quarta-feira, 15 de maio de 2024

CINEMA, ASPIRINAS E URUBUS, MARCELO GOMES

 


Direção: Marcelo Gomes.

Roteiro: Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz, inspirados em relato de viagem de Ranulpho Gomes.
Elenco: João Miguel, Peter Ketnath, Hermila Guedes, Oswaldo Mil, Irandhir, Fabiana Pirro, Verônica Cavalcanti, Daniela Câmera, Paula Francinete, Sandro Guerra, Madalena Accioly, Arílson Lopes, José Leite, Zezita Matos, Francisco Figueiredo, Mano Fialho, Lúcia do Acordeão, Jorge Clésio, Nanego Lira.
Fotografia: Mauro Pinheiro.
Montagem: Karen Harley.
Direção de Arte: Dedete Parente Costa.
Música: Tomás Alves de Souza.
Figurinos: Beto Normal.
Produção: Sara Silveira, Maria Ionescu e João Vieira Jr.
Duração: 90 min.

Filme baseado em relatos do tio avô do diretor Marcelo Gomes, a história contra o encontro deste paraibano que, na década de 40, resolve migrar para o sudeste para procurar uma vida melhor longe da seca nordestina, com o alemão Johann, que viaja pela região como caixeiro viajante, vendendo “a cura para todos os males”, a Aspirina. Para divulgar o produto, Johann exibe filmes em praça pública, proporcionando a primeira experiência cinematográfica para aquelas pessoas. Um filme do gênero “road movie” sobre a construção da amizade entre pessoas de culturas diferentes, é também um retrato da modernização do Brasil e da sua participação na 2ª Guerra Mundial.” (FGV-Direito)

I – HISTÓRICO:

A minha intenção foi fazer um filme que falasse sobre a alteridade. Ranulpho, o personagem brasileiro, é um homem sisudo e fechado, marcado pela dura vida no sertão. Johann, ao contrário, é alegre e gentil. Com esta “inversão”, eu queria desconstruir o estereótipo. Os dois estão na mesma situação e precisam um do outro para sobreviver: um foge da guerra; o outro, da seca. Através da amizade com Ranulpho, Johann consegue interagir com aquela pobre região brasileira. A necessidade obriga Ranulpho a abrir-se. Ele passa a ver Johann não mais como um alienígena, mas como um amigo“, acrescenta o diretor.

O filme de Marcelo Gomes, no entanto, trata não apenas do luto que é deixar suas raízes, mas da busca de uma nova identidade para aquele que se exila. Por isso é tão importante o encontro do alemão e do sertanejo, porque é no embate com o diferente que vai se delinear o novo ser que nasce. Se a viagem é a perda de países e, do mesmo modo, uma forma subjetiva de morte, o encontro é um renascer modificado, é também um exercício de alteridade.
“Cinema, Aspirinas e Urubus”, assim, metaforiza a possibilidade do encontro dessas duas culturas diferentes. Duas personagens em transformações, unidas pela incerteza de seus destinos.
Marcelo Gomes escreveu o roteiro do seu filme, baseando-se numa história real, contada por seu tio-avô, Ranulpho Gomes.

Meu tio vendeu aspirina e exibiu filmes no sertão”, afirma o diretor pernambucano Marcelo Gomes em entrevista para a Folha Online.

Folha Online – Em “Urubus”, o sertão também aparece com força. Qual a sua relação com a região?
Gomes – Ele é o grande teatro onde acontece o drama dos personagens. Eu falo que o filme não é sobre o sertão, ele é no sertão, o que tem uma carga dramática importante. A seca do sertão em algum momento lembra a neve na Alemanha. Gravamos na Paraíba, com 42 graus, filmava só sol a pino porque queríamos aquela luz. A gente sofreu muito para filmar nessas condições.
Folha Online – O que mais lhe encantou nos elogios da crítica?
Gomes – Houve uma compreensão do filme, o que me deixou com muito ânimo para lançar no Brasil. É um filme sobre pessoas que querem descobrir um caminho melhor para as suas vidas. São personagens que, apesar de contingências políticas e sociais adversas, precisam buscar o seu próprio mundo. Neste momento, você não tem mais o nordestino fugindo da seca ou o alemão da guerra, mas dois seres humanos. Isso faz com que o brasileiro e o nordestino estejam no mesmo patamar. Isso fez do filme universal, e garantiu a compreensão.
Folha Online – Qual foi sua fonte de inspiração para escrever o roteiro?
Gomes – O meu tio-avô me contou esta história há dez anos. Depois disso, fui para a Inglaterra estudar cinema, voltei, mas a ideia ficou me martelando. Ele, inclusive, ainda mora em São Paulo e tem 97 anos. Quando ouvi a história, vi logo este elemento universal. O filme que se passa em 1942 poderia se passar agora, é muito contemporâneo, pois fala de solidão, de destino, de ter a compreensão, de aceitar pessoas de culturas diferentes. Meu tio realmente vendeu aspirinas e exibiu filmes pelo sertão nordestino na época.
Folha Online – Por que vocês não procuraram o laboratório farmacêutico para obter apoio já que falam da aspirina?
Gomes – (Risos) A gente pediu autorização para usar o nome, mas queríamos ter a maior liberdade possível. O filme não é sobre a aspirina, estamos falando sobre outras coisas.
Folha Online – Vocês tiveram contato com o povo da região?
Gomes – Os encontros que nós tivemos com as pessoas foram maravilhosos. Embora eu conheça o sertão desde pequeno, aquelas pessoas participaram do nosso filme. E estão impressas nele. Todo o elenco é de nordestinos, menos o alemão. Acho que tudo isso imprime essa cor local.

