"INGAIA CIÊNCIA", CLARO ENIGMA, CARLOS DRUMMOND DER ANDRADE
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estrela,
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.
TÍTULO:
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A PALAVRA “INGAIA” ADJETIVO DE “CIÊNCIA” NÃO
ESTÁ DICIONARIZADA.
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O POETA CRIOU O TERMO A PARTIR DO ADJETIVO
“GAIO”, DE ORIGEM PROVENÇAL, QUE SIGNIFICA “ALEGRE”, “JOVIAL” E ACRESCENTOU O
PREFIXO LATINO “IN”, QUE É MARCA DA NEGAÇÃO, LOGO: “INGAIA” PODE SIGNIFICAR
TRISTE, INFELIZ OU VELHA PARA QUALIFICAR “CIÊNCIA”, PORTANTO: “INFELIZ
CIÊNCIA”.
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A RELAÇÃO DO TÍTULO COM O POEMA SERIA: INFELIZ
CIÊNCIA COMO UM CONHECIMENTO PROFUNDO ADQUIRIDO COM A MATURIDADE QUE TORNA O
HOMEM INFELIZ. ASSIM, QUANDO O HOMEM ATINGE À MATURIDADE (Á COMPREENSÃO
PROFUNDA DA REALIDADE), ESSA SABEDORIA O TORNA INFELIZ, POIS MOSTRA O MUNDO
COMO UM “CÍRCULO VAZIO”, UMA “CELA”, DESTRUINDO-LHE O “SONHO DA EXISTÊNCIA”.
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OUTRO SIGNIFICADO PARA A EXPRESSÃO “GAIA
CIÊNCIA”, FAZ ALUSÃO AO NASCIMENTO DA POESIA MODERNA NA PROVENÇA DURANTE O
SÉCULO XII.
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O PROVENÇA ERA A LÍNGUA USADA PELOS TROVADORES
DA LITERATURA MEDIEVAL.
FORMA:
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SONETO
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VERSOS DECASSÍLABOS HERÓICOS
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O registro do poema é ERUDITO, elegante, com
termos como “glacialidade”, “estela” (coluna mortuária) e inversões como “agudo
olfato”, “que o mundo converte”.
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RIMAS COM NASALIZAÇÃO: “prenda”, “oferenda”,
“venda”, “estenda”, “quebrantos”, “encantos” que alongam, arrastam a sílaba
assim como a maturidade, a velhice, a decadência se arrasta.
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela, (estrela)
PRIMEIRA ESTROFE:
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O primeiro verso “A madureza, essa terrível
prenda”: “PRENDA” SIGNIFICA OBJETO QUE SE DÁ A ALGUÉM COMO UM AGRADO; MIMO;
DÁDIVA; PRESENTE.
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“MADUREZA” SIGNIFICA MATURIDADE.
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ASSIM, NA EXPRESSÃO “TERRÍVEL PRENDA” FORMA UM
PARADOXO, POIS O SUBSTANTIVO PRENDA, É QUALIFICADO POR UM ADJETIVO QUE
CONTRARIA SUA SIGNIFICAÇÃO POSITIVA.
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O POETA DÁ O PESO E A MEDIDA DA “MADUREZA”
(IDADE MADURA), COMO UMA HABILIDADE QUE “ALGUÉM NOS DÁ”, E NO PRONOME QUE
INDEFINE ESSE SER QUE NOS ENTREGA TÁL DÁDIVA, QUE PODEMOS CONSIDERAR UM PRÊMIO
ADQUIRIDO PELA PRÓPRIA EXISTÊNCIA VIVIDA.
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ESSA MATURIDADE “TIRA O SABOR”, QUER DIZER,
NÃO NOS DEIXA SURPREENDER COM FACILIDADE, EIS QUE SE PERDE O PALADAR DIANTE DO
NOVO, DEIXA DE SER NOVIDADE.
