quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Panorama Literário


PANORAMA LITERÁRIO

Séculos VIII a.C. a II a.C.:




As primeiras obras da História que se tem informação são os dois poemas atribuídos a Homero: Ilíada e Odisséia. Os dois poemas narram às aventuras do herói Ulisses e a Guerra de Tróia. Na Grécia Antiga os principais poetas foram: Píndaro, Safo e Anacreonte. Esopo fica conhecido por suas fábulas e Heródoto, o primeiro historiador, por ter escrito a história da Grécia em seu tempo e dos países que visitou entre eles o Egito Antigo.
Séculos I a.C. a II d.C. : A literatura na História de Roma Antiga
Vários estilos que se praticam até hoje, como a sátira, são originários da civilização romana. Entre os escritores romanos do século I a.C. podemos destacar: Lucrécio (A Natureza das Coisas); Catulo e Cícero. Na época de 44 a.C. a 18 d.C., durante o império de Augusto, corresponde uma intensa produção tanto em poesia lírica, com Horácio e Ovídio, quanto em poesia épica, com Virgílio autor de Eneida. A partir do ano 18, tem início o declínio da História do Império Romano, com as invasões germânicas. Neste período destacam-se os poetas Sêneca e Petrônio.
Séculos III a X
Após a invasão dos bárbaros germânicos, a Europa se isola, forma-se o feudalismo. A Igreja Católica começa controlar a produção cultural. A língua (latim) e a civilização latina são preservadas pelos monges nos mosteiros. A partir do século X começam a surgir poemas, principalmente narrando guerras e fatos de heroísmo.
Século XI : As Canções de Gesta e as Lendas Arturianas:


É a época das Canções de Gesta, narrativas anônimas, de tradição oral, que contam aventuras de guerra vividas nos séculos VIII e IX, o período do Império Carolíngio. A mais conhecida é a Chanson de Roland (Canção de Rolando ) surgida em 1100. Quanto à prosa desenvolvida na Idade Média, destacam-se as novelas de cavalaria, como as que contam as aventuras em busca do Santo Graal (Cálice Sagrado) e as lendas do rei Artur e dos Cavaleiros da Távola Redonda.

Séculos XII a XIV: O trovadorismo e as cantigas de escárnio e maldizer

É o período histórico do trovadorismo e das poesias líricas palacianas. O amor impossível e platônico transforma o trovador num vassalo da mulher amada, exemplo do amor cortês. Neste período, também foi comum o poema satírico, representado pelas cantigas de escárnio (crítica indireta) e de maldizer (crítica direta).

Séculos XIV a XV : Humanismo


O homem passa a ser mais valorizado com o início do humanismo renascentista. A literatura mantém características religiosas, mas nela já se podem ver características que serão desenvolvidas no Renascimento, como a retomada de ideais da cultura greco-romana. Na Itália, podemos destacar: Dante Alighieri autor da Divina Comédia, Giovanni Bocaccio e Francesco Petrarca. Em Portugal, destaca-se o teatro do poeta de Gil Vicente autor de A Farsa de Inês Pereira.
Século XVI : O classicismo na História:



O classicismo tem como elemento principal o resgate de formas e valores da cultura clássica, ou seja, greco-romana. O mais importante poeta deste período histórico foi Luís de Camões que escreveu Os Lusíadas, narrando às aventuras marítimas da época dos descobrimentos. Destacam-se também os franceses François Rabelais e Michel de Montaigne. Na Inglaterra, o poeta de maior sucesso foi William Shakespeare se destaca na poesia lírica e no teatro. Na Espanha, Miguel de Cervantes faz uma sátira bem humorada das novelas de cavalaria e cria o personagem Dom Quixote e seu escudeiro, Sancho Pança, na famosa obra Dom Quixote de La Mancha.

BRASIL XVI – Os primeiros registros de atividade escrita no Brasil são textos informativos sobre a "nova terra". São crônicas históricas como a Carta ao Rei dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha; o Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a Que Vulgarmente Chamamos Brasil, de Pero Magalhães Gândavo; o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa; e o Diálogo sobre a Conversão dos Gentios, composto entre 1556 e 1558 pelo padre Manoel da Nóbrega. Destacam-se também o teatro e os poemas do padre José de Anchieta.

Século XVII –


As idéias da Contra-Reforma marcaram profundamente esta época, principalmente nos países de tradição católica mais forte como, por exemplo, Espanha, Itália e Portugal. Na França, a oratória sacra é representada por Jacques Bossuet que defendia a origem divina dos reis. Na Espanha, destacam-se os poetas Luís de Gôngora e Francisco de Quevedo. Na Inglaterra, marca significativamente a poesia de John Donne e John Milton autor de O Paraíso Perdido.

BRASIL XVII –


Sob influência da Contra-Reforma, a estética barroca tenta conciliar opostos, como Deus e diabo, bem e mal, carne e espírito, pecado e arrependimento. Na literatura, o conflito se traduz em figuras de oposição, bem como no exagero e no estilo sinuoso. Esse movimento corresponde ao nascimento da literatura brasileira. O marco inicial é o poema épico Prosopopéia (1601), de Bento Teixeira. Mas é Gregório de Matos o maior representante do gênero. Sua poesia lírica, bastante influenciada por Camões, Gôngora e Quevedo, se subdivide em amorosa, reflexiva e religiosa. No gênero satírico, Gregório de Matos não poupa ninguém de suas críticas, ficando por isso conhecido como "Boca do Inferno". Na prosa, destacam-se os sermões de padre Antônio Vieira (Sermão de Santo Antônio ou dos Peixes).

Século XVIII: O Neoclassismo:



Época da valorização da razão e da ciência para se chegar ao conhecimento humano. Os filósofos iluministas fizeram duras críticas ao absolutismo. Na França, podemos citar os filósofos Montesquieu, Voltaire, Denis Diderot e D'Alembert, os organizadores da Enciclopédia, e Jean-Jacques Rousseau. Na Inglaterra, os poetas Alexander Pope, John Dryden, William Blake. Na prosa pode-se observar o pleno crescimento do romance.
Obras e autores deste período da História: Daniel Defoe autor de (Robinson Crusoé); Jonathan Swift (As Viagens de Gulliver); Samuel Richardson ( Pamela ); Henry Fielding ( Tom Jones ); Laurence Sterne ( Tristram Shandy ). Nessa época, os contos de As Mil e Uma Noites aparecem na Europa em suas primeiras traduções.

BRASIL XVIII –



O neoclassicismo se coloca contra os excessos formais do barroco e tenta retomar os valores desenvolvidos no classicismo. Reflete a aversão do espírito iluminista ao obscurantismo religioso do século anterior. Já o termo arcadismo, também atribuído a esse movimento literário, se deve ao bucolismo de muitos poetas do período, que adotavam pseudônimos de pastores para assinar seus poemas. O marco do arcadismo no Brasil é a publicação, em 1768, de Obras Poéticas, de Cláudio Manuel da Costa. Influenciado pelo iluminismo, ele participa da Inconfidência Mineira ao lado dos poetas Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga. Este, além das liras, reunidas em Marília de Dirceu, escreve também obra satírica, como as Cartas Chilenas. No gênero épico, destacam-se José Basílio da Gama (O Uraguai) e frei José de Santa Rita Durão (Caramuru). Igualmente se salientaram, ao fim do século, Domingos Caldas Barbosa e Silva Alvarenga.

Século XIX (primeira metade): O Romantismo



No Romantismo há uma valorização da liberdade de criação. A fantasia e o sentimento são muito valorizados, o que permite o surgimento de obras de grande subjetivismo. Há também valorização dos aspectos ligados ao nacionalismo.
Poetas principais desta época: Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Giacomo Leopardi, James Fenimore Cooper e Edgard Allan Poe.


BRASIL século XIX –

A saturação dos modelos neoclássicos e a necessidade de uma literatura que expresse o país independente resultam no florescimento do romantismo. O marco inicial do movimento é a publicação de Suspiros Poéticos e Saudades, de Gonçalves de Magalhães, em 1836. O ideal romântico do nacionalismo é expresso pelos indianistas, dos quais se destaca o poeta Gonçalves Dias (Primeiros Cantos). O individualismo é representado pela geração ultra-romântica – Casimiro de Abreu, Junqueira Freire, Fagundes Varela e Álvares de Azevedo –, influenciada pelo poeta inglês Lord Byron. O principal nome da poesia condoreira, que se caracteriza pela grandiloqüência e pelo uso de antíteses e hipérboles, é Castro Alves (Espumas Flutuantes), conhecido como o poeta dos escravos. Considerado o fundador do romance nacional, José de Alencar é o autor de narrativas indianistas (O Guarani), históricas (As Minas de Prata), urbanas (Lucíola) e regionalistas (O Gaúcho).


Século XIX - segunda metade: O Realismo


Movimento que mostra de forma crítica a realidade do mundo capitalista e suas contradições. O ser humano é retratado em suas qualidades e defeitos, muitas vezes vitimas de um sistema difícil de vencer.
Principais representantes: Gustave Flaubert autor de Madame Bovary, Charles Dickens (Oliver Twist ), Charlotte Brontë (Jane Eyre), Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes), Fiodor Dostoievski, Leon Tolstoi, Eça de Queiroz, Cesário Verde, Antero de Quental e Émile Zola, Eugênio de Castro, Camilo Pessanha, Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire.

BRASIL XIX - segunda metade:



O esgotamento da literatura romântica, que se alimentava de uma visão idealizadora da realidade, conduz à consagração do realismo. Influenciado pelo cientificismo, em voga na época, o movimento busca a descrição objetiva da realidade. O maior escritor do período, Machado de Assis, no entanto, não segue ortodoxamente esses princípios. Sua carreira costuma ser dividida em fase de aprendizagem, na qual se observam resquícios do romantismo, como nos romances: Ressurreição, A Mão e a Luva e Helena; e a fase de maturidade, em que enfatiza a penetração psicológica e a reflexão sobre a existência, como em Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba e Dom Casmurro.

Os contemporâneos de Machado de Assis adotam o naturalismo, que considera o homem fruto do meio em que vive e leva a observação ao nível da minúcia, em sua ânsia de descrever cientificamente a realidade.
O principal representante dessa tendência no Brasil é Aluísio Azevedo, autor de
O Mulato e O Cortiço . Raul Pompéia cria em O Ateneu um estilo híbrido, realista com traços naturalistas, incorporando também elementos vagos e sugestivos, característicos do impressionismo, e a descrição grosseira e caricatural do expressionismo.

Na poesia, duas correntes dividem os artistas: o parnasianismo e o simbolismo.
O parnasianismo propõe o ideal da arte pela arte, dando preferência a uma poesia descritiva, em que sobressaem o rigor formal e o gosto por temas clássicos.
No Brasil, o movimento ganha a cena literária a partir da década de 1880 e nela permanece até o começo do século XX. Seus maiores expoentes são Alberto de Oliveira (Meridionais), Raimundo Correia (Sinfonias) OlavoBilac (Poesias)


Os primeiros livros filiados ao simbolismo, Missal (poemas em prosa) e Broquéis (poemas), pertencem a João da Cruz e Sousa e foram publicados, ambos, em 1893. O movimento simbolista preocupa-se não em descrever objetivamente, mas em sugerir. Por isso seus poemas parecem vagos, feitos de imagens que se originam no sonho, na intuição, nas camadas mais profundas do inconsciente. Os versos possuem grande musicalidade. Outro poeta simbolista de destaque é Alphonsus de Guimaraens (Dona Mística).


BRASIL 1900-1922 –


Os modelos parnasianos e simbolistas estão desgastados, mas não há nova proposta estética, que só se manifesta com o modernismo, em 1922. O pré-modernismo é considerado um período de transição, em que prevalece a preocupação em entender a realidade social brasileira. Desenvolve-se então o regionalismo, que aparece ainda no século XIX, com José de Alencar, Franklin Távora e Bernardo Guimarães, e se caracteriza pela descrição pitoresca dos costumes do interior. João Simões Lopes Neto, Valdomiro Silveira e Afonso Arinos estão entre os principais nomes dessa tendência, mas o destaque pertence a Monteiro Lobato, autor de Urupês e Cidades Mortas, que se volta, em seus contos, para o cotidiano do caipira. Ele também é muito conhecido pelas histórias infantis do Sítio do Picapau Amarelo. Lima Barreto transpõe para seus romances a vida dos subúrbios cariocas, numa linguagem que se distancia da influência parnasiana e da ideologia positivista. Euclides da Cunha relata a Guerra de Canudos no monumental trabalho Os Sertões. Sobressai ainda a obra original de Augusto dos Anjos (Eu), que traz para o universo da poesia o vocabulário científico e a escatologia característicos do naturalismo.


Décadas de 1910 a 1930 : fugindo do tradicional:


Os escritores deste momento da História vão negar e evitar os tipos formais e tradicionais. É uma época de revolução e busca de novos caminhos e novos formatos literários.
Principais escritores deste período: Ernest Hemingway, Gertrude Stein, William Faulkner. S. Eliot, Virginia Woolf, James Joyce, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Cesar Vallejo, Pablo Neruda, Franz Kafka, Marcel Proust, Vladimir Maiakovski. Em Portugal, com a ascensão de Salazar ao poder inicia um avanço das ideologias de extrema direita (nazismo, fascismo, integralismo) e de luta contra a expansão comunista. Na Espanha, uma guerra civil iniciada em 1936 levou ao poder o general Franco, que governou o país até 1976. Surge em 1915, com a publicação da revista Orpheu. Período de nacionalismo e saudosismo, várias revistas: A Águia (tem Fernando pessoa como colaborador), Orpheu, Ícaro, etc. José Régio: a poesia entre deus e o diabo: (1901-1969) Principal expressão do grupo formado em torno da revista Presença, da qual foi um dos fundadores e diretores. Inicia sua carreira em 1925, com a publicação de Poemas de Deus e do diabo, dois anos antes da criação da revista. José Saramago, um dos mais importantes escritores da atualidade, descendente dos neo-realistas: Prêmio Nobel de Literatura 1998.

BRASIL 1922-1930 –


O evento que marca o início do modernismo no Brasil é a Semana de Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo. Influenciados pelas vanguardas européias, os modernistas promovem uma revolução estética baseada principalmente no verso livre, na incorporação poética do cotidiano, na utilização de uma linguagem telegráfica, fragmentada, com elementos extraídos da oralidade e do coloquialismo. Seus expoentes são Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Manuel Bandeira. Destacam-se ainda os escritores Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo (do grupo Verde-Amarelo), Raul Bopp e Alcântara Machado.


BRASIL 1930-1945 –



As conquistas modernistas vão sendo incorporadas aos padrões estéticos nacionais, o que permitiu à chamada geração de 30 voltar-se aos temas de teor social, como a denúncia das desigualdades no campo e na cidade. No romance, o movimento é conhecido como neo-realista e aparece nas obras de Graciliano Ramos, Vidas Secas, de José Lins do Rego, Fogo Morto, de Rachel de Queiroz, O Quinze, e de Jorge Amado, O País do Carnaval, autores que tratam da seca, da vida miserável nordestina, da exploração e do desajuste social e psicológico. Erico Veríssimo escreve, nesse período, romances urbanos, entre eles Clarissa e Olhai os Lírios do Campo. Dyonélio Machado inova a narrativa psicológica, retratando o temor que assola um indivíduo de classe média, sem dinheiro e sem perspectivas de melhora, em Os Ratos. Na poesia, observa-se o retorno a um texto de contornos místicos, religiosos e sugestivos, que lembra certos aspectos do romantismo e do simbolismo. Os principais poetas que atuam a partir de então são Jorge de Lima, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Vinicius de Moraes e Augusto Frederico Schmidt. Mário Quintana segue essa tendência até a década de 1990. Carlos Drummond de Andrade, um dos mais importantes poetas brasileiros, realiza uma síntese entre racionalismo e lirismo, revolta e conformismo, angústia e humor.

Década 1940 : a fase pessimista


O pessimismo e o medo gerados pela Segunda Guerra Mundial influenciaram este período. O existencialismo de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus vão influenciar os autores desta época. Na Inglaterra, George Orwell faz uma amarga e triste profecia do futuro na obra 1984.

Década de 1950: crítica ao consumismo


As obras desta época da História criticam os valores tradicionais e o consumismo exagerados imposto pelo capitalismo, principalmente norte-americano. O poeta Allen Ginsberg e o romancista Jack Kerouac são seus principais representantes. Henry Miller choca a crítica com sua apologia da liberdade sexual na obra Sexus, Plexus, Nexus. Na Rússia, Vladimir Nabokov faz sucesso com o romance Lolita.

BRASIL 1945-1960 –


A literatura brasileira abandona o compromisso estrito com as temáticas de orientação social e revela a tendência ao experimentalismo lingüístico. João Guimarães Rosa, autor de Sagarana e Grande Sertão: Vereda desenvolve um regionalismo universalista. João Cabral de Melo Neto trata da problemática social em Morte e Vida Severina e produz uma poesia em que sobressaem o rigor formal e a contenção, sem prejuízo do lirismo, em obras como A Educação pela Pedra. Clarice Lispector (Perto do Coração Selvagem e Laços de Família) volta-se para a realidade psicológica das personagens, revelando influência do existencialismo e valorizando as técnicas do fluxo de consciência. Também na linha do romance psicológico está a ficção de Cornélio Pena (A Menina Morta) e de Lúcio Cardoso (Crônica da Casa Assassinada). Na década de 1950 surge a poesia concreta, movimento de vanguarda, criado pelos poetas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari. Ela se opõe ao formalismo da geração de 45, ao se aproximar dos modernistas de 22, na medida em que propõe a destruição do verso e a exploração inovadora dos espaços da página. Rivalizando com o grupo concretista aparece, em 1962, a Poesia Práxis, de Mário Chamie.


Décadas de 1960 e 1970:


Surge o realismo fantástico, como na ficção dos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar. Na obra do colombiano Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão, se misturam o realismo fantástico e o romance de caráter épico. São épicos também alguns dos livros da chilena Isabel Allende autora de A Casa dos Espíritos. No Peru, Mario Vargas Llosa é o romancista que ganha prestígio internacional. No México destacam-se Juan Rulfo e Carlos Fuentes, no romance, e Octavio Paz, na poesia.
A literatura muda o foco do interesse pelas relações entre o homem e o mundo para uma crítica da natureza da própria ficção. Um dos mais importantes escritores a incorporar essa nova concepção é o italiano Ítalo Calvino.

BRASIL Décadas de 1960 e 1970:


A situação política do país, com seus sucessivos governos militares e a censura fortaleceram os romances-reportagens, como os de José Louzeiro, e as obras que têm como pano de fundo a realidade brasileira, como Quarup, de Antônio Callado. São também retratos da época livros como Zero, de Ignácio Loyola Brandão, e A Festa, de Ivan Ângelo. Outro autor importante é Raduan Nassar, com sua linguagem apurada. Lígia Fagundes Telles publica contos e romances de grande penetração psicológica. Na linha dos romances intimistas, sobressaem a narrativa refinada de Autran Dourado (Sinos da Agonia) e o complexo trabalho estilístico de Osman Lins (Avalovara). Os contos de Dalton Trevisan misturam o grotesco ao banal. Pedro Nava destaca-se como memorialista. Ferreira Gullar, que se distanciara da poesia concreta, continua a produzir sua poesia participante. A partir do fim dos anos 1970 aparece à chamada geração mimeógrafo, responsável por uma poesia anárquica, satírica e coloquial. Seus principais nomes são Ana Cristina César e Cacaso.


BRASIL Década de 1980 – O período conhecido por pós-modernidade tem como característica marcante a heterogeneidade – pluralidade de vozes, de estilos, de gêneros e de visões do mundo. No Brasil, a chamada geração de 80 é marcada pelo desencanto em relação aos ideais de engajamento social e político da década de 1970. Caracteriza-se pela temática predominantemente urbana, com ênfase nos estilos pessoais e na exploração de novas técnicas narrativas. João Antônio revitaliza o conto brasileiro, e Silviano Santiago, a narrativa ficcional, com Em Liberdade (1981).


BRASIL 1980-1985 – No gênero policial, Rubem Fonseca explora os efeitos psíquicos, sociais e estéticos da violência urbana, sobretudo em A Grande Arte (1983). Hilda Hilst trabalha temas metafísicos, privilegiando a exploração do universo sexual e a utilização do fluxo de consciência em poesia e prosa poética. Nas obras de João Gilberto Noll (A Fúria do Corpo), a sexualidade vem acompanhada de um clima pesado de delírio. Caio Fernando Abreu dedica-se ao romance urbano de inflexões intimistas. João Ubaldo Ribeiro investiga a história da identidade brasileira em Viva o Povo Brasileiro (1984). Do mesmo ano é o romance de Nelida Piñon, República dos Sonhos, que aborda as aventuras de imigrantes no Brasil. Na poesia, José Paulo Paes, Haroldo de Campos e Paulo Leminski continuam a explorar técnicas inspiradas no concretismo. Ganha destaque a poesia de Adélia Prado, que trabalha o universo feminino e cotidiano.


BRASIL 1986-1989 – Ana Miranda lança o romance, Boca do Inferno, sobre a vida de Gregório de Matos. No romance intimista destaca-se o livro de estréia de Milton Hatoum, Relato de um certo oriente. Josué Montello privilegia o universo maranhense em narrativas históricas. Nesse período divulga-se a poesia de Manuel de Barros (publicada em 1990), cujo apurado trabalho estilístico se volta para os temas ligados à região do Pantanal. Também é importante a obra reflexiva e metalingüística da poetisa Orides Fontela.


