Direção: Marcelo Gomes.
Roteiro: Marcelo Gomes, Paulo Caldas e Karim Aïnouz, inspirados em
relato de viagem de Ranulpho Gomes.
Elenco: João Miguel, Peter Ketnath, Hermila Guedes, Oswaldo Mil, Irandhir,
Fabiana Pirro, Verônica Cavalcanti, Daniela Câmera, Paula Francinete, Sandro
Guerra, Madalena Accioly, Arílson Lopes, José Leite, Zezita Matos, Francisco
Figueiredo, Mano Fialho, Lúcia do Acordeão, Jorge Clésio, Nanego Lira.
Fotografia: Mauro Pinheiro.
Montagem: Karen Harley.
Direção de Arte: Dedete Parente Costa.
Música: Tomás Alves de Souza.
Figurinos: Beto Normal.
Produção: Sara Silveira, Maria Ionescu e João Vieira Jr.
Duração: 90 min.
“Filme baseado em relatos do tio avô do diretor Marcelo Gomes, a
história contra o encontro deste paraibano que, na década de 40, resolve migrar
para o sudeste para procurar uma vida melhor longe da seca nordestina, com o
alemão Johann, que viaja pela região como caixeiro viajante, vendendo “a cura
para todos os males”, a Aspirina. Para divulgar o produto, Johann exibe filmes
em praça pública, proporcionando a primeira experiência cinematográfica para
aquelas pessoas. Um filme do gênero “road movie” sobre a construção da amizade
entre pessoas de culturas diferentes, é também um retrato da modernização do
Brasil e da sua participação na 2ª Guerra Mundial.” (FGV-Direito)
I – HISTÓRICO:
“A minha intenção foi fazer um filme que falasse sobre a alteridade.
Ranulpho, o personagem brasileiro, é um homem sisudo e fechado, marcado pela
dura vida no sertão. Johann, ao contrário, é alegre e gentil. Com esta
“inversão”, eu queria desconstruir o estereótipo. Os dois estão na mesma
situação e precisam um do outro para sobreviver: um foge da guerra; o outro, da
seca. Através da amizade com Ranulpho, Johann consegue interagir com aquela
pobre região brasileira. A necessidade obriga Ranulpho a abrir-se. Ele passa a
ver Johann não mais como um alienígena, mas como um amigo“, acrescenta o
diretor.
O filme de Marcelo Gomes, no entanto, trata não apenas do luto
que é deixar suas raízes, mas da busca de uma nova identidade para aquele que
se exila. Por isso é tão importante o encontro do alemão e do sertanejo, porque
é no embate com o diferente que vai se delinear o novo ser que nasce. Se a
viagem é a perda de países e, do mesmo modo, uma forma subjetiva de morte, o
encontro é um renascer modificado, é também um exercício de alteridade.
“Cinema, Aspirinas e Urubus”, assim, metaforiza a possibilidade do encontro
dessas duas culturas diferentes. Duas personagens em transformações, unidas
pela incerteza de seus destinos.
Marcelo Gomes escreveu o roteiro do seu filme, baseando-se numa história real,
contada por seu tio-avô, Ranulpho Gomes.
“Meu tio vendeu aspirina e exibiu filmes no sertão”, afirma o
diretor pernambucano Marcelo Gomes em entrevista para a Folha Online.
Folha Online – Em “Urubus”, o sertão também aparece com força. Qual a
sua relação com a região?
Gomes – Ele é o grande teatro onde acontece o drama dos personagens. Eu falo
que o filme não é sobre o sertão, ele é no sertão, o que tem uma carga
dramática importante. A seca do sertão em algum momento lembra a neve na
Alemanha. Gravamos na Paraíba, com 42 graus, filmava só sol a pino porque
queríamos aquela luz. A gente sofreu muito para filmar nessas condições.
Folha Online – O que mais lhe encantou nos elogios da crítica?
