I – AUTOR:
Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia
Couto, nasceu em 5 de julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho
de uma família de emigrantes portugueses. O pai, Fernando Couto, natural de Rio
Tinto, foi jornalista e poeta, pertencendo a círculos intelectuais, tipo
cineclubes, onde se faziam debates. Chegou a escrever dois livros que
demonstraram preocupação social em relação à situação de conflito existente em
Moçambique. Mia Couto publicou os seus primeiros poemas no jornal Notícias da
Beira, com 14 anos. Iniciava assim o seu percurso literário dentro de uma área
específica da literatura – a poesia –, mas posteriormente viria a escrever as
suas obras em prosa. Em 1972 deixou a Beira e foi para Lourenço Marques para estudar
medicina. A partir de 1974 enveredou pelo jornalismo, tornando-se, com a
independência, repórter e diretor da Agência de Informação de Moçambique (AIM)
– de 1976 a 1976; da revista semanal Tempo – de 1979 a 1981 e do jornal
Notícias – de 1981 a 1985. Em 1985 abandonou a carreira jornalística.
Reingressou na Universidade de Eduardo Mondlane
para se formar em biologia, especializando-se na área de ecologia, sendo
atualmente professor da cadeira de Ecologia em diversas faculdades desta
universidade. Como biólogo tem realizado trabalhos de pesquisa em diversas
áreas, com incidência na gestão de zonas costeiras e na recolha de mitos,
lendas e crenças que intervêm na gestão tradicional dos recursos naturais. É
diretor da empresa Impacto, Lda. – Avaliações de Impacto Ambiental. Em 1992,
foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca.
Mia Couto é um “escritor da terra”, escreve e
descreve as próprias raízes do mundo, explorando a própria natureza humana na
sua relação umbilical com a terra. A sua linguagem extremamente rica e muito
fértil em neologismos, confere-lhe um atributo de singular percepção e
interpretação da beleza interna das coisas. Cada palavra inventada como que
adivinha a secreta natureza daquilo a que se refere, entende-se como se nenhuma
outra pudesse ter sido utilizada em seu lugar. As imagens de Mia Couto evocam a
intuição de mundos fantásticos e em certa medida um pouco surrealistas,
subjacentes ao mundo em que se vive, que envolve de uma ambiência terna e
pacífica de sonhos – o mundo vivo das histórias. Mia Couto é um excelente
contador de histórias. É o único escritor africano que é membro da Academia
Brasileira de Letras, como sócio correspondente, eleito em 1998, sendo o sexto
ocupante da cadeira nº 5, que tem por patrono Dom Francisco de Sousa.
Atualmente é o autor moçambicano mais traduzido e
divulgado no exterior e um dos autores estrangeiros mais vendidos em Portugal.
As suas obras são traduzidas e publicadas em 24 países. Várias das suas obras
têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem recebido vários prêmios nacionais e
internacionais, por vários dos seus livros e pelo conjunto da sua obra
literária. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores
livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira
pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas
Românicas.
II – CARACTERÍSTICAS;
O próprio Couto, define-se:
Sou um escritor africano, branco e de língua
portuguesa. Porque o idioma estabelece o meu território preferencial de
mestiçagem, o lugar de reinvenção de mim. Necessito
inscrever na língua do meu lado português a marca da minha individualidade
africana. Necessito tecer um tecido africano e só o sei fazer usando panos e
linhas europeias. O gesto de bordar me ensina que estou inventando uma outra
ordem e nessa ordem esses valores iniciais de nacionalidade já pouco importam. (COUTO, 1997)
O estilo do escritor é inovador porque introduz
elementos, expressões e léxico que não são característicos dos outros autores.
Desde a infância conheceu diversos grupos étnicos em Moçambique de maneira que
pode contar as histórias do seu povo. Na narrativa, o autor intenta mostrar as
culturas que fazem parte do mosaico étnico de Moçambique. A linguagem literária
de Mia Couto é tocada pela oralidade e é cheia de neologismos, da aglutinação,
da prefixação e outros modos de recriação do léxico. Enumerar todos os
resultados dessa criatividade lexical seria impossível, mas alguns exemplos
são: depressou-se, entre-quando, deslembrava, sozinhidão, fantasiática,
administraidor... Do mesmo modo o autor usa o português oral do quotidiano de
Moçambique e as marcas de moçambicanidade estão sempre presentes nos livros. A
moçambicanidade pode refletir-se nos espaços reais ou irreais ou em múltiplas
vozes narradoras. Os elementos fantásticos e sobrenaturais produzem estranheza
nos leitores, mas os contos foram escritos de maneira que tudo parece normal. O
humor nos contos é introduzido para provocar emoção ou para fazer menos
dramáticos os sucessos trágicos.
O autor nos seus livros exibe numerosas situações
que se referem aos mitos, às lendas e ao folclore nacional. Assim, as obras
contrastam com a vida ordinária e mostram-nos o fantástico e o irreal. Além
disso, mostram o conflito entre o mundo moderno e o mundo tradicional. Os
valores tradicionais mantêm-se por meio de situações raras que os portugueses
não podem compreender. De modo que essas situações que aparecem nos livros de
Couto são uma forma de resistência cultural. Mas também representam a conservação
da identidade nacional moçambicana.
Pelo seu estilo de escrita foi comparado a autores
tais como Gabriel García Márquez, Jorge Amado e Guimarães Rosa. Couto utiliza
as invenções linguísticas e os neologismos, mas sempre retratando a realidade
do povo moçambicano. A oralidade usada reflete as marcas da identidade
cultural. Em vista disso, conserva a identidade moçambicana combinando a
oralidade que representa a tradição e a escrita que representa a modernidade.
Igualmente, o autor explora as próprias raízes do
mundo e descreve a relação entre homem e a natureza. Tenta reescrever a
realidade e exibir com a escrita tudo o que caracteriza a cultura do seu povo
falando sobre a vida, a morte, a ignorância, o racismo, a guerra, a corrupção,
o amor, o ódio...
Lendo as obras de escritor os leitores em diversas
partes do mundo podem conhecer melhor a cultura moçambicana. Mia Couto é sem
dúvida, o escritor moçambicano que melhor representa a realidade cultural do
seu país e o que até mais longe a transporta, dado que, atualmente, são já 14
as línguas em que contos, crônicas, poemas e livros seus estão à disposição de
leitores falantes dessas mesmas línguas. E isto porque não é possível
permanecer indiferente ao fascínio que se desprende da sua escrita, onde se perde
a noção do tempo e do espaço presentes, para se entrar no tempo do sonho,
desligado da contingência temporal, mergulhando-nos a imaginação na plenitude
do eterno e do universal. (ANGIUS, 1998, pp. 16-17)
As narrativas do autor expõem várias culturas e
crenças do homem moçambicano. O espaço etno-social apresentado nos contos
abrange universos culturais muito diversos. Misturam-se elementos africanos,
europeus, indianos, árabes e muçulmanos. Essa combinação de elementos de
culturas diferentes mostra o mosaico étnico de Moçambique:
“Os ritos, mitos e outras marcas distintivas do
país em que o escritor nasceu, através da sua obra, tomam lugar no mundo
contemporâneo e completam a panóplia de culturas que a literatura põe em
convivência ativa. “(Angius, 1998, p. 17)
Segundo Pires Laranjeira (1995, p. 314), no
primeiro lugar aparece a criatividade e inventividade da linguagem. Isso
significa que a nível da sintaxe e do léxico a linguagem muda. A fala e as
estruturas das línguas africanas modificaram a norma europeia. A consequência
dessa influência é a nova norma moçambicana. Igualmente, as falas populares
influíram a língua literária flexibilizando e remodelando a frase. A linguagem
usada é muito rica em neologismos e estruturas sintáticas inventadas.
Conforme Cavacas (2006, pp. 65-67), Mia Couto
utiliza nas suas obras o português que tem algumas características do português
rural que ele mistura com o português oral de Moçambique. “O léxico é recriado
sempre a partir da língua portuguesa de Moçambique e de outras línguas que com
ela coabitam o espaço moçambicano. Também, a aproximação ao português oral de
Moçambique nos seus reflexos a nível da organização morfossintática que serve o
texto e na forma oralizante do discurso. “ (Cavacas, 2006, p. 67)
De acordo com Pires Laranjeira (1995, p. 316), o
humor é construído através da intriga, de situações e acontecimentos, de
personagens e seus nomes, da narração ou da linguagem e da enunciação.
Remete-nos para enredos e tramas sem nenhuma lógica que se caracterizam pelo
absurdo, irrealismo e situações cheias de drama, angústia e tragédia. O humor
de intriga provém de uma intriga por si só engraçada ou fantástica. O humor de
situação ou acontecimento não envolve uma intriga completa, mas apenas um
episódio. O humor de personagem define-se pela linguagem, as histórias que
conta ou o seu comportamento.