“Cinema, aspirinas e urubus” não almeja ser o “grande filme”, e é justamente por isso que se torna um: pela calma certeza sobre o seu relato e sobre o poder (quase esquecido no Brasil) do simples contar uma história pelo cinema. Em sua mistura precisa de preocupações narrativa e de personagens com o apuro técnico-conceitual (que em nada soa esquizofrênica), ele faz uma ponte entre um cinema popular possível e um instrumental mais caro de um “cinema de arte”.

II – MONTAGEM:

DIREÇÃO:
“Cinema, Aspirina e Urubus” é um emocionante “road-movie” brasileiro, gênero de filme em que o enredo centra-se em torno de uma viagem de estrada. Trata-se do primeiro longa-metragem realizado pelo cineasta amazonense, radicado em Pernambuco, Marcelo Gomes.
O enredo cabe em um curta-metragem, mas a direção de Marcelo Gomes o desdobra e alcança um tom de relato visual, que observa, registra e deixa as conclusões para a plateia. É de forma bem direta que retrata ao seu modo, um sertão inóspito e encantador.
A direção delicada, o texto sutil e vigoroso e as interpretações cativantes ganham reforço de uma bela embalagem técnica, desde a fotografia assumidamente estourada à cuidadosa direção de arte, passando pela bela trilha.
A pouca cerimônia ronda também as interpretações, bem sinceras, e chega a muitas das personagens, que sequer têm nomes, formados por moradores do sertão paraibano, bem como, por atores desconhecidos.
Um filme em que a câmera não acompanha a geografia e prefere prender-se a suas personagens, na sombra da boleia do caminhão e próxima às velas e lamparinas que lutam contra a noite. Dessa forma, os “road-movies” carreguem consigo o clichê de ser uma metáfora para a transformação ou redenção de suas personagens, de redescoberta, onde o ponto principal é a própria “viagem interna” das personagens.
Se para alguns espectadores o enredo peca em temática, por outro lado, é marcante pelo trabalho técnico acentuado pela câmera livre, frequentemente muito próxima dos atores, e pelas cenas ao ar livre e na estrada.
O júri justificou o prêmio pela “capacidade do filme de mudar nosso olhar sobre o mundo” e pela “recusa dos clichês”.

FOTOGRAFIA:
“Cinema, Aspirina e Urubus” apresenta, ainda, uma bela trilha sonora, a magnífica fotografia de Mauro Pinheiro Júnior e ótimas interpretações dos atores principais, com destaque para a atuação do baiano, João Miguel. A fotografia, longe de evitar a luz cáustica do sertão, busca assumi-la enquanto elemento vivo daquele ambiente hostil, retorcido e seco como elemento visual. É tão arisco, que não é permitido vê-lo em sua totalidade. As imagens surgem sempre esbranquiçadas, quase monocromáticas. Tudo é cor de terra.
Embora imprima um ritmo um pouco lento, em nenhum momento o filme torna-se desinteressante.
O sol parece ser integrante do elenco. As cores esmaecidas da imagem confundem gente e paisagem, tornando opacas como todas as outras cores, alegorizando a monotonia do cenário e a cor local. Trata-se do desmazelamento da realidade do sertão e do sertanejo; das atividades dos protagonistas; reflexões sobre o país e do contexto onde estão inseridas as personagens, destacando as cores de suas roupas em uma imposição social primária.
Contracenando com esse cenário, a cor da pele de Johann, o alemão, quase se dissocia como se devorado pela própria seca, tornando-se possuído por ela.
Já quando é noite, os sombreados revelam o intimismo das personagens.
É envolto pela sombra que Ramulpho, o nordestino, inventa uma história para a própria vida, assim como Johann conclui (após um pouco de febre causada por veneno de cobra) que passou “a vida inteira juntando dinheiro” e talvez morresse sem aproveitar.
O grande valor da imagem intensifica-se à medida que o filme torna-se mais contemplativo, e, portanto, mais silencioso, usando músicas da própria cena e não uma trilha sonora para arrematar os diálogos concisos.

