De
Millôr Fernandes para a Veja on-line
Publiquei, através de anos, no Estadão, no “O Dia”, e no “Jornal do Brasil” – ao todo aproximadamente dois milhões de
exemplares – “pesquisa” sobre “Dom Casmurro”, a obra magna de Machado de Assis.
Como minha página era a capa exterior dos jornais citados, e o assunto era
picante – se Escobar, “herói” do romance, tinha ou não tinha comido a Capitu,
eterna e tola discussão entre beletristas -, devo ter alcançado pelo menos cem
mil desprevenidos. Bom, não apenas mostrei que Escobar comeu a Capitu, como,
não sei na, acho que tirei “Dom Casmurro”
do “armário”.
Como não sou dos maiores – e nem mesmo dos
menores – admiradores do bruxo, fundados da Academia Brasileira de Letras (“a Glória que fica, eleva, honra e consola”,
eu, hein, que frase!), não vou discutir a maciça, inexpugnável web
protecionista que se criou em torno dele.. Não quero polemizar (falta-me
vontade e capacidade) com a candura que os eruditos (com acento no ú, por
favor) têm pra relação equívoca entre Capitu, a “dos olhos de ressaca” (que
Machado não explica se era ressaca do mar ou de um porre), e Escobar, o mais
íntimo amigo de Bentinho, narrador e personagem do livro (evidenete alter ego
do próprio Machado).
A desconfiança básica vem desde 1900, quando
Machado publicou “Dom Casmurro”. “Dom Casmurro” é ou não é corno, palavra
cujo sentido de humilhação masculina – que ainda mantém bastante de sua força
nesta época de total permissividade – na época de Machado era motivo de crime
passional, “justa defesa da honra”, e
outros desagravos permitidos pela legislação e pelos costumes.
Curioso
que, ontem como hoje, o epíteto corna não se grudou à mulher. Ela é tola,
vítima, “não sei como suporta isso!”,
“corneia ele também!”, mas o epíteto
não colou.
“Dom
Casmurro” sofre da dor específica umas 50 páginas do romance, envenenado
pela hipótese da infidelidade de Capitu. Que dúvida, cara pálida? Capitu deu
pra Escobar. O narrador da história, Bentinho/Machado de Assis, só não coloca
no livro o DNA do Escobar porque ainda não havia DNA. Mas fica humilhado, desesperado mesmo, à
proporção que o filho cresce e mostra olhos, mãos, gestos e tudo o mais do
amigo, agora morto. Bentinho chega a chamar Escobar de comborço (parceiro na
cama).
Não fiz interpretações. Apenas selecionei
frases – momentos – do próprio Dom Casmurro/Machado, da edição da Editora Nova
Aguillar. Leiam, e concordem ou não.
Pág. 868 “Chamava-se Ezequiel de Souza Escobar. Era um rapaz esbelto, olhos
claros, um pouco fugidios, como as mãos, como os pés, como a fala, como tudo.”
Mesma página “Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do
quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa com janelas para todos os
lados, muita luz e ar puro...Não sei o que era a minha. Mas como as portas não
tinham chaves nem fechaduras, bastava empurrá-las e Escobar empurrou-as e
entrou. Cá o achei, cá ficou...”
Pág. 876 “Ia alternando a casa e o seminário. Os padres gostavam de mim. Os
rapazes também e Escobar mais que os rapazes e os padres.”
Pág. 883 “Os olhos de Escobar eram dulcíssimos. A cara rapada mostrava uma pele
alva e lisa. A testa é que era um pouco baixa...mas tinha sempre a altura
necessária para não afrontar as outras feições, nem diminuir a graça delas.
Realmente era interessante de rosto, a boca fina e chocarreira, o nariz
fino e delgado.”
Mesma página “Fui levá-lo à porta...Separamo-nos com muito afeto: ele, de dentro do
ônibus, ainda me disse adeus, com a mão. Conservei-me à porta, a ver-se, ao longe,
ainda olharia para trás, mas não olhou.”
Mesma página “Capitu viu (do alto da janela) as nossas despedidas tão rasgadas e
afetuosas, e quis saber quem era que me merecia tanto.
- É
o Escobar, disse eu.”
Pág. 887 “- Escobar, você é meu amigo, eu sou seu amigo também; aqui no seminário
você é a pessoa que mais me tem entrado no coração.
-
Se eu dissesse a mesma cousa, retorquiu ele sorrindo, perderia a graça...Mas a
verdade é que não tenho aqui relações com ninguém, você é o primeiro, e creio
que já notaram; mas eu não me importo com isso.”
Pág 899 “Durante cerca de cinco minutos esteve com a minha mão entre as suas,
como se não me visse desde longos meses.
-
Você janta comigo, Escobar?
-
Vim para isto mesmo.”
Pág. 900 “Caminhamos para o fundo. Passamos o lavadouro; ele parou um instante
aí, mirando a pedra de bater roupa e fazendo reflexões a propósito do asseio;
lembra-me só que as achei engenhosas, e ri, ele riu também. A minha alegria
acordava a dele, e o céu estava tão azul, e o ar tão claro, que a natureza
parecia rir também conosco. São assim as boas horas deste mundo.”
Pág. 901 “Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não
pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa
efusão: um padre que estava com eles não gostou...”
Pág. 902 “Escobar apertou-me a mão às escondidas, com tal força que ainda me doem
os dedos.”
Pág. 913 “Escobar também se me fez mais pegado ao coração. As nossas visitas
foram-se tornando mais próximas, e as nossas conversações mais íntimas.”
Pág. 914 “A amizade existe, esteve toda nas mãos com quem apertei as de Escobar
ao ouvir-lhe isto, e na total ausência de palavras com que ali assinei o pacto;
estas vieram depois, de atropelo, afinadas pelo coração, que batia com grande
força.”
Págs. 925/26 (Depois da morte de
Escobar) “Era uma bela fotografia tirada
um ano antes. (Escobar) estava de pé, sobrecasaca abotoada, a mão esquerda no
dorso de uma cadeira, a direita metida no peito, o olhar ao longe para a
esquerda do espectador. Tinha garbo e naturalidade. A moldura que lhe mandei
pôr não encobria a dedicatória, escrita embaixo, não nas costa do cartão: “Ao
meu querido Bentinho o seu querido Escobar 20-4-70.”
...
P.S.: Mas, se vocês ainda têm dúvida,
leiam a página 845 do fúlgido romance. Bentinho, ele próprio, fica pasmo, e
realizado, quando consegue dar um beijo (que dizer, apenas um bicota) em
Capitu. É ele próprio quem fala, entusiasmado com seu feito de bravura:
“De
repente, sem querer, sem pensar, saiu-me da boca esta palavra de orgulho:
-
Sou homem!”
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