ZERA A REZA, CAETANO VELOSO
Vela leva a seta
tesa
Rema na maré
Rima mira a terça
certa
E zera a reza
Zera a reza, meu
amor
Canta o pagode do
nosso viver
Que a gente pode
entre dor e prazer
Pagar pra ver o que
pode
E o que não pode
ser
A pureza desse amor
Espalha espelhos
pelo carnaval
E cada cara e corpo
é desigual
Sabe o que é bom e
o que é mau
Chão é céu
E é seu e meu
E eu sou quem não
morre nunca
Vela leva a seta
tesa
Rema na maré
Rima mira a terça
certa
E zera a reza
O neobarroco, que segundo Chiampi (1998), é uma reciclagem do barroco histórico
feita nos dias atuais, surge como característica do “fim das utopias”. Severo
Sarduy (1979), em seu ensaio O barroco e o neobarroco, apontam três mecanismos
de artificialização que são á base da teoria neobarroca, a saber: substituição,
troca do objeto-foco por outro, que faz referência àquele; proliferação, a
multiplicação de metonímias do objeto-foco através da repetição de termos e
mesmo sequências de significantes; e condensação, fusão de dois dos termos de
uma cadeia de significantes, de cujo choque resulta um terceiro termo que
resume semanticamente os dois primeiros.
“As palavras da letra são uma brincadeira nada rigorosa com inversões e
espelhamentos” (Veloso, 2003).
Esta definição feita pelo compositor refere-se aos quatro primeiros
versos da letra, em que os anagramas: vela-leva; seta-tesa; rema-maré;
rima-mira; terça-certa; zera-reza, utilizados aqui como ludismo, desviam a
atenção do receptor para o texto sob a letra.
Em “Zera a reza” apresenta um dualismo pois, citando a reza, momento sagrado em
que o ser se comunica com o divino, e a música/dança, momento de profanação do
corpo e, o pecado, Caetano Veloso parodia veladamente com a letra Deus e o
Diabo (1989), de sua autoria, em que o verso “O carnaval é a invenção do Diabo
/ que Deus abençoou”, fortalece a correlação entre espírito e corpo; perdão e
pecado; virtude e prazer, características fundamentais do estilo barroco.
Nos versos: “Zera a reza meu amor / canta o pagode do nosso viver” há um
convite para que o receptor, evocado através da expressão “meu amor”, abandone
seu estado contemplativo, principalmente, a reza, e aproveite ao máximo sua
vida, pois tudo é transitório e a vida breve. Há aqui a intertextualidade com
os versos da canção Deixa sangrar (1989), também de Caetano: “Deixa o mar
ferver, deixa o sol despencar / deixa o coração bater, se despedaçar / chora
depois mas agora deixa sangrar, deixa o carnaval passar”, ou seja, é preciso
zerar a reza, livrar-se das convenções e extravasar os sentimentos e as
emoções.
O carnaval é um conjunto de festividades populares que ocorrem em
diversos países e regiões católicas nos dias que antecedem o início da
Quaresma, principalmente do domingo da Quinquagésima à chamada terça-feira
gorda, “a terça certa”.
A própria origem do
carnaval é obscura, embora seja encontrado já no latim medieval, como carnem
levare ou carnelevarium, palavra dos séculos XI e XII, que significava a
véspera da quarta-feira de cinzas, isto é, a hora em que começava a abstinência
da carne durante os quarenta dias nos quais, no passado, os católicos eram
proibidos pela igreja de comer carne.
É possível que suas raízes se encontrem num festival religioso primitivo,
pagão, que homenageava o início do Ano Novo e o ressurgimento da natureza, mas
há quem diga que suas primeiras manifestações ocorreram na Roma dos césares,
ligadas às famosas saturnálias, de caráter orgíaco. Contudo, o rei Momo é uma
das formas de Dionísio, o deus Baco, patrono do vinho e do seu cultivo; e isto,
faz recuar a origem do carnaval para a Grécia arcaica, para os festejos que
honravam a colheita. Sempre uma forma de comemorar, com muita alegria e
desenvoltura, os atos de alimentar-se e beber, elementos indispensáveis à vida.
