sábado, 18 de setembro de 2010

FERNANDO PESSOA E “SUAS PESSOAS”




I – LOCALIZAÇÃO:

A Primeira Geração Modernista em Portugal, também conhecida como Orfismo, iniciará em 1915, com a publicação da Revista Orpheu.
Influenciados pelas vanguardas européias, alguns jovens, entre eles: Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor, José de Almada-Negreiros e o brasileiro, Ronald de Carvalho, lançam a proposta modernista através da Revista Orpheu, em Portugal.

II - CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL:

O Modernismo português ocorrerá em pleno período republicano, permeado entre crises de nacionalismo do povo português.
Em um período curto, os portugueses assistiram à derrocada da Monarquia, a Proclamação da República e a instauração da Ditadura de Salazar.
Assuntos como à expansão marítima, o Sebastianismo e o período de glória portuguesa, substituídos pela crise política, econômica e social são retomados por vários artistas, com o intuito de fazer renascer o espírito saudosista, ressuscitar a cultura lusitana e atualizar Portugal na área cultural e artística.


III – REVISTA ORPHEU:

O Orfismo, ou Orfeísmo ou Primeira Geração Modernista em Portugal, foi um movimento de inovação no campo artístico, não só por irreverência em insultar o burguês, como também pelo escândalo que causou em sua época.
Revista de publicação trimestral teve somente dois números publicados: no primeiro número, ainda nota-se uma influência saudosista-simbolista e o segundo número, livre da arte passadista e dirigida por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, provoca inquietações por suas tendências futuristas.

IV – AUTOR:




Fernando Pessoa

(Lisboa, 1888 – 1935)

“viver não é necessário; o que é necessário e criar.”


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Fernando Pessoa

Nasceu em Lisboa, no dia 13 de junho de 1888, filho de Joaquim de Seabra Pessoa, funcionário público e crítico musical e de Maria Madalena Pinheiro Nogueira.
Aos cinco anos de idade, morre seu pai tuberculoso e em 1895, sua mãe casa-se novamente. Fernando Pessoa segue para Durban, na África do Sul em companhia de sua família.


Em 1902, começa a criar pequenos jornais, de distribuição doméstica, onde surgem poemas assinados por Dr. Pancrácio, Eduardo Lança e outros alter egos.
Em 1903, ganha o Prêmio Rainha Vitória, para o melhor ensaio em inglês, em concurso da Universidade do Cabo e em, 1904, publica um poema em inglês de Charles Robert Anon, considerado por alguns o primeiro dos seus heterônimos.
Fernando Pessoa só retornou a Lisboa em 1905 para ingressar no Curso Superior de Letras, que não o concluiu.



Em seguida, escreve os primeiros textos do heterônimo Alexander Search, suposto autor de contos, ensaios e mais de 150 poemas em inglês.
Em 1907, cria outros alter egos: Faustino Antunes e Pantaleão, em português; Charles James Search e Friar Maurice, em inglês e Jean Seul, em francês.
Publica em 1908, no Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro para o ano de 1909, uma charada em forma de poema, assinada pelo heterônimo humorista Gaudêncio Nabos.
Em 1909, surgem Joaquim Moura Costa, Vicente Guedes e Carlos Otto, seus novos heterônimos.
Em 1911, trabalha como tradutor de obras inglesas e espanholas para português e no ano seguinte publica na revista A Águia, do Porto, o primeiro de vários artigos sobre “A nova poesia portuguesa” e vê seu grande amigo Mário de Sá-Carneiro partir para Paris, fato que dá início a intensa correspondência entre ambos.
Em 1913, publica “Na floresta do alheamento”, na revista A Águia, trecho pertencente ao “Livro do desassossego”, do semi-heterônimo Bernardo Soares, por considerá-lo mais próximo de si mesmo.
Fernando Pessoa, em 1914, publica na revista A Renascença, de Lisboa, “Ó sino da minha aldeia” e “Paus de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro”, também aparece o primeiro poema do heterônimo Alberto Caeiro e o poema “Ode triunfal”, marcando o surgimento do heterônimo Álvaro de Campos e as primeiras odes de Ricardo Reis.
Em 1915, surge o heterônimo Antônio Mora, grande teórico do neopaganismo e ocorre a morte de Alberto Caeiro. Junto com Mário de Sá-Carneiro funda a revista “Orpheu” (1915), incluindo no volume “O marinheiro”, assinado por Pessoa; “Opiário” e “Ode triunfal”, assinado por Álvaro de Campos, marcando o início do Modernismo em Portugal.


Revista Orpheu, fascículo nr. 1, Janeiro–Fevereiro–Março de 1915


“ORPHEU" - Revista Trimestral de Literatura
Ano I - 1915, N.º 1, Janeiro - Fevereiro - Março.
Propriedade de: Orpheu, Lda.
Editor: Antonio Ferro
Direcção: Luiz de Montalvôr e Ronald de Carvalho
Oficinas: Tipografia do Comércio - 10, Rua da Oliveira, ao Carmo - Lisboa.
capa desenhada por José Pacheco
Sumario:
Luiz de Montalvôr - Introducção
Mario de Sá-Carneiro - Para os "Indicios de Oiro" (poemas)
Ronald de Carvalho - Poemas
Fernando Pessoa - O Marinheiro (drama estático)
Alfredo Pedro Guisado - Treze Sonetos
José de Almada-Negreiros - Frizos (prosas)
Côrtes-Rodrigues - poemas
Alvaro de Campos - Opiário e Ode Triunfal


Em seguida, sai “Orpheu 2”, com “Chuva oblíqua”, de Pessoa e “Ode marítima”, de Campos e cria Raphael Baldaya, um heterônimo astrólogo.