Gomes – Houve uma compreensão do filme, o que me deixou com muito ânimo para
lançar no Brasil. É um filme sobre pessoas que querem descobrir um caminho
melhor para as suas vidas. São personagens que, apesar de contingências
políticas e sociais adversas, precisam buscar o seu próprio mundo. Neste
momento, você não tem mais o nordestino fugindo da seca ou o alemão da guerra,
mas dois seres humanos. Isso faz com que o brasileiro e o nordestino estejam no
mesmo patamar. Isso fez do filme universal, e garantiu a compreensão.
Folha Online – Qual foi sua fonte de inspiração para escrever o roteiro?
Gomes – O meu tio-avô me contou esta história há dez anos. Depois disso, fui
para a Inglaterra estudar cinema, voltei, mas a ideia ficou me martelando. Ele,
inclusive, ainda mora em São Paulo e tem 97 anos. Quando ouvi a história, vi
logo este elemento universal. O filme que se passa em 1942 poderia se passar
agora, é muito contemporâneo, pois fala de solidão, de destino, de ter a
compreensão, de aceitar pessoas de culturas diferentes. Meu tio realmente
vendeu aspirinas e exibiu filmes pelo sertão nordestino na época.
Folha Online – Por que vocês não procuraram o laboratório farmacêutico para
obter apoio já que falam da aspirina?
Gomes – (Risos) A gente pediu autorização para usar o nome, mas queríamos ter a
maior liberdade possível. O filme não é sobre a aspirina, estamos falando sobre
outras coisas.
Folha Online – Vocês tiveram contato com o povo da região?
Gomes – Os encontros que nós tivemos com as pessoas foram maravilhosos. Embora
eu conheça o sertão desde pequeno, aquelas pessoas participaram do nosso filme.
E estão impressas nele. Todo o elenco é de nordestinos, menos o alemão. Acho
que tudo isso imprime essa cor local.
“Cinema, aspirinas e urubus” não almeja ser o “grande filme”, e é
justamente por isso que se torna um: pela calma certeza sobre o seu relato e
sobre o poder (quase esquecido no Brasil) do simples contar uma história pelo
cinema. Em sua mistura precisa de preocupações narrativa e de personagens com o
apuro técnico-conceitual (que em nada soa esquizofrênica), ele faz uma ponte
entre um cinema popular possível e um instrumental mais caro de um “cinema de
arte”.
II – MONTAGEM:
DIREÇÃO:
“Cinema, Aspirina e Urubus” é um emocionante “road-movie” brasileiro, gênero de
filme em que o enredo centra-se em torno de uma viagem de estrada. Trata-se do
primeiro longa-metragem realizado pelo cineasta amazonense, radicado em
Pernambuco, Marcelo Gomes.
O enredo cabe em um curta-metragem, mas a direção de Marcelo Gomes o desdobra e
alcança um tom de relato visual, que observa, registra e deixa as conclusões
para a plateia. É de forma bem direta que retrata ao seu modo, um sertão
inóspito e encantador.
A direção delicada, o texto sutil e vigoroso e as interpretações cativantes
ganham reforço de uma bela embalagem técnica, desde a fotografia assumidamente
estourada à cuidadosa direção de arte, passando pela bela trilha.
A pouca cerimônia ronda também as interpretações, bem sinceras, e chega a
muitas das personagens, que sequer têm nomes, formados por moradores do sertão
paraibano, bem como, por atores desconhecidos.
Um filme em que a câmera não acompanha a geografia e prefere prender-se a suas
personagens, na sombra da boleia do caminhão e próxima às velas e lamparinas
que lutam contra a noite. Dessa forma, os “road-movies” carreguem consigo o
clichê de ser uma metáfora para a transformação ou redenção de suas
personagens, de redescoberta, onde o ponto principal é a própria “viagem
interna” das personagens.
Se para alguns espectadores o enredo peca em temática, por outro lado, é
marcante pelo trabalho técnico acentuado pela câmera livre, frequentemente
muito próxima dos atores, e pelas cenas ao ar livre e na estrada.
O júri justificou o prêmio pela “capacidade do filme de mudar nosso olhar sobre
o mundo” e pela “recusa dos clichês”.