Frequentemente mostra a fala da personagem sem
competência linguística perfeita do português. O humor dos nomes próprios de
mesmo modo está presente nas suas obras porque certos nomes são cômicos em si
mesmos ou por contradição com características da personagem, por exemplo, a
personagem que se chama Rosalinda, uma mulher muito gorda.
O humor na narração verifica-se no modo de contar
os acontecimentos. O humor da linguagem verifica-se no nível sintático e
lexical. O humor de enunciação nota-se no modo de organização do discurso e na
construção da frase.
Segundo Pires Laranjeira (1995, p. 315), outra
característica do estilo coutiano é o realismo na descrição de ações e
caracteres. Assim, no conto “A fogueira” no início está descrita o cenário de
pobreza e de devastação. Esse começo é importante porque mostra como vai ser o
cenário dos restantes contos na obra “Vozes anoitecidas”: escassez, desolação e
carências. No segundo conto, “O último aviso do corvo falador”, de igual modo
“se desenha, um ambiente, costumes, tipos sociais, uma espetacular ação que origina
a expetativa da intriga: no meio da praça, plena de gente que petisca na
cantina, um pintor reformado, de nome Zuzé Paraza, magro, que fuma um cigarro
da pior qualidade, começa a tossir e vomita um corvo vivo. ” (Pires Laranjeira,
1995, p. 316)
De acordo com Pires Laranjeira (1995, p. 316), a
introdução do fantástico transforma esse realismo num realismo animista (a
expressão é dos angolanos Henrique Abranches e Pepetela). O realismo animista
aproxima-se ao realismo mágico sul-americano que igualmente descreve os
ambientes, caracteres e ações através dos sonhos e a imaginação. Na ficção, Mia
Couto utiliza elementos que se aproximam do realismo fantástico e do
maravilhoso para representar a dor, a miséria e as consequências traumáticas da
guerra civil.
Isso é o caso na narrativa da obra “Terra
Sonâmbula”. O elemento fantástico é introduzido de repente para provocar emoção
e estranheza no leitor. Os leitores moçambicanos não urbanos são habituados a
tal quadro imaginativo e conceptual. Por exemplo, no conto “O último aviso do
corvo falador” o autor apresenta o mito como algo ordinário e habitual:
Logo depois da sua apresentação, o pintor reformado
monta um negócio, com o auxílio do corvo, que a narração deu como vomitado, mas
cuja aparição podemos imaginar sempre como um expediente do pintor. Certo é que
a narração acaba também por mostrar que aconteceu o incrível: uma maldição de
Zuzé Paraza abate-se, de facto, sobre o indiano Sulemane, segundo marido da
mulata Dona Candida, que o consultara para obviar aos estranhos achaques dele
na hora do leito de amor. A maldição é encarada como um sinal para toda a
povoação, que, ao notar a escapadela do advinho, toma-a como presságio
colectivo e bate em retirada, abandonando a aldeia. (PIRES LARANJEIRA, 1995, p. 316)
“Vozes Anoitecidas” é o livro de estreia de Mia
Couto no mundo da prosa. Em toda a obra entrelaçam-se episódios fantásticos,
trágicos e humorísticos que incluem personagens interessantes que representam a
sociedade moçambicana. É uma obra na qual o autor transmite as vozes da sua
gente, as vozes dos antepassados. Portanto, a leitura do livro é também um
reconhecimento de marcas da cultura moçambicana.
III - “VOZES ANOITECIDAS”
“Vozes anoitecidas” é uma coletânea de contos
de Mia Couto. A obra foi publicada pela primeira vez em 1986 e é o seu primeiro
livro em prosa e a obra que projetou o escritor para o mundo. Até então era
conhecido só como jornalista e poeta.
Nesta obra o escritor forma o vínculo entre o
registo oral e escrito o que é uma das principais características da sua
escrita. Em 2013 o livro foi vencedor do Prêmio Camões.
Couto relata histórias de um Moçambique
devastado no pós-guerra. Mais que isso, vemos o retrato de gente que luta todos
os dias pela sobrevivência. Assim, a maioria dos contos da coletânea mostra as
dificuldades e os problemas sociais das personagens. Trata-se dos assuntos que
incomodavam o autor porque o livro foi escrito na época em que o país estava na
guerra civil.
A obra mostra uma nação que sofre pela guerra,
pela fome e por medo das minas.
Muitas vezes não podemos determinar o gênero
literário da obra (prosa, poesia) ou se estamos no sonho ou na realidade.
Este é um livro interessante porque nos leva a
refletir sobre a existência humana, o passado e o futuro e sobre os seres
humanos que somos. O contato com uma cultura tão distinta muda as convicções e
as atitudes dos leitores sobre as próprias vidas.
Conforme Leite (2014, p. 41), a guerra civil
em Moçambique é o cenário da maioria dos contos de “Vozes anoitecidas”. Também,
esses contos têm um sentido trágico que se resolve com a precipitação dos
enredos para a morte. Isso particulariza-se nas histórias pessoais de cada uma
das personagens e suas desventuras.
De acordo com Leite (2014, p. 41), a língua
utilizada pelo autor na escrita dos contos é uma forma de nos informar sobre a
constante crise que a sociedade moçambicana vive através das histórias trágicas
do seu quotidiano. Porém, a língua é um dos meios escolhidos pelo autor para
recuperar as marcas culturais da oralidade da sociedade tradicional, a visão do
mundo mítica e o onirismo, ou seja, a relação entre o homem, a natureza e a
comunidade.
No conto Afinal, Carlota Gentina não chegou de
voar? Estamos ante duas formas de pensar, ou dois mundos em confronto, o
fantástico e o racional:
Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou
talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim não sou sozinho. Sou muitos. E
esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi
só um. Ai, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo,
mulato não das raças, mas das existências. A minha mulher matei, dizem. Na vida
real, matei uma que não existia. Era um pássaro. Soltei-lhe quando vi que ela
não tinha voz, morria sem queixar. Que bicho saiu dela, mudo, através do intervalo
do corpo?
O pensamento da personagem central caracteriza
o pensamento mítico, a multiplicidade e a contradição das identidades (Carlota
pode ser mulher e pássaro). A personagem narrador cumula em si essa desordem
das identidades (“Sou muitos“).
De acordo com Leite (2014, pp. 46-47) no conto
“O último aviso do corvo falador” o mito se instala no processo narrativo de
Mia Couto sem nenhuma surpresa:
Foi ali, no meio da praça, cheio de gente
bichando na cantina. Zuzé Paraza, pintor reformado, cuspiu migalhas do cigarro
‘mata-ratos’. Depois, tossiu sacudindo a magreza do seu todo corpo. O pássaro
saiu inteiro das entranhas dele...
No conto “As Baleias de Quissico”, a
personagem Bento João Mussavele imagina que existem as baleias salvadoras que
vão salvar a população da pobreza:
Não, o animal estava ali, ouvia-lhe a
respiração, aquele rumor profundo já não era da tempestade, era a baleia
chamando por ele. Sentiu que já sentia pouco, era quase só aquele arrefecimento
da água a tocar-lhe o peito. Qual invenção, qual quê? Eu não disse que era
preciso ter fé, mais fé do que dúvida? Habitante único da tempestade, Bento
João Mussavele foi segundo mar adiante, sonho adiante.
IV – TÍTULO:
O título do livro apresenta um tanto de metafórico.
O termo vozes remete à construção discursiva, à possibilidade de se expressar,
oralmente em especial, o que é bastante pertinente, considerando que a
ancestralidade africana se faz presente. E o termo anoitecidas nos remete
igualmente a uma tradição moçambicana, pois segundo Henri Junod, que fez um
profundo estudo sobre a cultura no sul de Moçambique, a narração dos contos
africanos obedece a determinados rituais:
Há que tomar uma bizarra precaução quando se contam
contos: é um tabu fazê-lo durante o dia; trata-se de um entretenimento da
noite; o que transgredir essa regra torna-se calvo! (...) Penso que essa
proibição provém de que, como esse jogo é tão popular, os indígenas receiam consagrar-lhe tempo
demasiado: perderiam toda vontade de trabalhar, se começassem a jogá-lo logo a
meio dia. Por isso se interditaram, instintivamente, a narração de contos
durante o dia (JUNOD, apud LOPES, 2004, p. 185).
Apesar desse componente mais local, o leitor brasileiro
ou de outros países pode bem se deparar com situações similares, pois Couto
consegue abordar temáticas abrangentes, especialmente as relações mais
diversas.
O próprio Mia Couto em prefácio revela que
anoitecer as vozes significa impedir o desenvolvimento da imaginação, da
fantasia. Quer dizer, um discurso que é impedido de se manifestar por estar nas
trevas, no esquecimento. Contra isso, contra o esquecimento, manifesta-se a
literatura, que tira do limbo, da escuridão as histórias ou esquecidas ou não
contadas.
Esse é, pois, o papel do escritor, o de inventar ou
o de resgatar histórias orais. O que chama a atenção inicialmente na literatura
de Couto é a semelhança com a obra de Guimarães Rosa, especialmente por conta
dessa oralidade, do trabalho estético da oralidade.