III – TEMPO E ESPAÇO:

O filme se passa em 1942, no sertão nordestino arcaico, que desconhecia as razões da Segunda Guerra noticiada pelo rádio.
O filme conta a história de Johann (Peter Ketnath), alemão que fugiu do país de origem nos auges da II Guerra e chegou ao Brasil, onde percorre regiões nordestinas vendendo aspirinas.
Marcelo Gomes nos chamou a atenção para a tradição de viajantes alemães ao Brasil. Ele leu os relatos deixados por estes viajantes, que desde o descobrimento se interessaram pela nova terra, escrevendo suas impressões. Através desta visão alemã sobre o Brasil, o cineasta construiu o seu personagem Johann.
Antes do início das filmagens, ele visitou a Alemanha. Surpreso por encontrar aquilo que não esperava como alegria e simpatia, o diretor mudou o caráter do seu personagem.
O diretor não deseja apresentar uma tese sobre o espaço do sertão que retrata, nem sobre a época em que se passa, como vários filmes “regionais” ou “históricos”, embora se insira cuidadosamente no espaço e tempo. Seja para abordar qualquer assunto ou simplesmente retratar as peculiaridades do universo sertanejo, o sertão nordestino parece sempre exercer forte fascínio sobre cineastas. Afinal, por sua natureza social e cultural, as figuras do semiárido, suas casas, os animais, a vegetação e outros elementos do cenário sertanejo rendem boas histórias quando transportados para o cinema, aí adentrando um contexto – o da vida urbana, citadina – que é bem oposto a esses elementos.
Marcelo não negou o sertão humilde, atrasado, exótico aos olhos de fora. A diferença é que o sertão não é personagem aqui. É cenário. Marcelo Gomes explora as particularidades com graça invejável, sem nunca espetacularizá-las, usando-as apenas como suporte para contar sua história. E fazia tempo que o cinema brasileiro não contava tão bem e de maneira tão simples uma história.

IV – PERSONAGENS:

Johann tornou-se um “jovem doce e alegre, um hippie dos anos 40, que não tinha a menor vontade de matar alguém na Segunda Guerra Mundial e, por tal, teve que deixar a Alemanha”, explicou o diretor.
Para o seu personagem alemão, Gomes queria um ator alemão que falasse português e não conhecesse o sertão. Ele o encontrou em Berlim. O bávaro Peter Ketnath, 32, já trabalhou para Joseph Vilsmaier em “And Nobody Weeps for Me”, como também para a televisão alemã e francesa.
O baiano João Miguel, 35, o protagonista brasileiro, deveria vir realmente do Nordeste. Ele ganhou o prêmio de melhor ator do Festival de Cinema do Rio de Janeiro. O baiano João Miguel, ator de teatro, estreante no cinema e que, para conquistar o papel, disputou com mais 300 atores. João Miguel é a revelação da trama. Consegue agregar autenticidade a um personagem clássico dos filmes sobre sertão brasileiro. Numa mescla de inocência e esperteza, seu personagem enternece o público; ao mesmo tempo, que, se mostra entre ranzinza e carente.
Um filme de amigos, de parceiros, que tem o mérito extraordinário no cinema brasileiro de nunca querer chamar atenção para si mesmo. É a delicadeza do roteiro e as belas performances dos dois protagonistas que transformar “Cinema, Aspirina e Urubus” na pérola que ele é. O destaque é, obviamente, João Miguel, que dribla com majestade as armadilhas de uma personagem muito fácil de se gostar, o nordestino simpático e engraçadinho. Mas sua atuação só ganha à dimensão que tem pela química acertada com Peter Ketnath.
Certamente, o maior trunfo da produção é a riqueza de suas interpretações. Os dois protagonistas estão competentemente representados.