Revista Orpheu, fascículo nr. 2, Abril–Maio–Junho de 1915


"ORPHEU" - Revista Trimestral de Literatura
Ano I - 1915, N.º 2, Abril - Maio - Junho
Propriedade de: Orpheu, Lda.
Editor: Antonio Ferro
Direcção: Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro
Redacção: 190, Rua do Ouro - Livraria Brasileira
Oficinas: Tipografia do Comercio, 10, Rua da Oliveira, ao Carmo - Telefone 2724, Lisboa
Colaboração especial do futurista Santa Rita Pintor

Sumario:
Angelo de Lima - Poemas Inéditos
Mario de Sá-Carneiro - Poemas sem Suporte
Eduardo Guimaraens - Poemas
Raul Leal - Atelier (novela vertígica)
Violante de Cysneros (?) - Poemas
Alvaro de Campos - Ode Marítima
Luís de Montalvôr - Narciso (poema)
Fernando Pessôa - Chuva oblíqua (poemas interseccionistas)


Orpheu (1915/1916 -1º, 2º, 3º números)
"O Orpheu é a soma e a síntese de todos os movimentos literários modernos. Entenda-se que parte do simbolismo, do decadentismo, do paulismo, simultaneismo, futurismo, cubismo, expressionismo, sensacionismo, interseccionismo e outros ismos" (Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação).
“Orpheu representa um desafio à sociedade culta portuguesa e o desejo de elevar Portugal à dimensão do moderno, à dimensão da Europa.No Orpheu está patente o fantasma da infância. A infância é anterior à divisão, à fractura da consciência, à descoberta do abismo. O mito da infância não parece inovador no meio do conjunto de agressões sofridas por quem lêr a revista.Mas é no entanto, a grande ponte para a mito-crítica do poeta, é um daqueles elementos em que sempre se pára e se reflecte, para detectar o que essa intersecção, quase que incontrolada, traz consigo. A infância, fantasma recorrente, põe o problema da desadequação do autor à vida e à realidade de si mesmo, que nunca lhe agradou. Traduz em última análise, o apelo do mundo original da mãe, do estado anterior à queda do nascimento. O fim último do Orpheu, que ele pretendia atingir era a fusão de toda a poesia lírica, épica e dramática, em algo de superior que as transcendia. A sua iniciação era a palavra - o seu verdadeiro e único mistério; é o esoterismo no projecto de Orpheu. A desarticulação da metrificação tradicional, o verso livre, a estrofe igualmente livre, que a par de formas tão clássicas como o soneto, os homens do Orpheu utilizaram, já tinham sido introduzidas por Junqueiro, Pascoaes e Nobre. No entanto, o emprego do contraste do requinte da forma e um prosaismo de estilo, identificam uma crise de que o Orpheu é representante. Os homens do Orpheu, trouxeram ao primeiro plano da vivência poética uma nova concepção da personalidade - subjacente à mentalidade do grupo de Orpheu, está a derrocada de todos os valores anunciados por Nietzsche. No plano sociológico à projecção cósmica do espírito poético no Universo, efectuada por Teixeira de Pascoaes, emerge antítese: a busca de uma "estruturação transcendental", de percurso até ao infinito pelo jogo das personalidades até ao mais fundo da própria consciência. Em todos os seus escritos (políticos, comerciais) usou uma ironia transcendente, que é uma das constantes da poesia portuguesa e que define sui generis o grupo Orpheu, porque ela exprime a mutabilidade, diversidade e imprevisibilidade da vida.Com Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e Almada Negreiros tornou-se um símbolo "único e diverso, nacional e universal, actual e eterno - e um exemplo de coragem moral e de indefectível liberdade de espírito"
Há apenas duas coisas interessantes em Portugal
a paisagem e o Orpheu.
(Álvaro de Campos)
Fernando Pessoa, ao mesmo tempo que se vai distanciando da geração da Renascença Portuguesa, vai-se aproximando de outra geração, que ficará conhecida como a Geração do Orpheu. Reúne-se, com frequência, em cafés da baixa lisboeta, com Mário de Sá-Carneiro e Santa-Rita Pintor, que trazem presentes as novas tendências estéticas européias, nomeadamente, francesas, com Amadeo de Sousa Cardoso, Almada Negreiros e Raúl Leal. Deste grupo, a que se acrescentam Luis de Montalvor, Armando Cortês Rodrigues, bem como António Ferro, irá surgir o projecto de uma revista destinada a congregar as diversas tendências estéticas destes artistas e a intervir na vida intelectual e literária portuguesa, projecto que se concretiza na revista Orpheu, financiada pelo pai de Mário de Sá-Carneiro. No primeiro número desta revista (Abril de 1915) colaboram Luís de Montalvor, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Alfredo Pedro Guisado, Almada negreiros, Cortês Rodrigues, Álvaro de Campos e José Pacheco, o responsável pela direcção gráfica. No final da introdução a esta primeira edição, assinada pelo seu director Luis de Montalvor, o grupo manifesta o propósito de ir ao encontro de alguns desejos de bom gosto e refinados propósitos em arte que isoladamente vivem por aí, convictos de que a revista, pelo seu carácter inovador, revela um sinal de vida no ambiente literário português e o desejo, por parte do público leitor de selecção, de mostras de contentamento e de adesão para com este projecto literário. Se da parte dos leitores de selecção, esta primeira edição encontrou mostras de carinho e de contentamento, no público em geral causou grande escândalo e polémica. A revista abalou decididamente o ambiente literário português pela ousadia e vanguardismo dos textos que nela se reuiram. Foi, sem dúvida, um sinal de vida que rompeu com as tradições literárias e significou o advento do modernismo no nosso país. O próprio Pessoa, em carta a Armando Côrtes-Real, revela o sucesso da revista e o escândalo que esta provocou, nomeadamente pelo poema 16 de Mário de Sá-Carneiro e a Ode Triunfal de Álvaro de Campos.
Do segundo número da revista (Junho de 1915), dirigido por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, constam textos de Angelo de Lima, Mário de Sá-Carneiro, Eduardo Guimaraens, Raul Leal, Violante de Cysneiros, Luis de Montalvor, Fernando Pessoa e Álvaro de Campos. Esta edição conta ainda com a colaboração de Santa-Rita Pintor. O terceiro número da revista não passou, por falta de financiamento, da fase das provas de página. Para este número estavam previstos textos de Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, Albino Menezes, Augusto Ferreira Gomes, Almada Negreiros, Thomaz de Almeida, de C.Pacheco e de Castello Moraes. Para além da falta de dinheiro para a continuidade do projecto, o grupo do Orpheu em breve se vê desagregado, para o contribuiu a morte de Mário de Sá-Carneiro, em 1916, de Santa-Rita Pintor e de Amadeo de Sousa Cardoso, em 1918, a ida de Côrtes-Rodrigues para os Açores, de onde era natural, e o afastamento de António Ferro para outros campos como o jornalismo e a política. Depois do Orpheu, Almada Negreiros, em 1917, dirige a revista O Portugal Futurista, que se assemelha em muitos aspectos à revista do grupo. Tratou-se, contudo, de um projecto que não passou do primeiro número. Alguns anos depois, em 1922, José Pacheco tenta reconstruir o grupo Orpheu com o lançamento da Contemporânea, revista que conhece uma série de edições, nas quais Fernando Pessoa colabora com vários textos. Não passou contudo de uma tentativa, já que lhe faltava, desde logo, o arrojo e o talento de grande parte dos nomes da Geração do Orpheu.”
Fonte: http://www.ufp.pt/ - Universidade Fernando Pessoa - Portugal