FOTOGRAFIA:
“Cinema, Aspirina e Urubus” apresenta, ainda, uma bela trilha sonora, a
magnífica fotografia de Mauro Pinheiro Júnior e ótimas interpretações dos
atores principais, com destaque para a atuação do baiano, João Miguel. A
fotografia, longe de evitar a luz cáustica do sertão, busca assumi-la enquanto
elemento vivo daquele ambiente hostil, retorcido e seco como elemento visual. É
tão arisco, que não é permitido vê-lo em sua totalidade. As imagens surgem
sempre esbranquiçadas, quase monocromáticas. Tudo é cor de terra.
Embora imprima um ritmo um pouco lento, em nenhum momento o filme torna-se
desinteressante.
O sol parece ser integrante do elenco. As cores esmaecidas da imagem confundem
gente e paisagem, tornando opacas como todas as outras cores, alegorizando a
monotonia do cenário e a cor local. Trata-se do desmazelamento da realidade do
sertão e do sertanejo; das atividades dos protagonistas; reflexões sobre o país
e do contexto onde estão inseridas as personagens, destacando as cores de suas
roupas em uma imposição social primária.
Contracenando com esse cenário, a cor da pele de Johann, o alemão, quase se
dissocia como se devorado pela própria seca, tornando-se possuído por ela.
Já quando é noite, os sombreados revelam o intimismo das personagens.
É envolto pela sombra que Ramulpho, o nordestino, inventa uma história para a
própria vida, assim como Johann conclui (após um pouco de febre causada por
veneno de cobra) que passou “a vida inteira juntando dinheiro” e talvez
morresse sem aproveitar.
O grande valor da imagem intensifica-se à medida que o filme torna-se mais
contemplativo, e, portanto, mais silencioso, usando músicas da própria cena e
não uma trilha sonora para arrematar os diálogos concisos.
III – TEMPO E ESPAÇO:
O filme se passa em 1942, no sertão nordestino arcaico, que desconhecia
as razões da Segunda Guerra noticiada pelo rádio.
O filme conta a história de Johann (Peter Ketnath), alemão que fugiu do país de
origem nos auges da II Guerra e chegou ao Brasil, onde percorre regiões
nordestinas vendendo aspirinas.
Marcelo Gomes nos chamou a atenção para a tradição de viajantes alemães ao
Brasil. Ele leu os relatos deixados por estes viajantes, que desde o
descobrimento se interessaram pela nova terra, escrevendo suas impressões.
Através desta visão alemã sobre o Brasil, o cineasta construiu o seu personagem
Johann.
Antes do início das filmagens, ele visitou a Alemanha. Surpreso por encontrar
aquilo que não esperava como alegria e simpatia, o diretor mudou o caráter do
seu personagem.
O diretor não deseja apresentar uma tese sobre o espaço do sertão que retrata,
nem sobre a época em que se passa, como vários filmes “regionais” ou
“históricos”, embora se insira cuidadosamente no espaço e tempo. Seja para
abordar qualquer assunto ou simplesmente retratar as peculiaridades do universo
sertanejo, o sertão nordestino parece sempre exercer forte fascínio sobre
cineastas. Afinal, por sua natureza social e cultural, as figuras do semiárido,
suas casas, os animais, a vegetação e outros elementos do cenário sertanejo
rendem boas histórias quando transportados para o cinema, aí adentrando um
contexto – o da vida urbana, citadina – que é bem oposto a esses elementos.
Marcelo não negou o sertão humilde, atrasado, exótico aos olhos de fora. A
diferença é que o sertão não é personagem aqui. É cenário. Marcelo Gomes
explora as particularidades com graça invejável, sem nunca espetacularizá-las,
usando-as apenas como suporte para contar sua história. E fazia tempo que o
cinema brasileiro não contava tão bem e de maneira tão simples uma história.
IV – PERSONAGENS:
Johann tornou-se um “jovem doce e alegre, um hippie dos anos 40, que não
tinha a menor vontade de matar alguém na Segunda Guerra Mundial e, por tal,
teve que deixar a Alemanha”, explicou o diretor.
Para o seu personagem alemão, Gomes queria um ator alemão que falasse português
e não conhecesse o sertão. Ele o encontrou em Berlim. O bávaro Peter Ketnath,
32, já trabalhou para Joseph Vilsmaier em “And Nobody Weeps for Me”, como
também para a televisão alemã e francesa.