BRASIL Década de 1990 – Em meio à pluralidade de estilos e técnicas característicos da pós-modernidade, sobressaem algumas tendências comuns. É o caso dos romances que, inspirados no fim do milênio, procuram analisar a história do país por meio de incursões ficcionais na história contemporânea. Também ressurge a temática memorialística, que, com base em lembranças pessoais, compõe certos painéis da história nacional.


BRASIL 1990-1995 –


O compositor Chico Buarque estréia no romance com a narrativa labiríntica e delirante de Estorvo (1991)
Na moderna prosa regionalista, Francisco Dantas retrata um Nordeste em decadência em Coivara da Memória e João Silvério Trevisan se destaca no romance histórico (Ana em Veneza). Na poesia, a influência do concretismo e da música popular aparece na obra de Arnaldo Antunes. Ganha importância uma nova geração de poetas: Alexei Bueno, Nelson Ascher, Régis Bonvicino, Rubens Rodrigues Torres Filho e Paulo Henriques Britto, além do veterano Wally Salomão.

BRASIL 1996-1999 –



Bernardo Carvalho mescla o suspense ao trabalho de desconstrução da narrativa nas obras Os Bêbados e os Sonâmbulos (1996) e Teatro (1998). Dentro do gênero urbano e policial, Patrícia Melo evidencia a influência de Rubem Fonseca em O Matador (1995). Paulo Lins estréia na prosa com Cidade de Deus (1997), romance social ambientado na periferia carioca. Na literatura de orientação memorialista, destacam-se Carlos Heitor Cony (Quase Memória, 1997) e Modesto Carone (Resumo de Ana, 1999), cuja narrativa explora a lembrança articulada à observação de fatos reais. A ficção ligada a acontecimentos históricos também está presente na obra de Zulmira Ribeiro Tavares (Cortejo em Abril, 1998) e de Moacyr Scliar (Sonhos tropicais). Silviano Santiago aborda a decadência familiar em De Cócoras (1999). Na poesia, são publicados livros póstumos de Carlos Drummond de Andrade (Farewell, 1997) e de Guimarães Rosa (Magma, 1998). Ferreira Gullar lança o livro de poemas Muitas Vozes (1999).


BRASIL 2001 –


A escritora Patrícia Melo recebe o Prêmio Jabuti, na categoria Romance, com Inferno, um painel de personagens do Rio de Janeiro, em que o protagonista da epopéia carioca é um fora-da-lei, Reizinho, um garoto de 11 anos, ex-viciado em crack. Anderson Braga Horta vence na categoria Poesia, com o livro Fragmentos da Paixão. O livro Corações Sujos, do escritor e jornalista Fernando de Moraes, conquista o prêmio de melhor livro na categoria reportagem. A obra aborda a história da Shindo Renmei, a seita nacionalista que aterrorizou a colônia japonesa no Brasil após o fim da II Guerra Mundial, por se recusar a aceitar que o Japão saiu derrotado do conflito. Em Ciências Sociais destaca-se a obra, Intelectuais à Brasileira, de Sérgio Micelli. Na categoria infanto-juvenil, o lançamento de Lendas Brasileiras, de José Arrabal, destaca-se por traçar um painel de lendas e fábulas abrangendo todas as regiões do país. O autor escolheu a narrativa como linguagem em vez da descrição, convencionalmente usada para contos.

BRASIL 2002 –


Ariano Suassuna recebe o Prêmio Jorge Amado de Literatura e Arte, na Bahia, pelo conjunto de sua obra.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

O SHOW DE TRUMAN (1998)

Truman ou True Man; Christof ou “Cristo - em off”;
alegoria do sonho americano ou a cidade simulacro”.


“A história de um homem, Truman Burbank, que vive, desde o seu nascimento, em um mundo falso, onde todos são atores, a cidade é apenas um grande cenário e cujo cotidiano é filmado e transmitido ao vivo pela TV minuto a minuto, sem que ele saiba. Um filme polêmico que aborda questões atuais como a perda da privacidade devido à vigilância cada vez mais presente em nossas vidas, a idéia de que o mundo se transformou em um simulacro de si mesmo e de uma sociedade prisioneira de comportamentos codificados pela massificação da tecnologia, onde a vida de verdade está na TV, em incontáveis “reality shows”. (FGV-Direito)


I – O FILME:

FICHA TÉCNICA:

• título original:The Truman Show
• gênero:Drama
• duração:01 hs 42 min
• ano de lançamento:1998
• site oficial:http://www.truman-show.com
• estúdio:Paramount Pictures
• distribuidora:Paramount Pictures / UIP
• direção: Peter Weir
• roteiro:Andrew Niccol
• produção:Edward S. Feldman, Andrew Niccol, Scott Rudin e Adam Schroeder
• música:Philip Glass e Burkhart von Dallwitz
• fotografia:Peter Biziou
• direção de arte:Richard L. Johnson
• figurino:Marilyn Matthews
• edição:William M. Anderson e Lee Smith
efeitos especiais:The Computer Film Company / Cinesite Hollywood / EDS
Digital Studios

Dirigido por PETER WEIR, “O Show de Truman” ou ”O show da vida”, com aproximadamente 103 minutos de duração e roteiro de Andrew Niccol, foi lançado em 1998 nos Estados Unidos, pela Paramount Pictures.


II – ESPAÇO E TEMPO:


TRUMAN BURBANK (Jim Carrey) vive na bucólica cidadezinha litorânea de SeaHeaven. É interessante observarmos que a denominação da cidade nos remete a um Paraíso terrestre, “o locus amoenus”, onde tudo gera em perfeita harmonia, equilíbrio e tranquilidade. No entanto, ocorre uma contradição irônica; pois, é um lugar que não apresenta perigos e não acontece nada de extraordinário, no entanto, o protagonista do filme é um corretor de seguros.
SeaHeaven na realidade é a pacata cidade Seaside, localizada no norte da Flórida, estado americano dos mais conservadores. Foi ali, mesmo na Flórida que Walt Disney criou seu mundo de sonhos, uma cidade inteira de diversão – a Walt Disney World. Dentro da Walt Disney World está a cidade Celebration, uma cidade real, construída para os funcionários da Disney Company, que muito se assemelha à SeaHeaven de “O Show de Truman”; portanto, o filme não está tão distante da realidade.
O filme retrata a alegoria do sonho americano (o estilo de vida nos Estados Unidos): Truman está bem empregado; tem um casamento aparentemente feliz com a enfermeira Meryl; possui amigos “fiéis” e convive com vizinhos que gostam muito dele.
A única coisa que difere TRUMAN dos outros milhões de norte-americanos de classe média, é que ele é a única coisa real, até os pedestres são atores contratados para dar-lhe a ilusão de falsa realidade e a cidade não passa de um imenso cenário, o maior e mais tecnológico já construído pelos homens.

O tempo é cronológico e começa a partir do nascimento de Truman até o protagonista completar seus trinta anos de idade. Sua vida é televisionada 24 horas por dia, através de 5.000 câmeras existentes na cidade, controladas por Christof e sua equipe que ficam escondidos atrás da bela lua que permeia o céu artificial da noite de SeaHeaven e apresentada aos telespectadores em 10.909 capítulos.
Truman leva alegria e esperanças para milhões de telespectadores em todo o mundo, sem saber que é a estrela de um “reality show”, mercadoria e vítima de um sistema dominador que procura atender seus interesses, impondo um modelo social permeado por uma falsa e ilusória ideologia.
Essa ideia absurda de uma telenovela estar no ar intermitentemente por 30 anos mostrando a vida de uma pessoa normal, não é tão longínqua da realidade da mídia do final do século passado e aí está seu sombrio e premonitório valor. Em tempos de programas que levam a desgraça do cidadão comum às casas de milhares de pessoas, não é difícil imaginar que quando este modelo cansar, levando farsas orquestradas a palcos de TV, só mesmo a vida de uma pessoa real pode saciar os desejos voyerísticos dos telespectadores cada vez mais céticos. Fundamentando-se na teoria crítica, é importante salientar a existência de duas perspectivas abordadas no filme: a do mundo conhecido por TRUMAN e a dos telespectadores do grande show. Decisões e atitudes são impostas e, as pessoas falsas e os telespectadores do “reality show” manifestam ira em torno da manipulação do poder.
Portanto, em um futuro não muito distante, uma telenovela é protagonizada por uma personagem real.


III – PERSONAGENS:



Assim, tudo é cenário no "Show de Truman": a cidade, as casas, os cidadãos da cidade, que são atores, os pais de Truman, os amigos de Truman, a mulher de Truman; neste mundo perfeito e artificial só o próprio Truman não sabe que vive uma ficção; vivendo sua vida de mentira, dentro de uma verdade fabricada para ele e, completamente alheio a esta conspiração - o american way of life elevado ao state of art. Sua vida é acompanhada por milhões de telespectadores que assistem estupefatos diariamente à simulação de uma vida ao vivo.
Durante o filme, observamos quatro tipos de personagens:

1. Personagens que não tem qualquer consciência do que fazem (Meryl, a mulher de TRUMAN);


2. Personagens que faz para cumprir ordens (Marlon, amigo);
3. Personagens que tentam impedir que isso continue a acontecer (Sylvia) e
4. Personagens que tem consciência plena e faz com convicção (Christof).



Neste mundo colorido, onde o azul do céu é cenário para personagens como o cachorro Pluto, e onde pessoas, durante uma simples conversa, fazem merchandinsing de produtos alimentícios, utilidades domésticas, planos de saúde e outros, Truman (ou True Man, um Homem de Verdade) não percebe que seu arbítrio livre não é e, quando o faz, a evasão é monitorada por Christof (o criador do programa, o diretor, ou “Cristo”).
O programa é cria da indústria cultural, produzido do alto pelas instituições sociais dominantes, que determinam o processo de consumo, instaurando na audiência uma reação automática e irreflexiva perante àquilo a ser consumido.
Esse fato pode ser observado nas cenas em que aparecem as garçonetes, os policiais, as duas senhoras e o rapaz da banheira, pois essas pessoas estão constantemente assistindo ao show, inclusive em seus locais de trabalho e no correr da noite, não demonstrando preocupação com o fato de TRUMAN viver todos os dez mil novecentos e nove capítulos aprisionado para entretê-los e vender-lhes os variados gêneros de produtos circulantes no sistema de livre-mercado. Às pessoas não são capazes de tomar decisões sem a intervenção de agentes externos e passam a aderir acriticamente aos valores impostos e dominantes, difundidos pelos meios.
TRUMAN, por sua vez, é a personificação dessas pessoas. Vive em um mundo controlado, onde produtores se conjugam harmonicamente, determinando os padrões de consumo, tendo como objetivos principais à venda de mercadorias e o lucro acima de tudo, não importando a qualidade do produto, nem se estão sendo dignos com a humanidade e a sociedade. Pois, não importa como TRUMAN se sinta, ele faz parte desse modelo forçado e assim deverá permanecer. Eis aqui um ponto fundamental do filme, mostrando algumas das fragilidades da teoria crítica.
No desenrolar do filme, o diretor vai deixando transparecer um contato feito, em capítulos anteriores, entre TRUMAN e Sylvia. Ela tentou alertá-lo sobre a condição vivida por ele e por isto foi expulsa. Desde então, TRUMAN começa a amadurecer um desejo de encontrá-la, de viajar para conhecer outros lugares. Isto mostra que os indivíduos não são totalmente desprovidos de autonomia, consciência e capacidade de julgamento, como previa a teoria crítica, nem que a mentalidade das massas é algo imutável.


IV – TEMÁTICA:


“O direito à privacidade e a mídia no século XXI”

Uma tese sustentada pelo filme seria como a televisão invade inteiramente a subjetividade, confunde público e privado, aprisiona os sujeitos numa vida alienada, ditada pelos valores do mercado, onde a felicidade está equacionada à posse de bens de consumo e a própria identidade pessoal se esfuma frente às identidades por ela fornecida, especialmente, aquelas veiculadas pela publicidade, que forjam imagens de masculinidade ou feminilidade, de sucesso e de triunfo.
As ideias de Truman são habilmente construídas através de propagandas. Um ideário necessário para a manutenção do Estado é incutido em sua mente através dos meios de comunicação e das pessoas ao seu redor, simbolizando dessa forma, uma sátira mordaz do americano típico comum, modelo fabricado, adotado por milhares numa sociedade pré-fabricada e prática.


“A psicanálise e a constituição do sujeito humano”

A forma como a psicanálise compreende a constituição do sujeito, baseada em identificações com os objetos primários (pai, mãe) de certa forma afasta a mídia como um fator estrutural construtivo no ser. Outra leitura que a metáfora trazida pelo filme permite, seria uma leitura psicanalítica: a constituição do sujeito humano.
Tausk, discípulo de Freud descreveu nos pacientes esquizofrênicos algo que, ele chamou de aparelho de influência. Estes pacientes sentiam que sua vida era observada cuidadosamente, que seus pensamentos eram comentados, que seu interior era vasculhado, assim como o espaço que eles habitavam era supervisado por forças estranhas e alheias a eles. A psicanálise postula que durante a constituição do sujeito psíquico os outros (a começar pelos pais) se instalam em seu interior como palavra e pensamento, como cuidados que o sujeito realiza consigo mesmo, como uma série de aspectos normativos e instrumentais que passam a constituir seu próprio ser.
Tudo isso que se origina no exterior, passa a ser ego sintônico, ou seja, algo que o sujeito sente em sintonia com seu ser e cuja origem não pode mais ser traçada até suas origens externas. Perde-se o elo que o une ao real.
Quando isso acontece, não se teria realizado uma adequada simbolização desse passado constitutivo, e por isso ele retorna como real. Através desse aparelho de influência o sujeito encontra uma forma de perpetuar esse passado de influências benéficas (ou não) e a proteção dos pais. Isto seria conflitante com os desejos de crescer e de abrir-se, por identificação com os pais, a experiências exogâmicas, que seria o que caracteriza a normalidade. Em outras palavras, a história de Truman mostra a passagem entre a alienação no desejo do Outro e a assunção do próprio desejo, o estabelecimento da própria subjetividade.
A relação entre Truman e a produção do show na televisão onipresente e onipotente, que o controla em tudo com suas cinco mil câmaras de filmar, impondo-lhe seu desejo, impedindo-lhe qualquer autonomia e escolha, seria uma possível representação da relação estabelecida por uma mãe narcísica que toma seu filho como prolongação dela própria para realizar seus desejos onipotentes.
Vemos no filme como todas as tentativas de autonomia apresentadas por Truman são imediatamente rechaçadas, invalidadas, desautorizadas, desestimuladas. Posteriormente ele é impedido e punido por tais tentativas. Fobias e sentimentos de culpa lhe são induzidas com este intuito. As imagens catastróficas da companhia de turismo desestimulam qualquer desejo de sair, de ir para longe; o medo através do rádio e da televisão e, até por meio de cartazes, alertando para o perigo de doenças, ataques terroristas e desastres naturais.
O que falamos até aqui, caracterizariam uma psicose. Uma relação narcísica, não castrada, fundida com o objeto primário, uma impossibilidade de assumir o próprio desejo, a própria subjetividade.
Vemos, entretanto, em TRUMAN, como este sistema narcísico começa a ruir na hora em que, Truman se interessa efetivamente, espontaneamente por uma mulher. É a emergência de seu próprio desejo, não mais aquele decorrente da manipulação externa. Truman estabelece sua relação exogêmica pela escolha da mulher estranha ao meio endogâmico, cuja imagem vai organizando aos poucos, numa colagem de lembranças e afetos, até constituir uma fonte de desejo amoroso. É interessante notar como o acesso a essa mulher é severamente reprimido, como vemos no encontro na praia, quando ela é sumariamente levada por homens.
A fala final de Christof, o criador do programa, tentando fazer Truman ficar no "útero", assegurando-lhe que a vida lá fora é também cheia de mentiras e enganos, e que aqui ele está mais protegido é a tentativa final e frustrada feita pela "mãe" para impedir que o "filho" possa fazer suas descobertas boas e más que o "mundo externo" inevitavelmente lhe trará.
Neste sentido, TRUMAN seria uma metáfora tanto da situação inicial da constituição do sujeito, como também da sua crise maior, aquela que se dá na adolescência.

“O livre-arbítrio”


O ser vigiado enfrenta o “diálogo” com o seu criador, Christof, que tenta convencê-lo a permanecer na cidade, usufruir Seahaven que é um “modelo de mundo”.
Christof com sua voz como se brotasse do sol entre as nuvens, numa clara associação com as aparições kitsch de Deus nas sagas religiosas hollywoodianas (seu próprio nome induz a isso, é o “Cristo - em off”), declama um discurso típico da mídia contemporânea, declarando que o seu real é mais perfeito que o real desconhecido do mundo fora do estúdio: existem as mesmas dores, os mesmos desapontamentos, mas tudo é pior porque fora de controle, não havendo um ideal pleno e monitorador dos acasos.
Mesmo assim, Truman decide. Adentra o escuro oferecido por uma porta que o liberta de um mundo previsível.
Truman prefere o mundo com suas relações imprevisíveis e, num ato de representação, sorri, curva-se ao grande espectador “Deus”, e abandona o paraíso artificial, o que nos parece uma associação ao Gênesis, onde o Éden é preterido face à curiosidade de Adão: a felicidade gerida por uma força superior é rompida por uma esfera desejante incontornável na figura humana que, mesmo lamentando a queda, parte para sua própria aventura.
A aposta é, enfim, no fantasma da liberdade, na quimera do desejo e, se pode diagnosticar o poder da mídia na sociedade contemporânea através de uma fábula exemplar, pois o filme aponta para a possibilidade da interferência, da interseção do singular no plural avesso ao globalismo de ordens dominantes o que, afinal, é incontestável: em todas as sociedades de corte totalitário, subsistiram sempre ideias e comportamentos de resistência, e todas elas acabaram por ruir. A Nova Ordem Mundial, ciente disso, caminha lado a lado à ilusão de liberdade, para destruí-la como conceito, sobrepondo o dístico: liberdade é consumo. Neste sentido caminha a indústria cultural, avessa à cidadania e às relações sociais sem pressões midiáticas. No sentido inverso, a arte disposta a não esconder sob simulacros a riqueza só inerente a um mundo imperfeito.
A sociedade ao mesmo tempo em que se aprisiona, assiste de suas celas/cidadelas a libertação da personagem. Torce por ela. Mas, se reforça em seu aprisionamento, consumindo o produto recomendado pelo merchandising do reality show. Assim, mal liberto Truman de seu espaço-simulacro, a audiência busca saber o que está passando em outro canal.
Truman preferiu sair da TV e entrar no mundo real. Essa opção do protagonista leva-nos a refletir sobre o conhecido “Mito da Caverna”, onde as coisas sensíveis são apenas “sombras imperfeitas das idéias preexistentes”.
Para melhor sintetizar as ideias de Platão; recorremos ao livro VII de “A República”, onde seu pensamento é ilustrado pelo “Mito da Caverna”.
Platão imagina uma caverna onde estão acorrentados os homens desde a infância, de tal forma que, não podendo se voltar para a entrada, apenas enxergam o fundo da caverna. Aí são projetadas as sombras das coisas que passam às suas costas, onde há uma fogueira.
Se um desses homens conseguisse se soltar das correntes para contemplar à luz do dia, “os verdadeiros objetos”, quando regressasse, relatando o que viu aos seus antigos companheiros, esses, o tomariam por louco, não acreditando em suas palavras.
A análise do mito nos remete ao “O Show de Truman” e pode ser feita pelo menos sob dois pontos de vista: o epistemológico (relativo ao conhecimento) e o político (relativo ao poder).
Segundo a dimensão epistemológica, o mito da caverna é uma alegoria a respeito das duas principais formas de conhecimento: na teoria das idéias. Platão distingue o “mundo sensível”, dos fenômenos, e o mundo “inteligível”, das idéias.
O mundo sensível, acessível aos sentidos, é o mundo da multiplicidade, do movimento, e é ilusório: pura sombra do verdadeiro mundo. Acima do ilusório mundo sensível, há o mundo das ideias gerais, das essências imutáveis que o homem atinge pela contemplação e pela depuração dos enganos dos sentidos.
Sendo as ideias a única verdade, o mundo dos fenômenos só existe na medida em que participa do mundo das ideias, do qual é apenas sombra ou cópia.
Voltando ao Mito da Caverna: o filósofo (aquele que se libertou das correntes), ao contemplar a verdadeira realidade e ter passado da “opinião” (doxa) à “ciência” (episteme), deve retornar ao meio dos homens para orientá-los.
Truman ignora o mundo das ilusões e não imagina que pode haver outra realidade, onde o conhecimento exige maior esforço. Assim, o mundo das ilusões é confortável, mas não é confiável.


“A dominação e o ser dominado”

Cristhof, principal responsável pela criação do mundo de Truman, foi perguntado, em uma entrevista para a televisão externa, o porquê de Truman nunca ter chegado perto de sair, de descobrir a natureza real do seu mundo.
Ele respondeu que as pessoas simplesmente aceitam a realidade do mundo no qual estão presentes, mas que se TRUMAN estivesse realmente determinado a descobrir a verdade não haveria como detê-lo. Aconteceu que Truman não estava mais aceitando essa “realidade de mundo” e ao buscar a “liberdade de consciência” enfrenta seu medo do mar e começa a velejar em direção à Sylvia, às ilhas Fiji, à emancipação, à liberdade! Sobrevive a uma imensa tempestade propositalmente provocada e chega, enfim, ao portão de saída. Após um rápido diálogo com Cristhof, que tentava persuadi-lo pela última vez.



