domingo, 20 de junho de 2010

Machado de Assis por Millôr

SEGUNDO MILLÔR, EM “DOM CASMURRO”, FOI BENTINHO QUEM TRAIU CAPITU

De Millôr Fernandes para a Veja on-line

Publiquei, através de anos, no Estadão, no “O Dia”, e no “Jornal do Brasil” – ao todo aproximadamente dois milhões de exemplares – “pesquisa” sobre “Dom Casmurro”, a obra magna de Machado de Assis. Como minha página era a capa exterior dos jornais citados, e o assunto era picante – se Escobar, “herói” do romance, tinha ou não tinha comido a Capitu, eterna e tola discussão entre beletristas -, devo ter alcançado pelo menos cem mil desprevenidos. Bom, não apenas mostrei que Escobar comeu a Capitu, como, não sei na, acho que tirei “Dom Casmurro” do “armário”.

Como não sou dos maiores – e nem mesmo dos menores – admiradores do bruxo, fundados da Academia Brasileira de Letras (“a Glória que fica, eleva, honra e consola”, eu, hein, que frase!), não vou discutir a maciça, inexpugnável web protecionista que se criou em torno dele.. Não quero polemizar (falta-me vontade e capacidade) com a candura que os eruditos (com acento no ú, por favor) têm pra relação equívoca entre Capitu, a “dos olhos de ressaca” (que Machado não explica se era ressaca do mar ou de um porre), e Escobar, o mais íntimo amigo de Bentinho, narrador e personagem do livro (evidenete alter ego do próprio Machado).
A desconfiança básica vem desde 1900, quando Machado publicou “Dom Casmurro”. “Dom Casmurro” é ou não é corno, palavra cujo sentido de humilhação masculina – que ainda mantém bastante de sua força nesta época de total permissividade – na época de Machado era motivo de crime passional, “justa defesa da honra”, e outros desagravos permitidos pela legislação e pelos costumes.
Curioso que, ontem como hoje, o epíteto corna não se grudou à mulher. Ela é tola, vítima, “não sei como suporta isso!”, “corneia ele também!”, mas o epíteto não colou.
“Dom Casmurro” sofre da dor específica umas 50 páginas do romance, envenenado pela hipótese da infidelidade de Capitu. Que dúvida, cara pálida? Capitu deu pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado de Assis, só não coloca no livro o DNA do Escobar porque ainda não havia DNA. Mas fica humilhado, desesperado mesmo, à proporção que o filho cresce e mostra olhos, mãos, gestos e tudo o mais do amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de comborço (parceiro na cama).
Não fiz interpretações. Apenas selecionei frases – momentos – do próprio Dom Casmurro/Machado, da edição da Editora Nova Aguillar. Leiam, e concordem ou não.

Pág. 868 “Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.”
Mesma página “Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro...Não sei o que era a minha. Mas como as portas não tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e entrou. Cá o achei, cá ficou...”

Pág. 876 “Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os rapazes também e Escobar mais que os rapazes e os padres.”

Pág. 883 “Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele alva e lisa. A testa é que era um pouco baixa...mas tinha sempre a altura necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.
Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz fino e delgado.”
Mesma página “Fui levá-lo à porta...Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver-se, ao longe, ainda olharia para trás, mas não olhou.”
Mesma página “Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.
- É o Escobar, disse eu.”

Pág. 887 “- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário você é a pessoa que mais me tem entrado no coração.
- Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça...Mas a verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e creio que já notaram; mas eu não me importo com isso.”

Pág 899 “Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas, como se não me visse desde longos meses.
- Você janta comigo, Escobar?
- Vim para isto mesmo.”

Pág. 900 “Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio; lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.”

Pág. 901 “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão: um padre que estava com eles não gostou...”

Pág. 902 “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem os dedos.”

Pág. 913 “Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.”

Pág. 914 “A amizade existe, esteve toda nas mãos com quem apertei as de Escobar ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto; estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande força.”

Págs. 925/26 (Depois da morte de Escobar) “Era uma bela fotografia tirada um ano antes. (Escobar) estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no dorso de uma cadeira, a direita metida no peito, o olhar ao longe para a esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costa do cartão: “Ao meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70.”
...

P.S.: Mas, se vocês ainda têm dúvida, leiam a página 845 do fúlgido romance. Bentinho, ele próprio, fica pasmo, e realizado, quando consegue dar um beijo (que dizer, apenas um bicota) em Capitu. É ele próprio quem fala, entusiasmado com seu feito de bravura:
“De repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:
- Sou homem

Um comentário:

Anônimo disse...

Resposta a Millôr sobre Dom Casmurro
Se não fosse de alguém cujo estilo de produzir é o escracho de quase tudo para um público alvo que não tem tempo para refletir; seria repugnante... Por não se ater ao que o autor exatamente escreveu, e sim superficialmente se deu ao direito de usá-lo como Mote para pilhérias de consumo imediato.
Respeito o Senhor Millôr Fernandes pelo que sua pessoa representa para o seu grande público heterogêneo quanto à faixa etária, formação escolar e acadêmica, os amantes desse tipo de azedume presente dos seus comentários ─ direito e gosto a ser respeitado, todavia podendo ser comentado e até refutado... Parece-me que antecipadamente (como que de forma transcendental) Machado vislumbrou esse estilo literário e de agir em Millôr quando da sua Teoria do Medalhão ─ haja chalaça e mais chalaça, coisa comum aos medalhões reproduzirem em seus comentários, exatamente como Machado informa no final do seu conto sobre essa figura exótica.
Ridícula não é a Academia de Brasileiras Letras (porqunto, aquele autodidata de quem Millôr é desafeto foi seu primeiro presidente), também não, Shakespeare e de maneira nenhuma Machado de Assis; entretanto, medíocre é sim a peça teatral Otelo, o Mouro de Veneza do grande Shakespeare, a qual ganhou status de algo bom e de nível excelente na adaptação machadiana Dom Casmurro, cujas diversas interpretações, como esta de Millôr. Contradiz o que disse o grande teatrólogo Eugênio Kusnet; que sentenciou ser necessário analisar cada personagem nos seus objetivos (o que ele é de fato na obra) ─ materializá-lo de forma objetiva dentro do enredo da mesma; e não nos darmos ao direito ilegítimo de achar isto ou aquilo sobre este ou aquele personagem de qualquer obra a revelia do que o autor de fato escreveu. Ver Blog REAL EVOLUÇÃO DA FEITURA DA OBRA DOM CASMURRO, endereço ─ www.verdadedomcasmurro.blogspot.com .
P. S. Não existe nenhum sair do armário e muito menos com essa conotação ─ embora todo o mundo assim afirme ─, no discurso do jovem apaixonado por Sócrates, Alcebíades na obra O Banquete de Platão... Quem não vê e entende o contrário disto; perdeu a oportunidade de ficar calado sobre o assunto. Ver final do Blog também de minha autoria O QUE É O PLC 122 OU A DITA LEI HOMOFÓBICA, endereço ─ www.verdaderespeitoejustica.blogspot.com . A síndrome ou psicose do ver ou de transportar esse pseudo “armário” para todos os lugares, nessa ou naquela pessoa ou até personagem de ficção, como é o caso aqui; chega às raias do ridículo por ser exatamente uma espécie de leitura de analfabeto funcional para o discurso do jovem homossexual Alcebíades ─ homoafetivo: o eufemismo plenamente correto, pois define esse sentimento e direito de assim sentir e fazer ─ o qual, tem que ser seriamente respeitado por todos nós, mas, sem a glamorização exacerbada que se tem dado.
Atenciosamente JORGE VIDAL