O baiano João Miguel, 35, o protagonista brasileiro, deveria vir realmente do
Nordeste. Ele ganhou o prêmio de melhor ator do Festival de Cinema do Rio de
Janeiro. O baiano João Miguel, ator de teatro, estreante no cinema e que, para
conquistar o papel, disputou com mais 300 atores. João Miguel é a revelação da
trama. Consegue agregar autenticidade a um personagem clássico dos filmes sobre
sertão brasileiro. Numa mescla de inocência e esperteza, seu personagem
enternece o público; ao mesmo tempo, que, se mostra entre ranzinza e carente.
Um filme de amigos, de parceiros, que tem o mérito extraordinário no cinema
brasileiro de nunca querer chamar atenção para si mesmo. É a delicadeza do
roteiro e as belas performances dos dois protagonistas que transformar “Cinema,
Aspirina e Urubus” na pérola que ele é. O destaque é, obviamente, João Miguel,
que dribla com majestade as armadilhas de uma personagem muito fácil de se
gostar, o nordestino simpático e engraçadinho. Mas sua atuação só ganha à
dimensão que tem pela química acertada com Peter Ketnath.
Certamente, o maior trunfo da produção é a riqueza de suas interpretações. Os
dois protagonistas estão competentemente representados.
V – RESUMO DO ENREDO:
Johann, um solitário alemão dirige um caminhão e está perdido pelas
estradas esburacadas pelos sertões áridos do nordeste brasileiro, trava contato
com sertanejos curiosos por ver um veículo e por ver um estrangeiro: um pequeno
recorte da industrialização que começava a se espalhar pelo país de Getúlio
Vargas.
Durante o caminho, nos pequenos vilarejos por onde passas, o alemão arma
uma tenda, promove aspirinas no interior pernambucano, utilizando-se de filmes
promocionais sobre a última novidade farmacêutica do laboratório alemão, Bayer.
O sucesso de sua empreitada está no modo como ele faz a publicidade do
produto: projetando propagandas no meio de vilarejos, ao ar livre, e encantando
os moradores, que, nunca antes tendo visto imagens em movimento, acreditam
tratar-se de um medicamento de outro mundo.
Terminada a projeção, os ingênuos espectadores fazem filas para comprarem o
milagroso medicamento que promete o fim de todos os males.
Seu destino o levará cruzar Ranulpho, um sertanejo que deixa o pequeno povoado
em que mora e pretende fugir da aridez sem perspectivas do sertão, a fim de
tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro, a sua terra prometida.
As duas personagens dividem suas projeções: Ranulpho é a alegoria dos
insatisfeitos com a vida, para ele, nada é pior que o sertão; enquanto que,
para Johann, nada é pior que a guerra.
Juntos, ambos passarão pelas mais incríveis histórias por ora cômicas,
por ora trágicas.
Enquanto viajam pelas desertas estradas de terra, Ranulpho vai aos poucos se
deslumbrando com a vida de Johann e termina chamando para si o título de
ajudante do alemão, ajudando-o nas apresentações dos filmes publicitários nas
praças das pequenas cidades.
Durante o filme tudo isso é dito sem muitas palavras, na lentidão do seu tempo
e espaço que decorrem ou existem dentro da trama, com suas particularidades,
limites e coerências determinadas pelo autor e na força física de suas
atuações; quando um povo de uma pequena cidade se assombra e se encanta com a
primeira projeção cinematográfica de suas vidas (improvisada, ao ar livre) e
nos muitos silêncios das personagens.
As redescobertas acontecem para as personagens à medida que vão exibindo seu
cinema publicitário aos sertanejos; à medida que estreitam laços de
cumplicidade e descobrem no outro um laço de vida e parceria.
No primeiro terço do filme, as personagens trocam discursos politizados,
forçados e fora de lugar. A questão social, embora não se evidencie, força sua
entrada em todas as falas. Ranulfo fala de pobreza, de êxodo. Uma outra carona,
que logo desaparece, reclama da vida sem expectativas. Parece que todos
decidem, espontaneamente, falar sobre suas vidas e problemas a um alemão
desconhecido.