Truman executa sua saudação padrão (de muito sucesso perante o público) – “caso não os veja de novo, tenham uma boa tarde e uma boa noite” acompanhada de uma enorme reverência e atravessa a porta levando ao delírio milhões de telespectadores que, de certa forma, também estavam se libertando do consumo desenfreado e irreflexivo.

De forma similar a Truman, o exercício do poder e da dominação sobre as pessoas, faz-se circular por canais cada vez mais sutis, captura os indivíduos, sua ação cotidiana, seus corpos. Onipresente nos objetos construídos, olhares vigilantes imiscuem-se nas mais íntimas formas de relações sociais.
A partir do olho imperceptível de lentes e chips, a sociedade é constantemente vigiada. Tecnologias sem fio, bina, celular, câmeras, células óticas, sensores eletrônicos de digitais, da íris, rastreadores, satélites significam tanto novas liberdades como nova escravidão. Nas ruas, lojas, supermercados, bancos, caixas eletrônicos, portarias, elevadores, deixou de ser constrangedora a presença disseminada do aviso simpático e ao mesmo tempo ameaçador: Sorria. Você está sendo filmado!
Uma eterna vigilância paira sobre edificações, equipamentos, veículos em movimento, e não só serve à segurança como ao controle.


“A cidade simulacro”

A cidade é aprisionada, intermediada pela tela. Tecnologias de informação e comunicação instalam o presente permanente (sem memória coletiva), o tempo real na irrealidade do espaço virtual. O espaço público das relações interpessoais cede lugar ao espaço privatizado, mediado por máquinas. O diálogo passa a ser teclado ou monitorado: instaura-se uma conversação muda, ou, se sonora, sem alma, sem tato, sem o calor da presença. A abertura planetária cria o isolamento dos indivíduos, cativos diante da tela, num processo de comunicação solitária.
A cidade se super expõe. Entrega-se à invasão imperceptível do interior dos espaços públicos e privados, e a mutação dos papéis. A instantaneidade dos meios de comunicação permite uma sucessão de eventos espetacularizados, banalizados, expostos a uma sociedade que a tudo vê, entretanto como espectadora e irresponsabilizada. O usuário, em permanentes deslocamentos, e não o habitante, marca a cidade. A arquitetura tem de adaptar-se aos interlocutores em trânsito, a transeuntes desconhecidos que impõem o risco. Como suporte, apóia-se na tecnologia da invasão: “equipada com objetos de controle, a porta da cidade deixa de ser o gate, o arco do triunfo, e passa a se constituir de ‘sistemas de audiência eletrônicos’, ‘pórticos magnéticos’, que interceptam o suspeito no trajeto”.
Bancos de dados sucedem aos portais e as redes não se inscrevem no tecido construído, mas na interface homem/máquina.
Concentração e objetos construídos dão materialidade e deixam perpassar os olhos do poder. Verdadeiros cenários que aprisionam e sintetizam a realidade: como revela Marlon, “nada do que se vê no Show (de Truman) é falso; é meramente controlado.”
Na cidade tornada palco, o citadino se destitui da capacidade criadora e transformadora, assumindo o perfil de consumidor do produto urbanismo, desvinculando-se de seu papel político enquanto agente da produção do espaço e da cidadania. Um citadino-objeto, associado à imagem da cidade sujeito, como um filho obediente, no colo de uma mãe dedicada.
Essa cidade, concebida para que tudo funcione equilibradamente, é apenas um simulacro no qual todos estão felizes, integrados, adaptados, cumprindo seus papéis determinados, sem imprevistos ou sobressaltos.
Resgatando de Baudrillard as ideias de “simulacro” e “hiper-realidade”, discute a recriação das cidades, a partir de uma “cópia exata de um original que já não existe – ou talvez nunca tenha existido: ele se adianta ao processo mais simples da simulação para criar farsas e fantasias ‘reais’ que funcionam não apenas como imagens e ícones, mas como parte de nossa realidade material”. A “cidade simulacro” se faz marcar pelo “crescente poder político e social das simulações do real como substitutos lógicos e comportamentais para eventos e condições materiais reais” implicando “uma mudança radical no imaginário urbano, nas maneiras pelas quais relacionamos nossas imagens do real com a própria realidade”.
A construção de tal simulacro se dá a partir da produção de um verdadeiro e cotidiano espetáculo, no qual os cidadãos, transformados em consumidores do tema proposto, tornam-se seus atores figurantes. A cidade é reinventada, tematizada, iconificada pelo uso abusivo do city marketing, que transfigura a organização original e fixa novos valores diretamente relacionados com o consumo imposto pela ideologia dominante. Desconstrói as possibilidades de participação política e elimina os pressupostos que permitiriam a gestão democrática do espaço urbano.
“SeaHeaven” se multiplica enquanto cidades planejadas/modelos de cidades, configurando uma imagem de equilíbrio e a materialização do consumo. Abusam da realidade virtual, da simulação e do mascaramento das assimetrias de poder, criando no imaginário coletivo a fantasia de uma cidade segura, civilizada, asséptica. Simples parques temáticos ou hiper-realidades concretas baseiam-se em redes industriais de serviços, articulando a mídia, o capital imobiliário, o entretenimento, em uma cultura pública do consumo de um espaço de qualidade. Multiplicam-se também enquanto que, partes da cidade, no formato de grandes condomínios comerciais e residenciais auto suficiente, shopping centres, espaços multiplex culturais e de lazer, grandes áreas revitalizadas, gentrificadas, business district centres ancorados por corporações comerciais ou financeiras entregam-se a não-lugares que se replicam em todas as geografias, pautados em um sistema de ações com intencionalidades globais que modificam a paisagem e estrangulam os hábitos. Traços originais do lugar são preservados apenas como cópias mal elaboradas de uma memória apagada. Em substituição, são criados ícones urbanos que se apropriam da história, outorgam valor ao solo e à cidade, segregando populações insolváveis e inserindo a urbs num mercado mundial de alta competitividade.
Tais espaços simulacros são mistos de cultura visual, controle espacial e administração privada que alimentam o desenvolvimento da cidade e encaminham o poder local para modelos público-privados de expansão de negócios. Indústrias do imaginário, em que todos obedecem a uma engrenagem que o trabalho comparece disfarçado de animação, ou em que a competência técnica projeta num cad a cidade do pensamento hegemônico, tornada “ideal” para todos os segmentos.
A cidade simulada para a perfeição enclausura, afasta a realidade da produção imperfeita do espaço e do cidadão. Omite as contradições inerentes ao espaço e à sociedade. Exorcisa a segregação (Baudrillard) num postiço mundo da sociabilidade cordial, por assim dizer ficcionalizada que, sob a fachada de um splendid new world, escamoteia o lado sombrio da violência, da pobreza e do trabalho precarizado.


“Parábola sobre o totalitarismo”

Outra leitura possível sobre o filme “O Show de Truman” é uma parábola sobre o totalitarismo (fábula ao regime soviético de então ou antecipação ao império norte-americano de agora?).
Christof (re) escreve a história e manipula a memória; cria o espaço ao qual detêm a personagem; molda a ideologia e faz prevalecer seu poder de dominação. Essa utopia negativa há muito tempo se tornou realidade. Vive-se hoje no mais totalitário de todos os sistemas, cujo centro é formado pelo próprio Ocidente democrático. Dessa maneira, a voz de Christof é a voz do mercado mundial anônimo.
Nessa leitura podemos nos reconhecer como os prisioneiros desse sistema amadurecido. Pequenos Trumans, em menor evidência, mas cativos do mercado, seduzidos pelo consumo subliminarmente imposto pelo merchandising do reality show, ao qual assistimos como substituto de nosso próprio cotidiano.
Truman rechaça a farsa, ao tomar conhecimento dela. Mas, a sociedade contemporânea, se entrega à manipulação por um poder central, que elabora o “pensamento” do indivíduo e recria o imaginário coletivo. Então, consente e até deseja, ser observada, afinal, para muitos, celebridade é ser visto, independente da circunstância. O objeto do desejo é estar no centro da cena, o que torna a sociedade de controle difuso em que “a exposição da privacidade é um valor, não uma tortura”.
Interpassivos, destituídos do espaço enquanto esfera pública, amendrontados com relação ao outro, despolitizados e invadidos na privacidade. Protagonistas ou figurantes? Poder e dominação, simulação e virtualismo, técnica e exclusão. Eis os elementos que nos levam a uma cidade vigiada.
O exercício de controle sobre o espaço urbano se aperfeiçoa e se expressa na arquitetura do medo. Barreiras físicas e de vigilância, muros, grades, guaritas, cercas elétricas, alarmes, sistemas de monitoramento, leitores infravermelho aperfeiçoam e diversificam a cidade carcerária, de Foucault, fazendo emergir a cidade-prisão, lugar em que a polícia substituiu a polis. Pouco diferente da cidade cenário que, mesmo de papel, enclausura, impede que Truman navegue para a liberdade.
O temor da cidade imperfeita, insegura, torna a casa, uma cela “confortável”. O contato com o mundo passa a ser cada vez mais mediado pela tela que, ao mesmo tempo, entretém e atualiza fatos sobre os perigos da rua. O reality show recria, dessa forma, a cotidianeidade abdicada pelo medo; e o olhar eletrônico desloca-se do debate e do conflito coletivo para colocar em destaque o conflito individual, absorvido pela passividade dos citadinos em viver seu cotidiano projetado nesse show da vida.
A cidade fragmentada em territorialidades afronta e recua, provoca e protege-se, enclausura-se em espaços vigiados; ao mesmo tempo vigia.
“A Escola de Frankfurt”
Os frankfurtianos, tendo lido Nietzsche, Freud, Heidegger, sabem que não podem aderir à razão inocentemente. Sabem que a razão não ilumina, não revela a natureza que emancipa do mito através da ciência. Afastam-se do cientificismo materialista, da crença na ciência e na técnica como condições da emancipação social, pois sabem que o progresso se paga com o desaparecimento do sujeito autônomo, engolido pelo totalitarismo uniformizante da indústria cultural ou da sociedade unidimensional. Por isso, o indivíduo autônomo, consciente de seus fins, deve ser recuperado. Sua emancipação só será possível, no nível individual, ao se resolver o conflito entre a autonomia da razão e as forças obscuras e inconscientes que invadem essa mesma razão.

V – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

- O filme começa justamente no momento em que ele passa a desvendar a intrincada equipe que o cerca e a mentira conspiratória que é sua vida.
- Fábula moderna sobre a crueldade dos meios de que uma sociedade avançada pode dispor para manipular os seres humanos.
- O filme lida com a questão do que é a ficção e o que é a realidade. O diretor utiliza-se de várias metáforas para convencer-nos de que realmente é possível estarmos vivendo uma vida artificial sem perceber e que os indivíduos não têm mais controle sobre o que é o público e o que é o privado.
- O culto à celebridade; a vida íntima das pessoas; a curiosidade mórbida que temos na vida dos outros; o mundo virtual; os “paparazzi” etc
- Grande simulação de realidade (tudo que nós passamos pode ser criado, inventado ou controlado) e se a vida é um programa de TV ela precisa de merchandising para se manter viva.
- O que eu quero ou o que a sociedade preparou para mim? Até que ponto o ser humano é livre para escolher seu destino? Quando estamos com outras pessoas somos nós mesmos ou representamos? Como a publicidade na mídia interfere em nossas vidas?
- Referência à liberdade interna, aquela que ninguém é capaz de tocar. Truman expressa essa afirmativa ao exclamar que nunca havia sido colocada uma câmera em sua cabeça e dessa forma, ele exerce essa liberdade em vários momentos; principalmente, quando se lembra de Sylvia, um amor espontâneo e também, quando decide por libertar-se. Aliás, a mulher que Truman esperava encontrar em Fiji simbolizava a sua esperança, que talvez tenha sido a grande catalisadora de capacidade de manutenção do espírito de liberdade.
- Discussão religiosa do paradoxo entre a divina Providência versus o livre-arbítrio. O que é mais importante: a vontade do criador ou a capacidade de escolha e decisão do indivíduo?
- A importância do autoconhecimento; afinal, por que Truman nunca desconfiou da farsa? Será, porque “as pessoas estão acostumadas a viver sem questionar nada ao seu redor”, como respondeu o diretor do filme?!
- Como somos descartáveis, como a vida só interessa realmente àqueles que fazem intimamente parte dela.
- Se nossa vida pode mesmo ser uma mentira, nós somos apenas a imensa propaganda de nós mesmos?

Trailer :

sábado, 25 de setembro de 2010

Dom Casmurro - Machado de Assis

A CONSCIÊNCIA CRÍTICA DO REALISMO BRASILEIRO


“A tecnologia moderna é capaz de realizar a produção sem emprego. O diabo é que a economia moderna não consegue inventar o consumo sem salário.”

Herbert de Souza


1 - LOCALIZAÇÃO:

Entre 1850 e 1880 o movimento cultural, chamado Realismo, predominou na França e se estendeu pela Europa e outros continentes, influenciado pelas transformações que ali ocorriam no âmbito econômico, político, social e científico. Vivia-se a segunda fase da Revolução Industrial, período marcado pelo clima de euforia e progresso material decorrente das inúmeras invenções. No entanto os benefícios não eram refletidos nas camadas mais pobres, que ao contrário passam a ter uma condição social cada vez pior.
Os integrantes desse movimento repudiaram a artificialidade do Neoclassicismo e do Romantismo, pois sentiam a necessidade de retratar os problemas e costumes da classe média e baixa, não inspiradas em modelos do passado. O movimento manifestou-se também na escultura e, principalmente, na arquitetura. Os principais representantes no campo da pintura foram Gustave Coubert e Jean François Millet.
Talvez, o modo mais simples de se definir ou de se entender o que seja Realismo é reproduzir uma frase atribuída Coubert: "Não posso pintar um anjo, se nunca vi um".
Na Revolução de 1948, na França havia tensão entre republicanos e socialistas na França. Por causa do grande desemprego foram criadas turmas de trabalho para a construção de obras públicas em Paris e seus arredores. O Congresso considerava que o pagamento desses funcionários era um pesado fardo para o país. Os empregados foram demitidos. Sem capacidade para sobreviver, organizaram e lutaram sem esperanças contra as forças armadas do governo. Os intelectuais e artistas simpatizantes dos movimentos populares, entre eles Millet, foram perseguidos.
Motivados tanto pelas idéias do socialismo os operários procuram organizar-se politicamente. Fundam então associações trabalhistas e passam a agir melhores condições de trabalho e de vida.
No âmbito cultural, ocorre uma verdadeira efervescência de idéias. Surgem várias correntes científicas e filosóficas. Entre elas o Positivismo, de Augusto Comte, para o qual o único conhecimento válido é o conhecimento positivo, ou seja, provindo das ciências. Aparece também o Determinismo, de Hippolyte Taine (o comportamento humano é determinado por três fatores: o meio, a raça e o momento histórico)
No campo da ciência Charles Darwin apresenta a "lei da seleção natual", segundo a qual a natureza ou o meio selecionam entre os seres vivos as variações que estão destinadas a sobreviver e a perpetuar-se, sendo eliminados os mais fracos.
Os artistas, diante desse quadro de mudança de idéias e da sociedade, sentem a necessidade de criar uma arte sintonizada com a nova realidade, capaz de abordá-la de modo mais objetivo e realista do que até então vinha fazendo o Romantismo.
O movimento procura atender às necessidades impostas pelo novo contexto histórico-cultural, através do combate a toda forma romântica e idealizada de ver a realidade, a crítica à sociedade e à falsidade de seus valores e instituições (Estado, Igreja, casamento, família); o embasamento no materialismo e o emprego de idéias científicas.
Esse era o mundo real de Millet, em 1858 pintou o "Angelus", sua pintura mais famosa, que no século passado foi o quadro mais reproduzido no mundo. No fim de sua vida o seu trabalho tinha alguma afinidade com os impressionistas, apesar de ser diferente nas concepções básicas. A marca da obra de Millet são as pinturas retratando a vida no campo. São paisagens bucólicas, com alguma coisa de tristeza, num clima de introspecção. Foi descoberto que no quadro, Millet havia pintado, originalmente, o filho morto do casal de camponeses. Uma cena forte da expressão do real. O pintor, no entanto, achou muito chocante a cena e retocou o quadro para a forma atual, apagando a figura da criança.



Em 1855, Gustave Courbet, pintor francês, após ter tido suas telas recusadas em uma exposição, por serem “escandalosas” ou “realistas”; como forma de protesto, o pintor realiza uma exposição à qual dá o nome de Realismo: “O Enterro em Ornans” - foi o enterro do Romantismo.
A Revolução de 1848 fez com que Courbet tomasse a decisão definitiva de sua arte em termos de participação ativa na realidade. Nessa época, o romantismo já não conseguia esconder seu aspecto conformista. Devido às suas contraditórias concepções políticas, e uma origem tipicamente pequeno-burguesa, desvinculada da realidade social do país, acabaram por não entender o que havia ocorrido em 1848, e ao testemunharem o despertar daquelas gigantescas massas operárias, e sua poderosa força social, os românticos sentiram-se acuados e tornaram-se abertamente conservadores.
Os setores mais combativos nesse momento tomaram à dianteira. No plano político denominaram-se socialistas, no plano artístico, chamaram a si mesmos de realistas.
Em 1850, Courbet irá expor a tela “Enterro de Ornans”, já uma pintura realista plenamente desenvolvida e considerada a sua primeira obra prima. O pintor irá se referir ironicamente a ela como “o enterro do romantismo”, que simbolicamente marca sua ruptura definitiva com o estilo.

Em 1857, Gustave Flaubert publica Madame Bovary, considerado o marco do Realismo na França.
Madame Bovary é o romance precursor do Realismo europeu, polêmico em sua época, considerado imoral, chegando Flaubert a ser processado pelo governo francês.
É uma narrativa que conta a história de Emma Bovary, uma mulher sonhadora e fútil, que aficionada leitora de romances, se deixa influenciar e alienar pelas idéias românticas. Madame Bovary é o painel de uma sociedade adoecida e sem rumo, onde a crise moral estabelecida gera a insatisfação do indivíduo que busca um sentido para a futilidade da existência.
O resultado foi a obra-prima que o leitor tem em mãos e que Émile Zola descreveu da seguinte maneira: «Quando Madame Bovary apareceu, foi uma completa revolução literária. Teve-se a impressão de que a fórmula do romance moderno, esparsa pela obra colossal de Balzac, fora reduzida e claramente enunciada nas quatrocentas páginas de um único livro. Estava escrito o código da nova arte».
Em 1867, Émile Zola edita Téresè Raquin, iniciando o Naturalismo, uma ramificação científica do Realismo.
“Em Thérèse Raquin, eu quis estudar temperamentos e não caracteres. Aí está todo o livro. Escolhi personagens soberanamente dominados pelos nervos e pelo sangue, desprovidos de livre arbítrio, arrastados em cada ato de suas vidas pelas fatalidades da própria carne. Thérèse e Laurent são animais humanos, nada mais. Procurei acompanhar nesses animais o trabalho surdo das paixões, as violências do instinto, os desequilíbrios cerebrais ocorridos na seqüência de uma crise nervosa. (…) A alma está absolutamente ausente, concordo perfeitamente, uma vez que eu quis assim.” (do prefácio de Émile Zola)
A história centra-se num caso de adultério que envolve três personagens, Camille, Thérèse e Laurent. O primeiro é um jovem, que desde a tenra infância, sofria com inúmeras doenças. Thérèse, por sua vez, adotada pela mãe do infante doente, a senhora Raquin, é obrigada a compartilhar com Camille, mesmo sendo perfeitamente saudável, o claustro do enfermo, uma vez que o garoto não podia se dar ao luxo, devido ao cuidado excessivo da mãe, de ter uma infância fora dos domínios da residência.
Mesmo depois de tornar-se adulto, o jovem que ainda carrega no corpo uma saúde fraca, devido à intervenção da mãe, casa-se com Thérèse, para o desgosto da jovem. A família conhece o ex-delegado de polícia Michaud e sua esposa, Grivet, Laurent — ambos trabalham na ferrovia também —, que se juntam aos Raquin todas as quintas-feiras para jogar dominó.
É nesse cenário que uma paixão avassaladora invade o sangue e a carne de Laurent e Thérèse. Os dois iniciam um caso. Tomados pela paixão decidem dar cabo em Camille, e assim o fazem. Numa noite durante um passeio de barco pelo Sena, Laurent joga Camille no rio, o rapaz que não sabia nadar se afoga. É a partir disso, que os melhores acontecimentos, bem como a psicologia das personagens são melhores desenvolvidas.