V – RESUMO DO ENREDO:

Johann, um solitário alemão dirige um caminhão e está perdido pelas estradas esburacadas pelos sertões áridos do nordeste brasileiro, trava contato com sertanejos curiosos por ver um veículo e por ver um estrangeiro: um pequeno recorte da industrialização que começava a se espalhar pelo país de Getúlio Vargas.

Durante o caminho, nos pequenos vilarejos por onde passas, o alemão arma uma tenda, promove aspirinas no interior pernambucano, utilizando-se de filmes promocionais sobre a última novidade farmacêutica do laboratório alemão, Bayer.

O sucesso de sua empreitada está no modo como ele faz a publicidade do produto: projetando propagandas no meio de vilarejos, ao ar livre, e encantando os moradores, que, nunca antes tendo visto imagens em movimento, acreditam tratar-se de um medicamento de outro mundo.
Terminada a projeção, os ingênuos espectadores fazem filas para comprarem o milagroso medicamento que promete o fim de todos os males.
Seu destino o levará cruzar Ranulpho, um sertanejo que deixa o pequeno povoado em que mora e pretende fugir da aridez sem perspectivas do sertão, a fim de tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro, a sua terra prometida.

As duas personagens dividem suas projeções: Ranulpho é a alegoria dos insatisfeitos com a vida, para ele, nada é pior que o sertão; enquanto que, para Johann, nada é pior que a guerra.

Juntos, ambos passarão pelas mais incríveis histórias por ora cômicas, por ora trágicas.
Enquanto viajam pelas desertas estradas de terra, Ranulpho vai aos poucos se deslumbrando com a vida de Johann e termina chamando para si o título de ajudante do alemão, ajudando-o nas apresentações dos filmes publicitários nas praças das pequenas cidades.
Durante o filme tudo isso é dito sem muitas palavras, na lentidão do seu tempo e espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com suas particularidades, limites e coerências determinadas pelo autor e na força física de suas atuações; quando um povo de uma pequena cidade se assombra e se encanta com a primeira projeção cinematográfica de suas vidas (improvisada, ao ar livre) e nos muitos silêncios das personagens.
As redescobertas acontecem para as personagens à medida que vão exibindo seu cinema publicitário aos sertanejos; à medida que estreitam laços de cumplicidade e descobrem no outro um laço de vida e parceria.

No primeiro terço do filme, as personagens trocam discursos politizados, forçados e fora de lugar. A questão social, embora não se evidencie, força sua entrada em todas as falas. Ranulfo fala de pobreza, de êxodo. Uma outra carona, que logo desaparece, reclama da vida sem expectativas. Parece que todos decidem, espontaneamente, falar sobre suas vidas e problemas a um alemão desconhecido.

No final de agosto, o Brasil declara guerra à Alemanha após vários navios nacionais terem sido torpedeados no litoral nordestino por submarinos nazistas. Como consequência, várias indústrias e empresas comerciais alemães, ou ligadas aos interesses alemães, são fechadas, bem como, seus proprietários e gerentes presos. Nesse contexto, Johann tem que decidir entre voltar para a Alemanha e permanecer no Brasil em um campo de prisioneiros.
Por sugestão de Ranulpho, entretanto, ele prefere tentar fugir para a Amazônia e se misturar aos imigrantes nordestinos que trabalham em seringais na tarefa de extração da borracha. Assim, o alemão se vê obrigado a queimar seus documentos e embarcar num trem de retirantes com destino à Fortaleza, de onde seguirão de navio para a Amazônia.
Antes de partir, Johann entrega as chaves de seu velho caminhão para Ranulpho.

