DYONÉLIO MACHADO
1. AUTOR:
Nascido em 21 de agosto de 1895, em Quaraí, cidade do Rio Grande do Sul situada na fronteira com o Uruguai, Dyonélio Tubino Machado transferiu-se ainda jovem para Porto Alegre, onde, além do Jornalismo, praticou a Medicina Psiquiátrica, trabalhando no Hospital São Pedro. De seus estudos para o exercício profissional resultou a tese de Doutorado Uma definição biológica do crime, defendida em 1933. O tema conjugava dois pólos de interesse do autor: a questão médica e a social. Seu comprometimento político e social levou a participar da fundação da Aliança Nacional Libertadora, que fazia frente à ditadura imposta ao País por Getúlio Vargas. O fato custou-lhe a prisão, em 1935, quando foi transferido de Porto Alegre para o Rio de Janeiro. Lá, além de ficar detido por dois anos, estabeleceu contato com o Partido Comunista Brasileiro.
Sua estréia literária ocorreu em 1927, com os contos de Um pobre homem. Oito anos depois, a publicação da novela Os ratos granjeou-lhe, juntamente com Marques Rebelo, João Alphonsus e Érico Veríssimo, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras. Além das obras citadas, escreveu, entre outras, o romance de aventuras O louco do Cati (1942), os romances Desolação (1944) e Passos perdidos (1946), a Trilogia da Liberdade (Deuses econômicos, 1966; Sol subterrâneo, 1981, e Prodígios, 1980), bem como Endiabrado (1980), Fada (1982) e Ele vem do Fundão (1982). Faleceu em Porto Alegre, no dia 19 de junho de 1985.
2. “OS RATOS”
2.1. CONTEXTO HISTÓRICO E SOCIAL:
O período que vai de 1930 a 1945 talvez tenha testemunhado as maiores transformações ocorridas neste século. A década de 1930 começa sob o forte impacto da crise iniciada com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, seguida pelo colapso do sistema financeiro internacional: é a Grande Depressão, caracterizada por paralisações de fábricas, rupturas nas relações comerciais, falências bancárias, altíssimo índice de desemprego, fome e miséria generalizados. Assim, cada país procura solucionar internamente a crise, mediante a intervenção do Estado na organização econômica. Ao mesmo tempo, a Depressão leva ao agravamento das questões sociais e ao avanço dos partidos socialistas e comunistas, provocando choques ideológicos, principalmente com as burguesias nacionais, que passam a defender um Estado autoritário, pautado por um nacionalismo conservador, por um militarismo crescente c por uma postura anticomunista e antiparlamentar - ou seja, um Estado fascista. É o que ocorre na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, na Espanha de Franco e no Portugal de Salazar.
O desenvolvimento do nazifascismo e de sua vocação expansionista, o crescente militarismo e armamentismo, somados às frustrações geradas pelas derrotas na I Guerra Mundial: este é, em linhas gerais, o quadro que levaria o mundo à II Guerra Mundial (1939-1945) e ao horror atômico de Hiroxima e Nagasáqui (agosto de 1945).
No Brasil, 1930 marca o ponto máximo do processo revolucionário, ou seja, é o fim da República Velha, do domínio das velhas oligarquias ligadas ao café e o início do longo período em que Vargas permaneceu no poder. Tudo isso, formou um campo propício ao desenvolvimento de um romance caracterizado pela denúncia social, verdadeiro documento da realidade brasileira, atingindo um elevado grau de tensão nas relações do indivíduo com o mundo. Como relata os historiadores acima citados, o painel brasileiro dos anos 30, passava por uma transformação político-social, dando espaço para uma literatura engajada, de denúncia social e documental do verdadeiro retrato do Brasil.
“Até 1930, o Brasil ainda era governado pela oligarquia café-com-leite, que monopolizava o poder desde 1894. Outrora muito poderosa, a aristocracia cafeeira viu seu poder econômico e político declinar durante a década de 1920”. (Nicolina Luiza de Petta e Eduardo Aparício Baez Ojeda, História – uma abordagem integrada).
“A situação política no Brasil em 1928 e 1929 revelou que, ultrapassando a simples disputa entre forças conservadoras diferentes, estava em curso uma luta de classes que opunha irredutivelmente as classes dominantes, fossem elas ligadas à agricultura ou à indústria, e as classes trabalhadoras, do campo e da cidade” (Edgar de Decca, O silêncio dos vencidos).
Como relata os historiadores acima citados, o painel brasileiro dos anos 30, passava por uma transformação político-social, dando espaço para uma literatura engajada, de denúncia social e documental do verdadeiro retrato do Brasil.
2.2. ESTILO LITERÁRIO:
Envolvidos com a crise econômica e política da época, a segunda geração modernista, ocupou-se com a discussão e a retratação da realidade brasileira gerada pela ditadura que se instalou no Brasil com Getúlio Vargas e as relações entre o homem e o mundo.
“Em 30 nós vivemos o problema do realismo, ou neo-realismo, socialista ou não, bem como a incorporação daquilo que as vanguardas do decênio anterior tinham proposto como inovação. Vivemos um grande surto do romance, ligado aos pontos de vista opostos na moda pela sociologia e a antropologia, como um triunfo do social contraposto às tendências espiritualistas e religiosas. Houve dilaceramentos e disputas, com a formação de um antipolo metafísico e as mais rasgadas polêmicas que marcaram todos nós.”
Antonio Candido, Companhia das Letras, 1993
A prosa de 1930 é chamada de Neo-Realismo pela retomada de alguns aspectos do Realismo- Naturalismo, contudo, com características particulares preservadas.
A literatura estava voltada para a realidade brasileira como forma de manifestar as recentes crises sociais e inquietações da implantação do Estado Novo do governo Vargas e da Primeira Guerra Mundial.
Os romancistas observam com olhos críticos a realidade brasileira, as relações entre o homem e a sociedade. Pelo fato dos romancistas deste período adotar como componente o lado emocional das personagens, faz com que esta fase se diferencie do Naturalismo, onde este item foi descartado.
O segundo tempo modernista é marcado pela consolidação das propostas da fase heróica (1922) ao mesmo tempo pelo afastamento do seu radicalismo.
Os autores dessa época adotaram um modernismo mais moderado, voltado para a realidade social e espiritual do Brasil.
A prosa modernista da segunda geração desenvolveu-se em duas tendências: o romance regionalista do Nordeste e o romance psicológico ou intimista.