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“SOB A GLACIALIDADE DE UMA ESTELA”, SOB A
FRIEZA, QUASE GÉLIDA DE UMA “ESTELA”, PEDRA OU “ESTRELA”, OU SEJA, DIANTE DA
FRIA CERTEZA DA MORTE, DA FINITUDE DA VIDA, MAIS UMA REFERÊNCIA ETÉREA DO POETA
QUE NOS REMETE A INSIGNIFICÂNCIA DO HOMEM PERANTE O UNIVERSO.
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É INTERESSANTE NOTAR COMO O EU-LÍRICO SE OMITE
DE DIZER QUEM “NOS DÁ” A TERRÍVEL PRENDA: DEUS, A VIDA, O ACASO, O DESTINO, NÃO
IMPORTA; PARA O SUJEITO POÉTICO QUE VIVE NA MODERNIDADE, O PROBLEMA FILOSÓFICO
NÃO É DE ONDE VEM A MADUREZA E SIM COMO VIVER COM ELA.
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
SEGUNDA ESTROFE:
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O POETA UTILIZA O RECURSO POÉTICO DO
CAVALGAMENTO OU ENJAMBEMENT, EM QUE A SINTAXE DA ORAÇÃO NÃO SE COMPLETA NUM
VERSO E PASSA PARA O PRÓXIMO, QUANDO UM VERSO CAVALGA SOBRE O VERSO SEGUINTE.
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O ENCOBRIR OS OLHOS COM UMA VENDA, QUE TIRA A
VISÃO DE LIBERDADE DA “JANELA”.
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A CLAUSURA IMPOSTA PELA IDADE, PELOS LIMITES
DO TEMPO E DA PRÓPRIA NATUREZA FÍSICA “O MUNDO SE CONVERTE NUMA CELA”.
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A MADUREZA ASSUME UMA IDENTIDADE ANIMÍSTICA E
SUA APATIA É COMPARADA A UM CÍRCULO VAZIO DE EXTENSÃO INFINITA QUE TRANSFORMA O
MUNDO EM CELA.
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É FEITA A RESSALVA QUE, MESMO QUE A IGNORÂNCIA
(A “VENDA”) IMPEÇA O DELEITE PELO MUNDO (“A SURPRESA DA JANELA”), O
CONHECIMENTO MADURO ROUBA-O DE INTERESSE.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
TERCEIRA ESTROFE:
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NOVO ENJAMBEMENT
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A MADUREZA SABE O QUANTO CUSTA CADA MOMENTO OCUPADO
SEJA AMANDO, SEJA SE DESOCUPANDO, OU SOFRENDO E NÃO PODE IR CONTRA ESSAS
EXPERIÊNCIAS PRÓPRIAS DO SER HUMANO E QUE NORMALMENTE O FAZEM AMADURECER.
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A VIDA É REPRESENTADA METONIMICAMENTE POR
“AMORES, ÓCIOS, QUEBRANTOS (PAIXÕES, INDIFERENTES E RUINS), A RESPEITO DAS
QUAIS A MADUREZA – EM OUTRA METONÍMIA, REPRESENTADA POR SENTIDOS AGUÇADOS E MÃO
DESENCANTADA – CONHECE BEM DEMAIS AS CONSEQUÊNCIAS (O “PREÇO EXATO”).
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.
QUARTA ESTROFE:
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ENJAMBEMENT
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CONTINUANDO A IDEIA DE QUE NADA PODE TAMBÉM
CONTRA A PRÓPRIA MADUREZA, E CONTRA O APERFEIÇOAMENTO DOS SENTIDOS “O AGUDO
OLFATO”, “O AGUDO OLHAR”, “A MÃO LIVRE DE ENCANTOS”, QUE TRABALHAM A NOSSO
FAVOR PELO APURO DE SUAS HABILIDADES NÃO NOS DEIXAM ENGANAR FACILMENTE, E QUE
POR FIM “SE DESTROEM NO SONHO DA EXISTÊNCIA”, PORQUE CAMINHA-SE INEVITAVELMENTE
PARA O FIM.