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

“Cinema, aspirinas e urubus” está fadado a ser um filme-paradigma no cinema brasileiro.
O primeiro plano de “Cinema, Aspirinas e Urubus” é didático e chave para o entendimento da jornada das duas personagens.
A história de Johann e Ranulpho, espécie de buddy movie pelas estradas do sertão, comove exatamente pelo fato de seu registro apostar tão fortemente na verdade daquela construção ficcional. “Verdade” entendida aqui nem como verossimilhança, nem como “naturalismo”, e sim pelo sentido que realmente importa numa fabulação: a crença do próprio narrador (o cineasta) naquilo que nos narra.
Nesta parte, apresentada totalmente branca e extensa que pouco a pouco revelam detalhes através de um retrovisor de um veículo e de seu motorista, como se os olhos imersos no escuro do cinema precisassem de tempo para se acostumar à claridade seca daquela região.
Depois de quarenta minutos, parecemos estar vendo um outro filme. Se antes a força da história se diluía em diálogos secos e politizados, agora Gomes acerta a mão ao tornar mais clara a relação entre os amigos improváveis, expressando a opressão do mundo sobre o indivíduo, sobre como o exterior define seu caminho. No entanto, sua indecisão entre o panfleto político e a dissecação das relações humanas se mostra problemática, como se ele houvesse feito dois filmes.
Os dramas sociais caem para o segundo plano. Ranulfo se fascina pelo cinema, e, após algumas revelações, sua personagem ganha contornos mais humanos e verossímeis. Entre outros exemplos, um que pode parecer fortuito ou definitivo, de acordo com quem lê: em certo momento, quando o Brasil entra na guerra e a volta de Johann para a Alemanha é exigida, o alemão disfarça seu carro, ele o pinta de preto. Destaca-o do contexto, se concordamos com o que foi escrito, e aí a pintura é apenas simbólica o que se comprova, já que ele o faz para pouco depois abandoná-lo.
Porém, o diferencial da trama é o não exagero. Não há estereótipos. A sutileza pauta toda a abordagem. As cenas que são na sua maioria feitas dentro de um caminhão são agradáveis e a narrativa conduz o expectador, suavemente, ao desfecho já esperado; mas, nem por isso, menos encantador.
A narrativa de Marcelo Gomes é praticamente uma fábula pós-estruturalista: a identificação do “eu” vem através do “outro” e, assim, a alteridade fica preservada. A história nos mostra a possibilidade da coexistência de duas culturas sem que elas tenham que se tornar uma só.
É importante notar a oposição entre o branco e o preto, e a luz e a sombra utilizada por Gomes: de um lado, a aspirina, branca, onipresente na história, “cura para todos os males”; do outro, os urubus, aves de mau agouro, comedoras de restos surgindo no exato momento em que o rumo de uma vida se transforma pela segunda vez, desta vez de verdade e em definitivo. Em última análise, essa relação também está na palavra “cinema”: a luz possibilita a história, mas é sobre a sombra que ela ocorre. A sombra: o único lugar para o amor no filme. Sempre, à noite e à revelia.

 



sexta-feira, 10 de maio de 2024

BENEDITO CALUNGA, Jorge de Lima - análise do poema


 BENEDITO CALUNGA, Jorge de Lima


Benedito calunga
Calunga-ê
Não pertence ao papo –fumo,
Nem ao quibungo,
Nem ao pé de garrafa,
Nem ao minhocão.

Benedito Calunga
Calunga-ê
Não pertence a nenhuma ocaia a nenhum tati,
Nem mesmo a Iemanjá,
Nem mesmo a Iemanjá.

Benedito Calunga
Calunga-ê
Não pertence ao Senhor
Que o lanhou de surra
E o marcou com ferro de gado
E o prendeu com lubambo nos pés.

Benedito Calunga
Pertence ao banzo
Que o libertou,
Pertence ao banzo
Que o amuxilou,
Que o alforriou
Para sempre
Em Xangô
Hum-Hum.

SOBRE O TÍTULO, TEMOS:

SÃO BENEDITO: CONHECIDO TAMBÉM COMO BENEDITO, O NEGRO OU BENEDITO, O AFRICANO É UM SANTO CATÓLICO QUE, SEGUNDO ALGUMAS VERSÕES DE SUA HISTÓRIA, NASCEU NA SICÍLIA, SUL DA ITÁLIA, EM 1524, NO SEIO DE FAMÍLIA POBRE E ERA DESCENDENTE DE ESCRAVOS ORIUNDOS DA ETIÓPIA.

OUTRAS VERSÕES DIZEM QUE ELE ERA UM ESCRAVO CAPTURADO NO NORTE DA ÁFRICA, O QUE ERA MUITO COMUM NO SUL DA ITÁLIA NESTA ÉPOCA. NESTE CASO, ELE SERIA DE ORIGEM MOURA, E NÃO ETÍOPE. DE QUALQUER MODO, TODOS CONTAM QUE ELE TINHA O APELIDO DE “MOURO” PELA COR DE SUA PELE.

BENEDITO: HOMEM BENDITO E BENTO COMO O SANTO LENDÁRIO, PADRINHO CELESTE DE BATISMO DE TANTOS E TANTOS CATIVOS E SEUS DESCENDENTES.

CALUNGA: PALAVRA DE VÁRIAS DENOTAÇÕES, AQUI PROVAVELMENTE DESIGNANDO O NEGRO POBRE, O FIEL SEM EIRA NEM BEIRA, EM GERAL, PERTENCENTE À FALANGE DE IEMANJÁ (CALUNGA TAMBÉM SIGNIFICA “MAR”).