Nesse clima de denúncia da realidade brasileira, os escritores nordestinos se destacaram porque presenciaram a passagem de um Nordeste medieval para um nordeste inserido na nova realidade capitalista e imperialista. Graciliano Ramos não seria exceção. Engajado nesse clima de denúncia e vivenciando essa nova realidade, procurou exprimir em seus romances toda essa gama de mudanças sociais e psicológicas pelas quais passava o nordeste. Apesar de ser bem viajado e de conhecer costumes de outras terras, foi no Nordeste que encontrou solo propício ao desenvolvimento dos seus romances. Ele respirava nordeste. Comia nordeste. Vivia o nordeste. Tal constatação se explica em suas linhas romanescas, nas quais procurou imprimir sua marca registrada – o cotidiano da psicologia nordestina.
Com Dyonélio Machado e sua obra Os ratos (1935), o Romance de 30 terá uma marca. Nela, o retrato simbólico da realidade de Porto Alegre e de como o dinheiro se torna a síntese das relações sociais capitalistas e do consumismo da cidade grande, é mostrado com toda a profundidade psicológica. Através da vida de um funcionário público, endividado e envergonhado de olhar os credores, a visão cruel da miséria urbana aparece com intensidade em toda a narrativa.
2.3. TEMÁTICA:
A obra Os Ratos escrita por Dyonélio Machado é considerada por ele mesmo um romance social. Com enfoque bastante subjetivo, o romance traz à tona uma questão fundamental: como a dignidade humana é diminuída quando o essencial à sobrevivência humana começa a falar. E como o dinheiro passa a ser determinante nas relações humanas.
Dyonélio Machado deixa transparecer em sua obra a mediocridade, a mesquinhez e a miséria do homem comum, alienado e a preocupação com as relações desumanas pelo sistema capitalista. Todavia o seu texto não chega a ser panfletário ou ideológico. O autor parte do particular para o geral, da experiência pessoal para as contradições da coletividade. Neste momento deixa espaço o escritor, para entrar em cena o psiquiatra, o investigador da consciência egoísta do homem.
A leitura de Os Ratos é, portanto, um convite a uma profunda reflexão sobre uma sociedade regida pelo poder do dinheiro.
2.4. CARACTERÍSTICAS:
Seguem as características típicas do escritor:
- Sua narrativa tende a um fio dramático uniforme, embora termine geralmente por uma explosão alegórica, cada um dos 28 capítulos de Os Ratos tem sua própria célula de suspense, que será resolvida no máximo no seguinte, em que obrigatoriamente surgirá outra;
- Toques discretos e constantes cosidos um ao outro, que prescinde do espetacular;
- Estilo seco, linguagem simples, direta, rápida e com domínio da expectativa. A preocupação com a boa linguagem não afasta o escritor da realidade urbana. Assim, os diálogos entre as personagens retratam a língua coloquial, sem preocupação de formalidade;
- A não existência de heróis, epifanias, momentos sublimes, nada que venha tingir de glória e o cinzento do dia a dia, a pequenez e a mediocridade das ações humanas, na deformação, nos gestos miúdos e na fragmentação do homem;
- A obra de Dyonélio provoca logo a sensação, se colocado no seu contexto histórico, de excesso ou até, deslocando a observação, de insuficiência. Digamos que o autor, ao lançar mão à tarefa compositiva, dispunha objetivamente de duas formas romanescas dominantes: por um lado, o romance documentário, em pleno auge na época de envolvimento intelectual com a realidade do país, e pelo outro o romance psicológico, tributário da revisão intuicionista da categoria temporal, descentrando o enfoque narrativo de fora para dentro do sujeito. O narrador dominante focaliza do externo os acontecimentos, fornecendo uma impressão de materialidade real, histórica dos fatos: seu discurso é objetivo, documentário;
- Em Os Ratos o autor substitui os vocábulos “face” ou “fronte” por “focinho”, ou seja, transforma homens em animais, em ratos (zoomorfização);
- O melhor recurso que o escritor encontrou para nos mostrar que o desespero da personagem Naziazeno é grande, foi o excesso de reticências em toda hora, eis alguns exemplos: “Como já é tarde!...” Está tudo fechado...“Ele certamente estava escrevendo... notas..lançamentos...”;
- Outro recurso literário muito presente na obra é o uso da repetição de uma palavra sem outras intermediárias, para amplificar a idéia do que foi dito. Ex: “Aquela esperança é obstinada, obstinada. Entretanto, o duque confia-confia é inegável”. “Duque confabula, confabula”.
2.5. FOCO NARRATIVO:
O romance Os Ratos é narrado na terceira pessoa (narrador onisciente, discurso indireto livre e discurso direto, com predominância do primeiro).
O narrador (o próprio autor) relata as ações de todas as personagens, concentrando suas observações no íntimo do herói, revelando ao leitor as suas angústias interiores e psicológicas.
Em Dyonélio parece que o narrador foge da estória e temos a impressão de que a estória está sendo narrada pelos próprios fatos. O autor se preocupa com o pacto indissolúvel entre as coisas e os gestos humanos, como é que um vai viciando o outro por baixo da vigilância do espírito.
2.6. TÍTULO:
O título Os Ratos é uma referência ao drama psicológico de Naziazeno Barbosa, protagonista da história. Como os ratos, ele vai sobrevivendo de migalhas. Um rato não questiona sua situação apenas busca sobreviver com o que tem, assim é Naziazeno.
...“Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como se fosse uma lei da polícia comer manteiga. Fica sabendo que quando eu era pequeno, na minha cidadezinha, só sabia que comiam manteiga os ricos... (p. 10)
...“Não digo com o leite - acrescenta depois - mas há muito esbanjamento...” (p.11)
Naziazeno depois de ter conseguido o dinheiro para saldar uma dívida com o leiteiro, meio dormindo, tem o seguinte pesadelo: os ratos estão roendo o dinheiro que ele deixara à disposição do leiteiro sobre a mesa da cozinha.
Os ratos, ganhando a possibilidade de roerem dinheiro, simbolizam o consumismo da cidade grande, o câncer que aniquila os sonhos dos proletários, a desvalorização da solidariedade em função de padrões materiais que elevam o dinheiro à condição meta principal a ser alcançada.
2.7. ESPAÇO:
Numa prosa urbana (a história se passa na cidade), regionalista (porto-alegrenses reconhecem facilmente sua cidade) e intimista (o drama de Naziazeno, embora banal, é sempre apresentado detalhadamente).
2.8. TEMPO:
O romance é linear, com tempo cronológico: vinte e quatro horas.