Em 1916, Pessoa começa a produzir os chamados “escritos automáticos”, supostamente, ditados por espíritos e em 26 de abril do mesmo ano, Mário de Sá-Carneiro suicida-se em Paris, a um mês de completar 26 anos.
Envia “The Mad Fiddler”, em 1917, uma coletânea de poemas a uma editora inglesa, que recusará sua publicação. Publica o “Ultimatum”, de Campos, na revista Portugal Futurista.
Em 1918, publica os livros de poesia em inglês “Antinous” (escrito em 1915) e 35 sonetos.
Depois da derrota da insurreição que tenta restaurar a monarquia em Portugal, Ricardo Reis, em 1919, segundo a sua “biografia”, exila-se no Brasil. Nesse mesmo ano, Pessoa conhece Ofélia Queirós e inicia um namoro, o único de Pessoa e que foi rompido por ele, através de uma carta, depois de um ano.
Em 1921, funda a editora Olisipo e publica vários poemas.
Funda a revista Athena, em 1924 e publica 20 odes de Ricardo Reis, poeta então desconhecido do público. O quarto número de Athena, datado de 1925, apresenta o heterônimo Alberto Caeiro, com 23 poemas de “O guardador de rebanhos” e em seguida, no quinto e último número da revista, incluir 16 composições integradas nos “Poemas inconjuntos”, de Caeiro.
Em 1927, inicia intensa colaboração na revista Presença e publica um poema assinado por Pessoa e o texto “Ambiente”, de Campos.
Em 1928, cria o seu último heterônimo, o fidalgo Barão de Teive e revela na revista Presença, uma “Tábua bibliográfica”, análise da própria obra e da sua divisão em textos ortônimos e heterônimos. A partir de 1929, troca cartas com Aleister Crowley, grande mago e estudioso de ocultismo e inicia a publicação, prolongada até 1932 em diversas revistas, de onze trechos do “Livro do desassossego”, assinados por Bernardo Soares.
Em 1930, escreve os seus dois últimos poemas datados de Alberto Caeiro, ambos de “O pastor amoroso” e 1931, “Autopsicografia”, de Pessoa.
Em 1933, a revista Presença, publica o poema “Tabacaria”, de Campos e “Eros e psique”, em 1934. Ainda em 1934, participa de um concurso literário do Secretariado de Propaganda Nacional de Lisboa com a obra “Mensagem”, classificando-se em segundo lugar (única obra em português publicada em vida).