NO POEMA, A FIGURA DE BENEDITO CALUNGA REMETE AO CATIVO SEM AMPARO, FOI SEVICIADO PELO SENHOR BRANCO QUE O FERROU COMO GADO E O ATOU AO LUMBAMBO.

 SIGNIFICAMENTE, O CALUNGA BENEDITO NÃO SE ENTREGOU À SEDUTORA IEMANJÁ, MAS TÃO SOMENTE A XANGÔ, REI POTENTE DE RAIOS E TEMPESTADES, CUJO BANZO (MAIS QUE TRISTEZA, PAIXÃO) O ALFORRIOU PARA SEMPRE.

 

NA POESIA “BENEDITO CALUNGA” ENCONTRAMOS UM VOCABULÁRIO AFRICANO PRÓPRIO NAS PALAVRAS COMO “LUBAMBO”, “BANZO”, “QUIBUMBO”.

A BUSCA POR UM VOCABULÁRIO MAIS POPULAR E BRASILEIRO, TAMBÉM FOI UMA PREOCUPAÇÃO CONSTANTE DOS MODERNISTAS, O QUE RESULTOU NA SALIENTAÇÃO DA ORALIDADE DENTRO DA LITERATURA ESCRITA.

A VOZ DA PERSONAGEM NÃO FOI NEGLIGENCIADA, AO CONTRÁRIO, ELA ESTÁ VIVA NAS EXPRESSÕES QUE O POETA FEZ QUESTÃO DE EVIDENCIAR COMO: “CALUNGA-Ê” E “HUM-HUM”, AS QUAIS TAMBÉM PODEM SER PROFERIDAS POR OUTRO NEGRO, POR OUTRO ESCRAVO AO NOMEAR E COMPARTILHAR COM BENEDITO CALUNGA DE SEU SOFRIMENTO.

ALÉM DO VOCABULÁRIO AFRICANO, QUE É VALORIZADO NESTA POESIA, TEMOS OS ELEMENTOS DA RELIGIÃO AFRICANA REPRESENTADOS NA FIGURA DE IEMANJÁ E DE XANGÔ, O QUE MOSTRA UMA TENDÊNCIA À PERSPECTIVA DO PRÓPRIO NEGRO DENTRO DO POEMA, E NÃO DO AUTOR.

EMBORA SEJA O EU-LÍRICO CRIADO PELO AUTOR QUE ESTEJA SE TRAVESTINDO DE NEGRO.

SOBRE A QUESTÃO POLÍTICA, OBSERVAMOS QUE O AUTOR CONSTRÓI O POEMA DE FORMA A SUSCITAR UMA REFLEXÃO SOBRE A CONDIÇÃO DOS ESCRAVOS, POIS PELA REPETIÇÃO DO VERSO “NÃO PERTENCE ...” O POETA CRIA A SENSAÇÃO DE DESRAIZAMENTO E DE NÃO IDENTIDADE DA PERSONAGEM, PRINCIPALMENTE COM O LUGAR, COM OS OBJETOS E COM AS PESSOAS QUE O TORNAM ESCRAVO.

ELE SE IDENTIFICARÁ E SE PERTENCERÁ COM AQUILO QUE O LIBERTARA DE SUA CONDIÇÃO QUE É SENÃO A MORTE POR DEPRESSÃO NOMEADA PELOS NEGROS DE BANZO.

DESSA FORMA, O BANZO CONOTA UM ESTADO DE CORPO E DE ALMA QUE ARRASTA AO DELÍRIO, Á AUTODESTRUIÇÃO, À LUXÚRIA DESENFREADA. TRISTEZA TURVA QUE SE ASSEMELHA Á PERDA DA GRAÇA, TENTAÇÃO DE PECADO MORTAL, EM TERMOS DE DEVOÇÃO CRISTÃ, PELA CEGA VIOLÊNCIA QUE DESENCADEIA NOS SENTIMENTOS E ATOS DOS QUE A EXPERIMENTAM.

EM “BENEDITO CALUNGA” HÁ SUGESTÃO DE UMA VOLTA DO CATIVO AO SEU REINO DE ORIGEM, MUNDO DE ENTIDADES PROTETORAS, ÀS QUAIS ELE PERTENCE OU PELA ENTREGA À MORTE OU PELA PAIXÃO DA SAUDADE, O BANZO.