O posicionamento de Dyonélio em Os Ratos é o de um cronista das desventuras do modesto funcionário e, como bom cronista, remete quase obsessivamente para a categoria do tempo, um tempo inexorável cuja transposição discursiva gera e dilata o sentimento de ansiedade da personagem: O dia continuou... O dia não parou (OR8, p.65): a representação do dia de Naziazeno é assim marcada por referências diretas a inúmeros relógios que fornecem indicações temporais. É importante notar sempre o jogo de contrastes: o protagonista não tem relógio (já o empenhou) e a partir dessas indicações às vezes vagas - outras vezes empíricas, como a passagem de um bonde etc. - ele depreende sua noção aproximativa de tempo. Desse recorte também se delineiam dois mundos a confronto, um dominado pelo tempo externo, convencional dos relógios que se impõe definitivamente como emblema técnico, do moderno e urbano a partir das últimas décadas do século XIX (e é o de que o narrador dá conta), outro que é o tempo interno à variabilidade dos estados psicológicos que é uma projeção imperfeita (do ponto de vista do artifício) e humana do primeiro (e é o tempo vivencial de Naziazeno).
Assim como Machado de Assis ou Joyce, há uma convivência nem sempre harmônica, entre o tempo cronológico e o psicológico, cabendo destacar que em Os Ratos ocorrem entremeios entre as elocubrações psicológicas da personagem central e o relógio que comandava as suas ações, predominando, no entanto, o aspecto cronológico.
2.9. PERSONAGENS:
As personagens criadas por Dyonélio Machado são esféricas, densas. Não há preocupação com aspectos exteriores, aflorando o lado íntimo ou psicológico.
Naziazeno Barbosa – Retrato fiel do modesto funcionário público pobre, que se desdobra em sacrifícios para manter um padrão de vida com o mínimo de dignidade para a família. É um homem comum rebaixado à condição de miserável, exposto à humilhação e ao anonimato que caracterizam o viver das aglomerações urbanas. Trata-se de um herói impotente diante de uma situação aparentemente simples: a fragilidade pela condição de penúria material, atormentado pela necessidade de saldar uma dívida com o leiteiro.
Indivíduo de hábitos eminentemente urbanos, prevenido e observador; todavia fraco e indeciso, julgando constantemente ser inferir às outras pessoas, demonstrando incapacidade de ir além. Vive de imaginar que as coisas podem acontecer, sem, no entanto, tomar qualquer iniciativa.
Naziazeno retrata a espécie de personagem carregada de densidade psicológica doentia, são os neuróticos urbanos, suas obsessões e idéias fixas.
Adelaide - Dona de casa, esposa de Naziazeno. Convive, diariamente, com as dificuldades de um orçamento familiar minguado, insuficiente para o sustento digno da família.
Mainho - Filho de Naziazeno e Adelaide, de quatro anos de idade, que sonha ter um automóvel de brinquedo.
Dr. Romeiro - Engenheiro e diretor da repartição pública onde Naziazeno trabalha. Há suspeitas de corrupção sobre ele. Certa vez, emprestou dinheiro a Naziazeno.
Cipriano – O insolente motorista do diretor.
Horácio, Clementino e Jacinto: Serventes. Funcionários da repartição.
Seu Júlio – Porteiro das obras. “Velho ranzinza e antipático”.
Otávio Conti – Advogado “com a carteira sempre cheia dos mil réis”.
“Dr.” Anacleto Mondina - Falso advogado; bom papo, simpático e gentil, bajulado por conta do dinheiro de que dispõe. Foi quem desembolsou o dinheiro para o grupo (Naziazeno, Alcides e Duque), permitindo ao herói voltar para casa com a quantia devida ao leiteiro.
Rocco - Agiota para quem Alcides já deve uma grana. Nega-se a fazer novo empréstimo.
Fernandes - Agiota que se nega a emprestar dinheiro (cem mil réis) a Duque.
Assunção - Agiota da Rua Nova. Nega-se a emprestar dinheiro.
Alcides Kônrad - Amigo de Naziazeno. “Homem de bicos”, sempre andando pelas ruas, esquinas, sentado no banco das praças, parado nos cafés. Solteiro, vive com a velha mãe. Envolveu-se numa corretagem de automóvel com o Andrade e o Mr. Rees. Tem dívidas com o agiota Assunção e vive tentando fugir dos credores. Quando pressionado “desvia o olhar e fica sonolento, desligado do mundo”. É solidário com Naziazeno na pobreza e nas dificuldades, fazendo tudo para ajudá-lo.
Duque - Amigo de Naziazeno e de Alcides. Sujeito inteligente, “grande lábia”, está sempre dando um jeito de sair das dificuldades. Assim como Alcides, tem seus pontos na praça, em frente ao Banco Nacional, nos cafés, no mercado, no Restaurante dos Operários, etc. Jogador de talento, sorte e sapiência. Munido sempre de grandes idéias e iniciativa. Amigo de “negócios” de Anacleto Mondina e do Dr. Otávio Conti. Ganha alguns trocados com uma ou outra corretagem. Inspira confiança porque tem sempre uma solução para os problemas que envolvem dinheiro.
Fraga - Vizinho de Naziazeno. Parece ter uma vida bem arrumada e de “cumprimentos alegres” não precisando passar pelos vexames financeiros por que passa o protagonista.
Amanuense da Prefeitura – Vizinho dos fundos de Naziazeno. Tem mulher e filhos e anda sempre barbado. Tem “fama de não pagar ninguém”.
Rapaz silencioso – Mora numa casa contígua à de Naziazeno. Empregado de escritório da importadora. “Faz cara de quem não vê e não compreende nada”.
Costa Miranda – Cidadão baixote, cheio de pudores. Foi avalista de um empréstimo para o Alcides, que por sua vez não pagou. Amigo de Naziazeno; emprestou-lhe, na rua, cinco mil réis para o almoço.
Martinez - Dono da loja de penhores onde o anel de Alcides estava guardado. Mostrou boa vontade e foi, à noite, abrir a loja para devolver à jóia.
Mr. Rees: Gerente do New York Bank, que estava em viagem para o Rio de Janeiro.
Andrade – Corretor de valores, “lembra o Gonzaga, antigo dono de uma engraxataria, dinâmico, repleto de expediente”. Tem negócios com o Alcides.
Dupasquier - Dono de uma joalheria. Examina o anel de Alcides e oferece trezentos e cinquenta mil réis. Quando descobre que a proposta é de penhor, desiste do negócio.