Sem dúvida, o leitor experiente conseguirá perceber
as semelhanças entre os dois autores.
V - RESUMO DOS CONTOS DA OBRA “VOZES
ANOITECIDAS”:
1. “A fogueira”: é o primeiro
conto de “Vozes Anoitecidas” e é uma boa introdução à obra de Couto. Relata a
história de um casal de idosos que vive numa grande pobreza. Eles começam a
discutir sobre o futuro incerto e a morte.
Como estão velhos e sozinhos, o marido tem uma
preocupação: saber quem enterraria a mulher se ele morresse antes dela.
Um dia o marido decidiu que ia cavar o
cemitério para a sua mulher. Dedicou-se ao buraco durante duas semanas. Ele não
queria deixar a esposa sofrer no caso de ele morrer antes. Esforçava-se muito,
sem descanso e trabalhava mesmo com o mau tempo e a chuva.
- Somos pobres, só temos nadas. Nem ninguém
não temos. É melhor começar já a abrir tua cova, mulher.
A mulher comovida, sorriu:
– Como és bom marido! Tive sorte no homem da minha vida. (A fogueira. (pág. 22)
E faz isso todos os dias, devagar devido à idade e
à pouca força.
Durante duas semanas o velho dedicou-se ao buraco.
Quanto mais perto do fim mais se demorava.
(p. 23)
Também, não comia e estava doente. No dia
seguinte, sem forças caiu. A mulher puxou-o pelos braços e trouxe-o para
dentro.
Acamado, volta a ter a preocupação pela mulher,
afinal quem a colocaria na cova se ele viesse a morrer. Por isso mesmo, decide
que a cova não pode ficar sem serventia e que o melhor a se fazer é matar a
mulher antes que ele próprio morra. Ainda que seja estranho, não se trata de
uma decisão com ódio ou outro sentimento ruim. Acredita, segundo sua visão de
mundo, que esse é o correto a se fazer. A mulher, comunicada pelo marido sobre
tal decisão, aceita passivamente, sem admoestá-lo, sem se revoltar ou falar
qualquer coisa em contrário.
– É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para
fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim. (p.
25)
No dia seguinte, o marido não resiste e é
encontrado morto pela mulher. Durante a noite, a velha sonhara com os
antepassados, sonhara com as histórias contadas e o sentido que faziam para
manter a integridade do grupo. O que se deve, portanto, destacar no conto é,
além da extrema pobreza em que vivem, a singeleza e a harmonia do casal. Se
falta riqueza material, sobram a eles exatamente elementos da cultura local, o
respeito à sabedoria dos mais velhos, o respeito às decisões.
Esse primeiro conto revela já o contraste entre o
mundo moderno, egoísta, de busca por novidades e a harmonia de uma sociedade
que, como os velhos, morrem e eles próprios têm de cavar a própria cova. Afinal, não morreu a mulher, mas faleceu o marido.
A única coisa certa nas vidas do casal é a morte.
2. “O último aviso do corvo falador”:
neste conto Mia Couto usa o elemento fantástico ou realismo mágico.
O pintor Zuzé Paraza, após um acesso de tosse,
por um efeito de magia vomitou um corvo, animal este, muito especial. Oriundo da fronteira da vida e capaz de
fornecer informações sobre os mortos através de seu crocito.
Foi ali, no meio da praça, cheio da gente
bichando na cantina. Zuzé Paraza, pintor reformado, cuspiu migalhas do cigarro
“mata-ratos”. Depois, tossiu sacudindo a magreza do seu todo corpo. Então,
assim contam os que viram, ele vomitou um corvo vivo. (pág. 29)
A notícia, como um relâmpago, correu a
povoação. Afinal, esse Zuzé! Era mesmo, o gajo. Dono de bruxezas, realmente. No
dia seguinte, todos levantaram cedo. Correram à casa de Zuzé Paraza. Todos
queriam ver o pintor, todos queriam-lhe pedir favor, encomendar felicidades. (pág. 38)
O corvo de imediato mostrara sua habilidade em
falar. Porém, o único a compreender sua fala era o próprio Zuzé.
Verdade ou não, o pintor de parede passou a
ser visto pela comunidade como alguém detentor de poderes mágicos e era sempre
consultado por essa pretensa habilidade que teria o corvo.
Ele prestava consultas a toda a gente e
previa-lhes o futuro.
“Os pedidos logo acorreram numerosos. Zuzé já
não tinha quarto, era gabinete. Não dava conversa, eram consultas. [...] E
assim entra na história Dona Cândida, mulata de volumosa bondade, mulher sem
inimigos. “(p. 30)
Um dia no seu consultório chegou à dona
Cândida, uma mulher mulata e esposa de Sulemane que era comerciante indiano.
Também, era viúva de um negro que se chamava Evaristo.
Segundo o que foi relatado no conto, a morte de um
marido deveria suceder um ritual de modo dar-lhe sossego espiritual na outra
vida.
Tinha suas suspeitas: Evaristo era da raça negra,
natural da região. Dona Cândida, com certeza não cumprira as cerimônias da
tradição para afastar a morte do primeiro marido. (p. 32)
Apesar da suspeita, ela confirma que fizera tudo
quanto mandaram. Zuzé pede ao corvo que investigue o caso. Mesmo com algum
temor da mulher, ele pousa em seu ombro.
O conto tem um tanto de cômico também, pelo
inusitado da cena. O leitor é capaz de perceber as intenções de Zuzé. Após
ouvir o corvo, ele conclui que Evaristo deveria estar passando frio e que
precisaria das suas roupas. Como ela, no ritual de encomendação, já se
desfizera das roupas, Zuzé propõe que dê roupas do atual noivo, que o Evaristo
certamente não se importaria.
– O Sulemane não pode saber disto. Meu Deus! Se ele
desconfia!
– Fica descansada, dona Candida. Ninguém vai saber.
Só eu e o corvo. (p. 34)
Zuzé queria conseguir novas roupas e não
resistiu e vestiu as roupas entregues. Mais tarde, Sulemane toma conhecimento
que as suas roupas estavam com Zuzé e, procura-o para ajustar as contas. O
encontro resulta em agressão física e na morte do pássaro por um acidente. Na
discussão, Sulemane cai sobre a ave.
Zuzé, aproveitando-se da atitude
intempestiva de Sulemane que acaba matando por acidente a ave, faz profecias
malignas contra. Sulemane, que logo em seguida, começa a passar mal. O fato
serviu para reforçar a crença nos poderes de Zuzé.
A notícia, como um
relâmpago, correu a povoação. Afinal, esse Zuzé! Era mesmo, o gajo. Dono de
bruxezas, realmente. (p. 38)
Depois disso, Zuzé previu uma praga na cidade
e decidiu abandonar a região. Crendo
nisso e na atitude do pintor elevado à condição de bruxo, um a um, os moradores
abandonaram suas casas e partiram para outras terras.
Tais crenças despertam também crendices. No caso,
Sulemane parecia não conseguir ter relações com Dona Cândida, e ela acreditava
que poderia ser devido a algum feitiço do marido morto.
3. “De como vazou a vida de Ascolino do
Perpétuo Socorro”: Ascolino, originário
de Goa, morava em Moçambique e se intitulava indo-português [...], católico de
fé e costume (p. 59).
Apenas como referência, Goa é
atualmente um dos estados da Índia, mas foi território português na Ásia entre
1510 e 1961.
Vestia sempre de rigor, fato de linho branco,
sapatos de igual branco, chapéu de idem cor. Cerimonioso, emendado, Ascolino
costurava no discurso os rendilhados lusitanos da sua admiração. [...] Qui tém,
homem? Essetragô sapúe de nosso. Não obstante, qui vai pagar? (p. 59 e 61)
A dona Epifânia era a sua esposa e Vasco João
Joãoquinho o criado. Ascolino era infeliz no casamento com Epifânia porque ela
era uma mulher muito fria e não lhe mostrava o amor e o carinho. Ela era devota
a Deus. Com isso, a diversão de Ascolino
era beber no bar do Meneses, na companhia do seu empregado João.
Montava sempre na bicicleta que seu criado
pedalava.
Houvesse ou não visitas repetia-se o ritual.
Vasco João Joãoquinho, fiel e dedicado empregado, surgia da sombra das
mangueiras. Fardava caqui, balalaica e calção engomado. Aproximava-se trazendo
uma bicicleta. Ascolino Fernandes, protocolar, inclinava-se perante ausentes e
presentes. O empregado entregava-lhe uma pequena almofada que ele ajeitava no
quadro da bicicleta. Acomodava-se, com cuidado de não manchar as calças na
corrente. Ultimados os preparos, Vasco João Joãoquinho montava no selim e, com
um puxão vigoroso, dava início ao desfile. (pág. 60)
O bar era dividido entre os brancos e os pretos; os
brancos junto com Ascolino ficavam na parte da frente e Joãoquinho ficava na
parte traseira com outros pretos. No bar, Ascolino contava aos amigos as peripécias de Ascolino, o que ele fazia para ter
a atenção da esposa. Certa feita, destruiu móveis da casa, quis destruir as
imagens dos santos e símbolos religiosos, para ver se a esposa olhava para ele.