No Brasil, o Realismo e o Naturalismo desenvolveram-se simultaneamente: 1881, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, no Realismo e, O mulato, de Aluísio de Azevedo, no Naturalismo.
2 - CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL:


A segunda fase da Revolução Industrial iniciou-se em 1850. Foi quando o processo de industrialização entrou num ritmo acelerado, envolvendo os mais diversos setores da economia, com a difusão do uso do aço, a descoberta de novas fontes energéticas, como a eletricidade e o petróleo, e a modernização do sistema de comunicações.
No aspecto social, estabeleceu-se um distanciamento cada maior entre o operariado (ou proletariado), vivendo em condições de miséria, e os capitalistas.
O mercado de trabalho, a princípio, absorvia todos os braços disponíveis. As mulheres e as crianças também eram atraídas, ampliando a oferta de mão-de-obra e as jornadas de trabalho oscilavam entre 14 e 18 horas diárias. Os salários, já insuficientes, tendiam a diminuir diante do grande número de pessoas em busca de emprego e da redução dos preços de venda dos produtos provocada pela necessidade de competição. Isso sem contar que as inovações tecnológicas, muitas vezes, substituíam inúmeros trabalhadores antes necessários à produção. Aumento das horas de trabalho, baixos salários e desemprego desembocavam freqüentemente em greves e revoltas. Os trabalhadores organizaram-se, então, em sindicatos para melhor defenderem os seus interesses. Diante desse quadro, surgiram novas doutrinas sociais, pregando a criação de uma nova sociedade, livre da miséria e da exploração reinante.
O avanço do capitalismo em meio à exploração e à miséria fermentou o ativismo trabalhista do século XIX, cujo objetivo era destruir as condições subumanas estabelecidas pela industrialização. Em meio a esta efervescência surgiram teóricos que se debruçaram sobre a questão social defendendo a criação de uma sociedade mais justa, sem as desigualdades e a miséria reinantes. Assim apareceram as principais quatro grandes correntes de pensamento: o socialismo utópico, o socialismo científico, o anarquismo e o socialismo cristão. As transformações sociais, políticas, econômicas, científicas, ideológicas e tecnológicas vividas pela sociedade na segunda metade do século XIX, não deixaram espaços para as idealizações românticas.

As novidades da Revolução Industrial trouxeram muitas dúvidas. O pensador escocês Adam Smith procurou responder racionalmente às perguntas da época. Seu livro A Riqueza das Nações (1776) é considerado uma das obras fundadoras da ciência econômica. Para o autor escocês, "o Estado deveria intervir o mínimo possível sobre a economia". Se as forças do mercado agissem livremente, a economia poderia crescer com vigor. Desse modo, cada empresário faria o que bem entendesse com seu capital, sem ter de obedecer a nenhum regulamento criado pelo governo. Os investimentos e o comércio seriam totalmente liberados. Sem a intervenção do Estado, o mercado funcionaria automaticamente, como se houvesse uma "mão invisível" ajeitando tudo. Ou seja, o capitalismo e a liberdade individual promoveria o progresso de forma harmoniosa.

O cientificismo biológico, físico, químico, substitui as emoções e surge uma nova realidade: a Segunda Revolução Industrial.
Atraídos pelo desenvolvimento acelerado e pela ilusão de enriquecimento fácil, multidões abandonam o campo rumo aos grandes centros urbanos.
...E criam novas máquinas; eficientes que substituem a mão-de-obra do operariado.
Desemprego, miséria, mendicância, doença, prostituição: eis o painel do mundo ocidental da segunda metade do século XIX.
No campo das idéias surgem várias correntes de pensamento, buscando a compreensão objetiva do homem e a sociedade: o racionalismo positivista de Augusto Comte; o determinismo de Taine; a psicanálise de Freud; o evolucionismo de Darwin e o socialismo de Marx.

“Para aqueles que entendem a filosofia como um documento de sua época, o positivismo de Auguste Comte representa um caso exemplar. Movido pelo otimismo que decorre da crença no progresso tecnológico, o positivismo desenvolveu um gigantesco esforço para tornar o homem consciente de seu destino histórico, profundamente comprometido com a vocação tecnocientífica do mundo moderno. Nesse sentido, Comte representa a sobrevivência e a afirmação do ideal iluminista adaptado à era industrial. (...) Para Comte, a filosofia não deve ser uma doutrina no sentido tradicional, isto é, não deve apresentar um corpo próprio de saber. Deve conter muito mais um sentido e uma orientação, e atuar como coordenadora do sistema geral de conhecimento. (...) A filosofia, portanto, não tem de se ocupar da reinvenção do saber, mas sim de sua classificação e ordenação.” (Abrão, Bernadette Siqueira. História da Filosofia)
Em outras palavras, os positivistas abandonaram a busca pela explicação de fenômenos externos, como a criação do homem, por exemplo, para buscar explicar coisas mais práticas e presentes na vida do homem, como no caso das leis, das relações sociais e da ética.
O positivismo teve fortes influências no Brasil, tendo como sua representação máxima, o emprego da frase positivista “Ordem e Progresso”, extraída da fórmula máxima do Positivismo: "O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim", em plena bandeira brasileira. A frase tenta passar a imagem de que cada coisa em seu devido lugar conduziria para a perfeita orientação ética da vida social.

Hypolyte Taine (1828-1893) um dos discípulos de Comte tornou-se conhecido pelo pensamento determinista, segundo que, tudo que existe tem uma causa e toda vida humana social se explicaria por três fatores: a raça; que é a grande força biológica dos caracteres hereditários determinantes do comportamento do indivíduo; o meio, pelo qual o indivíduo se acha submetido aos fatores geográficos e, o momento, pelo qual o indivíduo é fruto da época em que vive.
Émile Zola afirmou: “o romance experimental é uma conseqüência da evolução científica do século; cabe-lhe continuar e completar a fisiologia...; ele substitui o estudo do homem abstrato, do homem metafísico, pelo estudo do homem natural, submetido às leis físico-químicas e determinado pelas influências do meio”.

A psicanálise surgiu com Sigmund Freud (1856-1939) e sua principal novidade encontra-se na hipótese do inconsciente e na compreensão da natureza sexual da conduta.
O termo psicanálise possui três sentidos: é um método interpretativo (hermenêutica), uma forma de tratamento psicológico (psicoterapia) e uma teoria, ou seja, um conhecimento que o método produz.
Para a psicanálise, todos os nossos atos têm uma realidade exterior, representada na nossa conduta e, significados ocultos que podem ser interpretados “A energia que preside os atos humanos é de natureza pulsional, e Freud põe em relevo a energia sexual chamada libido. (...) O reservatório das forças pulsionais chama-se id. No entanto, para viver em comunidade, o homem precisa controlar e regular os desejos, adiando a satisfação de alguns e excluindo definitivamente outros. Com isso se forma a consciência moral ou superego. Cabe ao ego maduro estabelecer o equilíbrio entre as forças antagônicas, a saber, o id, regido pelo “princípio do prazer”, e o superego, adequando-se ao “princípio da realidade”.


Charles Darwin (1809-1882) publicou em 1859, “Origem das Espécies”, causando uma grande polêmica na época. A teoria de que o homem é o produto da evolução natural da espécie e demonstrando cientificamente que os seres humanos e os macacos têm um histórico em comum, põe em cheque a existência de Deus. O evolucionismo através das palavras de Darwin prega que: “Ora, enquanto o nosso planeta, obedecendo à lei fixa da gravitação, continua a girar na sua órbita, uma quantidade infinita de belas e admiráveis formas, originadas de um começo tão simples, não cessou de se desenvolver e desenvolve-se ainda!” Darwinismo social é a tentativa de se aplicar o darwinismo nas sociedades humanas. A teoria da seleção natural de Charles Darwin foi uma tentativa de explicar a diversidade de espécies de seres vivos através da evolução. Com a teoria da evolução em mente, diversos cientistas criaram correntes na ciência que defendiam a tese das diferenças raciais entre os seres humanos, da importância de um controle sobre a demografia humana, da possível inferioridade dos povos negros, principalmente no que se refere à inteligência, a alta taxa de criminalidade e o combate contra a miscigenação. De acordo com esse pensamento, existiriam características biológicas e sociais que determinariam que uma pessoa é superior à outra e que as pessoas que se enquadrassem nesses critérios seriam as mais aptas. Geralmente, alguns padrões determinados como indícios de superioridade em um ser humano seriam o maior poder aquisitivo e a habilidade nas ciências humanas e exatas em detrimento das outras ciências, como a arte, por exemplo, e a raça da qual ela faz parte.

Karl Heinrich Marx inverte o processo do senso comum que pretende explicar a história pela ação dos “grandes homens”, ou, às vezes, até pela intervenção divina. Para o marxismo, no lugar das idéias, estão os fatos materiais; no lugar dos heróis, a luta de classes. Sem a inspiração nestas três correntes, admite o próprio Marx, a elaboração de suas idéias teria sido impossível. São elas: a dialética, a economia política inglesa e o socialismo. A ele importava saber: quem produzia, como produzia, com que produzia, para quem produzia e assim por diante. Em segundo lugar uma vez que a base filosófica de todo o pensamento marxista (e, portanto, também de sua visão de história) era o materialismo dialético, Marx queria mostrar o movimento da história das civilizações enquanto movimento dialético. Examinando o desenvolvimento histórico da Humanidade, pode-se facilmente notar que a filosofia, a religião, a moral, o direito, a indústria, o comércio etc., bem como as instituições onde estes valores são representados, não são sempre entendidos pelos homens da mesma maneira.
“Em outras palavras, o que Marx explicitou foi que, embora possamos tentar compreender e definir o homem pela consciência, pela linguagem, pela religião, o que fundamentalmente o caracteriza é a forma pela qual reproduz suas condições de existência. (...) Portanto, para estudar a sociedade não se deve, segundo Marx, partir do que os homens dizem, imaginam ou pensam, e sim da forma como produzem os bens materiais necessários à sua vida. Analisando o contrato que os homens estabelecem com a natureza para transformá-la por meio do trabalho e as relações entre si é que se descobre como eles produzem sua vida e suas idéias”.(Aranha, Maria Lúcia de Arruda, Martins, Maria helena Pires, Filosofando-Introdução à Filosofia)
3 - CARACTERÍSTICAS:

A corrente Realista-Naturalista está voltada para a arte engajada, para o tempo presente, temas atuais e a descrição objetiva do mundo.
Jovens intelectuais aderiram ao materialismo e ao cientificismo, opondo-se à religiosidade, ao subjetivismo e à idealização. Personagens esféricas, reais, próximas do cotidiano comum, são apresentadas através de uma análise psicológica, que o autor de maneira impassível, relata e justifica seus comportamentos através de uma explicação lógica e científica.
Uma narrativa lenta, de correção gramatical, predominando a denotação, o narrador ausenta-se do destino das personagens.




Realismo:
Veracidade: Despreza a imaginação romântica
Contemporaneidade: descreve a realidade
Retrato fiel das personagens: caráter, aspectos negativos da natureza humana
Gosto pelos detalhes: Lentidão na narrativa
Materialismo do amor: Mulher objeto de prazer/adultério
Denúncia das injustiças sociais
Determinismo e relação entre causa e efeito
Linguagem próxima a realidade: simples, natural, clara e equilibrada

REALISMO NATURALISMO
Romance documental Romance experimental
Voltado para o indivíduo Voltado para o coletivo
Análise psicológica Análise científica
Classe média Classe inferior
Arte desinteressada Arte engajada
Seleciona os temas Anomalias e os desequilíbrios/ Determinismo e Zoomorfismo

4 - REALISMO NO BRASIL:


“Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde, mas falto eu mesmo e esta lacuna é tudo.”

Machado de Assis

4.1 – AUTOR:




JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS ((RJ. 1839 – RJ. 1908)




“O moleque do morro do Livramento à Academia...”


Filho de um brasileiro, pintor de paredes com uma portuguesa, lavadeira; nasceu no Morro do Livramento, RJ.
Machado de Assis pouco frequentou a escola, era autodidata.
Aos 16 anos, na revista “Marmota Fluminense”, publica o seu primeiro poema: Ela. Foi aprendiz de tipógrafo, revisor, colaborador com artigos em vários jornais, servidor público, Diretor-Geral do Ministério da Viação e presidente da Academia Brasileira de Letras ou a “Casa de Machado de Assis”. O que se depreende dos dados biográficos de Machado é que ele foi galgando degrau por degrau, começando pelo posto de auxiliar de tipografia, ainda adolescente. Fala-se na habilidade diplomática do escritor. Seria também um reflexo do "homem cordial" que nos moldou? Aqui é preciso abrir um parêntese para esclarecer o conceito de cordialidade difundido por Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil. Trata-se não apenas da afabilidade que tudo acomoda, como se convencionou dizer erroneamente desde os anos 30. Esse "cordial" diz respeito à vontade do coração (no latim medieval, cordiális, relativo ao coração). É o interesse pessoal e da amizade sobrepondo-se a um acordo racional, social e politicamente elaborado para servir de norma válida para todos. Embora o próprio Sérgio Buarque tenha tentado reparar esse equívoco em seu livro, a confusão continua atrapalhando o debate nacional sobre o assunto.
O autor era um homem humilde: não quis sair de sua terra natal, não possuía escolaridade, mas conhecia teorias da História, da Filosofia, Teologia; poliglota, dominava o inglês, o latim, o francês, o alemão e o grego.
Muito apegado à sua esposa, Carolina Augusta Xavier de Novais, após a morte desta, uma grande tristeza invadiu sua vida.
Epiléptico, gago, com problemas nervosos, Machado de Assis, faleceu em 29 de setembro de 1908, em sua bela casa do Cosme Velho.



4.2 - CARACTERÍSTICAS MACHADIANA:

Em sua fase inicial encontramos romances de costumes. As personagens não são lineares e já trazem traços de aprofundamento psicológico: são interesseiras, ambiciosas e manipuladoras; porém, o amor às vencem.
Fazem parte desta fase: Ressurreição, A mão e a luva, Helena, Iaiá Garcia, Histórias da meia-noite e Contos fluminenses.
A sua fase de maturidade e de consagração tem como marco a obra Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881.
Explorando a ironia, a metalinguagem, a intertextualidade, o pessimismo, a ruptura com a narrativa linear, o universalismo, os grandes arquétipos, o psicologismo, o estilo enxuto: o autor apresenta uma nova idéia de mundo: o mundo sem idealizações românticas.
Estão presentes também nesta fase: Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires.

5 – “DOM CASMURRO”

5.1 - ORGANIZAÇÃO / ESTRUTURA :
O romance se compõe de 148 capítulos curtos, com títulos bem precisos, que refletem o seu conteúdo. A narrativa vai lenta até o capítulo XCVII, a partir do qual se acelera como declara o próprio narrador, ao dar-se conta da sua lentidão: "Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outras valerão por anos, e assim chegares ao final" (Cap. XCVII). Assim, pois, até o capítulo XCVII, quando o narrador sai do seminário, "com pouco mais de dezessete anos", focaliza-se, em câmera lenta, a infância e a adolescência, dada necessidade do narrador traçar o perfil dos protagonistas da estória (Bentinho e Capitu), revelando, desde as entranhas, o caráter e as tendências de cada um: afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da infância, como insinua Dom Casmurro, no final da narrativa, ao referir-se a Capitu: "Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca" (Cap. CXLVIII).
5.2 – ESPAÇO:
Trata-se do Rio de Janeiro da época do Império (período em que governa D. Pedro II). Há inúmeras referências a lugares, ruas, bairros, praças, teatros, salões de baile que evocam essa cidade imperial. Mas, no romance, há multiplicidades ou pluralidades geográficas, ligando-se os acontecimentos do drama central em determinado contexto social, em dado momento histórico. Desta forma, são mencionados ainda: o Seminário de São José, a Escola de Medicina, a casa de repouso na Suíça e a cidade de Jerusalém.
O romance surgiu identificado com a burguesia, por isso as cenas mencionadas são sempre urbanas. A rigor, a problemática do romance é o convívio dentro da cidade e o relacionamento social.
5.3 – TEMPO:
O romance é construído a partir de um flash-back. Debruçado sobre a reconstrução da longínqua inicia de outrora, o solitário e magoado Dom Casmurro vai reconstituindo o “tempo perdido” de sua existência, filtrando os fatos sob sua ótica de cinqüentão amargurado, revivendo a vida subjacente, que jaz nas suas entranhas, "à la recherche de temps perdu" ("à procura do tempo perdido"), o qual procura "atar as duas pontas da vida" ( infância e velhice). Perpassa, pois, o romance uma atmosfera memorialista, dando a impressão de autobiografia, a qual, com o se sabe, não tem nada a ver com Machado de Assis.
O que domina no livro não é esse tempo cronológico; é o psicológico, que se passa dentro das personagens, dentro da própria vida. Entretanto, não há uma preocupação excessiva em contar a estória, preocupação maior é com a análise, uma análise dissecante e profunda, em que o escritor procura desnudar a personagem e revelar as suas entranhas. Sem dúvida por isso, Machado de Assis retroage à infância (ab ovo), tentando buscar a origem do problema focalizado. Os fatos e as ações não seguem um fio lógico ou cronológico; obedecem a um ordenamento interior, são relatados à medida que afloram à consciência ou à memória do narrador, num processo que se aproxima do impressionismo associativo.
5.4 – FOCO NARRATIVO:
Dom Casmurro é narrado em primeira pessoa pelo protagonista masculino que dá nome ao romance, já velho e solitário, desiludido e amargurado pela casmurrice, conforme lhe está no apelido. A visão, pois, que temos dos fatos é exclusivamente sob sua ótica subjetiva e unilateral: tudo que sabemos do seu passado, de seus amores, de Capitu, só o conhecemos através o seu ângulo.
Assim, toda a obra tem uma atmosfera memorialista. Por isso, a visão que se tem dos fatos é perpassada pela ótica desiludida unilateral. Tudo que se sabe do seu passado, de seu relacionamento amoroso com Capitu; só os conhecemos pelo seu ângulo, por sua perspectiva. Os acontecimentos exteriores são considerados somente na medida em que revelam o interior, os motivos profundos da ação, que Machado devassa e apresenta detalhadamente. Daí a narrativa lenta, pois o menor detalhe, os menores gestos são significativos na composição do quadro psicológico; nada é desprovido de interesse. Essa fixação pelo pormenor é o que se denomina microrrealismo.
5.5 – ESTILO DO AUTOR:
Não se pode enquadrar Machado de Assis nos estreitos limites da prosa realista e naturalista de seu tempo. Machado extrapola qualquer tentativa de enquadramento rígido dentro de qualquer modelo convencional. Há na sua obra elementos clássicos (equilíbrio, concisão, contenção lírica e expressional); resíduos românticos (algumas narrativas convencionais quanto ao enredo); aproximações realistas (atitude crítica, objetividade, temas contemporâneos); procedimentos impressionistas (a técnica impressionista, a recriação do passado através da memória, das “manchas” de recordação) e antecipações modernas (a estrutura fragmentária não-linear, o gosto pelo elíptico e alusivo, a postura metalinguística de quem escreve e se vê escrevendo, as “obras abertas”, sem conclusão necessária, permitindo várias leituras ou interpretações). Machado de Assis cultivou livremente o elíptico, o incompleto, o fragmentário, intervindo na narrativa para conversar diretamente com o leitor, para comentar o próprio romance, para filosofar, para bisbilhotar a vida das personagens, lembrando o leitor de que atrás dos narradores estava o artista Machado de Assis, mandando e desmandando no enredo e nas personagens, e ironizando o leitor. Machado de Assis focaliza os tormentos do homem e os absurdos do mundo com um tom não-enfático, neutro, sem retórica, imparcial, revestido de um humor reflexivo, algumas vezes amargo, outras apenas, divertido, como quem estivesse rindo do leitor. A sua técnica consiste essencialmente em sugerir as coisas mais tremendas da maneira mais cândida (como os ironistas do século XVIII, Voltaire, Sterne e Swift, que Machado muito estimava), ou em estabelecer um contraste entre a normalidade social dos fatos e a sua anormalidade essencial, ou em sugerir, sob a aparência do contrário, que o ato excepcional é normal, e que anormal seria o ato corriqueiro.
Buscou, na sociedade do seu tempo, o universal, a essência humana, os grandes temas filosóficos: a essência e a aparência, o caráter relativo da moral humana, as convenções sociais e os impulsos interiores, a normalidade e a loucura, o acaso, o ciúme, a irracionalidade, a usura, a crueldade.
A pobreza de descrições, a quase ausência da paisagem, é ainda desdobramento dessa concentração na análise psicológica e na reflexão filosófica. As tramas dos romances machadianos poderiam, sem grandes prejuízos à narrativa, ser transplantadas para qualquer época e qualquer cidade.


5.6 – LINGUAGEM:

A linguagem de Machado de Assis é marcadamente acadêmica: clássica, bem cuidada, regida pelas normas de correção gramatical. Entretanto, em alguns pontos, tal como ocorre no Modernismo, ele registra aspectos típicos da língua da personagem.
Outra marca do estilo machadiano é a tendência para a frase sentenciosa e proverbial, como aquela em que compara a vida com uma ópera, atribuída ao tenor Marcolini: “A vida é uma ópera”.
Outro aspecto interessante é o uso frequente de alusões, referências e citações que vão como que confirmando as suas idéias e pensamentos, o que, por outro lado, revela bem a espantosa cultura e erudição de Machado de Assis, adquiridas de forma autodidata como vimos.
Apresentando, via de regi-a, uma visão amarga, pessimista e niilista da vida humana, Machado de Assis sempre se revela sarcástico e irônico na sua obra: desmascara o ser humano na sua hipocrisia e torpezas, desnudando-o nas suas entranhas; desmistifica crenças e instituições sacralizadas pelos tempos; questiona o sentido da vida. Tudo se desfaz e se desmorona ante o seu olhar aquilino e arrasa- dor: até mesmo uni casamento que parecia sólido e embasado no pilar do amor.