Em 1935, escreve a Adolfo Casais Monteiro uma longa carta sobre a gênese dos heterônimos e as suas crenças espirituais; escreve, “Todas as cartas de amor são ridículas”, último poema de Campos; “Vivem em nós inúmeros”, último poema de Reis; “Há doenças piores que as doenças”, último poema português datado; “The happy sun is shining”, último poema datado em inglês e suas últimas palavras: “I know not what tomorrow will bring” ou “Eu não sei o que o amanhã trará”.
Sua vida boêmia, suas crises existenciais e sua insatisfação pessoal, o levaram à morte em 1935, vitimado por uma cirrose hepática.
Seus 25 mil originais guardados numa arca e a publicação póstuma da sua obra, revelarão Fernando Pessoa como o maior poeta português, ao lado de Camões.


V – OS HETERÔNIMOS E O ORTÔNIMO:




Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo.
Transbordei, não fiz senão estravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.


FERNANDO PESSOA despiu a sua alma para criar várias outras, nas formas de seus diversos heterônimos e personagens literários, antevendo, ainda no século XIX e no início do XX, a sociedade fragmentada em que vivemos hoje.
A genialidade do poeta foi à criação da heteronímia, constituindo-se em um poeta múltiplo.
O poeta desdobra-se em vários outros poetas, criando uma diversidade de “eus” lírico.
Através da carta escrita a Adolfo Casais Monteiro em 13 de janeiro de 1935, Fernando Pessoa explica a gênese do processo de multiplicação, que, sem dúvida, coloca o poeta em destaque na literatura.


Escrita em Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.

Meu prezado Camarada:

Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.

Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer cousa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica., que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras cousas. E essas cousas pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande – um livro de umas 350 páginas –, englobando as várias sub-personalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta – em certo modo secundária – da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português, parte deste mesmo livro) – precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha – e fará bem em supor, porque é verdade – que estou simplesmente falando consigo.)
Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.
Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem», que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista; essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente.) Depois – e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia – tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa., impuro e simples!
Creio que respondi à sua primeira pergunta.
Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e cousas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro – os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas cousas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as cousas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente – um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em que, um rival do Chevalier de Pas... Cousas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto, vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer cousa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido – estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido –, diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Construí-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1,30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 in de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos – o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É, um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro, por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular o que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas cousas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis – ainda inédita – ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso.)
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever. (1) Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo. Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando-se até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Externa do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é Criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho esse extremamente perigoso, em todos os sentidos; o caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeito de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente – o que é facto – que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1888.(2) Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a origem) trechos de Rituais que estão em trabalho.(3)
Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.

Fernando Pessoa

P. S. (!!!)

Ao escrever sobre Fernando Pessoa, o poeta mexicano Octavio Paz declara que “os poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Afirma ainda, que, no caso de Pessoa, “nada em sua vida é surpreendente - nada, exceto seus poemas.” Homem de vida pública modesta, Fernando Pessoa dedicou-se a inventar. Através da poesia, criou outras vidas, despertando, assim, o interesse por sua própria vida tão pacata. Tornou-se, portanto, o enigma em pessoa.

“Desde cedo, Fernando Pessoa inventara seus companheiros. Ainda em Durban, imagina os heterônimos Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher. Cria também o especialista em palavras cruzadas Alexander Search e outras figuras menores. Mas seria no dia 8 de março de 1914 que os heterônimos começariam a aparecer com toda a força. Neste dia, Pessoa escreve, de uma só vez, os 49 poemas de “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro. Como resposta, escreve também os seis poemas de “Chuva Oblíqua”, que assina com seu próprio nome. Logo, inventaria Álvaro de Campos e, em junho do mesmo ano, Ricardo Reis. Um semi-heterônimo de Pessoa, Bernardo Soares, só em 1982 teve sua obra, “O Livro do Desassossego”, composta por fragmentos de prosa poética, publicada.
Álvaro de Campos e Ricardo Reis, assim como o próprio Pessoa, consideravam-se discípulos de Alberto Caeiro, mas cada um seguiu os ensinamentos do mestre à sua forma, e chegaram até a travar uma polêmica muito interessante sobre o fazer poético.”

Mais do que meros pseudônimos, outros nomes com os quais um autor assina sua obra, os heterônimos são invenções de personagens completas, que têm uma biografia própria, estilos literários diferenciados, e que produzem uma obra paralela à do seu criador. Fernando Pessoa criou várias dessas personagens.
Entre os seus vários heterônimos, destacam-se: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, além da poesia do próprio Fernando Pessoa.
Dessa maneira, a genialidade de Fernando Pessoa é grande demais para caber em um só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterônimo mais atribulado, Álvaro de Campos:

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

Além disso, Fernando Pessoa viveu durante os primórdios do Modernismo, uma época em que a arte se fragmentava em várias tendências simultâneas, as chamadas vanguardas: Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo e muitas outras.
A arte, no momento da explosão das inúmeras vanguardas modernistas por todo o mundo, também se dividia e se multiplicava. Fernando Pessoa, introdutor das vanguardas modernistas em Portugal, ao se dividir, levou a fragmentação da
arte moderna até as últimas consequências.






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1. ALBERTO CAEIRO: (Lisboa, 1889 – 1915)


“O único mistério do Universo é o mais e não o menos...”




"Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso."


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse,
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr-de-sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. (...)

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho. (...)