2.10. SÍNTESE:
O drama urbano da classe média baixa encontra protótipo perfeito em Naziazeno Barbosa, o herói fragilizado pela preocupação de cumprir um papel social no caos urbano em que vive.
Os Ratos nasceu de um pesadelo relatado a Dyonélio por sua mãe. Narra a história de um pobre barnabé, Naziazeno Barbosa, que perambula um dia inteiro pelo centro de Porto Alegre atrás de uns trocados para saldar uma dívida improrrogável com o seu leiteiro. Ao cabo dessa extenuante jornada de sobressaltos e humilhações, quando se deita para dormir, à noite, Naziazeno deixa o dinheiro do leiteiro sobre a mesa da cozinha, para ser recolhido pelo implacável cobrador na manhã seguinte. Exausto, meio acordado, meio adormecido o pobre Naziazeno julgava que os ratos estão roendo o maço de dinheiro, mas já não encontra forças para saltar da cama e correr à cozinha a tempo de evitar um desastre. O pesadelo do dia torna-se pequeno comparado com a angústia e o sofrimento dessa situação absurda.
2.11. ENREDO:
PARTE I
A obra Os Ratos apresenta o percurso de vinte e quatro horas de angústia no dia a dia de Naziazeno. Sua aflição começa de manhã, com as insolências do leiteiro, que ameaçava cortar-lhe o fornecimento de leite, caso não pagasse os atrasados.
Através do diálogo entre Naziazeno Barbosa e sua esposa, Adelaide, o autor mostra a situação da família: por falta de pagamento, já suspenderam o fornecimento de manteiga e, agora, o leiteiro ameaça não trazer o leite das crianças. Enquanto a mulher argumenta que é possível viver sem gelo e sem manteiga, mas sem o leite das crianças, não, Naziazeno acha que a situação é de considerar o leite como supérfluo.
Naziazeno sai para o trabalho. No caminho vai observando um por um dos passageiros do bonde.
Põe-se a imaginar os problemas de cada um deles, suas manias e conversas.
Aparece o vizinho Fraga. Naziazeno tem a impressão de que ele possui uma vida bem arrumada. O leiteiro e o padeiro, depois de fazerem a distribuição dos seus produtos, ainda conversam um pouco com o Fraga. Ainda no meio do mês, ele já propõe pagamento aos dois, como se não tivesse problemas financeiros.
Pensamentos e recordações de Naziazeno enquanto perfaz o caminho para o trabalho, de bonde.
De quando em vez espia pela janela o cortejo barulhento das carroças de padeiros, lenheiros e leiteiros. Faz tudo para não ser percebido, notado; supões que seu abatimento desperte a curiosidade mórbida das pessoas. Em sua cabeça, a martelada insistente da fatal sentença do leiteiro: “Só tens mais um dia. Um dia...”. Lembra do médico que curou seu filho da meningite e das consultas que até hoje não pagou.
Lembra-se de que a mulher, Adelaide, tem um ar de fragilidade, de fraqueza que mantém acesa a chama da voluptuosidade. Mas, na vida prática, essa fragilidade atrapalha.
Observa as mansões ajardinadas e sonha com jardim que gostaria de poder dar ao seu filho.
O ponto se aproxima e ele começa a traçar os planos para conseguir os seus cinqüenta e três mil réis para o leiteiro.
Naziazeno desce do bonde, mas ainda é cedo para chegar à repartição. Então, decide sentar-se num café próximo.
Conclui que tem duas opções: pedi-lo emprestado ao diretor. Já uma vez fez isso, quando da doença do filho, para pagar os remédios. O diretor emprestou. Mas muitos riram dessa ingenuidade. Ter coragem de emprestar dinheiro para o Naziazeno? Só tinha uma explicação: era novato, não conhecia todo o pessoal. Naziazeno pagou o empréstimo, mas ainda faltaram alguns trocados que o diretor perdoou, não fez questão ou pedir um empréstimo que poderia conseguir com a influência do Duque ou do Alcides (“o Duque sim é esperto, inteligente, sempre arruma uma saída”).
Enquanto espera, fica desanimado. Claro que o diretor não vai emprestar-lhe o dinheiro. Que história vai-lhe contar? A verdadeira, a do leiteiro? Ou outra vez a história da doença do filho?
Naziazeno cria coragem e decide expor o problema ao diretor. Ele lhe emprestaria o dinheiro: sessenta mil réis (deve apenas cinquenta e três ao leiteiro). Voltaria para casa e entregaria o dinheiro à mulher, ocultando-lhe o modo como o conseguiu.
Tudo imaginação. O diretor sequer chegou à repartição. Naziazeno não consegue trabalhar. Finalmente chegou o diretor. É o momento de pedir-lhe o empréstimo.
A dúvida em obter o empréstimo com o diretor começa a abalá-lo. Enquanto o diretor demora-se na secretaria, Naziazeno vai até o centro da cidade à procura do Duque; afinal, ele tem sempre uma solução mágica para os problemas de dinheiro.
Planeja chegar às nove e meia na repartição.
Chega ao mercado e não encontra o Duque nos lugares habituais.
Vai até o cais. Pensa em comprar um jornal, mas o dinheiro de que dispõe não é suficiente, precisa economizar, além disso, o que ele faria com um jornal? “Se ainda fosse como o Alcides...”.
Naziazeno desiste de esperar o Duque. Volta à repartição.
O tempo vai passando. Naziazeno se apavora com o relógio, são quase dez horas e o diretor ainda não chegou. Imagina o absurdo do seu pedido, a repreensão do chefe, a humilhação. Por fim desiste do diretor, abandona o seu serviço (que já está há uns bons dez meses em atraso) sobre a escrivaninha, diz que não está com cabeça para aquilo e sai, vai à luta.
No café encontra Alcides e expõe as suas dificuldades. Alcides sugere uma visita aos cafés do centro. Vem-lhe a idéia de inutilidade, de falta de aptidão para ganhar dinheiro. O Duque consegue cavar, fazer um "biscate", arranjar dinheiro. Ele não. Por quê?
Ao lado de Alcides, enquanto espera o Duque, Naziazeno vai falando das impressões que tem das pessoas. Cansa-se de esperar o Duque no Café. Relembra um caso antigo, da infância, quando estivera doente, quase à morte. A mãe fizera uma promessa: Naziazeno teria que andar um ano vestido de Santo Antônio. Foi um vexame.
Alcides arma um plano: jogar no bicho. Com que dinheiro? Naziazeno deve voltar à repartição e "dar a facada" no diretor. Ele, Alcides, se encarregará do jogo.