Porém, o efeito foi o contrário.
Uma noite
Ascolino estava muito bêbado e passaram ele e o criado a noite fora de casa.
De manhã, quando acordaram e voltaram a casa
descobriram que Epifânia intentava abandonar o seu marido. E eles não
conseguiram impedi-la.
Alertado por Vasco, Ascolino diz que eles têm de
perseguir o caminhão que estava levando a mudança da esposa. Manda Vasco pegar
a bicicleta e irem atrás dela. Evidente que jamais alcançariam a esposa assim.
Apesar disso, Vasco prepara a bicicleta em partem
em busca dela. Não, sem antes Ascolino dizer:
– Pedal, pedal depresse. Não obstante,
temos que chegar cedo. Hora de cinco hora temos que volta na cantina de Meneses.
(p. 71)
Trata-se de um conto em que a comédia prevalece.
Outra característica é a semelhança com a narrativa de Guimarães Rosa.
Ascolino é um personagem um tanto caricato, seu
modo de falar é bem marcado, revelando uma pretensa nobreza.
4. “Afinal, Carlota Gentina não chegou de voar”: também remete o leitor a Guimarães Rosa, pois o
narrador se dirige a um interlocutor ausente, no caso um advogado. Na esteira
de Riobaldo (de Grande sertão: veredas), o narrador quer confessar seu crime.
Este conto é um relato confessional do marido
de Carlota Gentina que cometeu um homicídio.
A história, dividida em quatro partes, trata como o
narrador matou sua esposa, os motivos que o levaram a cometer o crime, bem como
sobre seu arrependimento e necessidade de pagar pelo crime. Seu objetivo é
explicar ao advogado como ocorreu tudo.
Queria comprovar se a sua mulher era um animal
ou não. O marido já está na prisão há seis anos.
O senhor, doutor das leis, me
pediu de escrever a minha história. Aos poucos, um pedaço cada dia. Isto que eu
vou contar o senhor vai usar no tribunal para me defender. [...] Afinal, estou
aqui na prisão porque me
destinei prisioneiro. Nada, não foi ninguém que queixou. Farto de mim me
denunciei. (p. 75-76)
Para explicar o seu ato, relata a história do
seu cunhado Bartolomeu, que deixa
cair, acidentalmente, em sua esposa uma lenha em brasa.
A mulher emite um grito
estranho, como se fosse de um animal. Na cultura moçambicana tradicional, o
fato indica que ela seria uma nóii, isto é, uma feiticeira.
Alertado por Bartolomeu, o
narrador fica preocupado e imagina ser casado com uma também, afinal eram
irmãs. Por isso, resolve tirar a prova. Tinha
de a submeter a um sofrimento, uma dor profunda.
Joga em Carlota água fervendo. Porém, para sua
surpresa, ela não gritou, apenas chorou sem muito barulho. Ele, então, ficou em
dúvida, imaginava que ela poderia se transformar em um animal.
Quando trouxe a Carlota para fora de casa viu que
ela tinha morrido e concluiu que era um pássaro. Depois, sonhava com ela. Nos
sonhos, ela cantava e ele viu a própria morte. Por isso o título do conto.
Carlota Gentina era um pássaro, desses que perdem
voz nos contraventos. (p. 79)
Confessou que era culpado pelo crime.
Há já seis anos que se entregara à polícia. É
consciente do seu engano. Bartolomeu foi à prisão e contou-lhe tudo como se
passou. A mulher de Bartolomeu não era animal e isso ele confirmou muitas
vezes. Nem gatinhava, nem passarinhava, nada. Era pessoa.
E se irmã de Carlota não era animal, Carlota
também não podia ser.
Por isso, ele sabe que cometeu um crime, mas não
contra os homens, e sim contra a cultura local.
Ele se divide entre o mundo português, com suas
leis, cultura e a cultura moçambicana. Chega a dizer que “mesmo brancos somos
pretos”, ou seja, não porque houve a colonização que o ser moçambicano está
totalmente morto. Trata-se, portanto, de um conto que revela a preocupação
localista de Mia Couto. Em resumo, o narrador acredita que deva ser julgado
pela justiça tradicional, pois seria julgado considerando a tradição. Partindo
do princípio de que o seu crime foi por uma justa causa, a desconfiança que teve.
5. “Os pássaros de Deus”: esse conto
trata as linhas que separam a religião e a loucura. A personagem principal é um
pescador que se chama Ernesto Timba. Um dia ele salvou uma ave ajudando-a a
retomar voo. Mas a ave sempre regressava ao barco de Ernesto.
Ele pensava que isso era um sinal e que a ave
tinha sido enviada por Deus.
Nada, o pássaro não se mexia.
Foi então que o pescador suspeitou: aquilo não era um pássaro, era um sinal de
Deus. Esse aviso do céu havia de matar, para sempre o seu sossego. (p. 53)
Então, decidiu voltar com o pássaro a casa e
começou a cuidar dele. No dia seguinte, Ernesto construiu uma gaiola e
deu o peixe que tinha pescado ao pássaro.
Como chegava a desviar comida destinada à família
para alimentar o pássaro, a comunidade passou a vê-lo como louco.
A mulher achava que era maluco. Ernesto não
deixava que ninguém tocasse naquele pássaro. A ave engordou muito, mas era
triste porque não tinha companhia. Por esta razão, Ernesto pediu a Deus que
enviasse uma companheira para a ave solitária.
Não demorou muito para que
surgisse outro pássaro. Era um casal, que gerou filhotes.
Timba cuidava e alimentava mais as aves do que
a própria família.
Na aldeia, espalhou-se a suspeita: Ernesto Timba
estava era maluco. A própria mulher, depois de muito ameaçar, abandonou o lar,
levando com ela todos os filhos.
(p. 55)
Em certo momento, após voltar do trabalho, Timba
encontra o pássaro morto, havia sido queimado na gaiola. O fato o leva a
acreditar que os assassinos do pássaro seriam amaldiçoados por serem pássaros
divinos. Timba chorava. Também, pediu a
Deus que não castigasse ninguém porque ele queria entregar-se em nome da
comunidade. Dias depois foi encontrado morto com o seu corpo ligado à
superfície do rio.
Em certo momento, Timba, que tinha muita tristeza,
é encontrado morto às margens do rio onde costumava pescar. Logo anunciaram a
morte do louco do local. Tentaram tirá-lo da margem, mas, estranhamente,
parecia colado à terra. Mesmo os homens mais fortes da aldeia não conseguiram
tirar o cadáver de onde estava.
Começou, nesse momento, uma tempestade, o que muito
assustou os moradores, imaginando que poderia ser o castigo anunciado por
Timba. E esta chuva que consegue mover seu corpo rio abaixo.
Plácido, o rio foi ficando longe, a rir-se da
ignorância dos homens. E num embalo terno foi lavando Ernesto Timba, corrente
abaixo, a mostrar-lhe os caminhos que ele apenas tinha aflorado em sonhos. (p. 56)
Com esse término, o narrador faz uma oposição entre
a racionalidade que contraria a fantasia, o sonho. Esse contraste é tipificado
entre o pescador e demais moradores, que o viam como um desequilibrado.
6. “O dia em que explodiu Mabata-bata”: também tem seu início marcado por crendice.
O conto retrata a história de um jovem pastor
que se chama Azarias. Ele era órfão e vivia com o tio Raul e a avó Carolina.
O tio, no entanto, não o tratava bem. Obrigava-o a
trabalhar o dia todo e ainda o ameaçava caso perdesse algum boi.
A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela
angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-lhe como
sombras, mas não encontrava saída. (p.
42)
A única tarefa de Azarias era cuidar do gado
do seu tio.
Azarias gostaria muito de estudar, ter perspectivas
de uma vida melhor, assim como, inclusive, ter tempo para se divertir, brincar,
o que o tio impedia de ele fazer porque tinha sempre de trabalhar.
O boi Mabata-bata era o boi mais forte da manada
sob a responsabilidade de Azarias. Também, esse boi serviria como dote durante
a cerimônia de casamento do tio Raul. Mas um dia, quando pastava, o Mabata-bata
acionou uma mina e morreu.
O pastor, o jovem Azarias, acredita que tenha sido
obra de ndlati, a ave do relâmpago, que teria enviado um raio, mesmo em um dia
claro, sem nuvens.
O jovem pastor ficou preocupado em retornar sem o
principal boi do rebanho e decidiu
fugir. Já que Azarias não regressava com os bois, a avó Carolina ficou muito
preocupada.
Já era noite e Raul estava preocupado com o sumiço
do sobrinho. Não tanto com o bem-estar dele, e sim porque achava que o menino
estaria vadiando. Carolina não queria que ele fosse porque
os soldados informaram que a região estava minada.