Alberto Caeiro nasceu em Lisboa em 16 de abril de 1889. Órfão de pai e mãe, o poeta foi criado por uma tia-avó, no campo. Sem escolaridade (não completou o primário, por isso cometia vários erros em sua escrita) e sem profissão, porém considerado o “Mestre Bucólico”.
Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos 49 poemas da série O Guardador de Rebanhos. Segundo Pessoa, foram escritos na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego, sem interrupções. Esse processo criativo espontâneo traduz exatamente a busca fundamental de Alberto Caeiro: completa naturalidade.
Estatura média, louro sem cor, olhos azuis de criança que não tem medo, pálido, voz sem intenções, mãos delgadas...Homem de grande simplicidade, um camponês-poeta.
Através de versos livres e brancos, próximos da prosa, com uma linguagem coloquial, e o vocabulário limitado pouco ilustrado em perfeita consonância com sua busca de simplicidade e espontaneidade, prega o contato direto com a natureza, com as próprias coisas, como sendo a maior sabedoria.

CAEIRO rejeita, radicalmente, as metafísicas, os sistemas de idéias que impedem o pleno contato sensorial com o mundo, que impedem o sadio e o pleno “ver o mundo” e a comunhão com a natureza.
Caeiro é o poeta dos fenômenos, contra a poesia emotiva. Ele não está preocupado com dogmas, nem conhecimentos institucionalizados, somente em sentir as coisas como elas de fato são.

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Em constante oposição ao racionalismo (“O Mundo não se fez para pensarmos nele”), rejeitando radicalmente as metafísicas (“Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...”), vive ou descreve, a descoberta diária, “o novo” da aprendizagem de desaprender (“Procuro despir-me do que aprendi, / Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram.”).

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é.
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...

CAEIRO pratica o realismo sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações da poesia simbolista.
Assim, constantemente opõe a metafísica o desejo de não pensar. Faz da oposição à reflexão, a matéria básica das suas reflexões. Esse paradoxo aproxima-o da atitude zen-budista de pensar para não pensar, desejar não desejar:

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

CAEIRO coloca-se, portanto, como inimigo do misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas as coisas. Busca precisamente o contrário: ver as coisas como elas são, sem refletir sobre elas e sem atribuir a elas significados ou sentimentos humanos:

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.

É importante lembrar que os poetas simbolistas, que antecederam Fernando Pessoa, estavam impregnados de forte misticismo, herdado da poesia romântica. Enquanto românticos e simbolistas carregavam seus poemas de religiosidade, Alberto Caeiro procura, de forma coerente e lógica, afastar-se da reflexão sobre Deus.

Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deus quis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou...

Seguindo esta linha de pensamento religioso, Caeiro escreve um poema muito ousado sobre o menino Jesus. No poema VIII de O Guardador de Rebanhos, destituído de santidade, Cristo é representado como uma criança normal: espontânea, levada, brincalhona e alegre. Nisso, está à religiosidade de Caeiro.

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas…
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou —
«Se é que ele as criou, do que duvido» —
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
CONCLUSÃO:
- exprime o tédio, o enfado, o cansaço, a náusea, o abatimento e a necessidade de novas sensações
- traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia
- marcado pelo romantismo e simbolismo (rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens)

2. RICARDO REIS: (Porto, 1887 - ?)




"Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria."
Para se grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Se Alberto Caeiro era um camponês autodidata desprovido de erudição, seu discípulo Ricardo Reis era um erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política. De acordo com Pessoa:

“Discípulo de Caeiro, REIS retoma o fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste nos clichês árcades do Locus Amoenus (local ameno) e do Carpe Diem (aproveitar o momento).”

REIS busca a "Aurea Mediocritas" (a mediania do ouro) tão prezada pelos poetas do século XVIII. A busca da espontaneidade de Caeiro transforma-se em Reis, na procura da harmonia contida dos clássicos. Deixa de ser uma simplicidade natural e passa a ser estudada, forjada através do intelecto.

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Anti-social, busca no ambiente campestre o equilíbrio entre o prazer e a razão.
Epicurista, não acredita em felicidade extrema, buscando o controle de suas emoções. A brevidade da vida e a efemeridade de todas as coisas estão presentes em seus poemas, analisados de forma filosófica.
Ricardo Reis acredita que o destino de cada pessoa foi já fora traçado (fado), então resta-nos, aproveitar o dia (carpe diem) de forma amena, enquanto a morte não chega.
O poeta é considerado um neoclássico pela sua temática.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo.

A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um vocabulário erudito e muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada.
Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis. Nelas, convida pastoras como Lídia, Neera ou Cloe para desfrutar de prazeres contemplativos e regrados:

Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos, retiremos do horto mundo
Os deprendandos pomos.

As odes de Reis, como as de Píndaro, recorrem sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo, de caráter erudito, afasta-se da convicção de Alberto Caeiro de que não se deve pensar em Deus. Para Ricardo Reis, os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos homens:

Acima da verdade estão os deuses.
Nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.


3. ÁLVARO DE CAMPOS: (Tavira, 1890 - ?)


“Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade."

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo.