5.7 – PERSONAGENS:
A ação e o enredo perdem a importância para a caracterização das personagens. Outra coisa que chama a atenção são as suas personagens, quase sempre bem situadas na vida, sem necessidade de trabalhar; aliás, o único trabalho que fazem é serem personagens de Machado de Assis, como observou alguém. Por outro lado, movem-se lenta e pausadamente, sendo quase sempre objeto de observação e análise do autor: são pessoas muito mais de reflexão do que de ação.
Uma das linhas mestras da ficção machadiana parte do aproveitamento dos arquétipos, que remontam à tradição clássica e aos textos bíblicos. (Arquétipo = modelo de seres criados; padrão exemplar; imagens psíquicas do inconsciente coletivo e que são o patrimônio coletivo de toda a humanidade.) Assim, o conflito dos irmãos Pedro e Paulo, em Esaú e Jacó, remonta ao arquétipo bíblico da rivalidade entre Caim e Abel; a psicose do ciúme de Bentinho, em Dom Casmurro, aproxima-se do drama de Otelo e Desdêmona, de Shakespeare.
Bento Santiago: Quando jovem era um pouco mais baixo que Capitu. Não apresentava traços físicos definidos e revela-se como um moço rico, mimado pela mãe e, talvez por isso, não apresentasse o mesmo espírito vivaz e a iniciativa de Capitu. Comenta-se que, aproximadamente aos vinte e dois anos de idade, Bentinho se parecia muito com o pai:
No passado dividia-se entre a mãe e a vizinha. Conforme escreve, o livro divide-se entre o passado e o presente. Tanto acusa quanto louva a falecida esposa.
Os nomes e apelidos das personagens oferecem várias sugestões e são extremamente significativos. Além do Dom Casmurro, que o próprio narrador explica, lembramos: BENTO SANTIAGO - Bento (=santo), Bentinho (=santinho), Santo + Iago (=fusão entre o bem e o mal, de santo com Iago, personagem de Otelo, de Shakespeare que, como um diabo, um demônio ardiloso, instila o mal, o ciúme e a vingança no coração do príncipe mouro; Iago é o responsável direto pelo assassinato de Desdêmona).
Capitolina/Capitu: no inicio na narrativa, está com 14 anos e é um pouquinho mais alta do que Bentinho. Tem os cabelos grossos negros e compridos até a cintura. Seus olhos são negros e misteriosos a ponto de despertar no narrador a comparação com a ressaca do mar, é esperta, inteligente, extrovertida, criativa e previdente.
É ela que pensa primeiro num plano para livrar Bentinho do seminário e que desperta nele o impulso do primeiro beijo e que, após sua entrada no seminário, fica o maior tempo possível ao lado de D. Glória. Torna-se querida de tal forma, que, quando José Dias usa a palavra nora, D. Glória sorri como quem aceita.
O narrador mostra, nas entrelinhas, a parca condição financeira da jovem Capitu.
CAPITU sugere inúmeras derivações: de caput, capitis que, em latim, significa cabeça, numa alusão à inteligência ou à esperteza (Foneticamente aproxima-se de capeta, imagem da vivacidade, ou da maldade e traição com que a impregna o narrador enciumado.); CAPITOLINA lembra ainda o verbo capitular (= renunciar), a atitude conformada da esposa injuriada pelo marido, e que capitula e renuncia a qualquer reação. (O epíteto que lhe coloca José Dias - “cigana oblíqua e dissimulada” - remete-nos à imagem habitual da cigana; sensual, esperta, Mas basta pensar na imagem recorrente dos “olhos de ressaca”, na vinculação simbólica entre Capitu (entre a mulher) e o mar, para convencer-se de que o recurso ao tropo (como, aliás, ao ornato retórico em geral) é inerente à poética machadiana.
Capitu na lenda dos santos cristãos, a capadócia Capitolina foi acompanhada em seu martírio por sua criada Erotheis (também escrito Erotis ou Erotes). Erotheis está aparentemente relacionado com a raiz grega “erot”, que significa “amor” (Eros). Machado de Assis estudou grego antigo. Santa Capitolina e sua criada, santo “Amor”, sofreram seu martírio em 304 d.C.
Escobar: Conhece Bento no seminário e logo se tornam amigos inseparáveis. Tem grande facilidade com números, por isso, sonha em ser comerciante e, assim que abandona o seminário, dedica-se ao negócio de café. É o grande desencadeador da trama, pois Bento acredita que ele tornou-se amante de sua esposa, Capitu.
José Dias definiu Escobar como um rapaz polido de olhos claros e dulcíssimos. O narrador o descreve da seguinte forma:
“A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouso baixa, vindo à risca do cabelo quase em cima da sobrancelha esquerda — mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas. Realmente, era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz curvo e delgado. Tinha o sestro de sacudir o ombro direito, de quando em quando e veio a perdê-lo, desde que um de nós lhe notou um dia no seminário; primeiro exemplo que vi de que um homem pode corrigir-se muito bem dos defeitos miúdos”.
José Dias: Era magro chupado, com um principio de calvice e dedicado a família de Bentinho até a morte. Era agregado em casa de D. Gloria "apresenta-se como medico sem o ser.”
“[...] amava os superlativos. Era um modo de dar feição monumental às idéias; não as havendo, servia a prolongar as frases. [...] vi-o passar com as suas calças brancas engomadas, presilhas, rodaque e gravata de mola. Foi dos últimos que usaram presilhas no Rio de Janeiro, e talvez neste mundo. Trazia as calças curtas para que lhe ficassem bem esticadas. A gravata de cetim preto, com um arco de aço por dentro, imobilizava-lhe o pescoço; era então moda. O rodaque de chita, veste caseira e leve, parecia nele uma casaca de cerimônia. Era magro, chupado, com um princípio de calva; teria os seus cinqüenta e cinco anos. Levantou-se com o passo vagaroso do costume, não aquele vagar arrastado se era dos preguiçosos, mas um vagar calculado e deduzido, um silogismo completo, a premissa antes da conseqüência, a conseqüência antes da conclusão. Um dever amaríssimo!"
Dona Glória: Mãe de Bentinho, senhora religiosa e viúva que, em razão de uma antiga promessa, desejava fazer do filho um padre.
“D. Maria da Glória Fernandes Santiago contava quarenta e dous anos de idade. Era ainda bonita e moça, mas teimava em esconder os saldos da juventude, por mais que a natureza quisesse preservá-la da ação do tempo. Vivia metida em um eterno vestido escuro, sem adornos, com um xale preto, dobrado em triângulo e abrochado ao peito por um camafeu. Os cabelos, em bandós, eram apanhados sobre a nuca por um velho pente de tartaruga; alguma vez trazia a touca branca de folhas. Lidava assim, com os seus sapatos de cordovão rasos e surdos, a um lado e outro, vendo e guiando os serviços todos da casa inteira, desde manhã até a noite.”
Tio Cosme: Irmão de D. Glória, advogado e viúvo era modesto, gordo, olhos dorminhocos e respiração curta. Ocupa posição neutra: não se opunha aos planos de Bentinho, mas também não interrompia.
"Era gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. Uma das minhas recordações mais antigas era vê-lo montar todas as manhãs a besta que minha mãe lhe deu e que o levava ao escritório. O preto que a tinha ido buscar à cocheira segurava o freio, enquanto ele erguia o pé e pousava no estribo - a isto seguia-se um minuto de descanso ou reflexão. Depois, dava um impulso, o primeiro, o corpo ameaçava subir, mas não subia; segundo impulso, igual efeito. Enfim, após alguns instantes largos, tio Cosme enfeixava todas as forças físicas e morais, dava o último surto da terra, e desta vez caía em cima do selim. Raramente a besta deixava de mostrar por um gesto que acabava de receber o mundo. Tio Cosme acomodava as carnes, e a besta partia a trote."
Prima Justina: Viúva prima de D. Glória. Parece ser egoísta, ciumenta e intrigante. Era a secarrona malévola sem ser maléfica, é uma esplêndida gravura.
“Era quadragenária, magra e pálida, boca fina e olhos curiosos. Vivia conosco por favor de minha mãe, e também por interesse; minha mãe queria ter uma senhora íntima ao pé de si, e antes parenta que estranha.”
Pedro de Albuquerque Santiago: Pai falecido de Bentinho.
“Não me lembra nada dele, a não ser vagamente que era alto e usava cabeleira grande; o retrato mostra uns olhos redondos, que me acompanham para todos os lados, efeito da pintura que me assombrava em pequeno. O pescoço sai de uma gravata preta de muitas voltas, a cara é toda rapada, salvo um trechozinho pegado às orelhas. [...] O que se lê na cara de ambos [os pais de Bentinho] é que, se a felicidade conjugal pode ser comparada à sorte grande, eles a tiraram no bilhete comprado de sociedade.”
Padre Cabral: Velho amigo do tio Cosme com quem costumava jogar durante as noites, na casa de D. Glória, e quem ensinou a Bentinho as primeiras letras, latim e doutrina. O padre ajuda Bentinho no caso do seminário, explicando para a família pode-se ter a vocação religiosa manifesta de outra forma que não a de se tornar padre. Bom latinista.
Sancha: Companheira de colégio de Capitu, filha de Gurgel, comerciante de objetos americanos que “era viúvo e morria pela filha”. Sancha casa-se com Escobar.
“Escobar e a mulher viviam felizes, tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo. Sancha era modesta, o marido trabalhador.”
O casal estreita amizade com Bentinho e Capitu:
“Demais, as nossas relações de família estavam previamente feitas; Sancha e Capitu continuavam depois de casadas a amizade da escola, Escobar e eu a do seminário. Eles moravam em Andaraí, aonde que riam que fôssemos muitas vezes, e, não podendo ser tantas como desejávamos, íamos lá jantar alguns domingos, ou eles vinham fazê-lo conosco. Jantar é pouco, íamos sempre muito cedo, logo depois do almoço, para gozarmos o dia compridamente, e só nos separávamos as nove, dez e onze horas, quando não podia ser mais.”
Sancha foi uma princesa portuguesa santificada. Possuía natureza gentil, submissa e buscava o isolamento precoce. “Sancha tem três desejos, mas não os meios de os satisfazer”. (Trova portuguesa)
Gurgel: vem de Gorgel/gorja/gorjeador – tagarela. É ele que aponta a semelhança entre Capitu e o retrato da mãe de Sancha: “Na vida há dessas semelhanças assim esquisitas.”
Ezequiel: Filho de Capitu e Bentinho, cujas feições e trejeitos semelhantes aos de Escobar levam o narrador a desconfiar de que sua esposa o traíra, e a crer que não é seu filho, mas sim, de seu melhor amigo. Nome bíblico: “Sois perfeito desde o dia em que fostes criado”/”Ezequiel, filho do homem”.
“Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos, e a figura entra a ver, sorrir, palpitar, falar quase, até que a família pêndula o quadro na parede, em memória do que foi e já não pode ser. Aqui podia ser e era.”
Manduca: O jovem leproso de Matacavalos, ao polemizar com Bentinho sobre a Guerra da Criméia, espiritualiza a sua putrefação física na flama intelectual. Possui apenas um nome, como um rei ou um Deus. Seu nome conota Emmanuel – uma palavra hebraica da Bíblia que significa “Deus está conosco” ou “Deus está entre nós”. É o termo usado por Isaías referindo-se ao profeta Messias: “ – Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de Emmanuel.” Manduca é também o nome carinhoso dados aos de Manoel, nos países católicos. Pode conotar sua enfermidade ao verbo “manducar”, termo vulgar para o verbo comer, e é dito que “a doença ia-lhe comendo parte das carnes”. Ele não recebeu nenhuma das bênçãos da vida que Bentinho leva (saúde, riqueza, posição social e amigos). Mas, ele possuía a coisa fundamental que falta a Bentinho: uma enorme capacidade de amar, amar e ter fé em um homem, um povo, uma causa, uma vida...De seu quarto fétido e escuro de doente, ele escreve a Bento sua argumentação apaixonada a favor da Turquia, seu amor e paixão pela vida: “ – Os russos não hão de entrar em Constantinopla”.
Bento acena a Manduca com uma flor, e talvez saia assim à flor mais bela (“Ó flor do céu/Ó flor cândida e pura!), por fim, o botão murcha, deixando apenas um ligeiro odor de amor próprio: ele possui a consolação de ter dado “dois ou três meses de felicidade a um pobre diabo.” No entanto, Bento que é um pobre diabo: seu coração é um barquinho frágil que se desvia de seu curso com a menor lufada de vento.

Marcolini: cantor de ópera (nome originado de uma famosa cantora, Marietta Marcolini, de uma geração ante de Machado de Assis.
Marcolini origina do verbo “marcar” um itinerário, um destino. Bento chama de digressão os capítulos sobre Marcolini e sua extensa comparação da vida a uma ópera. Ele explica sua teoria acerca da vida, e “marca” de forma simbólica, a estória que virá: a luta dentro de Bento entre o Bem e o Mal, espiritualidade e sensualidade, amor e amor próprio.

6 - ENREDO:




“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim. (...)”

Logo no inicio, o narrador Bento Santiago explica o motivo pelo qual chamou “Dom Casmurro” ao seu livro. Daí o capítulo denominar-se “Do título”, que quer dizer “sobre o título”. O nome do livro e todo o capítulo indicam tratar-se de um romance de personagem, isto é, um romance cujo principal interesse é analisar o caráter da personagem que dá título ao livro, o protagonista, que, no caso, é também o narrador.
Bento, nesse primeiro capítulo, procura transparecer uma postura de cidadão íntegro, sociável e civilizado de si próprio; aliás, esforça-se para demonstrar uma imagem confiável e em perfeito equilíbrio, ao mesmo tempo em que se apresenta meio arrogante e egocêntrico, centralizando a atenção para si.
Enquanto que, analisando a obra inteira, perceberemos que Bento é inseguro e problemático e apresenta dificuldades de convivência com as pessoas e consigo mesmo.
Podemos notar que no capítulo citado instaura um processo narrativo dialógico que persistirá até o fim da obra. A narrativa é apresentada sob a forma de um diálogo simulado com um suposto leitor ou um destinatário, que em muitas vezes se transformará em leitor incluso.
A função metalinguística está presente nesse capítulo, onde o assunto do capítulo é o próprio livro.

“Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro. Antes disso, porém, digamos os motivos que me põem a pena na mão.
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia, há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Matacavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e economia daquela outra, que desapareceu [...] Uso louça velha e mobília velha. Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
(...) O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa.”

Nesse capítulo, ficamos sabendo os motivos pelos quais o Dr. Bento de Albuquerque Santiago decidiu escrever suas memórias ou sua autobiografia. Embora, o narrador afirma que foi por lazer, podemos notar que foi para se conhecer.
Bento é um misantropo, cuja solidão ele nos apresenta como normal, mas que pode decorrer de uma aversão doentia ao convívio social. O seu discurso procura seduzir o leitor pela exibição de um falso equilíbrio psicológico.
“Restaurar na velhice a adolescência” com a reconstrução da casa de Matacavalos, Bento alega como motivo de sua autobiografia a superficial quebra da monotonia. Mas, a ideia de escrever para espairecer é um índice do interesse do narrador em parecer normal e seduzir o leitor para que acredite no que vai ser narrado ao longo do livro.
Em, “Agora que expliquei o título, passo a escrever o livro” temos a recuperação da função metalinguística do capítulo anterior, “Do livro” que quer dizer “Sobre o livro”.
Ao afirmar, “Reproduzir [...] a casa em que me criei”, traduz uma metáfora ou alegoria da restauração da sua origem, da sua família, além do nível sócio econômico do narrador.
A natureza conservadora do Dr. Bento de Albuquerque Santiago, o seu apego às raízes familiares patriarcais, fica evidente na reconstrução, no Engenho Novo, da casa da infância em Matacavalos. Sua índole sistemática, caprichosa, meticulosa, apegada a pormenores aparentemente insignificantes, revela-se na pintura do teto.
Na íntegra do capítulo temos a descrição dos quadros que compõem a ornamentação da casa: de um lado, reproduz as quatro estações, que marcam a passagem e a mudança do tempo; de outro, quatro personagens da história romana, nas quais o tempo provocou mudanças, fazendo-as traídas ou traidoras que mudaram de posição. Esse processo entre diretamente na economia do romance, que pelo tema da traição, quer por fazer repensar figuras históricas sob outros ângulos, quer por abrir uma linha direta para a compreensão de suas personagens.
A organização expositiva da narrativa de Bento evidencia o caráter enganoso da sua escrita, revelando domínio na arte da disposição da matéria escrita, o que indica sua formação e prática de advogado; além, do caráter irônico de sentir algo e escreve outro.
Em: “Se só me faltassem os outros, vá; [...] e esta lacuna é tudo”, apresenta o entendimento do conflito de identidade de Bento. Consola-se da perda de toda a família e amigos, mas não se conforma com o desencontro consigo mesmo. Nas linhas seguintes ele prossegue dizendo que a aparência das pessoas pode ser alterada, mas nunca a essência.
Ao se referir “as autópsias”, refere-se auto-análise, que é a pista mais certa para se interpretar “Dom Casmurro”.
“Os amigos que [...] campos-santos”: trata-se de uma perífrase irônica e eufemística. Os amigos antigos morreram, estão nas covas (estudando geologia) dos cemitérios (campos santos).
O narrador afirma que:“ a língua que falam [...] e tal frequência é cansativa”, referindo-se que embora algumas amigas idosas enganem pelo disfarce da aparência jovem, suas palavras traem a idade, porque pela linguagem se revela a alma, a essência das pessoas. A idéia de “consultar os dicionários” é irônica. Pretende revelar que uma alma jovem não se comunica bem com outra idosa.


Certo dia, do mês de novembro de 1857, quando Bentinho estava com 15 anos e Capitu com 14 anos, surpreende José Dias questionando Dona Glória, se ela ainda manteria a promessa de colar seu filho no seminário, porque senão poderia uma grande dificuldade. José Dias acrescentava que Bentinho “anda metido nos cantos com a filha do Tartaruga” e se isso continuasse, ela teria dificuldades futuras.
Bentinho, escondido atrás da porta da sala em que se dava a conversa, ficou estarrecido ao ouvir a denúncia de José Dias. Dona Glória, percebendo a iminência da separação, pôs-se a chorar. Bentinho saiu dali absorto com a revelação. De fato, ele amava Capitu, mas ainda não se dera conta disso. Inebriado pelo conhecimento de seu novo estado, foi levado pelas pernas à casa da vizinha.

O termo “denúncia” do título desse capítulo possui duas direções: José Dias acusa a Dona Glória o namoro de Bentinho e Capitu e faz com que este tome consciência de seu amor pela vizinha.
A estrutura desse capítulo é basicamente dramática, isto é, aproxima-se muito do teatro. Os dois capítulos anteriores eram mais narrativos (sobretudo o primeiro) e mais dissertativos (sobretudo o segundo).
Esse capítulo é mais dinâmico e econômico que os anteriores. Nele temos a noção da psicologia de todas as personagens que participam do diálogo através de suas próprias falas e não através do narrador.
O narrador assume a posição de bisbilhoteiro que registra com alguma objetividade o que assiste de seu esconderijo.
Maria da Glória Fernandes Santiago enviuvou-se quando Bentinho tinha 4 anos. Manteve-se fiel à memória do marido, ocultando a beleza e a juventude até quando pode, com roupas austeras e muito trabalho caseiro.
Dedicou-se inteiramente à educação de Bentinho, mimando-o tanto quanto possível. Ela soube preservar a boa herança do marido, a qual foi, mais tarde, transferida ao filho. Bentinho considera-a uma “boa senhora”. Capitu, aos 14 anos, considerava-a “Beata!Carola!Papa missa!”
Vista de fora, é uma mulher egoísta, superprotetora, pois tenta tornar o filho como instrumento de seu extremado sentimentalismo religioso.
Trata-se de um fiel retrato da mulher oitocentista brasileira, com a particularidade de ser uma matriarca poderosa.
José Dias vivia como agregado em casa de Dona Glória desde os tempos em que ainda era vivo o deputado Pedro de Albuquerque Santiago, seu marido, quando chegou à fazenda de Itaguaí e curou um feitor e uma escrava. Na época da morte do pai de Bentinho, José Dias sofreu muito com a perda e decidiu partir. Dona Glória insistiu que ficasse e com o passar do tempo, adquiriu certa autoridade na família, “não abusava, e sabia opinar obedecendo.”
Era um charlatão arrependido (apresentara-se como médico homeopata sem o ser) e pode ser tomado como um dos grandes parasitas que frequentam abundantemente a obra machadiana.
Ele é o melhor e mais acabado exemplo de personagem típica em “Dom Casmurro”. Os tipos geralmente são personagens planas, mas José Dias apresenta uma ligeira curvatura rumo à esfericidade, pois possuía alguma sutileza de caráter: “E não lhe suponhas alma subalterna; as cortesias que fizesse vinham antes do cálculo que da índole.” Sendo um tipo, José Dias pode também ser considerada uma personagem de costumes. Os traços da personagem de costumes são fixados de fora, isto é, pelo aspecto físico, e tendem a caricatura.
Com freqüência são personagens pitorescas e engraçadas. Possuem sempre uma característica marcante pela qual são imediatamente identificadas.
O traço decisivo na caracterização de José Dias é o uso constante dos adjetivos no grau superlativo. Com isso, pretendia impressionar os ouvintes. Embora, muito disfarçadamente, José Dias expressa alguma convicção política. Tinha simpatia pelo liberalismo do regente Feijó (Diogo Antônio Feijó – 1784-1843. eclesiástico e político brasileiro, Ministro da Justiça em 1831, reprimiu severamente movimentos revoltosos desse período agitado do Império brasileiro (regência). Em 1835, foi eleito regente do Império. Combatido pelos conservadores, abdicou em 1837) e pelas inovações dos primeiros atos de Pio IX como papa (Mastai Ferretti foi papa de 1846 a 1878. Os seus primeiros atos como pontífice sustentavam um catolicismo liberal que ele não foi capaz de manter por muito tempo). Citava também Robespierre (1758-1794, um dos principais líderes da Revolução Francesa em seu período do terror. Cognominado o “incorruptível”, levou muita gente ao cadafalso, mas acabou ele próprio guilhotinado).
José Dias cita-o para demonstrar cultura geral e por ter uma inclinação reprimida pela idéia de renovação, razão pela qual era adepto da medicina homeopática.