Raul, mesmo alertado para a possibilidade de
pisarem outras minas, decide ir atrás do menino, que, mesmo não tendo culpa,
ainda assim pensava em castigá-lo.
Carolina vai atrás dos dois. A senhora, mais
compreensível, localiza o neto e tenta convencê-lo a se apresentar, dizendo que
Raul não bateria nele e
prometeram-lhe um prêmio. Azarias disse que queria ir à escola no próximo
ano. Aparentemente o tio Raul
concorda com o pedido.
Porém, ao sair para ir ao encontro do tio e a da
avó, Azarias aciona uma mina e morre. A descrição é um tanto poética e sugere
uma espécie de libertação da opressão a que era submetido o menino.
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal
onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou um clarão, parecia o meio-dia da
noite. [...] Azaria correu e abraçou-a [ndlati] na viagem da sua chama. (p. 47)
O conto explora, pois, o estado de pobreza de
muitos moçambicanos, bem como reproduz a tirania de determinados grupos sobre
os demais. No conto isso ocorre mesmo entre parentes. Além disso, a presença de
minas é indicativa das guerras travadas em Moçambique após o processo de
independência do país, ocorrido nas décadas de 60 e 70 do século XX.
7. “A história dos aparecidos”: essa
história é uma crítica oculta ao governo corrupto.
Retrata o desaparecimento de alguns cidadãos, cuja
morte foi operada pelo Estado, mas oficialmente teriam se afogado ou morrido de
alguma doença. Moçambique viveu sob o regime português até 1975. Depois disso
houve guerra civil em busca da consolidação do poder por grupos ideológicos
diferentes, ou sob inspiração marxista ou sob inspiração mais liberalista. Em
momentos assim, é comum que haja uma perseguição aos direitos civis, e os
cidadãos fiquem sem a devida liberdade de expressão. No caso do conto, a ideia
é falar sobre a morte civil. Se o indivíduo está vivo, oficialmente está morto.
E é contra isso que devem lutar alguns personagens, Luís Fernando e Aníbal
Mucavel.
As águas levaram a aldeia inteira. Não ficou
nada no lugar. Salvaram-se muitos e alguns desapareceram entre os quais estavam
Luís e Aníbal. Eles morreram dentro da água. A morte deles era uma certeza
quando uma tarde apareceu outra vez. Os vivos estavam muito assustados com a
chegada deles e chamaram a polícia. Não havia lugar para os mortos de regresso
imprevisto.
Luís e Aníbal tornaram-se o assunto e tinham
de ir às autoridades para explicarem a sua situação. Um homem disse-lhes que
eram apenas almas e não a realidade materialista como os outros habitantes.
Nesse caso, eles decidiram queixar-se a uma comissão. A comissão trabalhou
durante dois dias.
Em seguida, convocaram uma assembleia geral
dos aldeões. O chefe da comissão anunciou que os aparecidos devem ser
considerados vivos. Mas não deveriam repetir essa saída da aldeia ou da vida.
– Como não estamos? Vocês riscam a pessoa assim
qualquer maneira?
– Mas vocês morreram, nem sei como que estão aqui.
– Morremos como? Não acredita que estamos vivos?
– Talvez, estou confuso. Mas este assunto de vivo
não-vivo é melhor falarmos com os outros camaradas. (p. 118-119)
Toda a aldeia ficou surpresa. Não sabiam o que
fazer, como agir. Depreende-se daí a importância maior que se dá à burocracia
que a aspectos reais e efetivos do ser humano, como estar vivo de fato e
necessitar de suprimentos básicos para a sobrevivência.
A resolução vem de uma comissão governamental, que
conclui estarem de fatos os dois vivos, mas que deveriam estar mais atentos
para que isso não viesse a se repetir.
– Mas os dois aparecidos é bom serem avisados que
não devem repetir essa saída da aldeia ou da vida ou seja lá de onde. Aplicamos
a política da clemência, mas não iremos permitir a próxima vez. (p. 123)
Apesar de algum nonsense, a decisão tem um tanto de
irônico, e para isso que o narrador chama a atenção, para o absurdo da
sociedade totalmente controlada por um poder estatal, que retira dos indivíduos
a autonomia até mesmo para ser, para existir.
Mia Couto escreve sobre diversas temáticas, desde
aquelas mais cômicas, até essas mais trágicas, sempre com o intuito de retratar
Moçambique em toda a sua riqueza cultural. Como país colonizado, caso do Brasil
também, há sempre um choque cultural, entre a tradição local e a trazida pelos
colonizadores. Às vezes, dessa mistura, surge uma cultura mestiça; às vezes,
surge também o conflito, o embate entre perspectivas.
8. “A menina do futuro torcido”: este
conto retrata a história de Joseldo Bastante que era um mecânico da pequena
vila. Viajava e procurava maneiras para solucionar a sua vida e ganhar
dinheiro.
A perspectiva de um futuro fica
tolhida pela falta de oportunidade. Com isso, quando surge uma, por absurda que
seja, agarra-se com toda a gana.
Chegaram à cidade notícias de sucesso de um
jovem que podia virar e revirar o corpo como uma cobra. Foi contratado por um
empresário. Todos queriam vê-lo e tornou-se muito rico. Joseldo tinha doze
filhos e resolveu que Filomeninha havia de ser contorcionista. A partir desse
momento o pai treinava a sua filha a curvar e ela iniciou as ginásticas e
evoluía lentamente.
– A partir desse momento, vais treinas
curvar-te, levar a cabeça até no chão e vice-versa. (p. 128)
E assim fez. Com base na própria intuição, Joseldo
iniciou treinamentos com a filha, os mais disparatados. De manhã, regava-a com água quente para os ossos
dela ficarem adaptáveis. A menina estava toda torcida para trás e queixava-se
de dores, mas o pai não parava. Desejava todos os dias que o empresário
passasse pela vila. Enquanto isso, Filomeninha piorava e já quase não andava e
começou a vomitar. Uma tarde, chegou o empresário à cidade. A menina
queixava-se do frio. Nem o vestido largo podia esconder os estremeções dela. O
empresário disse-lhes que não lhe interessava o contorcionismo porque já o
tinha visto e não provocava sensação. Naquele momento lhe interessavam os tipos
com dentes de aço que podiam roer madeira e mastigar pregos.
– A única coisa que me interessa agora
esses tipos com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que vocês às vezes têm,
capazes de roer madeira e mastigar pregos. (p. 131)
De volta à aldeia, Joseldo imaginou que a filha
parecia ter esses tais dentes fortes...
Quando voltaram no comboio o pai abanou o braço da
filha e foi então que o corpo de Filomeninha tombou torcido no colo do pai.
9. “Patanhoca, o cobreiro apaixonado”: dividido em seis partes, tematiza assuntos diversos
- da eutanásia à xenofobia.
No início, há uma pequena reflexão sobre o narrado.
Se aquilo que se narra é a verdade, ou apenas um modo de olhar para a verdade.
Se é possível apreender o todo ou apenas parte dele. Em rigor, a literatura tem
como um de seus objetivos explicar o real com base na fantasia, na imaginação.
E o todo depende de várias partes: do olhar de quem escreve, de quem conta, ao
olhar de quem lê.
Não quero mostrar verdade, disse nunca soube. Se
invento é culpa da vida. A verdade, afinal, é filha mulata de uma pergunta
mentirosa. (p. 135)
A narrativa vai sendo construída aos poucos.
Mississe era uma viúva chinesa e misteriosa, que
morava em Muchatazina, Moçambique e que, pelo exotismo, era assediada por
muitos portugueses e também moçambicanos. Mas ela não demonstrava interesse por
ninguém. Era muito triste, bebia álcool e às noites
gritava e chorava.
A viúva embrulhava-se nos azedos, enviuvando sempre
mais. Os portugueses, ricos até, saíam de ombros cabisbaixos. (p. 138)
Patanhoca, que significa na língua local aquele que
pega cobra, era um domador de serpentes. Embora tivesse essa habilidade, era,
segundo o narrador, um coitado, alguém sem posses materiais ou possuidor de
vasta cultura. O narrador não sabe muito sobre sua vida pregressa. Sabe apenas
que ele lida com cobras, que as doma e que tira o couro delas. Conhecendo a
história da viúva, decidiu que a protegeria dos assediadores, dos que
porventura quisessem lhe fazer mal. Por isso, soltava suas cobras no entorno da
casa da chinesa, impedindo que ela saísse ou que alguém se aproximasse durante
a noite.
Tudo isso, todo esse serviço de guarda, o Patanhoca
fazia sem pedir a troca. (p. 140)
Como era feio sempre escondia a sua cara.
Apaixonou-se pela dona Mississe mas tinha vergonha de mostrar o seu corpo.
Também, Patanhoca usava as cobras para a fechar.
Tinha medo que ela não fugisse com outro homem. Só Patanhoca podia afastar as
serpentes e permitir a entrada e saída das pessoas de casa.