Formado em Glasgow, Álvaro de Campos será sempre um engenheiro inativo, não desempregado, pois não suportaria viver trancado entre quatro paredes e uma prancheta.
O mais modernista entre os três heterônimos, têm a inquietação metafísica de Pessoa.
Amante do progresso, da civilização e das máquinas, adere às tendências futuristas.
Ele é, também, o mais radicalmente moderno, o que repercute mais vivamente as contradições existenciais que afligem sua época, caracterizada, por um lado, pelo progresso vertiginoso, e conseqüentemente pela abertura de horizontes revolucionários para a sociedade, e, por outro lado, pelo esgotamento de certas disponibilidades vitais para o homem, que se ressente da falta de um sentido final para os fatos a que assiste.
Álvaro de Campos é um “poeta sensacionalista e por vezes escandaloso”.
De “monóculo e casaco exageradamente cintado”, “franzino e civilizado”, “pobre engenheiro preso a sucessibilíssimas vitórias”
Suas angústias diante do tempo e da vida, faz do poeta, um sadomasoquista, neurótico e inadaptado pelo o mundo que vive.
Diz Pessoa: “...pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.”

Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta três fases distintas em sua poesia.

A. O “decadentista”, o primeiro momento de sua poesia, composta durante uma viagem de barco ao Oriente: “Opiário” (1914).
Este é o único poema da primeira fase de Campos, a fase da morbidez e do torpor (Decadentismo). Exprime o tédio, o enfado, o cansaço, a náusea, o horror à vida, o realismo satírico de certas notações, o abatimento e a necessidade de novas sensações. Traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à monotonia. É marcado pelo romantismo e simbolismo (rebuscamento, preciosismo, símbolos e imagens).
No poema Opiário, Álvaro de Campos, escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico, se apresentando amargurado e insatisfeito. Ainda sob influência simbolista, há preocupação com a métrica e com a rima, declarando-se decadente.

Opiário foi oferecido a Mário de Sá-Carneiro e escrito enquanto navegava pelo Canal do Suez, em março de 1914.

É antes do ópio que a minh’a alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.
(...)
Fuma. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
Pra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?
(...)

B. O “modernista”, o “futurista”, o “cubista”, “sensacionalista” (corrente que faz a mistura eclética das vanguardas modernistas)
Num segundo momento, reencontramos Álvaro de Campos enveredado pelo futurismo, adotando um estilo febril, expressando o caos da vida moderna, oscilando entre o entusiasmo, o ritmo frenético e arrebatador das máquinas, a velocidade, a energia, a audácia e a depressão perante o cansaço e a desilusão da crise de todos os valores existenciais.
Nesta fase, Álvaro de Campos celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna. Sente-se nos poemas uma atração quase erótica pelas máquinas, símbolo da vida moderna.
Álvaro de Campos apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina por oposição à beleza tradicionalmente concebida. Exalta o progresso técnico, essa “nova revelação metálica e dinâmica de Deus”.
A “Ode Triunfal” ou a “Ode Marítima” são bem o exemplo desta intensidade e totalização das sensações. A par da paixão pela máquina, há a náusea, a neurastenia provocada pela poluição física e moral da vida moderna.
Em, a “Saudação a Walt Whitman”, homenageia o grande escritor norte-americano, além de se referir ao conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece comungar, revela uma das mais fortes influências sobre o seu estilo.
- celebra o triunfo da máquina, da energia mecânica e da civilização moderna
- apresenta a beleza dos “maquinismos em fúria” e da força da máquina
- exalta o progresso técnico, a velocidade e a força
- procura da chave do ser e da inteligência do mundo torna-se desesperante
- canta a civilização industrial
- recusa as verdades definitivas
- estilisticamente: introduz na linguagem poética a terminologia do mundo mecânico citadino e cosmopolita
- intelectualização das sensações
- a sensação é tudo
- procura a totalização das sensações: sente a complexidade e a dinâmica da vida moderna e, por isso, procura sentir a violência e a força de todas as sensações – “sentir tudo de todas as maneiras”
- cativo dos sentidos, procura dar largas às possibilidades sensoriais ou tenta reprimir, por temor, a manifestação de um lado feminino
- tenta integrar e unificar tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir
- exprime a energia ou a força que se manifesta na vida
- versos livres, vigorosos, submetidos à expressão da sensibilidade, dos impulsos, das emoções (através de frases exclamativas, de apóstrofes, onomatopéias e oxímoros)


Ode triunfal (fragmento)

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r- eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim, por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(...)

Em Ode triunfal, encontramos os ritmos explosivos, marcados pela oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa. Despreza a rima ou métrica regular. Despeja seus versos em torrentes de incontrolável desabafo, o fluxo das ideias e a ênfase nas sensações. As referências ao mundo moderno, à civilização industrial e o grito eufórico da celebração da tecnologia, são características da estética futurista.


C. A “melancolia”, o “cansaço”
A última fase do heterônimo Álvaro de Campos, em que pontifica o poema Tabacaria, apresenta um poeta amargurado, refletindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência.