Enquanto espera o diretor, Naziazeno perde-se em pensamentos e recordações. Finalmente, o diretor chega. A esperança ressurge. "O senhor pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas".
O diretor vai embora, os funcionários debandam. Naziazeno também.
Depois de tudo, ficou-lhe aquela frase na cabeça: "Não lhe pago as dívidas". Como contar tudo aquilo ao Alcides? Este plano fracassou. Como idealizar outro? Tem uma preguiça doentia. E o pior é que o sol já vai virando para a tarde. Meio dia perdido. Urge pensar numa solução. Como conseguir sessenta mil réis? Pensa em renunciar. Mas é preciso entregar o dinheiro ao leiteiro.
Alcides propõe que Naziazeno vá atrás do Andrade, cobrar-lhe uma dívida. É o resto de uma comissão. É ali na rua Coronel Carvalho. Naziazeno topa. O calor infernal da tarde mantém o seu corpo suado. À medida que se aproxima da casa, vai ficando gelado. Deve ser porque ainda não almoçou. Ou seria a expectativa? O número da casa do Andrade está próximo. Melhor seria não o encontrar. A rua é de gente rica. Claro que o Andrade tem cem mil réis. De repente, o número procurado. Mas é o final da rua. A casinha em que Andrade mora é humilde. A esperança de conseguir dinheiro ali diminui.
Naziazeno bate à porta de Andrade. Ele abre. Explica tudo: não deve exatamente ao Alcides (que ele conhece como Kônrad). Há uma comissão, sim, duma transação de um automóvel, mas a parte que Andrade lhe devia já pagou. Os outros cem mil réis, Alcides tem que recebê-los de Mister Rees. Naziazeno compreende tudo. Despede-se.
Naziazeno, enquanto volta a pé ao encontro de Alcides, vai pensando. Era mais ou menos uma hora da tarde. Se tivesse conseguido o dinheiro com o Andrade, a primeira providência teria sido almoçar. Agora, é encontrar o Alcides e ir atrás do Mister Rees, um alto funcionário bancário.
Alcides não se encontra no café. Naziazeno procura-o noutros cafés ali perto. Nada. Tem, então, uma idéia: o Banco é ali perto. Por que não dar um pulinho até lá? Com certeza, Alcides vai aprovar essa idéia. Ao entrar no banco, fica em dúvida. Teria mesmo direito de cobrar Mister Rees? E se fosse "armação" do Andrade?
Mister Rees está para o Rio de Janeiro. Agora, é tentar almoçar e partir para outro plano. Quem sabe o Duque esteja no Restaurante dos Operários? O problema é conseguir cinco mil réis para o almoço. Como? Talvez no escritório do Dr. Conti.
Naziazeno vai até o escritório do Dr. Conti, pensa em pedir um empréstimo, mas não tem coragem. Voltando, encontra um seu conhecido, o Costa Miranda. Foi a sua salvação: Costa empresta-lhe cinco mil réis para o almoço.
Naziazeno, com os cinco mil réis no bolso, fica indeciso: vai almoçar no Restaurante dos Operários ou em frege do mercado? Não come. Economiza no cafezinho.
Sofre só em pensar em recorrer novamente ao diretor da repartição.
De repente, uma idéia nova perturba-o: e se tentasse a sorte? Por que não? Está com o estômago oco, mas não pode perder essa oportunidade. Ele vê o dinheiro multiplicando-se e, em função disso, imagina a volta feliz para casa. Com este pensamento, dirige-se à tabacaria, onde, nos fundos, há um salão de jogos. Entra, vê o guichê do "bicho" vazio, dirige-se para o salão de onde lhe chega aos ouvidos um ruído fininho de fichas.
Naziazeno, nervosamente, tira os cinco mil réis do bolso e deposita a cédula no número 28. E o milagre acontece, tudo resolvido assim num segundo: os cinco mil réis transformaram-se em cento e setenta e cinco. Agora, é comprar mais fichas, fazer um jogo estudado. Os lances sucedem-se. Naziazeno ora ganha, ora perde. As fichas, pouco a pouco, vão sumindo das suas mãos. Tem agora duas fichas. Toma uma resolução súbita: aposta todas num único número. E perde.
Naziazeno sai da tabacaria, ganha a rua, e dirige-se a uma grande casa atacadista. Àquela hora, o comércio está fechando as portas. Um homem com cara de preocupação está fechando o armazém. Naziazeno, então, dirige-lhe a palavra:
- Queria pedir-lhe mais um favor. Só a grande necessidade me traz aqui na sua casa, antes de resgatar aquele vale. Não tenho a quem recorrer e preciso com urgência de sessenta mil réis.
- Não me é possível.
- Assino-lhe um vale. Venho pagar no fim do mês.
- Impossível.
Naziazeno insiste. Nada. Os dois seguem pela mesma rua, e Naziazeno vai-lhe falando de dificuldades, contando-lhe coisas, insistindo no empréstimo. O outro entra no bonde e vai embora.
PARTE II
Naziazeno caminha pela rua deserta. As casas estão todas fechadas. E assim, fechadas, crescem de importância e de mistério. Seu destino é o mercado. Enquanto anda, vai observando a rua, as casas, a escassez de automóveis, o silêncio. E a silhueta do mercado ao longe, para onde se dirige, vai-se aproximando à medida que caminha.
Naziazeno chega ao mercado. Num dos cafés, o Alcides chama-o. Conversam sobre o que se fez naquele dia. Naziazeno conta-lhe sobre o Andrade e sobre o jogo na tabacaria. O Duque, finalmente, está ali, em outra mesa, conversando com um indivíduo velhusco.
Naziazeno fala da fome, do dia inteiro sem comer. Alcides paga-lhe um leite. Exposto o problema de Naziazeno, Duque sugere um empréstimo com um agiota - o mesmo para quem Alcides já deve uma grana. O próprio Alcides encarrega-se de ir atrás do Rocco. No relógio da Prefeitura, já são seis e vinte.
Os três (Naziazeno, Duque e o cidadão velhusco (o "doutor" Mondina) sentam-se num café, à espera de Alcides (que foi ao agiota). O Alcides volta. O agiota suspendeu temporariamente os empréstimos.
Duque deixa Alcides e Mondina no café e sai com o Naziazeno. Seguem em silêncio. Assim andando, ao lado do amigo, Naziazeno sente-se mais confiante. Vão à casa de seu Fernandes - um agiota.
- Nós precisamos com urgência de cem mil réis.
- Impossível.