É, portanto “entre dor e prazer” que acontece o pagode, o samba, o carnaval,
feito, em grande parte, por pessoas que passam a maior parte do ano em meio a
dor, pela marginalidade social imposta.
Dessa maneira, é preciso “pagar pra ver o que pode / e o que não pode ser”,
arriscar-se, extravasar-se com toda coragem, sem medo e sem culpas, mesmo que
seja por poucos dias.
Segundo Bakhtin (1999), em seus estudos sobre o contexto de Rabelais, “os
bufões não eram atores que desempenhavam seu papel no palco. Pelo contrário,
eles continuavam sendo bufões e bobos em todas as circunstâncias da vida.
Situavam-se na fronteira entre a vida e a arte”. Bakhtin (1999) observa ainda
que os atores assistiam às funções do cerimonial sério, para parodiá-los. O
carnaval ignora toda distinção entre atores e expectadores, pois os
expectadores vivem o carnaval. Obviamente, as representações carnavalescas
atuais são outras, mas ainda percebe-se esta essência do carnaval como uma
“segunda vida”, principalmente para aqueles que trabalham durante o ano
preparando a festa, apesar da turistização, e de se fazer hoje um carnaval com
palco (Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro; entre outros).
O folião é um participante essencial para a existência do carnaval, seu sujeito
e objeto; ator e expectador, onde o “chão é céu” por onde as estrelas, que são
os passistas desfilam e brilham no palco ilimitado para o show de uma vida “que
pode e o que não pode ser”, livre das convenções morais, sociais, religiosas e,
com a própria realidade.
Há uma citação de um verso da letra Gente (1977), do mesmo autor, em que diz
que “Gente é pra brilhar”. O carnaval permite a elevação do povo, inclusive os
mais carentes, ao céu e às estrelas.
Não há hierarquia, desigualdades e nem diferenças. O essencial é festejar a
vida com toda a expressividade que o corpo permite, libertando o “eu reprimido”
até na “terça certa”, a “terça-feira gorda”, o último dia da festa.
Para Bakhtin (1999) “convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do
povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade,
liberdade, igualdade e abundância”.
O verso “E eu sou o que não morre nunca”, parodia com outros, “o samba não vai
morrer”, da canção Desde que o samba é samba (1993); “o samba é pai do prazer,
o samba é filho da dor” e atenta para o fato de que, o eu-lírico incorpora o
próprio samba, zerando o sagrado, transcendendo e imortalizando como um deus.
Nos versos: “A pureza desse amor / espalha espelhos pelo carnaval” apontam para
as pessoas que ideologicamente e passionalmente trabalham o ano todo,
envolvidas na expectativa do carnaval e em seu brilho.
Os espelhamentos, quase anagramáticos desenvolvendo novas técnicas poéticas em
“Espalha-espelhos e cada-cara” retomam a ideia inicial do jogo como recurso
para desviar a atenção do leitor tal como observa Affonso Ávila (1994), ao
tratar do artista barroco. Ao fazer o jogo de espelhamentos com as palavras do
refrão: vela-leva; seta-tesa; rema-maré; rima-mira; terça-certa; zera-reza, e
ao dizer que “espalha espelhos” Caetano Veloso trabalha criando um processo de
metalinguagem na letra.
A proliferação dos significantes: “pagode do nosso viver”; “pode entre dor e
prazer”; “vê o que pode e o que não pode ser”, “espelho”, “conhece o bom e o
mau”, “que não morre nunca”, resulta no significado “samba”, simbolizado no
título por “zera a reza”.
Não é por acaso que Zera a reza abre o disco Noites do Norte (2000), um disco
que, inspirado pelo pensamento do abolicionista Joaquim Nabuco, tem fortemente
impresso nas letras a questão da cultura afra-descendência. Portanto iniciá-lo
falando do samba, dança de origem africana, herança dos negros trazidos como
escravos, e do carnaval, festa popular que, no Brasil, incorporou o samba, além
do frevo e hoje do axé, como ritmos matrizes. Todavia, Caetano Veloso faz essa
homenagem de forma velada, através do jogo significante/significado, das
proliferações e substituições que caracterizam a obra neobarroca.