Retornando àquela tarde de novembro, o narrador afirma que “a vida é uma ópera”, como dizia um tenor italiano, o velho Marcolini.
“ – A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muito bailados, e a orquestração é excelente. (...) Deus é o poeta. A música é de Satanás...”
O protagonista concorda com a teoria de Marcolini, pois em sua concepção: “cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor...”

A ideia central desse capítulo é de que a vida é perversa, e a perversão decorre das próprias forças criadoras do universo. Essa ideia prende-se à imagem segundo a qual “a vida é uma ópera”, cujos papéis o destino impõe arbitrariamente aos homens.
Marcolini, velho tenor (cantor de voz mais aguda numa ópera) desempregado e amigo de Bento, era quem costumava dizer isso: a sua versão da origem dos males humanos.
Deus deixou incompleta uma ópera colossal, tendo escrito apenas a letra. Deu-se a queda de Lúcifer, que roubou o libreto (letra o poema de uma ópera) divino, indo musicá-la no inferno. Após concluir o trabalho, Lúcifer apresentou-se a Deus e pediu licença para encenar a ópera. Insistiu tanto com o parceiro involuntário que o Senhor criou o planeta Terra para que servisse de palco ao espetáculo. Criou também todos os atores para a encenação, que são os habitantes deste planeta, cujos gestos e intenções, embora escritos por Deus, são regidos por Lúcifer, o maestro das trevas.
Ao aceitar a teoria de que a “vida é uma ópera”, o desencantado Bento Santiago acredita que sua vida é uma paródia ou imitação burlesca de uma encenação trágica. Ele traça constantes paralelos entre sua vida passada e o andamento do teatro clássico. Com efeito, a existência humana é perpassada de fases, o que evoca bem, com a vida de Dom Casmurro, os atos de uma ópera: há sempre fase de “solo”, marcado por hesitações e buscas, e uma fase em que se vive um “duo terníssimo”, em que o eu e o outro (Bentinho e Capitu) se aproximam e se harmonizam; depois a coisa se complica com a presença de um terceiro (Escobar), que se instala para formar o triângulo que desfaz a unidade; enfim surge um quarto (Ezequiel), que esfacela de vez o “duo” da união harmoniosa de outrora. Tudo se vai e se esvai pela vida, e na alma humana vão ficando as mágoas e ressentimentos dos sons plangentes que se desfazem na solidão abissal.


Bentinho foi acostumando-se com a ideia. Quando criança, Bento brincava de missa com a Capitu e a hóstia era sempre um doce. Mas, passado o tempo, ele supunha ser negócio findo.
As palavras de José Dias não saíam de sua mente e refletia: “Com que então eu amava Capitu, e Capitu a mim?”

Sua relação com Capitu, de seu ponto de vista, não passava de uma relação de amizade, mas as palavras de José Dias martelavam em sua mente e a partir desse momento, passa a considerar a possibilidade de que a amava.

“Capitu chamava-me às vezes bonito, mocetão, uma flor; outras pegava-me nas mãos para contar-me os dedos” e “tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias.”
“As pernas de Bentinho levaram-o à casa da amada, pois as pernas “(...) valem de si mesmas, quando a cabeça não as rege por meio de idéias.”
Capitu riscava com um prego o muro e ao ver Bentinho tentou encobrir o que fazia. Bento conseguiu ler dois nomes no muro: Bento Capitolina. “Em verdade não falamos nada; o muro falou por nós.” Deram-se as mãos e permaneceram calados.
“Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias do latim e era virgem de mulheres.”
O silêncio foi interrompido pela chegada do Sr. Pádua e Capitu para disfarçar, mentiu que desenha o perfil do seu pai.
Bentinho conta a Capitu sobre a conversa que ouvira entre José Dias e sua mãe, omitindo somente a questão “do namorico”. Capitu tornou-se agressiva, acusou D. Glória de beata e afirmou em voz alta: “- Se eu fosse rica, você fugia, metia-se no paquete e ia para a Europa.”
“Como vês, Capitu, aos catorze anos, tinha já idéias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois....”

Os dois passaram a examinar as pessoas com quem poderiam recorrer e concluem que José Dias era o alvo principal, afinal D. Glória prestava-lhe atenção.
Bentinho deveria fazer ver a José Dias quem seria o futuro dono da casa. A partir daí, o agregado, se quisesse continuar em seu posto, deveria tomar o partido de Bentinho, no sentido de dissuadir a mãe do cumprimento da promessa.

Bentinho agenda uma conversa com José Dias no dia seguinte, no passeio público. Antes de Bentinho desabafar sobre conflito com o agregado, ele comenta que Bentinho devia evitar a companhia da família da Capitu, pois eles tinham tendência para gente reles e que a “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu...Você já reparou nos olhos dela? São de cigana oblíqua e dissimulada.”
Em seguida, Bentinho expõe seu problema ao agregado: não quer ser padre, prefere estudar leis em São Paulo!
José Dias refletiu e afirmou que ”...as leis são belas...Por que não há de ir estudar leis fora daqui? Melhor é ir logo para alguma universidade, e, ao mesmo tempo que estuda, viaja. Podemos ir juntos...”
No caminho, José Dias e Bentinho encontraram o Imperador e outra ideia surgiu na mente de Bentinho: se ele pedisse ao Imperador que intercedesse por ele ou talvez, o Imperador elogia-se a Escola de Medicina...

O seu sonho de cursar medicina estava aliado à vontade de não sair do Rio de Janeiro.

“Capitu era Capitu, isto é, uma criatura mui particular, mais mulher do que eu era homem.”
Bentinho vai à casa da amiga e a encontra penteando o cabelo; então, lembrando-se da definição que José Dias havia dado sobre seus olhos e quis enxergar dentro dos olhos de Capitu, a ver se a imagem do outro conferia com o real. Nada encontro de diferente: “a cor e a doçura eram minhas conhecidas.” Então, passa a fitá-los: “traziam não sei que fluído misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca: olhos de ressaca.”
Depois, ficou penteando os cabelos de Capitu. Até que num momento Capitu curvou-se na cadeira, “e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...”
Com a chegada de D. Fortunata, foram atirados à realidade e Capitu sem nenhum constrangimento, disfarçou, enquanto Bentinho manteve-se calado e pasmo.
O Pe.Cabral havia sido nomeado Protonotário Apostólico (representante da Cúria Romana, que recebe e expede os atos do Papa) e estaria dando férias a Bentinho das aulas de latim.
“Era muita felicidade para uma só hora. Um beijo e férias!”
Bentinho volta à casa de Capitu. Sua vontade era beijá-la, mas Capitu portava-se indiferente. Porém, ao ouvir os passos do Sr. Pádua, “fez um gesto inesperado, pousou a boca na minha boca, e deu de vontade o que estava a recusar à força. Repito, a alma é cheia de mistérios.”
Bentinho confessa à mãe que não tem vocação para a vida religiosa. A mãe o encoraja e diz que não voltará atrás de sua promessa.
Capitu continua acusando Bentinho de fraco; perguntando se ele tem medo de apanhar, de ser preso, de brigar, de andar, de trabalhar...
“ - Se você tivesse de escolher entre mim e sua mãe, a quem é que escolhia?”
“ – Suponha você que está no seminário e recebe a notícia de que vou morrer...eu que me mato de saudades, se você não vier logo, e sua mãe não quiser que você venha, diga-me, você vem?”
Bentinho pede para ela não falar em morte, jura que viria vê-la e ela risca no chão a palavra: “mentiroso”. Em seguida, afirma que a vida de padre era boa e que assistiria à sua primeira missa vestida com roupa da moda. Então, Bentinho para rebater a ironia, faz com que ela prometa duas coisas: ser ele seu confessor particular e realizar o seu casamento. Capitu responde-lhe que “seria esperar muito tempo”, mas prometia batizar o seu primeiro filho.
Os apaixonados juram que “nos havemos de casar um com outro, haja o que houver” e fazem planos para o futuro.
Meses depois, Bentinho ingressa no Seminário de São José. A proposta era experimentar a sua vocação: se no fim de dois anos não revelasse vocação eclesiástica, seguiria outra carreira. Durante esse período, Capitu se aproximou de D. Glória, e esta percebeu na menina várias qualidades.
Na despedida, Sr. Pádua “tinha os olhos úmidos deveras; levava a cara dos desenganados, como quem empregou em um só bilhete todas as suas economias de esperanças, e vê sair branco o maldito número – um número tão bonito!”
No seminário, Bentinho conheceu um rapaz que escreveu um “Panegírico de Santa Mônica” e foi muito elogiado pelos padres. Muitos anos depois, veio encontrá-lo trabalhando como burocrata em uma seção administrativa e casado.
Certa noite, um verso surgiu à mente de Bentinho, e este, aproveitou para fazer um soneto. O verso era: “Oh! Flor do céu!Oh!Flor cândida e pura!.“
“Tinha o alvoroço da mãe que sente o filho, e o primeiro filho. Ia ser poeta. Ia competir com aquele monge da Bahia, pouco antes revelado, e então na moda; eu, seminarista, diria em verso as minhas tristezas como ele dissera as suas no claustro.” Bentinho referia-se ao poeta Junqueira Freire, representante do romantismo brasileiro.
O último verso do soneto (chave-de-ouro) seria: “Perde-se a vida, ganha-se a batalha!”
Depois de várias tentativas, Bentinho pensa em inverter as duas palavras: “Ganha-se a vida, perde-se a batalha!”
Bentinho não se conforma de até hoje não ter conseguido “encher o centro que falta” desse soneto.
No seminário, Bentinho tornou-se amigo de Ezequiel Escobar que foi entrando totalmente em sua vida.
“A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro com janelas para todos os lados, muita luz e a ar puro. Também as há fechadas e escuras, sem janelas, ou com poucas e gradeadas, às semelhanças de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples alpendres ou paços suntuosos. Não sei o que era a minha. Eu não era ainda casmurro, nem dom casmurro; o receio é que me tolhia a franqueza, mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las, e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei dentro, cá ficou, até que...”
José Dias durante suas visitas a Bentinho no seminário leva notícias das tristezas de todos com a separação. O agregado chegava a aconselhar Bentinho tossir de vez em quando, para combinar a ausência de vocação eclesiástica com a necessidade de mudança de ares. “Podia compará-lo aqui à vaca de Homero, andava e gemia em volta da cria que acabava de parir.” (Vaca de Homero: referência ao Canto XVII, da “Ilíada”, de Homero, quando Menelau fica a rodear o corpo ferido de Pátroclo “qual novilha inexperiente do parto, que muge rodeando o bezerro).

Quando Bentinho perguntou sobre Capitu, José Dias, responde: “Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo, enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela...”
O sentimento de ciúmes abateu o coração de Bentinho: como ela podia estar alegre, se ele chorava por ela todas as horas; nunca tinha pensado na ideia de perdê-la para outro; lembrava-se que outros rapazes olhavam para ela, mas sentia-se tão proprietário de Capitu “que era como se olhassem para mim, um simples dever de admiração e de inveja.”
“(...) se ela vivia alegre é que já namorava outro...depois de estremecer, tivesse um ímpeto de atirar-me pelo portão fora, descer o resto da ladeira, correr, chegar à casa do Pádua, agarrar Capitu e intimar-lhe que me confessasse quantos, quantos, quantos já lhe dera o peralta da vizinhança.”

Já anunciando um paralelo com o “Otelo”, de Shakespeare, que se desdobrará por todo o romance, Bentinho, fisgado nas “entranhas de puro ciúme”, sequer procurou esclarecer a dúvida pela frase maldosa de José Dias. À luz do ciúme, repassa os peraltas da vizinhança que, se na verdade olhavam para ela, não lhe pareciam perigosos, “tão senhor se sentia dela”.

Bentinho agora alternava a sua vida entre o seminário e aos sábados, voltava à sua casa.
“Os padres gostavam de mim, os rapazes também, e Escobar mais que os rapazes e os padres.”
Bentinho sentiu necessidade de contar o seu segredo ao Escobar; mas, Capitu não permitiu: “Você não tem direito de contar um segredo que não é só seu...”
“Em tudo isso mostrava a minha amiga tanta lucidez...”
Certa vez, D. Glória perguntou a Capitu se Bentinho não saia um bom padre. A menina respondeu cheia de convicção que sim, depois disse a Bentinho que disfarçou para evitar suspeitas.
Dona Glória adoece e pede a José Dias que vá buscar Bentinho no seminário. No caminho, desesperado com uma terrível notícia, ao mesmo tempo pensava: “mamãe defunta, acaba o seminário.”

No dia seguinte, Bentinho vai à igreja confessar ao padre o seu pecado e não teve coragem, “como o homem muda! Hoje chego a publicá-lo.”
Escobar ao saber sobre a doença de D. Glória vai visitar Bentinho. Todos gostaram de Bentinho. Todos gostaram de Bentinho. Escobar, que, mais tarde, ficaria impressionado com a beleza de D. Glória e também com o seu dinheiro. A sua fineza, porém, fê-lo querido de todos. A própria prima Justina, normalmente áspera, não teve do que reclamar.

“Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.”
Bentinho reflete sobre o destino e propõe que as peças teatrais começassem pelo fim.
“Otelo mataria a si e a Desdêmona no primeiro ato, os três seguintes seriam dados à ação lenta e decrescente do ciúme, e o último ficaria só com as cenas iniciais da ameaça dos turcos, as explicações de Otelo e Desdêmona, e o bom conselho do fino lago: Mete dinheiro na bolsa. Dessa maneira (...) os últimos atos explicariam o desfecho do primeiro, espécie de conceito e, por outro lado, ia para a cama com uma boa impressão de ternura e de amor.”
Bentinho encontra-se ao pé da janela de Capitu quando vê um belo rapaz passar a cavalo. O narrador cita José de Alencar e Álvares de Azevedo, poetas que em seus poemas já relataram os hábitos da época: tempo de namorar a cavalo. Mas, aquele moço não se contentou de passar ali, olhou diretamente para Capitu e esta, retribuiu o olhar.
“Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu.”
Capitu chorou, disse que era grande injúria que lhe fazia, lembrou-o do juramente e confessou que não conhecia o rapaz.
“Se olhara par ele, era prova exatamente de não haver nada entre ambos; se houvesse era natural dissimular.”
No seminário, Escobar diz a Bentinho que o achava muito distraído, que era bom disfarçar o mais que pudesse; que, ele, tinha razões para andar distraído também, mas buscava ficar atento.
“ – Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração, e lá fora, a não ser a gente da família, não tenho propriamente um amigo.
Se eu disser a mesma coisa – retorquiu ele sorrindo – perde a graça; parece que estou repetindo. Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.”
Bentinho pergunta se ele é capaz de guardar um segredo, como se fosse um padre. Escobar responde-lhe se ele precisava de absolvição, estava absolvido; então, Bentinho confessa que não pode ser padre. Escobar diz que ele também não quer seguir o curso e que sua paixão é o comércio.
Com o tempo, Dona Glória foi apreciando a união de Bentinho e Capitu.
Num sábado, sugeriu ao filho que a fosse ver à casa de Sancha, onde fora acudir a uma febre da amiga. O terceiro dente de ciúme colocou-o a prima Justina ao insinuar que a demora de Capitu em casa de Sancha fosse devida, talvez, a que ficassem namorando… Repontam novamente sentimentos agressivos. Após a visita à casa do Gurgel, tudo parece esclarecido e os zelos excessivos do ciumento ficam adormecidos até o início da vida conjugal.
Sr. Gurgel mostra um retrato de sua falecida esposa e pergunta a ele se não vê semelhanças entre ela e Capitu.
Na volta, um pobre homem para Bentinho na entrada da Rua de Matacavalos para contar-lhe que seu filho, o Manduca, havia morrido e se ele não queria ir vê-lo.
Bentinho queria dizer não, pois acreditava que “ver um defunto ao voltar de uma namorada...”, mas, “o corpo acabou entrando.”
“Manduca padecia de uma cruel enfermidade, nada menos que a lepra. Vivo era feio; morto pareceu-me horrível.”
“Amai, rapazes! E, principalmente, amai moças lindas e graciosas; elas dão remédio ao mal, aroma ao infecto, trocam a morte pela vida...Amai, rapazes!
Bentinho havia conhecido Manduca através de uma polêmica sobre a guerra da Criméia.
Escobar não deixava de elogiar D. Glória: “senhora grave, distinta e moça, muito moça...quarenta anos! Nem parece trinta; está muito moça e bonita. Também a alguém há de você sair, com esses olhos que Deus lhe deu; são exatamente os dela. Enviuvou há muitos anos?”
José Dias teve outra ideia para conseguir tirar Bentinho do seminário: irem a Roma e pedir absolvição da promessa ao papa.
Mas, Escobar sugeriu: “sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. Ela pode muito bem tomar a si algum mocinho órfão, fazê-lo ordenar à sua custa, está dado um padre ao altar, sem que você...”
Dona Glória hesitou um pouco, mas acabou concordando. No fim do ano, Bentinho sai do seminário e aos vinte e dois anos de idade, já era bacharel em Direito.
Dona Glória envelhecera: tio Cosme sofria do coração; prima Justina, estava mais idosa; Dona Fortunata falecera; Sr. Pádua aposentara e Escobar deixara o seminário, negociava café e casara com Sancha.
José Dias comenta sobre os amores entre Bentinho e Capitu, e “algumas semanas depois, quando lhe fui pedir licença para casar, além do consentimento, deu-me igual profecia, salva a redação própria de mão: Tu serás feliz, meu filho!”
Bentinho e Capitu casaram-se numa tarde de março, em 1865.
Durante a lua de mel, Capitu demonstra impaciência e pressa. “Concordava em ficar, mas ia falando do pai e de minha mãe, da falta de notícias nossas, disto e aquilo, a ponto que nos arrufamos um pouco.”
Quando partimos, “a alegria com que pôs o seu chapéu de casada, e o ar de casada com que me deu a mão para entrar e sair do carro, e o braço para andar na rua, tudo me mostrou que a causa da impaciência de Capitu eram os sinais exteriores do novo estado.”
“José Dias dividia-se agora entre mim e minha mãe, alternando os jantares da Glória com os almoços de Matacavalos.”
Sr. Pádua havia morrido; a amizade entre os casais fortalecida; a carreira de advogado crescido; Escobar e Sancha tinham uma filha, só faltava nascer um filho de Bentinho e Capitu para a felicidade estar completa.
Ouviu-se falar de uma aventura extraconjugal de Escobar, mais nada que afetasse o seu relacionamento com Sancha.
Certa vez, estando Bentinho discutindo astronomia com Capitu, percebe que a esposa está totalmente distraída. Ela afirma que estava pensando num investimento: havia guardado uma somatória de dinheiro do orçamento da casa e pedido a Escobar para investi-lo. Bentinho ficou surpreso com a negociação e com o segredo entre sua esposa e o amigo; foi ter com Escobar, que só confirmou a negociação, tranquilizando-o.
“Os meus ciúmes eram intensos, mas curtos; com pouco derrubaria tudo, mas com o mesmo pouco ou menos reconstruiria o céu, a terra e as estrelas.”

Bentinho exige da esposa devoção absoluta e atenção exclusiva. Tem ciúme do mar, quando Capitu distrai-se das lições de astronomia do marido e fica a contemplar as vagas. São ciúmes ainda difusos, atenuados pelas alegrias do nascimento do primeiro filho, pelas delícias da vida conjugal e pelo êxito profissional; mas continuam latentes:
Mas não há, ainda, qualquer suspeita sobre o amigo Escobar. O fato de o amigo ter servido de corretor para a compra de dez libras esterlinas, que Capitu economizara da mesada que recebia do marido, e de tem-se encontrado, a sós, não espicaça, de imediato, o fundo ciumento do narrador, que prefere ressaltar a nova qualidade descoberta na esposa economia.

A filha de Escobar e Sancha chamava-se Capitolina, a Capituzinha. Quando nasceu o filho de Bentinho e Capitu, o casal amigo passou os oito primeiros dias na Glória, auxiliando os recentes pais. A festa do batizado foi na chácara de Escobar e a criança, levou o seu nome: Ezequiel.
Ezequiel adquiriu a mania de imitar as pessoas e esse hábito descontentava Capitu.
“Cheguei a ter ciúmes de tudo e de todos. Um vizinho, um par de valsa, qualquer homem, moço ou maduro, me enchia de terror ou desconfiança.”
Uma noite, Bentinho foi sozinho ao teatro porque Capitu estava doente. Arrependido de ter deixado a esposa só, voltou ao fim do primeiro ato. Ao chegar a sua casa, surpreende Escobar à porta do corredor. Ele vinha falar-lhe sobre uns embargos, mas ao saber da doença de Capitu não queria subir.
Subiram. Capitu estava melhor e até bem sadia.
Em “Embargos de Terceiro”, cap. CXIII, o narrador começa a direcionar suas suspeitas. Capitu, pretextando um mal-estar, não foi ao teatro, mas insistiu para que o marido não perdesse a representação. Bentinho vai só, mas volta ao fim do primeiro ato. Encontra Escobar no corredor de sua casa. O amigo fora discutir com Bento um “embargo de terceiro” (termo jurídico que, por ambiguidade, sugere a figura de Escobar como o terceiro). O episódio é narrado com fina ironia, aguçando no leitor as ilações sugeridas pela coincidência entre o mal-estar, exagerado para faltar ao espetáculo, e a visita não anunciada do amigo Escobar.