No final de agosto, o Brasil declara guerra à Alemanha após vários
navios nacionais terem sido torpedeados no litoral nordestino por submarinos
nazistas. Como consequência, várias indústrias e empresas comerciais alemães,
ou ligadas aos interesses alemães, são fechadas, bem como, seus proprietários e
gerentes presos. Nesse contexto, Johann tem que decidir entre voltar para a
Alemanha e permanecer no Brasil em um campo de prisioneiros.
Por sugestão de Ranulpho, entretanto, ele prefere tentar fugir para a Amazônia
e se misturar aos imigrantes nordestinos que trabalham em seringais na tarefa
de extração da borracha. Assim, o alemão se vê obrigado a queimar seus
documentos e embarcar num trem de retirantes com destino à Fortaleza, de onde
seguirão de navio para a Amazônia.
Antes de partir, Johann entrega as chaves de seu velho caminhão para Ranulpho.
VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS:
“Cinema, aspirinas
e urubus” está fadado a ser um filme-paradigma no cinema brasileiro.
O primeiro plano de “Cinema, Aspirinas e Urubus” é didático e chave para o
entendimento da jornada das duas personagens.
A história de Johann e Ranulpho, espécie de buddy movie pelas estradas do
sertão, comove exatamente pelo fato de seu registro apostar tão fortemente na
verdade daquela construção ficcional. “Verdade” entendida aqui nem como
verossimilhança, nem como “naturalismo”, e sim pelo sentido que realmente
importa numa fabulação: a crença do próprio narrador (o cineasta) naquilo que
nos narra.
Nesta parte, apresentada totalmente branca e extensa que pouco a pouco revelam
detalhes através de um retrovisor de um veículo e de seu motorista, como se os
olhos imersos no escuro do cinema precisassem de tempo para se acostumar à
claridade seca daquela região.
Depois de quarenta minutos, parecemos estar vendo um outro filme. Se antes a
força da história se diluía em diálogos secos e politizados, agora Gomes acerta
a mão ao tornar mais clara a relação entre os amigos improváveis, expressando a
opressão do mundo sobre o indivíduo, sobre como o exterior define seu caminho.
No entanto, sua indecisão entre o panfleto político e a dissecação das relações
humanas se mostra problemática, como se ele houvesse feito dois filmes.
Os dramas sociais caem para o segundo plano. Ranulfo se fascina pelo cinema, e,
após algumas revelações, sua personagem ganha contornos mais humanos e
verossímeis. Entre outros exemplos, um que pode parecer fortuito ou definitivo,
de acordo com quem lê: em certo momento, quando o Brasil entra na guerra e a
volta de Johann para a Alemanha é exigida, o alemão disfarça seu carro, ele o
pinta de preto. Destaca-o do contexto, se concordamos com o que foi escrito, e
aí a pintura é apenas simbólica o que se comprova, já que ele o faz para pouco
depois abandoná-lo.
Porém, o diferencial da trama é o não exagero. Não há estereótipos. A sutileza
pauta toda a abordagem. As cenas que são na sua maioria feitas dentro de um
caminhão são agradáveis e a narrativa conduz o expectador, suavemente, ao
desfecho já esperado; mas, nem por isso, menos encantador.
A narrativa de Marcelo Gomes é praticamente uma fábula pós-estruturalista: a
identificação do “eu” vem através do “outro” e, assim, a alteridade fica
preservada. A história nos mostra a possibilidade da coexistência de duas
culturas sem que elas tenham que se tornar uma só.
É importante notar a oposição entre o branco e o preto, e a luz e a sombra
utilizada por Gomes: de um lado, a aspirina, branca, onipresente na história,
“cura para todos os males”; do outro, os urubus, aves de mau agouro, comedoras
de restos surgindo no exato momento em que o rumo de uma vida se transforma
pela segunda vez, desta vez de verdade e em definitivo. Em última análise, essa
relação também está na palavra “cinema”: a luz possibilita a história, mas é
sobre a sombra que ela ocorre. A sombra: o único lugar para o amor no filme.
Sempre, à noite e à revelia.
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