Duque arrasta o amigo a outro agiota. Eles vão agora à rua Nova, ao agiota Assunção. Nova negativa. Retornam ao café.
A idéia é abordar o próprio "dr." Mondina, o falso advogado. De início, Mondina nega-se. Mas surge a idéia de tirar um anel de Alcides (anel de bacharel) que está penhorado por um valor muito baixo. Mondina anima-se. Será que ainda dá tempo?
Os quatro (Naziazeno, Duque, Alcides e Mondina) vão à casa de penhores. Será que já está fechada?
Estava. E agora? Alcides propõe: dará a cautela do penhor ao Mondina. No dia seguinte, ele voltará ali e recuperará o anel. Mas o dinheiro tem que ser dado agora. Mondina parece pressentir o "truque", o "golpe". Alcides tem cara de vigarista. Duque intervém: não pode ser assim. Vamos encontrar outra solução. Alcides sugere: e se fôssemos à casa de Martinez, o dono da loja de penhores? Telefonam, e o seu Martinez diz que pode recebê-los em sua casa. No percurso para a casa de Martinez, Naziazeno vai pensando. Será que o homem reconhece Alcides? E o anel? Será que se lembra do Anel? Chegam finalmente.
Martinez, depois de ouvir Alcides sobre a proposta de resgatar o anel penhorado, pergunta pela cautela:
- O senhor trouxe a cautela aí?
Alcides anda sempre com os seus papéis. Martinez examina o papel e, depois, devolve-o. Depois de algum tempo, talvez consultando a esposa, Martinez diz que sim, que é possível ir à loja resgatar o anel.
A caminhada é feita em silêncio. Naziazeno conscientiza-se de que já é noite, embora lá em cima, no céu, ainda seja possível ver uma arzinho do dia.
Chegam. Martinez abre a porta, acende a luz. Convida-os a entrar. Com a cautela na mão, o cofre aberto, faz a procuração. Pronto. Achou o anel. Mondina já havia passado o dinheiro da penhora ao Alcides, que o passa agora ao senhor Martinez. Ele confere. Entrega, finalmente, o anel. Alcides passa-o a Mondina, que se detém a examinar a jóia.
Martinez toma o rumo da praça, de volta para casa. Despede-se ali de Alcides, de Mondina, de Duque e de Naziazeno.
Depois que Martinez vai embora, o grupo fica parado, sem saber o que fazer. Àquela hora, tudo está fechado. Duque sugere uma visita ao Dupasquier da joalheria. Por sorte, a vitrina está aberta. Entram. Dupasquier, meio desconfiado, ouve a proposta, analisa detidamente o anel, pergunta quanto Alcides quer por ele.
“- Ele não deixa por menos de quinhentos mil réis - sugere Duque.
- Não dou nem quatrocentos.
- Quatrocentos e cinqüenta - solicita Duque.
- Não. Não dou mais do que trezentos e cinquenta mil réis.”
Aceitaram. Mas quando falaram que era penhor, Dupasquier desistiu. O grupo não sabe o que fazer. Alcides sugere um dos agiotas, Assunção e Zeferino. Duque opina:
“- Vamos combinar isso num café.”
A proposta do Duque é a seguinte: entregar o anel ao "dr." Mondina como garantia de mais cento e vinte mil réis. Assim, o anel está empenhado por trezentos mil. No dia seguinte, ele e Alcides irão procurar Mondina, empenharão o anel por trezentos mil réis e, então, devolverão o dinheiro.
Naziazeno chega a casa, entra. São nove horas da noite. Adelaide estava preocupada. Todo o dia o marido ficara ausente. Ele mostra os embrulhos. Trouxera-lhe o sapato que estava no conserto. Para surpresa de Adelaide, ele trouxera também manteiga, queijo e dois leõezinhos de borracha para o filho, Mainho.
Enquanto esquenta a comida, Adelaide pergunta:
“- Onde é que arranjaste o dinheiro? Conseguiste "tudo"?”
Ele diz que sim. Conseguiu por intermédio do Alcides e do Duque. Cinquenta e quatro mil e setecentos. Põe todo o dinheiro em cima da mesa. Está com sono. Separa os cinquenta e três mil exatos do leiteiro. Guarda o resto no bolso do colete. Está com sono. São nove e meia da noite.
Naziazeno imagina a reação do leiteiro ao receber, na manhã seguinte, o dinheiro. Vem à tona, na conversa com Adelaide, a situação do Dr. Romeiro, diretor da repartição em que Naziazeno trabalha.
Ouve-se um baque lá fora. Eles levantam a cabeça, atentos. É o portãozinho. Naziazeno vai fechá-lo. Quando volta, reclama do frio.
“- Por que tu não vais deitar?
- Não quero dormir com o estômago muito cheio.”
Surge a preocupação de levantar cedo no outro dia para entregar, em mãos, o dinheiro ao leiteiro.
“- Porque não botava em cima da mesa da cozinha, junto com a panela do leite?”
Naziazeno aprova a idéia. E fica pensando na surpresa do leiteiro ao encontrar o dinheiro.
Adelaide acabara de pôr a panela do leite na ponta da mesa. Ao lado da panela, Naziazeno pusera o dinheiro para o leiteiro. Está preocupado. Deveria por algum peso sobre as notas?
“- Tu achas necessário? Não há vento aqui dentro.
- Não, não é preciso.”
Naziazeno não consegue abandonar a cozinha.
É interessante: passou-lhe o sono agora. É capaz de ler um pouco... Mas muda de idéia: não lhe apetece agora nenhuma leitura... nenhuma daquelas coisas que poderia ler...
Naziazeno acabou indo deitar-se. A mulher dorme, mas ele fica a recordar a "correria" por que teve de passar para conseguir o dinheiro. Está acordado. Entretanto queria dormir. "Tem necessidade de um sono longo, longo...”
Fica a ouvir os barulhos da noite: o vento... o bonde passando... o bonde voltando... de novo o vento... Precisa dormir, descansar a cabeça.
“Serão onze horas? Meia noite?”
Uma pancada, longe, sonora, indica uma hora.
Já lhe parece um século aquela noite e é apenas uma hora!...
Precisa dormir, precisa descansar. Tem de aproveitar esse resto de noite. É estranho: um cansaço tão grande, e não conseguir conciliar o sono...