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Assim como Ricardo Reis, também Álvaro de Campos confessa-se discípulo de Alberto Caeiro. Mas se Reis envereda pelo neoclassicismo ao tentar imitar o mestre, Campos se revela inquieto e frustrado por não conseguir seguir os preceitos de Caeiro. No poema que se inicia pelo verso "Mestre, meu mestre querido", dialoga com Caeiro, revelando toda sua angústia e perante a incapacidade das realizações, traz de volta o abatimento, que provoca “Um supremíssimo cansaço, /íssimo, íssimo, íssimo, /Cansaço…”.
Nesta fase, Campos sente-se vazio, um marginal, um incompreendido. Sofre fechado em si mesmo, angustiado e cansado. (“Esta velha angústia”; “Apontamento”; “Lisbon revisited”).
O drama de Álvaro Campos concretiza-se num apelo dilacerante entre o amor do mundo e da humanidade; é uma espécie de frustração total feita de incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento, mundo exterior e mundo interior. Revela, como Pessoa, a mesma inadaptação à existência e a mesma demissão da personalidade íntegra, o cepticismo, a dor de pensar e a nostalgia da infância.
- caracterizada pelo sono, cansaço, desilusão, revolta, inadaptação, dispersão, angústia, desânimo e frustração
- face á incapacidade das realizações, sente-se abatido, vazio, um marginal, um incompreendido
- frustração total: incapacidade de unificar em si pensamento e sentimento; e mundo exterior e interior
- dissolução do “eu”
- a dor de pensar
- conflito entre a realidade e o poeta
- cansaço, tédio, abulia
- angústia existencial
- solidão
- nostalgia da infância irremediavelmente perdida (“Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”, Aniversário)

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
(...)
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.



Cruz na porta da tabacaria!


Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria.
Desde ontem a cidade mudou.

(14-10-1930)


Lisbon revisited (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não falem em moral!

Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus me, das ciências!)
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-a!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, como todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem ir sozinho para o diabo!
Para que havermos de ir juntos?
(...)



Poema em linha reta


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil.
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita.
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
(...)


Observe além do verso livre, da linguagem coloquial e da estrofação irregular, o poema apresenta também: a enumeração dos elementos e a descontinuidade das idéias, além do tom confessional, de desabafo e melancólico.


Ode Marítima (fragmentos)

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue -
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve como uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
Ah, quem sabe, quem sabe,
Se não parti outrora, antes de mim,
Dum cais; se não deixei, navio ao sol
Oblíquo da madrugada,
Uma outra espécie de porto?
Quem sabe se não deixei, antes de a hora
Do mundo exterior como eu o vejo
Raiar-se para mim,
Um grande cais cheio de pouca gente,
Duma grande cidade meio-desperta,
Duma enorme cidade comercial, crescida, apoplética,
Tanto quanto isso pode ser fora do Espaço e do Tempo?
(...)


Na altura em que escreveu Ode Marítima, (por volta de 1916) Fernando Pessoa estava embrenhado numa especulação estética que marcaria decisivamente, não só a sua obra, mas também, de várias formas, a dos seus compagnons de route. Durante um curto período produziu esse processo vários “ismos” que foram sucessivamente postulados, desenvolvidos e transformados em corpo constituinte de experiências rápidas ou heterônimos espessos e voláteis. Sucederam-se discussões, artigos e especulações em cujo contexto Apontamentos para uma Estética não-aristotélica (publicado em Athena, nº 3 e 4, Lisboa, Dezembro de 1924 e Janeiro de 1925) é sem dúvida um texto-síntese, marcante e referencial.

Aniversário (15/10/1929)
No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Apontamento
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Álvaro de Campos, 1929

O poema "Apontamento" é um poema sem data, mas que foi publicado em vida por Fernando Pessoa, mais precisamente no n.º 20 da revista Presença, em 1929.
Trata-se obviamente de um poema pertencente a uma fase tardia de Campos, visto que a temática do mesmo (e a sua data) aponta para esses leit motifs recorrentes como a desilusão, o cansaço, o tédio extremo perante uma vida irrealizada. O poema inicia-se como uma espécie de introdução temática em que o "engenheiro" nos apresenta diretamente o seu estado de espírito. Mas mais do que um simples estado de espírito, podemos encontrar uma confissão acerca da natureza intima dos seus sentimentos, ou mesmo da sua psique: Campos revela a natureza múltipla da sua alma.
O tema da multiplicação (ou desmultiplicação) do eu é um tema clássico em Pessoa, mas nem por isso tão evidente em Campos. Isto porque Campos não tem por hábito ser tão racional como Pessoa, porque é por natureza emocional, dramático. E neste poema Campos diz-nos (ou talvez seja Pessoa através de Campos) que se sente múltiplo - e que essa multiplicidade o faz sentir perdido.
A multiplicidade da sua alma, que permite a Pessoa o alcance ao conhecimento através dos olhos diversos dos seus heterônimos, é também o que faz perder a sua unidade, a sua identidade. Por ser muitos, Pessoa (e Campos) sente não ser ninguém. Por isso ele nos diz: "A minha alma partiu-se como um vaso vazio. / Caiu pela escada excessivamente abaixo". A alma partida é a desmultiplicação do eu de Pessoa em vários eus (os heterônimos). Mas é uma desmultiplicação que não resultou: "partiu-se como um vaso vazio"; e o processo desta desmultiplicação foi demasiado doloroso e irreversível (a alma "caiu pela escada excessivamente abaixo").
O fato de ter caído "das mãos da criada descuidada", também nos faz pensar. Que Pessoa não terá planeado a sua dor, que tudo lhe aconteceu por imposição - que ele próprio sentia que o tinham literalmente deixado cair pelas escadas, ele e a sua alma, para se partir em demasiados pedaços, tornando impossível que alguém (ou algo) os reunisse novamente na unidade tão desejada no fim da sua vida, quando tudo parece perdido, e ele deseja o regresso à infância.
A dispersão de Campos (e de Pessoa) é a característica que mais o marca enquanto ele escreve. O excesso de sensações, em virtude de se ter exposto a essa possibilidade teórica através do seu heterônimo mais expansivo - Campos - traz-lhe uma dissolução completa do seu ser. Ele sente-se por isso "um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir".
O resultado é olhado pelos deuses: "Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada / E fitam os cacos que a criada deles fez de mim".
Mas eles não se importam, deixam o poeta à sua desgraça humana: "Não se zangam com ela. / São tolerantes com ela".
Campos é condenado ao seu estado absurdo, sem ajuda de ninguém. Os próprios deuses parecem não compreender o seu estado absurdo. Os deuses apenas "Olham e sorriem. / Sorriem tolerantes à criada involuntária", mentecaptos, limitados pela sua própria natureza acessória à vida cá em baixo.
Linhas Temáticas Expressividade da linguagem
 O canto do Ópio;
 O desejo dum Além;
 O canto da civilização moderna;
 O desejo de sentir em excesso;
 A espiritualização da matéria e a materialização do espírito;
 O delírio sensorial;
 O sadomasoquismo;
 O pessimismo;
 A inadaptação à realidade;
A angústia, o tédio, o cansaço;
 A nostalgia da infância;
 A dor de pensar. a) Poemas muito extensos e poemas curtos;
b) Versos brancos e versos rimados;
c) Assonâncias, onomatopéias exageradas, aliterações ousadas;
d) Ritmo crescente/decrescente ou lento nos poemas pessimistas
a) Na fase futurista, excesso de expressão: enumerações exageradas, exclamações, interjeições variadas, versos formados apenas com verbos, mistura de níveis de língua, estrangeirismos, neologismos, desvios sintáticos;
b) Na fase intimista, modera o nível de expressão, mas não abandona a tendência para o exagero.
Nível semântico
a) apóstrofes, anáforas, personificações, hipérboles, oximoros, metáforas ousadas, polissíndetos.

