sexta-feira, 4 de junho de 2010

SONETO DO MAIOR AMOR



1. Maior amor nem mais estranho existe
2. Que o meu, que não sossega a coisa amada*1
3. E quando a sente alegre, fica triste*2
4. E se a vê descontente, dá risada.*3

5. E que só fica em paz se lhe resiste
6. O amado coração, e que se agrada
7. Mais da eterna aventura em que persiste
8. Que uma vida mal-aventurada.

9. Louco amor meu, que quando toca, fere
10. E quando fere vibra, mas prefere*4
11. Ferir a fenecer – e vive a esmo*5

12. Fiel à sua lei de cada instante
13. Desassombrado, doido, delirante
14. Numa paixão de tudo e de si mesmo.


*1 – “Transforma-se o amador na cousa amada”

*2 – paradoxo

*3 – “contentamento descontente”

*4 e *5 – aliteração e assonância

O poema acima é de Vinicius de Moraes, publicado no livro Poemas, Sonetos e Baladas (1946), com o título “Soneto do Maior Amor”. Cabe ressaltar antes de mais nada que este livro se insere entre as mais altas realizações do poeta, lugar onde se encontra sua “síntese de ritmos”, “onde encontramos Vinicius inteiro, o de antes e o de depois; o que apela para a transcendência e o que realiza o verso passando os dedos pela viola” (cf. CANDIDO, 2001, p. 121). Ou seja, onde se encontra o “Poeta da Paixão”, nas suas mais conhecidas formas, especialmente para o estudo aqui exercido, o soneto.

Como já menciona o próprio título, o poema a ser analisado trata-se de um soneto: modelo clássico italiano “apto pela sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é (...) uma forma ordenada e progressiva de argumentação” (cf. CANDIDO, 1987, p. 22). Carrega o soneto, ainda, a tradição petrarquiana de disposição de estrofes, dois quartetos (versos 1 ao 4, 5 ao 8) e dois tercetos (versos 9 ao 11, 12 ao 14). Para este tipo de estruturação, a argumentação seria incorporada nas três primeiras estrofes (quartetos e primeiro terceto), ficando ao último verso (terceto) o papel de conclusão do exposto.

Sobre os versos, são eles decassílabos, com exceção somente do verso 12, um octossílabo. As rimas obedecem ao esquema ABAB, ABAB, CCD, EED; quanto à estrutura rítmica, nota-se que os versos 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 10, 14 têm tônica na sexta e na décima sílaba, os chamados heróicos, que dão traços lógicos ou psicológicos da marcha intelectual e afetiva do poema. Aos demais versos, o 1 tem tônicas semelhantes nas sílabas segunda, quarta, sexta, oitava e décima, numa mistura de versos heróico e sáfico, aparentemente, que segue um compasso de sílabas não-tônica ou tônica, não ou sim, ou, numa interpretação ousada, representaria este movimento a indecisão do “Maior Amor” de sossegar-se ou não à “coisa amada”: “Mai/ OR/ a/ MOR/ nem/ MAIS/ es/ TRA/ nho e/ XIS/ te”. Já o verso 9 demonstra um legítimo esquema rítmico sáfico. E o verso 12, o octossílabo, semelhante ao anterior, recebe tônicas nas sílabas quarta e oitava, muito próximo de ser mais um sáfico.

Enjambemants (quebras dos versos para a transposição de um elemento sintático de um verso para o verso posterior – atenuação da pausa final do verso) são observados, ocorrendo entre os versos 1/2, 5/6, 6/7, 7/8, 10/11, 11/12, 12/13.

 Interpretação

À primeira vista, o “Soneto de Maior Amor” causa certa estranheza: amor que “não sossega a coisa amada” (v.2); que “quando a sente alegre, fica triste” (v.3), “se a vê descontente, dá risada” (v.4); “quando fere vibra” (v.10); “prefere/ Ferir a fenecer” (v. 10 e v. 11). Através destas antíteses, deste paradoxo de sentimentos, nota-se que, diferente ao que comumente se lê, vê, ouve sobre o amor, para Vinicius - ou para o eu-lírico - o “maior amor” não encontra essência na “coisa amada”, pois fenece; e vê só condição de prosperar se em “eterna aventura”, pois o faz vibrar. Precisaria o eu-lírico sempre estar envolvido pelo fogo da paixão, dentro das complexidades conflitantes do amor, para sentir-se “alegre”, “em paz”, talvez natural, “fiel à sua lei de cada instante” (v. 12).

Estrofe por estrofe embasaremos melhor este ponto de vista.

 Primeira estrofe

O eu-lírico se inicia com uma assertiva: “maior amor nem mais estranho existe/ que o meu”. Tal estranhamento do amor deve-se à aparentemente incomum confissão: ele “não sossega a coisa amada/ e quando a sente alegre, fica triste/ e se a vê descontente, dá risada”.

Estruturada num jogo de antíteses (a exemplo, um quiasma entre os versos 3 e 4: “alegre” e “risada” contrastando com “triste” e “descontente”) que corporificam parte do paradoxo sentimental vivido pelo eu-lírico em todo o poema, a primeira estrofe já dá indícios do porquê do “Maior Amor” ser o título do poema.

Segunda estrofe

O “e” conectivo que inicia a estrofe dá continuidade à justificação do aspecto incomum do “Maior Amor”. Mas tais justificativas agora tomam mais forma de um porquê: “se agrada/ mais da eterna aventura em que persiste/ que de uma vida mal-aventurada”. Ou seja, poeta deseja a constância do sentimento que a “aventura” lhe proporciona, possivelmente, a paixão, o “maior amor” que encontra na amada o fim.

Terceira estrofe

Esse “louco amor” relatado, “quando toca, fere/ e quando fere vibra”. E não à toa, uma vez que este não procura a alegria da coisa amada, deseja, sim, a “eterna aventura” que gera a inquietação, o sofrimento dela; tanto que “vibra” ao feri-la; e prefere “ferir a fenecer”, já que a “coisa amada” é o fim do “louco amor”.

Quarta estrofe

Pelo enjambement, o trecho final do último verso da terceira estrofe, “e vive a esmo”, mais o último terceto dão fim ao discurso do poema. O travessão, que inicia este final, geralmente tem a função de abrir espaço para comentários, observações acerca do tratado em texto. Ao caso, trata-se do “Maior Amor”. Este que vive “fiel à sua lei de cada instante/ desassombrado, doido, delirante”, sem regras cristalizadas de amor, prossegue em aventura não se importando com o que pode acontecer. Afinal, sua paixão abarca “tudo” e “si mesmo”, por isto, grande demais para ficar preso a apenas uma pessoa.

Desse “louco amor” disse David Mourão Ferreira: essa “necessidade de ‘ferir’ é um dos modos por que se revela a transcendência de uma concepção do amor que se não confina ao prazer dos sentidos nem tampouco à beleza física. Não sossega à “coisa amada”- o mesmo é que obrigá-lo a descobrir-se em toda a complexidade que realmente a caracteriza, a torná-la parceira da sua própria inquietação” (cf. FERREIRA, 2001, p. 113).

O “Maior Amor” do poeta, portanto, não é aquele que se satisfaz ao fim da conquista da amada. Há toque paixão, de conquista, de constante aventura por parte desse amor. Ao ritmo do soneto, Vinicius demonstra que há um além da concepção do amor, que talvez, este seja até maior que ao que vê a paz na amada. Maior porque nunca “fenece”, sempre está vibrando, altivo, obedecendo apenas a sua lei, aquela nascente dos instantes.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente análise do, na minha opinião, melhor soneto do grande Vinícius de Moraes!