Após esse acontecimento, quatro noites se passaram.
Na primeira, a chinesa convidou o domador de cobras para que entrasse em sua
casa. Ele não entendeu o motivo ou se fez de inocente. Ela o chamou de João, o
que causou mais descontentamento ainda, pois preferia ser chamado por seu
apelido. É provável que quisesse esquecer o passado.
– Sou Patanhoca, eu mesmo. Não é só nome
que fui dado. Tenho focinho, não é cara de pessoa. (p. 142)
Na segunda noite, ela o espera ainda mais bonita e
ele chega mais cedo. Apesar de ela mostrar verdadeiro interesse por ele,
Patanhoca quer manter-se distante. Parece que são mundos que colidem e ele quer
preservar o que é, sem misturar-se com uma mulher de outro país, outra cultura.
Mesmo assim, aproximam-se sem ter algo efetivo. Por isso mesmo, nessa segunda
noite, têm uma primeira briga, motivado por um pretenso ciúmes.
A china Mississe roubara-lhe o fogo que a gente
acende nos outros. (p. 145)
A terceira noite é marcada pelo conflito dele, quer
esquecê-la, não quer ser envolver com essa mulher, isso significaria mudar sua
vida, seu estilo de vida que havia adotado, inclusive com outro nome, não mais
o nome de batismo, um nome cristão. Tem dúvida também se ela ainda o iria
querer por conta da briga da segunda noite. Teve então um sonho.
Ouviu as visões com atenção. Diziam o seguinte: ela
estava arrependida, perdoara. Ele seria aceite, outra vez João, outra vez nome
e cara. Outra vez gostado. (p. 147)
E, de acordo com que sonhara, ela o esperava na
outra noite, ainda mais bonita. Ele se sentiu confiante, sentiu-se não mais o
Patanhoca, e sim o João, como ela preferia chamá-lo. Ela o chamou para beberem,
deixarem-se levar pelo desejo, pelas sensações. Ele fica confuso com isso.
Agora, sou João ou Patanhoca?
Ela então lhe pede um favor, queria que buscasse um
remédio, um mitombo. Não fica claro o que seria isso.
Ele próprio fica em dúvida qual seria a razão do
pedido:
Talvez era uma armadilha, aldrabice de esperanças.
Seria um remédio devido a uma picada de cobras?
Na verdade, o final, um tanto ambíguo, revela a
real intenção da chinesa: ela queria se matar, queria o tal remédio, que na
verdade seria o veneno da cobra para poder se matar. Por esse motivo, João
passou como o assassino da viúva, mas isso fica no plano da ambiguidade,
conforme anunciara desde o início o narrador.
10. “De como o velho Jossias foi salvo das
águas”: o Agosto e o velho Jossias estavam esperando a chuva. Recordavam a
grande fome de há vinte anos e também as cerimônias para pedir a chuva. Mas
nada. Nenhuma gota da chuva caiu. Os velhos insistiram de forma que conversaram
com os mortos no cemitério. Jossias queria levar as panelas do ngovo (a
aguardente do milho para os mortos). No caminho começou a beber e perdeu a
razão. Bebeu mais de metade e não se podia levantar. Restava quase nada. Então,
para esconder o que tinha feito encheu as panelas com a água estagnada de um
poço abandonado. No momento em que descia pelas paredes do velho poço as
paredes caíram sobre ele. Pensou que ninguém o iria encontrar. Mas Deus mandou
a chuva. A água crescia e toda a terra foi inundada. Nesse instante apareceu um
barco com dois pretos e um branco. Jossias hesitava porque esse barco não podia
salvá-lo da desgraça na vida, só da morte. Preferia morrer ali, perto da sua
casa e terra. Finalmente, os homens salvaram-no e ele agarrou-se com a velha
manta bebendo a chávena de chá quente.
Desejou que a viagem não tivesse fim como se o
salvassem do tempo e não das águas, como se o tivessem liberto não da morte mas
da sua terrível e solitária espera. Com olhos de menino, fixou o escuro
engolindo a terra, a tarde anoitecendo tudo.
(p. 113-114)
Com esse “Vozes anoitecidas”, Mia Couto revela um
mundo que ficaria esquecido sem o discurso literário, quer, pois, revelar a
cultura moçambicana, os contrastes dessa cultura que tenta libertar-se das
amarras coloniais, mas reconhece a importância dessa mistura para ser o que é.
11. “Saíde, o Lata de Água”: este conto é
uma crítica contra a violência à mulher porque
aborda o machismo sob ótica pós-moderna e também, joga com o binômio fantasia e
verdade, invenção e realidade.
No caso, Saíde se casa com uma mulher, Júlia, que
já havia se relacionado com outros homens. A despeito de muitos criticarem
Saíde, que acreditavam que ele deveria se casar com uma virgem, insiste no
casamento.
Quando souberam que andava com ela, condenaram-no.
Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para ser estreada com seu
corpo. (p. 88)
Trata-se de um discurso machista recorrente, a
ideia segundo a qual a mulher para se casar deve permanecer virgem.
Casados, precisavam de filhos, “é um documento
exigido pelos respeitos”. No entanto, Saíde é estéril.
Por isso, pede à mulher que se
deite com outro homem para poder engravidar. Apesar do absurdo da situação, ela
aceita, e passa a dormir com homens diferentes, até que consegue engravidar.
Só queria ter um filho com ela, nada mais, e
não importava quem seria o pai da criança.
Saíde festejou a notícia, mas em um acesso de raiva e ciúmes, exija saber que seria
o verdadeiro pai. Júlia, porém, se recusa a falar, afirmando apenas que ele era
o pai verdadeiro. E o contrato era: Saíde nunca perguntaria
sobre a paternidade do filho.
Em princípio, o casamento se assenta, ainda mais
com o nascimento do filho. Assim, para encobrir uma mentira, teve de inventar
outra. Ninguém poderia saber que ele era incapaz de fazer filhos em uma mulher.
Também não podiam saber que ele havia sido traído com seu consentimento.
Na vizinhança ninguém desconfiava da
identidade do pai. Saíde às vezes gostava do filho e às vezes lhe parecia como
um intruso na sua vida. De qualquer
modo, passa a ameaçar a esposa, que decide ir embora às escondidas da cidade.
Saíde fingia todas as noites bater nela.
A vizinhança quer saber o que estava acontecendo e
um representante, Severino, inquire de Saíde o porquê de tanta violência contra
a esposa. Conta então uma das verdades, que ela havia partido, mas para manter
a aparência de que o casamento ainda continuava, inventava que estaria batendo
nela.
– Eu faço isto não sei porquê. É para vocês
pensarem que ela ainda está. Ninguém pode saber que fui abandonado. Sempre que
bato não é ninguém que está por baixo desse barulho. Vocês todos pensam que ela
não si porque sofre da vergonha dos vizinhos. Enquanto não... (p. 92)
Em respeito ao amigo, Severino decide manter o
segredo.
12. “As baleias de Quissico”: o
protagonista do conto é Bento João Mussavele, que relata ao seu tio que
apareceram as baleias mágicas no Quissico.
Conforme um jornalista tratava-se de um peixe
grande que aparecia à noite na praia e as pessoas chegavam e pediam várias
coisas. Sobretudo comida. Mas tudo isto era uma fantasia. O povo de lá estava
com muita fome e por isso inventava esses aparecimentos. Logo a seguir, Bento
decidiu perguntar aos sábios do bairro sobre o assunto. Agostinho, o preto,
afirmou que a baleia não era peixe, mas um mamífero. Essa conversa não satisfez
Bento.
Depois, falou com o senhor Almeida quem não
lhe deu nenhuma confirmação sobre as baleias. Nesse momento, Bento decidiu
viajar para a costa do Quissico. Chegou às casas abandonadas da praia e
instalou-se numa delas. Finalmente, uma noite acordou e saiu de casa
completamente nu entrando na água. Pensava que tinha ouvido a baleia chamar por
ele. Mas era só um sonho.
VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS:
1. LITERATURA FANTÁSTICA:
Conforme Monard e Rech (1974,
pp. 7-11), a literatura fantástica relata os diversos fenômenos extraordinários
e inexplicáveis. É um tipo de criação literária que engloba lendas, mitos,
escritos surrealistas, etc. Os autores criam um mundo irracional cheio de
acontecimentos esquisitos dentro da narrativa. Esse mundo fantástico intenta
descrever e exprimir tudo aquilo que o racional não pode explicar eliminando os
limites entre o normal e o anormal. Contudo, o que os europeus consideram
fantástico nem sempre pode ser considerado como tal para um africano. Pois
muitos dos fenômenos aqui identificados como fantásticos poderiam ser
qualificados por um africano como algo normal.
O próprio Mia Couto disse na
entrevista em anexo Conversa com Mia Couto (p. 90):
“Para um leitor europeu a
referência a um homem que, de noite, se transmuta em hiena pode ser do domínio
do fantástico. Mas para um moçambicano rural (e para a maioria dos urbanos)
esse detalhe é da ordem do natural.”