4. FERNANDO PESSOA - ELE-MESMO: (Lisboa, 1888 – 1935)

A obra que Fernando Pessoa assinou com seu próprio nome (ortônimo), é classificada em: poesia lírica, reunida no Cancioneiro e a de caráter épico: Mensagem.
O Cancioneiro é composto por poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista. É do Cancioneiro um dos poemas mais célebres de Pessoa, Autopsicografia, em que reflete sobre o fazer poético:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

Em sua lírica, o autor versou sobre a sua arte poética, a metalinguagem, o existencialismo, as inquietações sobre seu “eu profundo”, sua solidão e seu tédio.
O leitor atento há de perceber que o poeta parte de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os leitores, lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que gostariam de ter. Sentem-na ao atribuí-la a poeta.


Isto

Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Em sua produção épica, encontramos a temática de cunho nacionalista mística (prega a volta do rei D. Sebastião, para restaurar Portugal e o Quinto Império). A obra “Mensagem” (1934) foi o único livro em língua portuguesa publicado por Pessoa pode ser relacionada como uma espécie de “Os Lusíadas” modernista e retrata a história de Portugal em atmosfera visionária, mitopoética, resgatando a grandeza da pátria e da humanidade.
Os poemas do livro estão organizados de forma a compor uma epopéia fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos acaba formando um elogio de teor épico a Portugal. Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por um nacionalismo místico de caráter sebastianista.
A obra divide-se em três partes: Brasão, Mar português e o Encoberto.
Na primeira, conta-se a história das glórias portuguesas. Na segunda, são apresentadas as navegações e conquistas marítimas de Portugal. Na terceira, é apresentado o mito sebastianista de retorno de Portugal às épocas de glória.

A primeira parte de Mensagem, Brasão, se estrutura como o brasão português, que é formado por dois campos: um apresenta sete castelos, o outro, cinco quinas. No topo do brasão estão: a coroa e o timbre, que apresenta o grifo, animal mitológico que tem cabeça de leão e asas de águia. Assim se dividem os poemas desta parte, remetendo ao brasão de Portugal. Versam sobre as grandes figuras da história de Portugal, desde Dom Henrique, fundador do Condado Portucalenses, passando por sua esposa, Dona Tareja, e seu filho, primeiro rei de Portugal, Dom Afonso Henriques, até o infante Dom Henrique (1394-1460), fundador da Escola de Sagres e grande fomentador da expansão ultramarina portuguesa, e Afonso de Albuquerque (1462-1515), dominador português do Oriente.

D.Sebastião – rei de Portugal

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

Até o mito de Ulisses, que teria fundado a cidade de Ulissepona, depois Lisboa, é apresentado:

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.

A segunda parte, Mar português, apresenta as principais etapas da expansão ultramarina que levou Portugal a ocupar um lugar de destaque no mundo durante os séculos XV e XVI:

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor,
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.


Já a última parte, O Encoberto, apresenta o misticismo em torno da figura de Dom Sebastião, rei de Portugal cuja frota foi dizimada em ataque aos mouros em 1578. Muitas previsões, como a do sapateiro Bandarra e a do padre Antônio Vieira, prevêem o retorno de Dom Sebastião para resgatar o poderio de Portugal, criando o Quinto Império, marcando a supremacia de Portugal sobre o mundo:

As ilhas afortunadas

Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutarmos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando,
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

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