A falta de sono perturba Naziazeno. A esposa dorme quieta. O filho, Mainho, também. O pensamento fica divagando por várias coisas: a repartição, o seu trabalho, a luz que não o deixa dormir, o médico de Mainho, o "dr." Mondina. Pensa em Alcides, no anel que o "desapertou". "Uma providência, aquele anel". Vem-lhe, na insônia, uma superposição vaga de figuras: o Assunção... Fernandes... Martinez... Duque... Duque arrasta-o de uma lado para outro. Tem um sobressalto: um estalo para o lado da frente. O filho chega também a assustar-se. Adelaide, meio dormindo, nana-o.
"Naziazeno não quis deixar ver que estava acordado".
A insônia continua. Naziazeno põe-se a pensar em tudo: a chegada a casa... o jantar tranquilo, como ele sonhara... o dinheiro ali na mesa, acariciado pelo seu olhar... a ideia de deixá-lo ali, sobre a mesa, evitando o confronto direto com o leiteiro. Se houvesse o confronto, viria inimizade. Assim, continuariam amigos.
E o sono? "Ainda não dormiu! Só ele! Só ele sem dormir..."
Procura não pensar em nada, manter os olhos fechados, buscar tranquilidade.
A insônia persegue Naziazeno. Por estar embrulhado, o calor aumenta. "Sente que vai ficando esperto outra vez".
Pensa no bonde. A recordação passeia por cenas e pessoas relacionadas à maratona do dia: Duque, Alcides, Mondina, o jornal... os "finalmente" da transação com o Mondina. Alcides está amuado. Hesita em passar o anel para o Duque. Finalmente Mondina tira o dinheiro do bolso. Precisa trocá-lo em notas menores, primeiro no café, depois no Bolão. Pronto: transação encerrada. Duque passa-lhe o dinheiro: sessenta e cinco mil réis.
Naziazeno toma o bonde para casa. Tem de passar no sapateiro para pegar o sapato de Adelaide. Pega. A chegada, enfim, a casa. Adelaide vem até ele.
"Outra vez um silêncio súbito". Naziazeno fica em dúvida: teria dormido? Passou toda a noite acordado? O ar tem um chiado... Fica muito tempo a ouvir esse chiado sonoro, metálico, fininho.
Agora, distingue nitidamente dois barulhos: o da respiração do filho e aquele chiado lá fora.
De repente, um barulho no forro... Ratos... São ratos. Fica esperando o barulho dos ratos na cozinha. O barulho aumentou: em vários pontos, no forro, o rufar... A casa está cheia de ratos!
"O chiado desapareceu. Agora, é um silêncio e os ratos..."
Há um roer ali perto. O que estarão comendo? É isto! "Os ratos vão roer - já roeram! - todo o dinheiro!..."
Tem um grande desespero. É preciso levantar-se. Mas o barulho cessou. Há só o silêncio. Será que ratos roem dinheiro? É melhor perguntar à mulher. Absurdo. Claro que ratos não roem dinheiro! "Vê os ninhos, os papéis picados, miudinhos, picadinhos... uma poeira".
"Vai levantar". Mas onde achar forças? "Está com sono. Mas é preciso reagir". Parece ouvir a voz da mulher: "Eles roem papel. Dinheiro é um papel engraxado..."
O barulho sumiu. Cessou também o roer. Decerto os ratos já foram embora. Está amanhecendo.
Ao redor de Naziazeno, as coisas vão ficando mais apagadas. "Depois duma trégua, os ratos voltaram a roer". Com certeza estão roendo a madeira. Seria mesmo madeira? "Talvez depois de consumido o dinheiro, eles passem a roer, a roer a tábua da mesa..."
Agora os ruídos confundem-se. "Está exausto". Precisa dormir, entregar-se.
"Não sabe que horas são". "Mas que é isso?!... Um baque?"
"Um baque brusco do portão. Uma volta sem cuidado da chave. A porta que se abre com força, arrastando. Mas um breve silêncio, como que uma suspensão... Depois, ele ouve que lhe despejam (o leiteiro tinha, tinha ameaçado cortar-lhe o leite...) que lhe despejam festivamente o leite. (O jorro é forte, certamente vem de muito alto...) - Fecham furtivamente a porta... Escapam passos leves pelo pátio... Nem se ouve o portão bater...
E ele dorme."
2.12. CONSIDERAÇÕES FINAIS:
- Há na obra uma cruel crítica à maneira como o dinheiro acabou se tornando a mola propulsora das relações sociais, comandando a respeitabilidade, a ética, a dignidade e até injusta e facilmente, quando não arbitrária e despoticamente, degradando-as, detonando-as;
- O desenrolar do drama do funcionário público endividado e ainda com vergonha de olhar os credores que passam no cotidiano atravessa os capítulos e nos traspassa de angústia. O dinheiro do leite, a doença do menino, a fome do protagonista... Enfim, um empréstimo. Percebemos, na vida de Naziazeno, que ter conseguido o dinheiro para quitar a conta do leite é apenas o início de uma nova dívida, a expectativa de mais um dia caminhando em busca de uma solução;
- O livro Os ratos inicia com a advertência do leiteiro de que cortará o fornecimento de leite caso não receba o pagamento até o dia seguinte. Apenas vinte e quatro horas... Naziazeno sente o desespero da mulher, a vergonha diante dos olhares da vizinhança que presenciam o ultimato. O leitor é invadido pela espiral das angústias do fim do romance. O descanso de Naziazeno não é verdadeiro e não convence. Sabemos que amanhecerão novas inquietações e dívidas para o funcionário, novas cobranças para o chefe de família e novos olhares reprovadores. Mistura-se a essa luta a ansiedade, o desespero, a sensação de fragilidade e inutilidade do ser humano que não tem recursos sequer para garantir o sustento digno da família;
- A mediocridade do papel do protagonista no mundo se contrasta com a forma brilhante como Dyonélio Machado desenvolve a trama e nos envolve no drama do protagonista com diretas reflexões inseridas em nossas rotinas. A reviravolta na narrativa ocorre quando, ao anoitecer, pensamos que o caso está encerrado e percebemos que as vivências ecoam e retornam em ousadas lembranças dos movimentos do dia sob novos olhares. Sentimos com força a angústia de ser e de permanecer próximo do protagonista do escrito literário;
- O passado, principalmente a infância, mistura-se ao presente de Naziazeno Barbosa. O enredo é arquitetado numa superposição de planos: os pensamentos e reminiscências do herói em confronto com a crueza da realidade citadina. Presente e passado alternam-se na composição da história;
- O drama principal do romance não se concentra no leiteiro, nem nos ratos ou no dinheiro: concentra-se na dificuldade para conseguir a quantia desejada, respeitando-se o limite de tempo e espaço;
- Durante a sua via-sacra, Naziazeno encontra pessoas solidárias a sua situação. “- Eu já lhe disse: eu simpatizo muito com a situação dele. Simpatizo muito...” (p.87). Mas nenhuma dessas pessoas é capaz de questionar que estrutura social é esta que leva um pai de família não ter nem o dinheiro para comprar leite para o seu filho. É um livro que acaba questionando a realidade brasileira, onde a diferença social faz com que muitos assalariados, vivam como nossa personagem com dívidas para quitar. E por serem tão habituados a essa situação acham muito natural, sobrevivem assim... com o compadecimento de algumas pessoas;
- A obra Os Ratos desmascara as relações desumanas criadas pelo capitalismo: a causa geral da deformação das personagens. Dyonélio vai buscar essa deformação naquilo em que, com toda obviedade, ela parece não estar: nos gestos miúdos, quase imperceptíveis, como sacudir moedinhas dentro do bolso, cortar nervosamente um pedaço de pão em migalhas, espantar-se com as fisionomias dentro do bonde, estudar longas horas a melhor maneira de falar com um superior, perder o jeito diante de um credor. Enfim, como bom psicanalista, Dyonélio vê a chave humana no fragmentário; o homem de hoje é uma constelação de feridas, cicatrizes, contrações opacas;
- Em uma entrevista concedida ao jornal Movimento (24/11/1975), Dyonélio Machado fala sobre a angústia, principalmente, infantil: “Se nos prolongássemos às angústias infantis, não chegaríamos à idade adulta”; sendo assim, pode-se encontrar na infância um possível “berço” das angústias, muitas vezes inexplicáveis, que se acometem nos adultos.