Segundo Robles (2007, p. 35-37),
para Todorov, na obra Introduction à la Littérature Fantastique (1970), o
fantástico define-se como uma invasão inesperada do inexplicável no mundo
concreto. Cria-se uma situação de ambiguidade que confunde a nossa compreensão.
O texto fantástico supõe a presença das duas ordens contraditórias (o mundo
natural e o sobrenatural).
O elemento sobrenatural
desrracionaliza a realidade. O racional e o irracional, o real e o irreal
coexistem no interior da narrativa criando uma contradição e ambiguidade. Mia
Couto apresenta um mundo onde se entrelaçam os acontecimentos fantásticos e reais.
O fantástico coutiano resulta de uma invasão do sobrenatural no mundo
quotidiano. O sobrenatural é um dos aspetos mais frequentes da sua escrita. Os
fenômenos extraordinários nos contos permanecem sem nenhuma explicação e não
causam qualquer estranheza: A coexistência do pensamento mítico com um espaço
híbrido de realidade e ficção, à maneira do realismo mágico, desempenha um
papel basilar na construção do fantástico nas 32 obras de Mia Couto. Com
efeito, as narrativas coutianas proporcionam-nos, frequentemente, mundos
mágicos onde tudo é possível; no entanto, não descuram o real nem os mitos
enraizados no subconsciente coletivo moçambicano. (ROBLES, 2007, p. 36)
a) No conto “O último aviso do
corvo falador” o efeito fantástico é produzido quando Zuzé Paraza vomita o
corvo vivo que sai das entranhas dele. E ainda mais, o corvo aprende a falar a
língua humana:
“Foi ali, no meio da praça,
cheio da gente bichando na cantina. Zuzé Paraza, pintor reformado, cuspiu
migalhas do cigarro “mata-ratos”. Depois, tossiu sacudindo a magreza do seu
todo corpo. Então, assim contam os que viram, ele vomitou um corvo vivo.
O pássaro saiu inteiro das
entranhas dele. Estivera tanto tempo lá dentro que já sabia falar. Embrulhado
nos cuspes, ao princípio não parecia. A gente rodou a volta do Zuzé,
espreitando o pássaro caído da sua tosse. O bicho sacudiu os ranhos, levantou o
bico e para espanto geral, disse as palavras. Sem boa pronúncia, mas com
convicção...”
No mesmo conto o efeito
fantástico é produzido quando a mulher de Sulemane descreve o comportamento
extraordinário do seu marido às noites devido à maldição de Zuzé:
“A gorda senhora explicou
suas aflições: o segundo casamento decorria sem demais. Até que o novo marido,
o Sulemane, passou a sofrer de estranhos ataques. Aconteciam à noite, nos
momentos em que preparavam namoros. Ela tirava o soutia, o Sulemane chegava-se
pesado. Era então que aparecia o feitiço: grunhidos em lugar da fala, babas nos
lábios, vesgueira nos olhos. Sulemane, confessava ela, o meu Sulemane salta da
cama e assim, todo despido, gatinha, fareja, esfrega no chão e, por fim,
focinha no tape. Depois, todo suado, o coitadinho pede água, acaba um garrafão.
Não fica logo-logo o mesmo: demora a recuperar. Gagueja, so ouve do direito e
adormece de olhos abertos...”
b) No conto “O dia em que
explodiu Mabata-bata” o efeito fantástico é produzido quando um boi explode por
causa das minas:
De repente, o boi explodiu.
Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grão e
folhas de boi. A carne eram já borbolentas vermelhas. Os ossos eram moedas
espalhadas. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balouçando a imitar a vida,
no invisível do vento.
c) No conto “Os pássaros de
Deus” o efeito fantástico é produzido pelo facto do corpo de Ernesto estar
ligado ao rio e também porque estava tão pesado que ninguém podia separá-lo da
água:
No dia seguinte, encontraram
Ernesto, abraçado a corrente do rio, arrefecido pelo cacimbo da madrugada.
Quando o tentaram erguer, verificaram que estava pesado e que era impossível
separá-lo da água. Juntaram-se os homens mais fortes mas foi esforço vão. O
corpo estava colado à superfície do rio.
d) No conto “As baleias de
Quissico” o efeito fantástico é produzido pela crença que existe uma baleia
mágica no Quissico:
- Você sabe o que é uma
baleia... sei lá como... -Baleia?
- É isso mesmo.
- Mas a propósito de quê vem a
baleia?
- Porque apareceu no Quissico. É
verdade.
- Mas não há baleias, nunca eu
vi. E mesmo que aparecesse como é que as pessoas sabem o nome do animal?
- As pessoas não conhecem o
nome. Foi um jornalista que disse essa coisa de baleia, não baleia. Só sabemos
que é um peixe grande, cujo esse peixe vem pousar na praia.
No outro exemplo do conto “As
baleias de Quissico” o efeito fantástico é produzido pelo facto de que a baleia
mágica traz a comida e outras coisas necessárias à população. Mas a baleia
mágica não existe e é só o aparecimento das pessoas que estão com muita fome:
Vem da parte da noite. Abre a
boca e, chii, se você visse lá dentro... está cheio das coisas. Olha, parece
armazém mas não desses de agora, armazém de antigamente. Cheio. Juro, é a
sério. Depois, deu os detalhes: as pessoas chegavam perto e pediam. Cada qual,
conforme. Cadaqualmente. Era só pedir. Assim mesmo sem requisição nem guia de
marcha. O bicho abria boca e saía amendoim, carne, azeite de oliveira.
Bacalhau, também.
- Você, já viu? Um gajo ali com
uma carrinha? Carrega as coisas, enche, traz aqui na cidade. Volta outra vez.
Já viu dinheiro que sai?
e) No conto “A menina de futuro
torcido” o efeito fantástico é produzido pelo facto de um jovem rapaz poder
revirar o corpo. Por esta razão ficou muito rico:
Durante toda uma semana,
chegavam da cidade notícias de um jovem que fazia sucesso virando e revirando o
corpo, igual uma cobra. O rapaz tinha sido contratado por um empresário para
exibir suas habilidades, confundir o trás para a frente. Percorria as terras e
o povo corria para lhe ver. Assim, o jovem ganhou dinheiro até encher caixas,
malas e panelas. Só devido das dobragens e enrolamentos da espinha e seus
anexos. O contorcionista era citado e recitado pelos camionistas e cada um
aumentava uma volta nas vantagens elásticas do rapaz. Chegaram mesmo a dizer
que, numa exibição, ele se amarrou no próprio corpo como se fosse um cinto. Foi
preciso o empresário ajudar a desatar o nó; não fosse isso, ainda hoje o rapaz
estaria cintado.
No mesmo conto o efeito
fantástico é produzido quando o empresário explica que quer contratar só as
pessoas que têm dentes de aço e que podem roer madeira e mastigar pregos:
- A única coisa que me interessa
agora são esses tipos com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que vocês as
vezes tem, capazes de roer madeira e mastigar pregos. O Joseldo sorriu,
envergonhado, e desculpou-se de não poder servir:
- Sou mecânico, mais nada.
Parafusos mexo com a mão, não com os dentes.
f) No conto “Patanhoca, o
cobreiro apaixonado” o efeito fantástico é produzido quando a personagem
principal, Patanhoca, explica que tem focinho em vez de nariz e por isso não
quer que Mississe o veja:
Um homem chora? Sim, se lhe
acordam a criança que tem dentro. O Patanhoca chora, não sabe lagrimar, fazem
falta os lábios. -Por que você não volta mais outra vez? -Sou Patanhoca, eu
mesmo. Não é só nome que fui dado. Tenho focinho, não é cara de pessoa. -Não
você é João. É o meu João.
O humor Conforme Pires
Laranjeira (1995, pp. 316-317), o humor tem a tarefa de tornar menos dramáticos
os acontecimentos trágicos tais como a morte, a repressão, a guerra, etc. Pode
também suavizar ou aprofundar a crítica social ou a ideologia política. Humor
de personagem é definido pela linguagem, as histórias que conta ou o seu
comportamento.
Assim, Ascolino do Perpetuo
Socorro é um indo-português. No conto “De como se vazou a vida de Ascolino do
Perpetuo Socorro Ascolino fala assim:
- Qui tém, homem? Essetragô
sapéu de nosso. No conto A princesa russa no livro Cada homem é uma Raça a fala
da personagem principal do conto é adequada a uma pessoa que não possui uma
competência linguística perfeita do português: “Tode minha vide eshtá lá. O
home que amo eshtá na Rússia, Fartin (...) Chame-se Anton, esse é único sanhor
de meu caração.