Bentinho falou de suas dúvidas à Capitu. “Eu era então um poço delas...Disse-lhe que começava a achar minha mãe um tanto fria e arredia com ela...”
Capitu respondia que “sogras eram todas assim; lá vinha um dia e mudavam. Ao passo que me falava, recrudescia de ternura.”
Na expansão de seu núcleo de idéias prevalentes (o ciúme) e na imposição de uma ligação significativa de todos os fatos exteriores, Bentinho inclui a própria mãe: D. Glória é sentida “um tanto fria e arredia” com Capitu e mais ainda “fria também com Ezequiel”. Uma visita à casa materna não dissipa essas apreensões, que perduram, apesar da ternura e dos cuidados de Capitu, que tudo faz para poupar o marido abandona a espera à janela “para não despertar-me os ciúmes”, relata o memorialista.

Uma vez, José Dias chamou Ezequiel de “profetazinho”, referindo-se ao modo bíblico: “ – Como vai isso, filho do homem?”
Capitu repreende José Dias e proíbe o filho que imite as pessoas.

A maneira pela qual José Dias trata Ezequiel - “filho do homem” vem a agastar Capitu, e D. Casmurro e abre um capítulo, o CXVI, com este título, onde engloba também a preocupação da esposa em corrigir o modo de andar do filho, que imitava o andar de José Dias, e os meneios de olhos e de cabeça, que Ezequiel imitava Escobar. Bentinho alimenta suspeita de que a semelhança não seria decorrente da convivência, mas prova de uma mesma paternidade.

Escobar se mudara para o Flamengo e os amigos estavam tão próximos que parecia ter “uma só casa, eu vivia na dele, ele na minha, e o pedaço de praia entre a Glória e o Flamengo era como um caminho de uso próprio e particular. Fazia-me pensar nas duas casas de Matacavalos, com o seu muro de permeio.”
Em um jantar no Flamengo, Escobar cochichou com Bentinho que tinha um projeto em família para os quatro e que viesse amanhã para conversarem. Sancha revela o segredo a Bentinho: tencionavam fazer uma viagem à Europa, daqui a dois anos, os quatro juntos.
Naquela noite, Bentinho notou que Sancha olhava para ele diretamente com intimativos.
Escobar interrompe os pensamentos de Bentinho e passa a comentar sobre o mar.
“ – Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões – disse ele batendo no peito – e estes braços, apalpa.”
Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custa-me esta confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade.”
Na despedida, Bentinho encarou novamente Sancha e teve a impressão que a sua mão “apertou muito a minha, e demorou-se mais que de costume.”
“Não havia meio de esquecer inteiramente a mão de Sancha nem os olhos que trocamos. Agora achava-lhe isto, agora aquilo. Os instantes do diabo intercalavam-se nos minutos de Deus, e o relógio foi assim marcando alternativamente a minha perdição e a minha salvação.”
Na manhã seguinte, Bentinho tentou dissipar as recordações das vésperas, quando um escravo da casa de Escobar, traz a notícia da morte do sinhô.
“Escobar meteu-se a nadar, como usava fazer, arriscou-se um pouco mais fora que de costume, apesar do mar bravio, foi enrolado e morreu.”
Os planos de viagem são tragicamente interrompidos pela morte de Escobar que, sugestivamente, é tragado por uma ressaca. A intermitência de amor e ódio, de ternuras e dúvidas, é substituída pelo delírio de ciúmes, que se instaura para sempre no coração de Bentinho.

Era março de 1871 e muitas pessoas compareceram ao enterro. Na hora da encomendação e da partida, todos choravam. “Só Capitu, amparando a viúva, parecia vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas. (...) Capitu enxugou-as depressa, olhando a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”

A cena culminante do velório de Escobar (Cap. CXXIII, “Olhos de Ressaca”) é precedida da fantasia da conquista de Sancha e do convite a apalpar os braços do amigo (cap. CXVIII). Bentinho, ao sentir-se atraído por Sancha, projeta em Capitu os seus sentimentos e passa a julgá-la apaixonada por Escobar. Entre as formas de ciúme mórbido está arrolada a resultante do mecanismo de projeção no cônjuge das pretendidas ou das reais infidelidades, não aceitas pelo superego.
Na hora da despedida, após a encomendação do corpo de Escobar, a viúva aproxima-se, amparada por Capitu.
Ao observar a cena, D. Casmurro transforma-se. Seus olhos secam e passam a espreitar os de Capitu, que, enxutos, olhavam furtivamente os circunstantes. Capitu pretende, com carícias, retirar dali a amiga, “mas o cadáver parece que a retinha também”. E nota zelosamente o narrador:
Neste olhar devorador, assim como nos olhos fixos, tão apaixonadamente fixos, D. Casmurro vê e percebe a prova segura, infalível, da infidelidade da esposa.
Objetivamente, o percebido é pouco: um olhar fixo e um olhar de olhos grandes e abertos; o significado é maior: apaixonadamente fixo e devorador. A interpretação é exorbitante, patológica. Um olhar fixo poderia gerar suspeita de intenções, mas nunca ser tomado como prova, documento de convicção, atestado de adultério. O caráter mórbido da interpretação fundamenta a convicção inabalável da traição e se implanta no centro da vida psíquica, deformando todas as reminiscências e atraindo todas as experiências posteriores. A transformação profunda da personalidade que se segue à percepção delirante é mais um elemento demonstrativo da sua natureza patológica.
O mundo interior de D. Casmurro, antes vacilante de dúvidas, torna-se firme com a nova certeza e alimenta já a sede de vingança. Ao pegar a argola do ataúde e ao chegar ao exterior da casa, Bentinho tem o impulso “de atirar à rua caixão, defunto e tudo”.
Toda a sua vida, a partir daí, decorre sob um novo signo.
Na volta do cemitério, D. Casmurro sente necessidade de estar só e de “tomar uma resolução que fosse adequada para o momento”. Ao andar pelo Catete, adquire a convicção de que “a viúva era realmente amantíssima”, e, depois, ao rever a situação de Capitu, conclui que “era a antiga paixão que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre”. O adjetivo “antiga” traduz a idéia de que sua paixão estava morta. Continua o passeio para castigar Capitu com a demora. Passa por um barbeiro-músico, e o ciúme aponta outro disfarce, quando a mulher do barbeiro vem agradecer a atenção que Bentinho dispensava à arte do marido músico.
Dessa forma, a atitude de Sancha na véspera era desmentida perante o seu comportamento no enterro e “não seria o mesmo caso de Capitu?”
Finalmente regressa ao lar, onde reina a calma, mesmo na face de Capitu, “serena e pura”. Nos dias subsequentes, D. Casmurro vive agitado. Na segunda-feira, arrepende-se de ter rasgado o discurso. Pensa em refazê-lo, mas desiste. Na terça, foi aberto o testamento de Escobar, acompanhado de uma carta a Santiago, com palavras “sublimes de estima e amizade”. Ao ouvi-las, “Capitu desta vez chorou muito, mas compôs-se depressa”. Bentinho anda calado e aborrecido. A esposa preocupa-se com o seu estado e tenta distraí-lo. O marido dissimula a causa real de seu aborrecimento e pretexta preocupação com os negócios. A mulher sugere vender suas jóias e objetos de algum valor, na esperança de uma retomada da vida tranquila. Em vão; D. Casmurro mergulha de vez na melancolia que iria culminar em projetos de suicídio.
Um dia, Capitu comentou a Bentinho que Ezequiel tinha nos olhos uma expressão esquisita. Acrescentou ainda que, só tinha visto essa expressão em “um amigo de papai e o defunto Escobar.”
“Nem só os olhos, mas as restantes feições, a cara, a pessoa inteira, iam-se apurando com o tempo. Eram como um debuxo (rascunho) primitivo que o artista vai enchendo e colorindo aos poucos...”
O relacionamento entre Bentinho e Capitu começa a desmoronar e Capitu sugere colocar o filho num colégio interno, donde só viesse aos sábados.
“Levei-o a pé, pela mão, como levara o ataúde do outro.”

A paranóia de ciúme em marcha incorporava ao núcleo delirante todas as experiências diárias, e Bentinho toma o filho Ezequiel para transformá-lo em documento da traição de Capitu. Não são os olhos somente que repetem Escobar, “mas as restantes feições, a cara, o corpo, a pessoa inteira”. “Escobar vinha assim surgindo da sepultura, do seminário e do Flamengo.”

Os contatos com o filho tornam-se “repulsivos”, embora procurasse dissimular. Capitu passa a ser tratada com aspereza e brutalidade. “Os nossos temporais era agora contínuos e terríveis”, diferentes das rusgas anteriores à descoberta daquela “má terra da verdade”. “Já entre nós só faltava dizer a palavra última.” A presença do filho é cada dia mais difícil, e Ezequiel é afastado para o colégio da Lapa.

A ausência temporária de Ezequiel não melhorou a situação, com o tempo passando, a semelhança tornou-se mais nítida, “era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia à mesma.”
Bentinho já não jantava mais em casa aos sábados e aos domingos trancava-se em seu gabinete ou saía a percorrer a cidade, para evitar o filho.
“Um dia – era sexta-feira -, não pude mais.”
De manhã, escreveu algumas cartas e comprou uma substância na farmácia.
“Quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de tirar a sorte grande (...). Fui à casa de minha mãe, com o fim de despedir-me, a título de visita.”

Esse afastamento não minora o sofrimento e cada volta do menino, aos sábados, é motivo de exacerbação da ferida de Santiago. Certa “idéia, que negrejava”, “abriu as asas” e escureceu ainda mais o horizonte do ciumento. Na melancolia e na insônia, a idéia de suicídio ganha forma. Compra o veneno, escreve cartas e deixa a despedida materna para uma última visita. Diante de D. Glória, afasta momentaneamente a idéia. Mas um núcleo maléfico impõe aos pensamentos de Bentinho uma direção egocêntrica e dolorosa.

Não é, pois, por acaso que vai jantar fora e escolhe como passatempo a representação de Otelo.
“Vi as grandes raivas do mouro, por causa de um lenço – um simples lenço! -, e aqui dou matéria à meditação dos psicólogos deste e de outros continentes, pois não pude furtar à observação de que um lenço bastou a acender os ciúmes de Otelo e compor a mais sublime tragédia deste mundo. Os lenços perderam-se, hoje são precisos os próprios lençóis...Tais eram as idéias que me iam passando pela cabeça (...) e Iago destilava a sua calúnia.”

Assim, o narrador vê no mouro o seu duplo. O lenço comprometedor da tragédia shakespeareana transforma-se, na imaginação de Bentinho, em lençóis, peças íntimas, em idéias “vagas e turvas”. Até platéia é envolvida nas ondas do ciúme.

Caído o pano, já na rua, continua a raciocinar. Desdêmona era inocente e sua morte, no entanto, despertava aplausos frenéticos do público. Num desvio delirante, Bentinho interpreta os aplausos como a vitória da vingança, e não como tributo ao desempenho dos atores. “Se ela deveras fosse culpada, tão culpada como Capitu?”

“O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer.”

Sua visão se turva, tem sentimentos agressivos, com imagens de fogo e sangue. Fica a vagar pela cidade e, quando volta a casa, já manhã alta, escreve duas cartas. O texto da segunda “continha só o necessário, claro e breve. Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer”.
A frase é imprecisa: “só o necessário, claro e breve” e “falava-lhe só de Escobar”. Que falava? Que sentimentos externava? A fina arte do escritor deixa ao leitor a confecção do texto, mas deixa dissimulado, na reticência, o conflito inconsciente de que o narrador não se dá conta, nem mesmo se poderia dar. Observe que Machado é um mestre na arte do despistamento, do disfarce, através dos quais vai “seduzindo” o leitor.
Os lapsos do narrador, sempre reveladores, são obra do artista e do psicólogo, que manipula com segurança suas criaturas e todos os discursos pelos quais elas se expressam: gestos, sonhos, lapsos, palavras. Daí a densidade e coesão que apresentam e a permanência de sua sedução.

Bentinho rodou a noite inteira e quando deram seis horas da manhã; voltou à sua casa, tirou o veneno do bolso; escreveu a sua derradeira carta para Capitu.
O texto trazia uma mensagem para que ela sentisse remorso.
“Não lhe lembrava o nosso passado, nem as lutas havidas, nem a alegria alguma; falava-lhe só de Escobar e da necessidade de morrer.”
Quando esperava pelo café, pensou em imitar Catão e matar-se. Mas, decidiu-se esperar Capitu e Ezequiel saírem para a missa e depois ingerir o veneno. Chega mesmo a derramar o veneno na xícara, tremendo, como “os olhos vagos, a memória em Desdêmona inocente”. (O deslocamento Capitu-Desdêmona é um mecanismo de defesa que procura nos símbolos um representante substitutivo da pessoa real, geradora de ansiedade, esclarece o psiquiatra.) A ação é interrompida pela entrada do filho a gritar: “Papai! papai!”.

D. Casmurro, por um momento, acreditou-se vítima de uma grande ilusão, de uma fantasmagoria de alucinado, mas a volta do filho, afastado no início da discussão, lança-o novamente ao mundo de seus fantasmas. Comenta e acredita que, à vista do filho, foi-lhe restituída “a consciência da realidade”, de uma realidade, porém, comprometida, deformada, delirante.

Nesse momento, Bentinho teve um segundo impulso, tenta assassinar seu filho e oferece-lhe a xícara de café envenenado.
“Cheguei-lhe a xícara, tão trêmulo que quase a entornei, mas disposto a fazê-lo cair pela goela abaixo, caso o sabor lhe repugnasse, ou a temperatura, porque o café estava
frio...Mas não sei que senti que me fez recusar. Pus a xícara em cima da mesa, e dei por mim a beijar doidamente a cabeça do menino. E em seguida, gritei:
- Não, não, eu não sou teu pai!”

A presença de Ezequiel corta-lhe de novo o impulso suicida, mas, da mesma fonte, irrompe com violência o desejo de liquidar o filho:
“(…) Chamem-me embora assassino; não serei eu que os desdiga ou contradiga; o meu segundo impulso foi criminoso.” (Cap. CXXXVII, “Segundo Impulso”)

A psiquiatria ensina que as personalidades paranóides passam por mutações bruscas; o espiado torna-se espião, o condenado muda-se em carrasco, como o perseguido em perseguidor. Assim, quem atentar para as oscilações entre a agressividade suicida e a vingadora não deverá estranhar que o quase suicida transforma-se num assassino. Ainda nesta cena, mais uma oscilação: o mesmo pai que se encontra a beijar doidamente a cabeça do filho, no instante seguinte injeta na alma infantil outro veneno moral: “Não, não, eu não sou teu pai!”. (Observa-se a tríplice negação.)

Capitu entra nesse momento e pede explicações. Bentinho repete que Ezequiel não era o seu filho.
Capitu responde-lhe:
“ – Só se pode explicar tal injúria pela convicção sincera; entretanto, você, que era tão cioso dos menores gestos, nunca revelou a menor sombra de desconfiança. Que é que lhe deu tal ideia? Diga – continuou, vendo que eu não respondia nada -, diga tudo; depois do que ouvi, posso ouvir o resto, não pode ser muito. Que é que lhe deu agora tal convicção? Ande, Bentinho, fale!Fale!Despeça-me daqui, mas diga tudo primeiro.
Bentinho retruca que “há coisas que se não dizem.”
Capitu insiste para que ele lhe conte o resto, para poder se defender, ou caso contrário que lhe dê a separação.
Bentinho responde que a separação já era coisa decidida e quando aludiu aos amores dela com Escobar...; Capitu riu e declarou:
“ – Pois até os defuntos! Nem os mortos escapam aos seus ciúmes!”
E acrescentou:
“ – Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança...A vontade de Deus explicará tudo...Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus; eu creio...Mas não falemos nisto; não nos fica bem dizer nada.”
Bentinho estava a ponto de acreditar que se tratava de uma grande ilusão, quando Ezequiel entrou na sala; e, ele e Capitu “involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel.”
Bentinho não tomou o veneno. “A morte era uma solução; eu acabava de achar outra...”
Quando Capitu voltou, disse que estava pronta para a separação. Bentinho lembrou-se das palavras do Sr. Gurgel sobre sua falecida esposa e pensou “tudo em que a minha cegueira não pôs malícia, e a que faltou o meu velho ciúme.”
Capitu, Ezequiel e uma professora do Rio Grande embarcaram para a Suíça. Capitu escrevia a Bentinho, pedia para que ele fosse visitá-la; ele, respondia secamente e embarcava, mas, para outros lugares para simular a situação perante os familiares.

A solução final imposta por Bentinho é um puro mecanismo de anulação e regressão. Santiago isola Capitu e o filho e no recompor suas memórias, todo esse trecho da vida de D. Casmurro é apagado.

Dona Glória faleceu e José Dias passou a morar com Bentinho. Mantinha correspondência com Capitu e implorava que mandasse um retrato de Ezequiel; mas, Capitu sempre ia adiando.
Quando o agregado ficou doente, Bentinho chamou um médico homeopata; mas, ele pediu para substituir por um alopata, pois “a alopatia é o catolicismo da medicina...”
Antes de falecer, solicitou que abrissem as cortinas do quarto e afirmou que o céu estava; “Lindíssimo!”
“Moro longe e saio pouco. Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de comparação e de reflexão que de sentimento.”
Bentinho após a morte de sua mãe pensou em mudar-se para Matacavalos, mas a antiga casa não o reconheceu. Perante esse fato, Bentinho deixou que demolissem a casa; mas depois, reproduziu-a no Engenho Novo.
Passado um tempo, Bentinho recebeu a visita de seu filho. Demorou-se para atendê-lo; depois, arrependeu-se e devia encontrá-lo com ares de pai: “um pai entre manso e crespo, metade Dom Casmurro.”
A morte de Capitu é referida da forma a mais sintética, por ocasião da inesperada visita do filho, já na casa do Engenho Novo: “A mãe — creio que ainda não disse que estava morta e enterrada”. O primeiro e único amor estava morto e enterrado, mas o ciúme não; ressurgia na figura do filho.

A identificação delirante de Ezequiel com Escobar é manifesta, na visita do filho adulto, com esta reflexão ambígua: “Se fosse vivo José dias, acharia nele a minha própria pessoa”. A lisonja do subserviente José Dias, no intuito de agradar Bentinho, refletiria melhor a realidade que o espelho curvo do ciúme.

“Conheceu-me pelos retratos e correu para mim. Não me mexi; era nem mais nem menos o meu amigo, o jovem companheiro do seminário de São José (...) Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar.”
“A voz era a mesma de Escobar (...). A mãe falava muito de mim, louvando-me extraordinariamente, como homem mais ouro do mundo, o mais digno de ser querido.”
Durante o almoço, lembrava-se de coisas de sua infância e Bentinho desejou que ele fosse realmente seu filho.
“Se o rapaz tem saído à mãe, eu acabava crendo tudo...” “Contou-me a vida na Europa, os estudos, particularmente os de arqueologia, que era a sua paixão...sem se perder nos algarismos: tinha a cabeça aritmética do pai. Eu, posto que a idéia da paternidade do outro me estivesse já familiar, não gostava da ressurreição. Às vezes, fechava os olhos para não ver gestos nem nada, mas o diabrete falava e ria, e o defunto falava e ria por ele.”
Ezequiel estudara arqueologia e queria fazer uma viagem científica ao Oriente Próximo. Pede o apoio financeiro do pai, que resmunga consigo: “Uma das consequências dos amores furtivos do pai [Escobar] era pagar eu as arqueologias do filho”. E termina seu pensamento com uma maldição: “Antes lhe pagasse a lepra…”.

“Não houve lepra, mas há febres por todas essas terras humanas, sejam velhas ou novas. Onze meses depois, Ezequiel morreu de uma febre tifóide, e foi enterrado nas imediações de Jerusalém, onde os dois amigos da universidade lhe levantaram um túmulo com esta inscrição, tirada do profeta Ezequiel, em grego: Tu eras perfeito nos teus caminhos.”
Os amigos de Ezequiel mandaram os textos bíblicos, grego e latino; o desenho da sepultura; a conta das despesas e o dinheiro que restou. “(...) pagaria o triplo para não tornar a vê-lo.”
O epitáfio inscrito no túmulo de Ezequiel sugere ainda a sombra do ciúme delirante do pai: “Parei e perguntei calado: quando seria o dia da criação de Ezequiel? Ninguém me respondeu. Apesar de tudo, jantei e fui ao teatro.”
Na ausência de resposta, o velho memorialista rumina sua complexa história de amor. Dispõe sua vida numa feição “nem lívida, nem solitária”, mas sem qualquer afeição verdadeira; “sem me faltarem amigas que me consolassem da primeira”. Foram todas aventuras passageiras; mas, questiona-se por que é que nenhuma dessas caprichosas o fez esquecer Capitu.

“Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de cigana oblíqua e dissimulada.”
“O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum incidente. Jesus, filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprendeu de ti.” Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como fruta dentro da casca.
É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me...A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.”

