrescentou uma erudição rara e conhecimento das letras humanas".
Uma e outro não teriam sido adquiridos no Brasil. Se são exatas, como parece, as notícias de Jaboatão, Jorge Albuquerque criou-se em Portugal, onde aos 14 anos se achava. Com 20 voltou a Pernambuco, donde tornou ao Reino, em 1555, aos 26 anos, após a sua brilhante campanha contra os índios da capitania.
Nesta viagem para Portugal sofreu o naufrágio célebre da nau Santo Antônio que o levava, cuja relação, escrita pelo piloto Afonso Luís e reformada por Antônio de Castro, foi atribuída a Bento Teixeira. Em Portugal "foi de todos aplaudido de cortesão, generoso, discreto, liberal, afável e modesto".
Em todos os tempos poetas e literatos foram inclinadíssimos à bajulação dos poderosos. Em Portugal tais poetas e literatos faziam até parte da domesticidade da corte ou das grandes casas fidalgas e ricas, que os aposentavam e pensionavam, em troca dos poemas e escrituras com que infalivelmente celebravam a família em cada um dos seus sucessos domésticos, nascimentos, casamentos, mortes, façanhas guerreiras, vantagens sociais obtidas, aniversários. Frequentemente eram estes que lhe mandavam imprimir as obras, que sem tais patronos dificilmente achariam editores.
Bento Teixeira fica, pois, sendo, não só o primeiro em data dos poetas brasileiros, mas o patriarca dos nossos "engrossadores" literários. E de ambos os modos progenitor fecundíssimo de incontável prole.
Conjetura-se com bons fundamentos houvesse composto o seu poema nos últimos anos do século, com certeza depois do desastre de D. Sebastião em África, em 1578, a que já o poema se refere. Talvez nos arredores de 1596, que neste ano ainda vivia Jorge de Albuquerque e o poema foi composto quando ele vivo.
De Bento Teyxeyra, como ele o assinou, ou Bento Teixeira Pinto, como também lhe escreveram o nome, nada mais se sabe além da parca notícia do bibliógrafo Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, publicada em 1741; que nasceu em Pernambuco e era "igualmente perito na poética e na história". Não diz nem o lugar nem a data do nascimento.

VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Cultismo e Conceptismo são dois aspectos do Barroco que não se separam; antes, superpõem-se como as duas faces de uma mesma moeda. Às vezes, o autor trabalha mais ao nível da palavra, da imagem; busca mais o argumento, o conceito. Nada impede que o mesmo texto tenha, simultaneamente, aspectos Cultistas e Conceptistas. Com os riscos inerentes às generalizações abusivas, diz-se, didaticamente, que o Cultismo é predominante na poesia e o Conceptismo, predominante na prosa.