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E ESSA É A MAIOR CERTEZA QUE A MADUREZA “ESSA
TERRÍVEL PRENDA” NOS DÁ.
ANÁLISE:
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POESIA METAFÍSICA DE REFLEXÃO SOBRE A
ESSENCIALIDADE DO SER HUMANO, QUE INCLINA PARA UM EXISTENCIALIMSO NIILISTA.
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O POEMA QUESTIONA O SABER DA “INGAIA CIÊNCIA”,
CUJA CLARIVIDÊNCIA DESENCANTADA IRONICAMENTE SE DESTRÓI A VIDA: “NO SONHO DA
EXISTÊNCIA”.
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A IDEIA DE MADUREZA CONTÉM A IDEIA DE
DISSOLUSÃO, POIS QUE TAMBÉM FISICAMENTE É O AMADURECIMENTO DA MATÉRIA QUE SE
DILUI E SE TRANSFORMA.
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ASPECTO POSITIVO: O ACÚMULO DE EXPERIÊNCIAS.
NEM TUDO SÃO PERDAS, POIS ALGO FICA, ALGO SE GANHA. QUEM SABE A CERTEZA DAS
INCERTEZAS, A LUCIDEZ DIANTE DAS ADVERSIDADES E DOS MOMENTOS DE PRAZER.
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CONCEITO DO ETERNO RETORNO. A VIDA É FINITA,
QUE SEMPRE TENDE A DESREALIZAÇÃO, À TRISTEZA.
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TAMBÉM O ARGUMENTO MUDA NA PASSAGEM DOS
QUARTETOS PARA OS TERCETOS. ATÉ ENTÃO, A MADUREZA APRECIA COMO UMA FORÇA
TERRÍVEL CONTRA OS HOMENS. A PARTIR DO VERSO 11, ELA PASSA A SER TERRÍVEL
CONTRA SI MESMA – NÃO É MAIS APENAS INOCÊNCIA OU O EU-LÍRICO QUE SOFREM COM A
MADUREZA, MAS ELA PRÓPRIA: “NADA PODE CONTRA SUA CIÊNCIA”. E MAIS, NA
CONCLUSÃO, A MADUREZA SE DESTRÓI “NO SONHO DA EXISTÊNCIA”.
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PRIVADO DA CERTEZA APÁTICA QUE ATÉ ENTÃO A
MATURIDADE LHE TROUXERA, O EU-LÍRICO DESCOBRE-SE AGORA DISSOLVIDO EM UMA
EXISTÊNCIA SEM SIGNIFICADO: UM SONHO VAZIO.
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O POEMA É COMPARÁVEL COM OS MITOS DE QUEDA,
COMO O GÊNESS BÍBLICO OU O ROUBO DO FOGO PELO PROMETEU GREGO – MITOS EM QUE O
CONHECIMENTO APARECE COMO UM PRESENTE OU OFERTA COM CONSEQUÊNCIAS DOLOROSAS E
INEVITÁVEIS. O POEMA NÃO BUSCA PROXIMIDADE COM OS MITOS EXPLICITAMENTE; PORÉM,
ELE TOCA O SIMBÓLICO AO EMPREGAR.
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DRUMMOND DIALOGA COM NIETZSCHE EM “INGAIA
CIÊNCIA”, UM POEMA QUE TRATA DOS MESMOS PROBLEMAS EXISTENCIALISTAS ENFRENTADOS
PELO FILÓSOFO ALEMÃO, MAS DRUMMOND SITUA-SE NO TOM PRECISAMENTE OPOSTO AO
NIETZSCHE, “GAIA CIÊNCIA”, TEMA DE UM DE SEUS TRATADOS DE FILOSOFIA, NO QUAL
EMPREGA-O PARA DESCREVER NÃO APENAS A POESIA, MAS A PRÓPRIA ATITUDE ENÉRGICA E
“DANÇANTE” DOS CAVALEIROS-CANTORES PROVENÇAIS, ELEITA POR ELE COMO UMA ESPÉCIE
DE NOVA MORAL CONTRA O NIILISMO.