Segundo Pires Laranjeira (1995,
pp. 317-318), essa incompetência linguística provoca o nosso sorriso. Nalguns
casos, pode encontrar-se também em falantes portugueses. A apócope do m, em
homem, é típica do falar de algumas regiões e estratos sociais portugueses (com
origem no campo). Igualmente, a pronúncia incorreta provoca os sorrisos nos
leitores:
Qualquer criança de tenra idade
pode pronunciar as formas do verbo estar com a primeira sílaba arrastada até a
sibilação que aquele h procura traduzir. Tanto a pronúncia popular, como a
falha articulatória ou o simples balbucio inocente dão sempre origem a um
manancial de piadas, anedotas ou brincadeiras.
(Pires Laranjeira, 1995, p. 317)
2. HUMOR:
a) No conto “A fogueira” o humor
de personagem provém da proposta do marido de começar a preparar a cova para a
velha mulher:
Sombra, sim. Mas só da alma
porque o corpo quase que não tinha. O velho chegou mais perto e arrumou a sua
magreza na esteira vizinha. Levantou o rosto e, sem olhar a mulher, disse:
- Estou a pensar.
- É o quê, marido? -Se tu morres
como é que eu, sozinho, doente e sem as forças, como é que eu vou-lhe enterrar?
Passou os dedos magros pela
palha do assento e continuou:
- Somos pobres, só temos nadas.
Nem ninguém não temos. É melhor começar já a abrir a tua cova, mulher.
A mulher, comovida, sorriu:
- Como és bom marido! Tive sorte
no homem da minha vida.
No mesmo conto o humor de
personagem provém do pedido da mulher que seu corpo fique perto do chão:
Ela já se afastava quando um
gesto a prendeu a capulana e, assim como estava, de costas para ele, disse:
- Olha, velho. Estou pedir uma
coisa...
- Queres o quê?
- Cova pouco fundo. Quero ficar
em cima, perto do chão, tocar a vida quase um bocadinho.
- Está certo. Não lhe vou pisar
com muita terra.
No outro exemplo do conto “A fogueira”
o humor de personagem é provocado pelo acordo entre o marido e a mulher:
Neste deserto solitário, a morte
é um simples deslizar, um recolher de asas. Não é um rasgão violento como nos
lugares onde a vida brilha.
- Mulher – disse ele com voz desaparecida.
- Não lhe posso deixar assim.
- Estás a pensar o quê?
- Não posso deixar aquela campa
sem proveito. Tenho que matar-te.
- É verdade, marido. Você teve
tanto trabalho para fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
- Sim, hei-de matar você; hoje
não, falta-me o corpo.
b) No conto “O último aviso do
corvo falador” o humor da situação e acontecimento provém do aparecimento do
corvo na trama:
O corvo rodou no poleiro redondo
da mulata. -Desculpe, Sr. Zuzé: ele não me vai cagar em cima?
- Não fale, Dona Cândida. O
bicho precisa concentrar. Por fim, o pássaro pronunciou-se. Zuzé escutava de
olhos fechados, ocupado no esforço da tradução.
- Que foi que disse ele? -Não
foi o pássaro que falou. Foi o Varisto. - Evaristo? – desconfiou ela.
– Com aquela voz?
- Falou através do bico, não
esqueça. A gorda ficou séria, ganhando créditos.
c) No conto “De como se vazou a
vida de Ascolino do Perpétuo Socorro” o humor de personagem é provocado quando
a personagem principal, Ascolino, diz ao seu empregado que voltam à cantina de
Meneses em vez de ir resgatar a esposa:
Já nem sequer o ruído do camião
se sente nos arrozais em volta. Ascolino, vice-rei, comanda impossível cruzada
para resgatar a esposa perdida.
- Pedal, pedal depresse. Não
obstante, temos que chegar cedo. Hora de cinco hora temos que voltar na cantina
de Meneses.
No mesmo conto o humor de
personagem provém de Ascolino e Vasco e uso de uma linguagem coloquial num
discurso espontâneo:
A custo, Ascolino se recompõe.
Avalia os estragos e dispõe-se a ralhar:
- Qui tém, homem? Essetragô
sapéu de nosso.
- Não obstante, quem qui vai
pagar?
- Desculpa, patrão. Foi desviar
bacecola. Devido desse matope que passámos.
- Vucê não viu, pá? Já disse
toda hora: não faça travage deripente.
d) No conto “A história dos
aparecidos” o humor de intriga provém do enredo engraçado. Os dois homens
desapareceram, mas quando voltaram ninguém acreditava que estavam realmente
vivos:
O responsável explicou as
dificuldades e o peso deles, mortos de regresso imprevisto. -Olha: mandaram os
donativos. Veio a roupa das calamidades, chapas de zinco, muita coisa. Mas
vocês não estão planificados. O Aníbal ficou nervoso com as contas de que eram
excluídos:
- Como não estamos? Vocês riscam
a pessoa assim qualquer maneira? -Mas vocês morreram, nem sei como que estão
aqui.
- Morremos como? Não acredita
que estamos vivos?
-Talvez, estou confuso. Mas este
assunto de vivo não-vivo é melhor falarmos com os outros camaradas... O
responsável consultado concluiu, rápido:
- Não interessa se morreram
completamente. Se estão vivos ainda é pior. Era melhor ter aproveitado a água
para morrerem-se.
No outro exemplo do conto “A
história dos aparecidos” o humor de personagem provém de Samuel, o professor,
quando ele sugere aos aparecidos que fiquem e lutem contra a autoridade:
Luís levantou-se e espreitou no
escuro. Andou em círculo e regressou ao centro, aproximando-se do professor:
- Samuel, não tens medo?
- Medo? Mas, essa gente tem que
cair. Não foi a razão da luta acabar com esta porcaria de gente?
- Não estou a falar disso –
respondeu Luís.
- Não tens medo que nos apanhem
aqui contigo?
- Com vocês? Mas, afinal, vocês
existem? Não posso estar com quem não existe. Riram-se. Levantaram-se e
separaram-se pelas duas portas da casa. Aníbal, antes de entrar:
- Eh, Samuel! A luta continua!
e) No conto “Saíde, o Lata de
Água” o humor de nomes próprios provém do nome de personagem principal. Todos
começaram a chamá-lo assim porque sua mulher teve muitos maridos antes de
conhecê-lo:
Quando souberam que andava com
ela, condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia escolher uma intacta, para
ser estreada com seu corpo. Ele não quis ouvir. Foi então que passaram a
chamá-lo de Lata de Água. Em toda a parte, alcunha substituiu o nome. A água
aceita a forma de qualquer coisa, não tem a própria personalidade.
CONCLUSÃO:
A literatura moçambicana
desenvolvia-se lentamente. Ainda nas primeiras décadas do século XX faltavam as
instituições literárias adequadas, as editoras e até os leitores em número
maior. Mas finalmente conseguiu consolidar-se depois da independência nos anos
70 com uma nova geração literária que incluía Mia Couto. Podemos afirmar que
nesta década a literatura moçambicana se estabiliza como um sistema literário
reconhecido não só no país, mas também internacionalmente. Mia Couto, hoje, tem
60 anos e além de ser escritor, é biólogo, e professor. Escreveu mais de 30
livros. É ainda um dos escritores mais famosos e traduzidos não só no mundo
lusófono, mas também globalmente. Portanto, as obras dele são publicadas em
mais de 20 países. Já recebeu numerosos prêmios literários pelo seu estilo de
escrita. O autor narra sobre diversos temas nas obras (a guerra, a política, o
quotidiano do povo, a morte, a violência contra a mulher...). Mia Couto cria,
recria e renova a língua portuguesa inventando palavras e usando diferentes
processos de criação lexical (prefixação, sufixação, composição, amálgama
lexical). Igualmente utiliza o léxico de diferentes partes de Moçambique e
aproveita o contato de várias culturas para produzir um novo modelo de
narrativa. O uso do português, uma língua europeia, no território africano
resultou em diferentes variedades locais. Na sua escrita, Couto combina a norma
europeia do português com as línguas bantas de modo que cria um discurso
literário original e muito autêntico. Uma expressão literária de maior
expressividade, criatividade e liberdade. A língua é um sistema em constante
mudança e parece que Mia Couto sabe aproveitar tudo o que ela oferece com tanta
facilidade. O autor relaciona os elementos da cultura tradicional com elementos
modernos e transmite aos leitores as crenças, as tradições e os costumes dos
povos africanos. Também, ensina aos leitores sobre os valores da tradição e do
passado e sobre a relação entre natureza e homem.
Os mitos que estão presentes na
narrativa de Couto tentam preservar as raízes e a memória coletiva moçambicana.
Nos 12 contos da obra “Vozes anoitecidas” o autor utiliza a tradição africana,
a oralidade, uma linguagem coloquial cheia de inovações linguísticas, e os
traços do fantástico para retratar os problemas quotidianos do povo
moçambicano. Usando o humor o escritor revela os acontecimentos mais trágicos
daqueles que sofrem pela miséria e pobreza e que têm muitas dificuldades no dia
a dia. Além disso, usa ironia e humor negro para criticar a sociedade, a guerra
civil, e a ideologia política do país.
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