É sobre o ciúme a citação bíblica que ilustra o último capítulo: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti” (Jesus, filho de Sirach, Eclesiastes, cap. IX, vers. 1). Mas D. Casmurro contradita o preceito bíblico, e conclui:
“(…) qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me… A terra lhes seja leve!” (Cap. CXLVIII, “É Bem, e o Resto?”)
“Do ponto de vista psicopatológico, a história é típica de um delírio de ciúmes, que encontra por base uma personalidade sensitiva. Temos uma paranóia de ciúmes, segundo a escola francesa. Um conjunto de ideias prevalentes toma conta da personalidade predisposta, passa a dominar o curso do pensamento, cria a atmosfera suspeita (trema), em seguida, desponta o auto-relacionamento obrigatório das experiências e as falsificações da memória (apofenia).
A liberdade pessoal está comprometida, a personalidade está presa na roda do delírio. À fase de indefinição do ciúme e à simples expansão do sistema delirante, segue-se a de sua sistematização, com o aparecimento de percepção e interpretações delirantes. O “paciente” cai no mundo dos fantasmas, da melancolia, dos impulsos suicidas e assassinos, transforma-se num homem novo e seu mundo também se transforma, com o esvaziamento afetivo e a incapacidade de criar novos laços amorosos, a esquisitice e a bizarrice do comportamento. Conserva, porém, a capacidade de recompor seu passado e nos dar a imagem imensamente rica desta figura única no universo literário brasileiro Dom Casmurro.


DEZ RAZÕES PARA VOCÊ NÃO ACREDITAR EM DOM CASMURRO:



1. Situação edipidiana:

A criação de Bentinho fez-se, a partir dos três anos, em um lar precocemente alterado pela viuvez. Filho único, conseguido depois da decepção de uma gravidez desfeita, o menino torna-se motivo de temores e desejos já antes de nascer. Sem a presença e a rivalidade do pai, é objeto exclusivo de todo o amor materno, assim a situação edipiniana está aí claramente configurada.

2. Os homens da casa de Matacavalos:

Tio Cosme, José Dias e Padre Cabral — não se prestam a desempenhar o papel de substitutos do pai ausente. Como pano de fundo, no quadro doméstico, há uma numerosa criadagem escrava, gravitando em torno do mimado futuro senhor Dr. Bento de Albuquerque Santiago.


3. Mulheres da casa de Matacavalos:

D. Glória, viúva desde os trinta e um anos, viveu reclusa na viuvez, vestida sempre de preto. Era uma personalidade insegura, com traços de neurose. A fobia de perder outro filho, em sua segunda gestação, levou-a a destinar o nascituro à vida religiosa, caso nascesse um varão. “Talvez esperasse uma menina”, cogita D. Casmurro. A expectativa de uma menina deve ter-se refletido na atitude materna para com o filho. Destinado à vida eclesiástica, Bentinho já nasceu sob o estigma da ansiedade, agravada pela insegurança da mãe e dos que a cercavam. Ninguém sabia ao certo como encaminhar a educação do menino.
As maneiras da viúva Santiago são descritas pelo memorialista como adoráveis; sua bondade e recato fazem-no vê-la como uma santa. Isso, contudo, não impediu Bentinho de armar arranjos e fantasias as mais astutas contra sua mãe, para desvencilhar-se da imposta carreira religiosa, em conflito com os impulsos amorosos da adolescência.
Já o velho, o narrador, procura desculpar a posição de D. Glória. Diz que a promessa fora “guardada por ela, com alegria, no mais íntimo do coração”, mas, quando D. Glória tem de enfrentar a realidade da falta de vocação sacerdotal do filho, aceita, com alegria redobrada, que outro substitua Bentinho na vida religiosa, quebrando sua promessa.
É preciso ler com cuidado as memórias desse narrador aparentemente distinto, sentimental, meio desajeitado nas questões práticas, mergulhado nas recordações da infância, venerador de sua mãe e obcecado pela primeira namorada. Nas entrelinhas, nas passagens opacas, nos atos falhos, nos raciocínios truncados, nas minudências aparentemente irrelevantes, ficam inúmeras pistas de um depoimento não apenas do narrador, mas também sobre o narrador. Aí, em lugar do memorialista emocionado e sincero, do cidadão exemplar, surgem os sintomas do ressentimento, do recalque, da “paranóia”, da imaginação delirante de um homem inseguro, dominado por duas mulheres — a mãe e a amada —, um homem que se reconhece menos homem do que Capitu era mulher.

4. O enigma:

O enigma é Bentinho, não Capitu, e as linhas tortuosas de suas memórias e de seu caráter compõem uma charada de difícil decifração. Mas há várias pistas: a metáfora dos “olhos de ressaca”, dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”; o paralelo com o drama shakespeariano de Otelo e Desdêmona; a aproximação com a ópera do velho tenor Marcolini (o duo, o trio e o quatuor); as “semelhanças esquisitas”; as relações “suspeitas” com Escobar no seminário; a lucidez de Capitu e o obscurantismo de Bentinho; a imaginação delirante e perversa do ex-seminarista e o preceito bíblico de Jesus, filho de Sirach, que bem poderia servir de epígrafe: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”.
“O resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos”
como quer o narrador, também o memorialista casmurro, esquisitão, quase homicida e suicida, e, sim, se já estava dentro do menino mimado, filhinho-da-mamãe, inseguro e possessivo, o Dom Casmurro.
A corrupção do amor de Bentinho e Capitu é uma fatalidade de valor simbólico; e talvez por isso, o próprio Bentinho chega a ter, também ele, veleidades de trair Escobar com a mulher, Sancha. Se “a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos”, se o engano e a amargura já medravam secretos, no paraíso dos amores pueris, é antes de tudo porque “a vida é traição”; e Capitu “é a imagem da vida”

5. Bentinho: o ciúme excessivo, as reações histéricas e a agressividade (apofenia)

A transformação da personalidade de Bentinho/Dom Casmurro e suas personalidades paranóicas: Vários incidentes permitem concluir que a personalidade de Bentinho estava fixada na infância e que o despertar de sua sexualidade foi lento e relativamente tardio: Bentinho sente-se menos homem que Capitu é mulher, e a descoberta de seus sentimentos amorosos faz-se pelos comentários das pessoas da casa, ou por avanços da companheira de brinquedos, bem mais ousada que ele. No cap. XL, quando julga imagens sexuais (“a égua ibera”) impróprias aos seus quinze anos, proclama, com certa vaidade: “Eu era puro, e puro fiquei, e puro entrei na aula de S. José”.
A importância da imaginação na personalidade de Bentinho faz-se sentir por toda a vida. Na puberdade chega quase à obsessão sexual, quando começa a ver pernas e ligas caírem, e depois transforma as batinas dos colegas e dos padres em saias.
“Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a mamar”, evoca a pena de D. Casmurro, numa frase que parece recortada dos manuais psicanalíticos, na alusão à fase oral, à relação boca — seio, numa premonição freudiana.
Menino sozinho entre adultos na casa grande de Matacavalos, Bentinho tornou-se um introvertido, um sonhador acordado, cujos devaneios substituíam parte da realidade. “Os sonhos do acordado são como os outros sonhos, tecem-se pelos desenhos das nossas inclinações e das nossas recordações.” Machado, antes de A Interpretação dos Sonhos, de Freud, já concebia a unidade da vida psicológica no sonho e na vigília. Não é por acaso que se refere tantas vezes à atividade onírica em seus livros.
Uma clara presença do mecanismo da evasão é o episódio (cap. XXIX) em que Bentinho, ao voltar de um passeio com José Dias, encontra o Imperador que vinha da Escola de Medicina, e coloca imediatamente Sua Majestade a serviço dos seus desejos, e o faz, no seu devaneio, interceder em favor do cancelamento de sua matrícula no seminário, como eram os planos do agregado.
Além dessa tendência constante à fuga da realidade e do cotidiano, a afetividade de Bentinho oscila, sem motivação exterior suficiente, entre os pólos da tristeza e da alegria, o que faz seus devaneios dar frequentes reviravoltas. Na cena do acompanhamento ao viático (Cap. XXX, “O Santíssimo”), passa por esses extremos, a ponto de ser advertido: “Não chore assim” e “Não ria assim”.
Na tentativa de “atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”, a releitura que o memorialista do Engenho Novo faz do menino e do jovem da Rua de Matacavalos, revela a estrutura unitária, perfeita e completa de um quadro psicopatológico, de um delírio de ciúmes, cuja trama era tecida por fios inconscientes, com raízes profundas.
Quando os primeiros ciúmes abrem em sua alma as primeiras feridas, no episódio do dandy em particular, sua reação emocional é excessiva, quase histérica. Não ousa pôr as coisas em pratos limpos. Refugia-se no quarto. D. Casmurro recorda:
“(…) Corri ao meu quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com ponto do lençol.” (Cap. LXXV, “O Desespero”)
A fantasia dispara e já se vê padre:
“(…) Via-me já ordenado, diante dela, que choraria de arrependimento e me pediria perdão, mas eu, frio e sereno, não teria mais que desprezo; voltava-lhe as costas. Chamava-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles.” (Cap. LXXV, “O Desespero”)
Os traços agressivos de sua personalidade, que tornarão a se exibir, já estão aí bem nítidos. Bentinho que D. Casmurro evoca tem esses dois sinais: sexualidade tardia e predomínio da fantasia sobre a realidade, com angústia. A presença dessa neurose, agravada por outros conflitos, foi o terreno onde medraram as flores doentias do ciúme.


6. A velhice:

O Bentinho do Engenho Novo repete o apego da própria mãe às coisas velhas, ao tempo antigo; e o filho de Capitu, apesar de parecido com Escobar, terá por vocação a arqueologia…com Casmurro é uma contribuição brasileiríssima ao motivo básico da arte impressionista: a percepção elegíaca do tempo, metáfora da nostalgia de uma civilização. Apesar do “duo terníssimo” de Bentinho e Capitu, Dom Casmurro é um romance de velhos e solitários (D. Glória, Tio Cosme, Pe. Cabral, José Dias, Prima Justina, além do nosso casmurro narrador). Como é próprio de Machado de Assis, a velhice no livro é perpassada de uma visão amarga e melancólica, dominada por magoas e ressentimentos. Sem dúvida, é licito afirmar que, filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua que a existência humana sempre desemboca na casmurrice e na solidão. Tudo vai-se desfazendo com o crepúsculo da existência humana: a graça, a beleza, as flores de antanho; pela vida vazia, vão ficando as lágrimas, a cinza, o nada. Vista de uma perspectiva pessimista (como é frequente em Machado de Assis), a velhice é perpassada de amargura, solidão e sensação de vazio e perda qual se acentua e dói ainda mais com a consciência da irreversibilidade do tempo. É impressionante em Dom Casmurro a ação devastadora do tempo sobre coisas e pessoas. Poucos ficam como o desencantado Dom Casmurro, para contar a história: todos são devorados pela ação voraz e demolidora do tempo - todos morrem. E quem fica vivo, como Dom Casmurro, é atormentado pela mágoa pelos ressentimentos e sobretudo, pela solidão catacumbal da casmurrice e do desencanto.


7. Existencialismo:

A dúvida é: Bentinho silencia porque nunca houve adultério e não havia o que dizer, ou porque Machado é um "autor extremamente decente" e não havia porque dizer com todas as letras o que já era tão óbvio que tinha acontecido?
“A questão do adultério, traição ou não, só ganha importância mesmo no último terço do livro, na parte efetiva da intriga, mas a mentira está muito presente em todo o livro. A verdadeira questão não seria: como a mentira é fundamental para a manutenção das relações sociais, das relações humanas?”
Um dos problemas centrais da obra machadiana é o da identidade:
• Quem sou? Em que medida eu só existo por meio dos outros? Eu sou mais autêntico quando penso ou quando existo? Haverá mais de um ser em mim?
Essas perguntas envolvem dois problemas centrais: a divisão do ser, o desdobramento da personalidade, e os limites da razão e do ser Outros problemas que permeiam a ficção machadiana são:
• A relação entre o fato real e o fato imaginado, entre o que aconteceu e o que pensamos que aconteceu. Seremos nós o ato que nos exprime? Será a vida uma cadeia de opções? Que sentido tem o ato?
O tema da perfeição, da aspiração ao ato completo, à obra total, é outra obsessão machadiana, que resulta sempre na dolorosa constatação da impotência espiritual do homem, da impossibilidade de ser tudo, da inevitável mutilação do eu.
Assim, se não conseguimos agir senão mutilando o nosso eu, se o que há de mais profundo em nós é, no fim das contas, a opinião dos outros, se estamos condenados a não atingir o que nos parece realmente valioso, qual a diferença entre o bem e o mal, o justo e o injusto, o certo e o errado?
Este sentimento profundo da relatividade total dos atos, da impossibilidade de compreendê-los e de conceituá-los adequadamente, desemboca no sentimento do absurdo, do ato sem origem ou explicação e do juízo sem fundamento. Machado relativiza tudo, vê tudo pelo avesso, revelando um senso profundo da complexidade do homem e das contradições da alma.


8. A metalinguagem:

A constante preocupação do narrador com a sua escritura resultam nas suas frequentes digressões sobre o ato de escrever e na posição metalinguística que assume.
Ao mesmo tempo em que vai projetando/consumando a sua narrativa, Dom Casmurro se mostra ao leitor como um cidadão do mundo da linguagem. Suas incursões dão-se tanto ao nível da metalinguagem, como ao nível da linguagem-objeto, da produção textual.
No cap. XVII, na tentativa de compor um ensaio: “Quando, mais tarde, vim a saber que a lança de Aquiles também curou uma ferida que fez tive tais ou quais veleidades de escrever uma dissertação a este propósito. Cheguei a pegar em livros velhos, livros mortos, livros enterrados, a abri-los, a compará-los, catando o texto e o sentido, para achar a origem comum do oráculo pagão e do pensamento israelita. Catei os próprios vermes dos livros, para que me dissessem o que havia nos textos roídos por eles.”
No cap. LV, por ocasião de seus infrutíferos malabarismos para compor um soneto, os comentários do narrador sobre a unidade indissolúvel de forma e conteúdo são de impressionante atualidade: “A sensação que tive é que ia sair um soneto perfeito (…). Para me dar um banho de inspiração, evoquei alguns sonetos célebres, e notei que os mais deles eram facílimos; os versos saíam uns dos outros, com a idéia em si, tão naturalmente, que se não acabava de crer se ela é que os fizera, se eles é que a suscitavam.”
No cap. LIV, em que Bento Santiago diz-se possuído pela “sarna de escrever”, temos duas críticas mordazes aos praticantes da literatura como mero passatempo, atingindo dois ex-colegas de seminário. O primeiro, que havia composto versos à maneira de Junqueira Freire (poeta da Segunda Geração Romântica), confessou, muito mais tarde, que seus versos “foram cócegas da mocidade; coçou-se, passou, estava bom”. O segundo havia conseguido imprimir um Panegírico de Santa Mônica, e passa a viver em função dele, que se transforma em sua “segunda alma”. É uma crítica ao texto convertido em objeto de culto, pouco importando a eficácia interno do discurso, a textura.

9. “Otelo”:


Desdemona by Frederic Leighton / "Othello e Desdemona em Veneza" por Théodore Chassériau (1819–1856)

Toda história gira em torno da traição e da inveja. Inicia-se com Iago, alferes de Otelo, tramando com Rodrigo uma forma de contar a Brabâncio, rico senador de Veneza, que sua filha, a gentil Desdêmona, tinha se casado com Otelo. Iago queria vingar-se do general Otelo porque ele promoveu Cássio, jovem soldado florentino e grande intermediário nas relações entre Otelo e Desdêmona, ao posto de tenente. Esse ato deixou Iago muito ofendido, uma vez que acreditava que as promoções deveriam ser obtidas "pelos velhos meios em que herdava sempre o segundo o posto do primeiro" e não por amizades.
Em Chipre, Iago que odiava a Otelo e a Cássio, começou a semear a sementes do mal, ou seja, concebeu um terrível plano de vingança que tinha como seus objetivo arruinar seus inimigos. Hábil e profundo conhecedor da natureza humana, Iago sabia que, de todos os tormentos que afligem a alma, o ciúme é o mais intolerável.
Ele sabia que Cássio, entre os amigos de Otelo, era o que mais possuía a sua confiança. Sabia também que devido a sua beleza e eloquência, qualidades que agradam às mulheres, ele era exatamente o tipo de homem capaz de despertar o ciúme de um homem de idade avançada, como era Otelo, casado com uma jovem e bela mulher. Por isso, começou a realizar seu plano.
Sob pretexto de lealdade e estima ao general, Iago induziu Cássio, responsável por manter a ordem e a paz, a se embriagar e envolver-se em uma briga com Rodrigo, durante uma festa em que os habitantes da ilha ofereceram a Otelo. Quando o mouro soube do acontecido, destituiu Cássio de seu posto. Nessa mesma noite, Iago começou a jogar Cássio contra Otelo. Ele falava, dissimulando um certo repúdio a atitude do general, que a sua decisão tinha sido muito dura e que Cássio deveria pedir a Desdêmona que convencesse Otelo a devolver-lhe o posto de tenente. Cássio, abalado emocionalmente, não se deu conta do plano traçado por Iago e aceitou a sugestão.
Dando continuidade a seu plano, Iago insinuou a Otelo que Cássio e sua esposa poderiam estar tendo um caso. Esse plano foi tão bem traçado que Otelo começou a desconfiar de Desdêmona. Iago sabia que o Mouro havia presenteado sua mulher com um velho lenço de linho, o qual tinha herdado de sua mãe. Otelo acreditava que o lenço era encantado e, enquanto Desdêmona o possuísse, a felicidade do casal estaria garantida. Sabendo disso e após ter encontrado o lenço que Desdêmona perdera, Iago disse a Otelo que sua mulher havia presenteado o seu amante com ele. Otelo, já enciumado, pergunta a sua esposa sobre o lenço e ela, ignorando que o lenço estava com Iago, não soube explicar o que aconteceu com ele. Nesse meio tempo, Iago colocou o lenço dentro do quarto de Cássio para que ele o encontrasse.
Depois, Iago fez com que Otelo se escondesse e ouvisse uma conversa sua com Cássio. Eles falaram sobre Bianca, amante de Cássio, mas como Otelo que só ouviu partes da conversa, ficou com a impressão de que eles estavam falando a respeito de Desdêmona. Um pouco depois Bianca chegou e Cássio deu a ela o lenço que encontrara em seu quarto para que ela providenciasse uma cópia. As conseqüências disso foram terríveis: primeiro Iago, jurando lealdade a seu general, disse que, para vingá-lo, mataria Cássio, mas sua real intenção era matar Rodrigo e Cássio simultaneamente porque eles poderiam estragar seus planos. No entanto, isso não ocorreu conforme suas intenções, Rodrigo morreu e Cássio ficou apenas ferido.
Depois Otelo, totalmente descontrolado, foi a procura de sua esposa acreditando que ela o havia traído e matou-a em seu quarto. Após isso, Emília, esposa de Iago, sabendo que sua senhora fora assassinada revelou a Otelo, Ludovico (parente de Brabâncio) e Montano (governador de Chipre antes de Otelo) que tudo isso foi tramado por seu marido e que Desdêmona jamais fora infiel. Iago matou Emília e fugiu, mas logo foi capturado. Otelo, desesperado por saber que matara sua amada esposa injustamente, apunhalou-se, caindo sobre o corpo de sua mulher e morreu beijando a quem tanto amara.
Ao finalizar a tragédia Cássio passou a ocupar o lugar de Otelo, Iago foi entregue às autoridades para ser julgado e Graciano, uma vez que seu irmão Brabâncio morrera, ficou com os bens do mouro.


Santiago chama a si mesmo Otelo, mas sua franqueza desembaraçada assemelha-se mais propriamente ao estilo dissimulado do “honesto Iago”, que do apaixonado Otelo.
“Porque Capitu era culpada, não inocente como Desdêmona e se Desdêmona fosse tão culpada quanto Capitu? Que fim o mouro teria concebido para ela?”
Bento tentar se matar, mas não consegue por ser um brasileiro do século XIX, cristão e católico e por conceber uma vingança mais cruel. Capitu e Desdêmona morrem amando.
Iago descreve Cássio: grande matemático, um florentino (ou seja, dado à cortesia e adulação insinceras, além de comerciante), um calculista, modos insinuantes (sedutor de mulheres). Escobar veio de Curitiba, que como Florença era considera uma cidade de ofícios de couro e de comerciantes, descobre quantas casas D. Glória possui e consegue que ela financie seus negócios.
Iago acusa Cássio de calculista, quando na verdade é ele, Iago, que coloca as jóias de Rodrigo na própria bolsa. Bento se importa com dinheiro; mas, assim como Iago chama Cássio de calculista, ele diz de Escobar: “Descíamos à praia e íamos ao Passeio Público, fazendo ele os seus cálculos, eu os meus sonhos.”

10. Três possíveis leituras do romance:
Escrito para sair diretamente em livro, o que ocorreu em 1900 embora com data do ano anterior, o terceiro romance da “trilogia” realista de Machado de Assis sugere três leituras sucessivas: a primeira, romanesca é a história da formação e decomposição de um amor, do idílio da adolescência, passando pelo casamento, até a morte da companheira e do filho duvidoso; a segunda, próxima do romance psicanalítico e policial, é o libelo acusatório do marido-advogado à cata de prenúncios e evidências do adultério, tido por ele como indubitável; e a terceira, mais instigante, deve ser realizada à contracorrente, pela inversão do rumo da desconfiança, transformando em réu o próprio narrador, em acusado o acusador. Este, na ânsia de convencer a si mesmo e ao leitor da culpa da mulher, monta uma rede intrincada de armadilhas para defender a reputação de um-cidadão-acima-de-qualquer-suspeita que, estando com a palavra, tenta seduzir o “fino leitor” e a “castíssima leitora”, ganhar-lhes a simpatia.