O filósofo italiano Gianni Vattimo, autor do livro O fim da modernidade (editora Martins Fonte, 2000), ressalta um dos principais pensamentos de Heidegger sobre as reflexões existencialistas voltadas para o conhecimento, à consciência da liberdade do homem em poder fazer escolhas em que o limite será a “morte vivida a cada dia”, chamada angústia. Sendo assim, o pressentimento, a angústia é uma espécie de “morte dosada” do ser humano diante da sua “coisificação”, imposta pela Modernidade (Capra, O ponto de mutação e Harvey, O fim da modernidade).
Naziazeno, personagem principal do romance, enfrenta um dia inteiro, entre o medo e a angústia. O medo para Heidegger é sempre transitório e, quando fortificado por uma razão externa (no caso do romance, os ratos, a dívida) transforma-se em angústia e o referencial (a razão) se desvanece e fica o sentimento sufocante, inexplicável e profundo. No livro, o medo de não conseguir o dinheiro para saldar a dívida com o leiteiro se torna “a morte vivida a cada dia, cada minuto” (angústia) e acesso ao nada.
Por isso, Naziazeno, em certa altura do romance (diante de todas as suas tentativas fracassadas), não pensa mais, não discute mais, perde as esperanças;
- Para Freud, o pensamento obsessivo aparece como uma ligação do inconsciente a certas vontades, não satisfeitas, que levam ao estado de ansiedade ou angústia; o pensamento obsessivo de Naziazeno é a dívida. Em detrimento dela, e por ela, ele é capaz de se sacrificar: ficar sem almoço, pedir dinheiro para desconhecidos, não trabalhar, voltar tarde para casa, não dormir – tornando o ato de saldar uma dívida em um “calvário” (como se o empréstimo fosse a sua única salvação);
- Dyonélio Machado dedica o título da obra e dois capítulos aos ratos. Pelo menos aos olhos do convencional, os ratos (animais de hábitos noturnos que sobrevivem de restos de alimentos e vivem em lixos, sótãos, etc.) causam repugnância, medo, pavor, agonia, angústia, nojo e outros. Qual seria então a possível relação metafórica desse animal com Naziazeno ou com sua condição momentânea? Primeiramente, os ratos, normalmente, são animais indesejados em qualquer residência, ao contrário de gatos, cachorros, peixes ou pássaros, pode-se dizer, então, que os ratos vivem à margem da preferência humana, de uma sociedade. Naziazeno também vive à margem da sociedade, de uma sociedade que normalmente não abdica, por exemplo, do leite, da manteiga, do gelo (no caso particular de Naziazeno), do almoço (nem que esse seja simplesmente uma sopa com pão) de produtos ou condições essenciais para uma qualidade de vida. Esses animais são “desprezíveis”, bem como Naziazeno no início da obra, no momento que nega a necessidade do leite para seu filho. E é também em favor de seu filho que Naziazeno procura saldar sua dívida.
Os ratos, em certo momento da obra, perturbam o sono da personagem, prendem sua atenção, eles incomodam, parecem continuação do dia cansativo, parecem o inconsciente que procura nos detalhes dos barulhos algo para prolongar uma tarefa inacabada: Naziazeno ainda não pagou a dívida, sua vontade ainda não foi satisfeita; o subconsciente trabalha e não o deixa dormir, como se faltasse algum pedaço para juntar o quebra-cabeça. O pensamento obsessivo, a angústia, o inconsciente só param ou descansam com a chegada do leiteiro e a dívida aniquilada: um êxtase toma conta do corpo e da alma de Naziazeno que dorme, agora, tranquilamente; o pensamento obsessivo passa, o medo passa, a angústia desaparece;
- O discurso indireto livre é um recurso, relativamente, recente. Surgiu com os romancistas inovadores do século XX e tem como característica o misto dos discursos direto e indireto. Outro item abordado pelo autor e que remete ao modernismo é o linguajar simples, coloquial, direto, não há “rodeios” nem sentimentalismo exacerbado nas palavras ou pensamentos. A idéia da modernidade e a incorporação das “conquistas” do progresso são destacadas através da citação do “bonde”, da “fábrica”; elementos que também exemplificam coisas do cotidiano, bem como a descrição do café da manhã de Naziazeno, a dívida, o trabalho, as conversas banais em cafés são demonstrações de fatos ligados ao cotidiano e a realidade brasileira. Outra inovação modernista é relacionada ao tempo de ação: na obra de Dyonélio Machado toda a ação se passa em um dia, “interminável” e exaustivo dia que o narrador-observador acompanha entremeando o pensamento de Naziazeno e suas atitudes;
- Conclui-se que o romance Os Ratos possui uma complexidade de temas imperceptíveis em uma primeira leitura. Como se a obra fosse à mente humana: repleta de abismos escondidos em sorrisos e olhares superficiais, sendo necessária uma observação detalhada, com outros prismas, com um novo olhar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário