segunda-feira, 4 de abril de 2011

PAUL GAUGUIN: PÓS-IMPRESSIONISTA, SINTETISTA E PRIMITIVISTA

1848-1903


“Coma bem, beije bem, trabalhe direito e você morrerá feliz.”

PAUL GAUGUIN nasceu em Paris, em 1848. Segundo filho de Clovis Gauguin e Aline-Marie Chazal.
Em 1849, seu pai, jornalista de “Le National” comprometido com a oposição a Louis Napoleão Bonaparte (mais tarde Napoleão III), teve de buscar asilo político no Peru, onde a esposa tinha parentes que o acolheram. A viagem transatlântica foi extremamente cansativa e Clóvis, já afetado por uma doença cardiovascular, morreu antes de desembarcar. Aline, a viúva, permaneceu em Lima, com seus dois filhos.
Gauguin, assim, cresceu em meio a uma exótica paisagem, que influenciará fortemente a sua formação artística.
Em 1854, a família retornou à França, graças à herança de Guillaume Gauguin deixada aos netos e se instalou em Orleans.
Orleans ostentava enorme tradição cultural na Europa e em nada lembrava o primitivismo das terras sul-americanas.
Em 1865, Gauguin alistou-se na Marinha, à qual serviu sem feitos heróicos até o fim da guerra franco-prussiana.
A mãe morrera em 1867, mais Gauguin tinha um protetor, Gustave Arosa, fotógrafo, amante da pintura e dono de seleta coleção de quadros contemporâneos, inclusive obras de Delacroix, Corot, Coubert, Pissarro e Daumier.
Em 1872 Gauguin abandonou a Marinha e, por conselho de Arosa, começou a trabalhar como corretor na Bolsa de Valores, ao mesmo tempo, cultivou interesse por artes plásticas e literatura.
A bem sucedida especulação na Bolsa rendeu-lhe bom padrão de vida. Em 1873, casou-se com a dinamarquesa Mette Gad, que havia conhecido por meio de Arosa.
Nessa época, Gauguin abandonou tudo para dedicar-se à arte, que ele chamava de “instinto selvagem”.
Pincéis, tintas e tela debaixo do braço, ele excursionava pelas adjacências campestres de Paris em companhia de seu amigo e colega Émile Schuffenecker.
Em 1876 arriscou inscrever no Salão dos Artistas Franceses, a obra “Bosque em Viro-flay” (Seine-et-Oise). A comissão selecionadora aceitou o quadro.
Animado, Gauguin deixou de ser pintor domingueiro e passou a pintar sempre que podia.
Em 1877, instalou-se em Vaugirard. Ali aprendeu técnicas artísticas com o escultor Jules Bouillot.
À medida que a técnica se aprimorava, mais aumentava seu desejo de dominar a pintura em todos os seus aspectos. Já vinha experimentando escultura com a produção de vários bustos posados pela mulher e pelos filhos. Estudava gravura japonesa, participava de debates que dividiam os artistas da época, discutia questões de técnica.
Amparado por sua estável situação econômica, passou a colecionar arte moderna.


Em 1879, a convite dos pintores Camille Pissarro e Edgar Degas, Gauguin participou da quarta exposição de Impressionismo. Ainda em 1879, foi a Pontoise em companhia de Pissarro, que o iniciou na técnica do paisagismo e com Degas, aperfeiçoou a pintura de interiores.

A princípio a crescente importância da pintura em sua vida não interferiu significativamente com o trabalho de corretor. O prelúdio da mudança foi o convite de Pissarro em 1880 para participar da Quinta Exposição Impressionista.
J.K.Huysmans, publicado no ano seguinte em “L’Art Moderne”, a respeito de “Estudo de Nu” ou “Suzanne Costurando”:

“Entre os pintores contemporâneos que trabalharam o nu, nenhum foi capaz de representá-lo com tão veemente realismo...Gauguin foi o primeiro artista em muitos anos que tentou representar a mulher de nossos dias...Seu sucesso é completo, ele criou uma tela ousada e autêntica”.



Entre 1880 e 1882, participou das três exposições organizadas pelos Impressionistas.

Em 1883, ocorreu á quebra da Bolsa de Paris e a pintura lhe parecia agora o único meio de ganhar a vida.
No entanto, essa esperança não se materializou, em vista da retração no mercado de arte, onde os trabalhos de Gauguin, em particular, não encontravam compradores. Com as dificuldades econômicas agravadas, Gauguin mudou-se com a família de Paris para Rouen. Mas, como a situação nas províncias não se mostrasse diferente, a família partiu para a Dinamarca, terra natal de sua esposa.
Em Copenhague trabalhou como representante de lonas nos países escandinavos. Como as dificuldades persistiram, em 1885 retornou à Paris com apenas um dos cinco filhos.
Tempos duros. Para sobreviver e tratar da varíola que acometeu seu filho, Gauguin chegou a trabalhar como colador de cartaz.
Continuava a pintar, mas nem a pintura o consolava, pois não conseguia encontrar uma definição de gênero. Retomou contatos e participou da oitava e última exposição dos Impressionistas, em 1886.
Em seguida, viajou pela primeira vez para Pont-Aven, na Bretanha.
Lá, Gauguin conheceu alunos de Cormin e Julian, pintores que então, estavam na moda, em Paris. Concepções acadêmicas como as desses mestres o arredavam e entediavam. Sua forte personalidade artística impressionava, mas entre os artistas dali, apenas Charles Laval se faria seu amigo.

“Por fim, consegui dinheiro para minha viagem à Bretanha e aqui estou vivendo de empréstimos. [...] Minha pintura provoca muitas discussões e devo reconhecer que desperta uma acolhida bastante favorável por parte dos americanos. Não deixa de ser uma esperança para o futuro”, escreveu Gauguin a sua esposa.

Durante a estada na Bretanha, o artista pesou com seriedade a importância de dar a seu trabalho uma dimensão mais ampla e menos comprometida. Transpôs então para a tela sensações que essa terra arcaica e rústica induzia em seu temperamento apaixonado.
Seus primeiros trabalhos na região exprimem conflito interior: meio sonho, meio realidade, meio complacência estética, meio visão alegórica. Compreendeu desde as paisagens de matiz ainda Impressionistas, como em “Lavadeiras em Pont-Aven”, até os primeiros traços do que se tornaria seu estilo. Embora não constituam ruptura com o Impressionismo, indicam que aos poucos ele ia deixando o período.
Ao pintar as mulheres bretãs com seus característicos adornos de cabeça, Gauguin concentrou-se mais em sugerir um momento ou um meio do que em descrever a realidade, como faria um genuíno Impressionista.
Em certos quadros, como “Costa Bretã”, aparecem tons mais claros e orientação mais agressiva, o pintor em busca de um caminho próprio, menos intelectualizado, pelo qual pudesse exprimir sentimentos mais íntimos.
De modo geral, a imaginação e a originalidade de composição dos quadros pintados por Gauguin, na Bretanha impressionavam todos os artistas que os viram em Pont-Aven, no verão de 1886.
Comentários chegaram a Paris e causaram em Van Gogh o desejo de conhecer Gauguin.
De volta a Paris, Gauguin rompeu com os artistas impressionistas mais ortodoxos, recusou-se a participar do Salão dos Independentes e encontrou-se pela primeira vez com Van Gogh.
Na época, Gauguin iniciou-se na linguagem da cerâmica, pelas mãos de Ernest Chaplet.
Gauguin estava interessado na estilização da cerâmica primitiva, como objetos peruanos que lhe evocam um reencontro com a infância.
Atento nas atividades culturais parisienses acompanhou por meio da publicação “Fígaro littéraire”, o surgimento do Simbolismo com o manifesto do poeta francês Jean Moréas.
Alternativamente, objetos orientais de contornos e cores simples teriam muita importância em seus estudos e na evolução de sua arte.
Em abril de 1887, Gauguin embarcou para o Panamá em companhia de Laval.

“Desejo principalmente fugir de Paris, que é um deserto para os pobres. Meu nome como artista se torna cada dia mais importante, mas, enquanto espero, passo até três dias sem comer. Isso destrói não apenas minha saúde, mas meu ânimo. Vou ao Panamá para viver de modo selvagem”.

Gauguin sentia de novo a necessidade de redescobrir a vitalidade perdida, longe da angústia e da frustração da vida civilizada. Parecia faltar-lhe na vida o excitamento, a cor e a magia da natureza.
Não levou muito tempo a desapontar-se e as dificuldades econômicas o obrigaram a trabalhar nas obras de construção do Canal do Panamá. Tentou outra vez, agora na Martinica. Ali caiu doente e, sem dinheiro, viu-se forçado a voltar à França.
As poucas semanas em viagem, porém, representaram para Gauguin um salto gigantesco na elaboração de sua pintura. O artista descobriu um ambiente com infinitos estímulos criativos.
As dificuldades do retorno à Paris foram suavizadas pelo amparo de seu antigo amigo e colaborador Émile Schuffenecker. Conheceu Daniel de Monfreid, que anos depois, exerceria papel relevante em suas posteriores passagens pela Oceania. Também estreitou relações com os irmãos Van Gogh.
Theo Van Gogh, irmão de Vincent, conseguiu promover uma exposição de suas últimas obras, em janeiro de 1888, embora sem grande sucesso. Theo, por sua vez, adquiriu diversas peças de cerâmica e alguns quadros de Gauguin, o que significou um importante aporte financeiro.
Os rendimentos permitiram-lhe regressar á Bretanha e refugiar-se, novamente, em Pont-Aven, onde reencontrou pintores que havia visto em sua primeira estada.
Na época, Gauguin já tinha aceitado a mensagem de Cézanne e do Pós-impressionismo e valorizava a importância do uso da cor não apenas para criar luz e movimento, mas, também para definir formas, de modo que ela própria, a cor em si, se convertesse em forma também.
Depois da Martinica, suas cores haviam se tornado mais quentes, com mais contrastes de tons e contornos mais nítidos.
Seu desejo era criar uma composição abstrata, na qual a natureza se deslocasse mais e mais para fora da realidade e chegasse perto do imaginário.
Na Bretanha conseguiria isto.
Com longas e generosas pinceladas de cor pura, ele criava ritmo e contraste, rompia superfícies, produzia forma, organizava espaço. Dava proeminência a figuras humanas que, fossem ou não os motivos principais do quadro.
Nascia, na época, em Pont-Aven uma nova concepção pictórica: o “Sintetismo” ou “Escola de Pont-Aven”, liderada por Gauguin e Émile Bernard, da qual participaram Émile Schuffenecker, Charles Laval, Louis Anquetin, Cuno Amiet, Henri Moret e Paul Sérusier, entre outros.
No Sintetismo, o objetivo da pintura não se limitava à reprodução de objetos. Sua finalidade consistia em expressar ideias por meio de uma linguagem especial. Mas, enquanto o Sintetismo de Bernard se limitava a uma concepção linear abstrata, Gauguin transformava tudo o que ainda estava intacto no mundo civilizado em imagens idealizadas, simplificadas e expressivas.
Mais do que descrever a realidade, capta a ideia. Gauguin usa linhas grossas, traços escuros que delimitam as formas e criam compartimentos de cor (técnica derivada do cloisonismo).
O resultado foi um tipo de Simbolismo em que todo aspecto figurativo se tornava a busca do essencial.
“A Visão depois do Sermão ou Luta de Jacó com o Anjo”, 1888, exemplifica essa mudança radical no estilo de Gauguin.

“A Visão depois do Sermão ou Luta de Jacó com o Anjo”, 1888.

Para mim, neste quadro a paisagem e a luta existem apenas na imaginação das pessoas rezando, como um resultado do sermão. Por isso, não há contraste entre as pessoas reais e a luta, em sua paisagem antinaturalista e desproporcional”, escreveu Gauguin a Van Gogh.

O tema do quadro é uma passagem do Gênesis. A personagem bíblica Jacó tem uma longa história de conflito com seu irmão, Esaú. Depois de muitos anos, afastado, Jacó volta para casa. Segundo o texto bíblico, na viagem de volta ocorre o episódio em que luta em silêncio com um estranho durante uma noite inteira. Em algumas versões, esse estranho é um anjo; em outras, é o próprio Deus.
No perímetro inferior esquerdo, desse quadro, há um grupo de mulheres bretãs rezando. Ele estilizou as mulheres da Bretanha que testemunhavam uma visão sobrenatural, para torná-las símbolos da fé.
No lado direito, o perfil de um rosto com as feições de Gauguin. Na parte superior direita, revela-se a razão das orações: Jacó luta com um anjo.
A tela representa o duelo do homem contra o demônio ou contra si mesmo. Destaca-se o conceito de dramatização de imagem mental com percepção quase cinematográfica do espaço.
O conceito de Sintetismo começa a se formar: a paisagem e as personagens são feitas com manchas de cor delimitadas, contornadas com sutil traço negro, em lugar das pinceladas Impressionistas.
É uma síntese de harmonia e equilíbrio em que referências à arte medieval e à arte japonesa se misturam com a inspiração decorativa, um quadro animado pelo ritmo dos tons de preto e branco, azul e vermelho.
Consumava-se o abandono do imperativo da representação meramente formal da natureza. Gauguin tentava agora penetrar o coração das coisas e revelar o que há por trás da realidade imediata, descobrir, em suas próprias palavras, “a imagem por trás do enigma inviolável”.
O que de fato importava em sua pintura era a síntese essencial da forma e da cor. Buscava a arte livre de qualquer concepção prévia de fórmula, técnica, escola, movimento ou estilo: uma arte que refletisse apenas a individualidade do artista. Ideias como essas, que de certo modo se assemelhavam à inspiração literária, por se situarem não apenas entre a ficção, o sonho e a realidade, atraíam não apenas Gauguin, mas também vários outros artistas da época.
Gauguin pintou a terra de vermelho, separando o mundo “real” das mulheres, no fundo, do mundo “imaginário” de Jacob lutando com o Anjo por meio das árvores em diagonal, pintada de azul.

Gauguin permaneceu em Pont-Aven até outubro de 1888. A relação com os Van Gogh ganhou tal intensidade que Gauguin concordou em se transferir para Arles, onde Vicent o aguardava.
A mudança de Pont-Aven para Arles foi articulada por Theo, movido pelo desejo de dar companhia a seu irmão para que juntos pudessem pintar.
Theo propôs a Gauguin comprar sua produção em troca de sua presença em Arles.
Cabe destacar que a amizade entre Gauguin e Van Gogh foi desgastante, ao mesmo tempo, riquíssima. Entre os dois artistas percebia-se uma forte atração criativa e, na mesma medida, uma rejeição mútua.

”Café em Arles”, 1888.


“Café em Arles” apresenta um tema comum para Gauguin e Van Gogh. Sobre este quadro Gauguin ainda chegou a comentar que não gostou muito, pois dizia que o possuí cores escuras e uma decoração que não o agradava.

Em Arles, encontro-me totalmente fora do eixo. Tudo – a paisagem e as palavras – me parece tão pequeno, tão mesquinho. Vincent e eu quase nunca concordamos, menos ainda em pintura. Ele admira Daumier, Daubigny, Ziem e o grande Theodore Rousseau, artistas pelos quais não sinto nada. Em compensação, ele detesta Ingres, Rafael, Degas e todos aqueles que eu costumo admirar. Ele gosta muito de meus quadros, mas quando os estou fazendo, sempre vê defeitos”.

Em dezembro de 1888 a relação entre os dois pintores chegou a extremos. Van Gogh tentou agredi-lo com uma lâmina de barbear. Na manhã seguinte, Van Gogh se automutilou, cortando parte de sua orelha.
Gauguin registrou:

Levou tempo até conseguir estancar a hemorragia, porque no dia seguinte, diversas toalhas molhadas cobriam o chão. O sangue havia manchado os dois cômodos do térreo e a escada que conduzia a nosso dormitório”.

Com Vincent no hospital, Gauguin e Theo seguiram para Paris.
Mais tarde, Gauguin reconhece que:

“[…] devo a Vincent a consolidação de minhas ideias pictóricas anteriores, aliado ao fato de poder me lembrar, nos momentos difíceis, de que sempre há alguém mais desgraçado que eu”.

Em 1889, Gaugin instalou-se em Le Pouldu, vila de marinheiros onde poderia se concentrar melhor na evocação da paisagem e da cultura bretão. Na mesma época, participou com várias obras de duas exposições artísticas de destaque: “Les XX”, de Bruxelas, e na exposição de pinturas do “Groupe Impressionniste et Synthétise”, durante a Exposição Universal de 1889, no Campo de Marte.
Gauguin compôs nos meses seguintes obras de qualidade extraordinária, entre elas, “O Cristo amarelo”.

“O Cristo Amarelo”, 1889.


Nesse quadro Gauguin pode ter buscado inspiração em uma escultura policromada da igreja de Trémalo de Pont-Aven.
Uma cruz plantada na paisagem da Bretanha, cercada por árvores cor de laranja, com mulheres vestidas com a indumentária característica do local, adoram Jesus, completamente amarelo. O artista põe seus traços na feição de Cristo.

Em “A bela Angèle”, tela que foi adquirida por Degas, em 1891 no leilão organizado por Gauguin para pagar sua viagem ao Taiti.

“A bela Angèle”, 1889.


A tela trata-se do retrato de Marie-Angèlique Satre, uma jovem com o típico traje bretão. A modelo Marie-Angèlique, através de entrevista concedida em 1920, afirmou que o quadro foi pintado em Pont-Aven, pouco antes da partida de Gauguin para o povoado de Le Pouldu.
A modelo comentou que sua primeira reação, quando o artista mostrou a obra finalizada, foi exclamar: “Que horror!”
Na expectativa de apreciar um retrato convencional, Marie-Angèlique estranhou o momento pictórico do artista.
O artista não optou por captar a fisionomia da modelo. Objetivava, na verdade, realizar um quadro simbolista dentro do qual a personagem adotasse caráter emblemático, com postura rígida, expressão austera e indumentária solene.
Outra inovação é a separação entre a figura humana e o fundo decorativo por meio de um círculo excêntrico ao conjunto da representação.
A associação com o Simbolismo almejada pelo artista se concretiza com a inclusão. À esquerda da tela, há uma cerâmica antropomórfica, que contrasta com a figura humana. É como se a cerâmica possuísse mais vida do que a própria modelo, enclausurada em um receptáculo ovalado, que destaca com precisão sua expressão cansada.
Gauguin pode ter escolhido esse efeito inspirado nas gravuras japonesas acessíveis na França da época.
É importante ressaltar que a partir dessa obra, Gauguin passou a escrever os títulos dos quadros na própria tela.

No enigmático “Auto-retrato com auréola”, 1889, o artista ironicamente coloca sobre sua cabeça uma auréola de santo.

“Auto-retrato com auréola”, 1889.


Essa tela marca a transição para o nascimento de uma nova fase do artista.
Gauguin colocou uma auréola sobre sua cabeça. O símbolo cristão contrasta com a serpente e a maçã. As frutas e a serpente que segura em sua mão evocam de modo ostensivo à tentação, retratando de forma irônica e um tanto caricaturesca, o próprio pintor como o “grande tentador”.
A coroa pode ser interpretada como sinal de santidade ou como expressão da mais absoluta perversão demoníaca. Pode significar também o desejo de salvação do artista em meio a um ambiente que é claramente condenatório.
Nota-se que a tela está dividida entre suas zonas de cores intensas e absolutas: o vermelho e o amarelo.
Destacam-se a simplicidade e a força expressiva das linhas, que podem ser percebidas tanto nos contornos como nos arabescos, sobre os fortes tons quentes.
As ideias sintetistas, nessa obra, resultam nos dois compartimentos, duas grandes massas de cor que dominam toda a representação.
A expressão facial expressa certa melancolia, uma aflição característica dos artistas, que contrasta com os elementos que o acompanham. Juntam-se a essa melancolia, o semblante nostálgico e sagaz que o artista nunca escondeu contra a sociedade de sua época.
Gauguin aproximou-se de alguns escritores jovens, entre eles, Albert Aurier.
Aurier escreveu:

Essa é a arte que me agrada sonhar, a que me desperta a imaginação em meio aos roteiros obrigatórios por entre lastimáveis ou infames artificialidades que atestam nossas exposições industrializadas. Essa é também a arte que – se não interpretei mal o pensamento de sua obra – quis instaurar em nossa lamentável e putrefata pátria esse grande artista genial com alma de primitivo e um pouco de selvagem: Paul Gauguin.”

Gauguin, realmente, nunca deixou de sonhar com lugares remotos, seu paraíso terrestre, onde pudesse pintar de modo natural e primitivo.
Em 1891, depois de viajar a Copenhague para despedir-se da família, embarcou em Marselha com destino a Papeete, capital da Polinésia Francesa.
Nessa mesma época, nascia em Paris, Germaine, filha de Gauguin e de Juliette Huet, com quem havia mantido relações como modelo e amante.
A vida em Papeete se mostrou muito parecida com a que ele deixara na Europa, se não pior. Mas havia elementos do sonho: a aldeia de Mataiea; a exuberante vegetação tropical; os nativos com suas vestimentas exóticas e sua naturalidade no cotidiano; e o amor de Teha’amana, sua “noiva” e modelo de treze anos.
Em “Noa Noa”, manuscrito ilustrado e elaborado por Gauguin a partir de anotações e desenhos de sua primeira viagem ao Taiti, o artista tratava a jovem como sua esposa.

 
Mais importante ainda, que Gauguin passou a levar uma vida primitiva, quase selvagem, como era sua proposta.

O artista se sentia invadido pelo silêncio, por uma profunda sensação de paz e tranqüilidade que compartilhava com sua “noiva”.
Teha’amana surgiu em vários quadros, convertendo-se na encarnação da mulher selvagem ideal.

“Nevermore”, 1893.


Gauguin chegou pintar, nesse período, cerca de vinte telas. Entre elas, algumas das mais relevantes contribuições à arte ocidental moderna: “Flores da França”; “A refeição”; “Mulheres do Taiti” e “Eu te saúdo, Maria”, entre outras.

“A refeição”, 1891.


O protagonismo dos nativos é evidente neste quadro, embora o artista ainda não mostre sua pintura mais selvagem. Gauguin compôs aqui uma natureza-morta sob os olhares de crianças de locais.
O pintor substituiu os motivos tradicionais dos bodegóns europeus por outros característicos da vila na ilha. Assim, destacam-se os “fei”, as bananas que tanto despertaram a sensibilidade de Gauguin, e a cumbuca habitualmente usada para cozinhar peixes.
Com longas pinceladas e cores cada vez mais agressivas, o pintor manteve temas procedentes da tradição pictórica européia, mas subverteu-os com maestria por meio de transformações nos motivos e nos traços. Adicionou tons de mistério, como no ângulo superior direito, onde se observa um personagem sentado que projeta uma grande sombra no chão.

“Mulheres do Taiti” ou “Na praia”, 1891.


Nesse quadro parece representar uma cena idílica: a nobreza das nativas sentadas na praia. No entanto, o artista transcreveu um estado de espírito e uma serenidade especiais, procurando potencializar aos olhos do observador uma sensação de harmonia e paz.
O artista trabalhou com base na oposição de grandes zonas de cor.
Gauguin evitou representar a praia de modo naturalista, optando por transmitir através das massas de cores aplicadas. O pintor retratou de maneira plana a natureza: areia, mar, horizonte, céu e as duas mulheres, tão corpóreas, de formas enigmáticas, uma apresentada frontalmente e a outra, de perfil sobre um fundo de faixas de cor.
Gauguin priorizou a perfeita delimitação dos contornos das figuras, de acordo com o método de “cloisonné” que já havia adotado em seus quadros da Bretanha.
O artista escreveu em “Noa Noa” que as mulheres taitianas possuíam “feições de harmonia rafaélica no encontro das curvas, com boca modelada por um escultor que conhecia a linguagem do beijo, do prazer e do sofrimento”. O rosto da mulher da direita transmite justamente essa melancolia mesclada ao prazer.
Gauguin deu um tratamento diferenciado e pouco ao pé da moça da esquerda. Em compensação, o pé da mulher da direita tem maior riqueza de detalhes e se aproxima mais da realidade.
Embora a natureza não seja protagonista nesta tela, Gauguin não deixou de incluir o exotismo da flora taitiana, ainda que seja como detalhe, no caso, a flor que enfeita o cabelo da mulher da esquerda. O branco das pétalas é impregnado pelas tonalidades negro-azuladas do cabelo e do reflexo da luz. As tonalidades azuladas são acentuadas na roupa da mulher.

A obra “Eu te saúdo, Maria” ou no idioma próprio dos nativos da Polinésia, “Ia irana Maria”, 1891-1892, é uma alegoria religiosa. Ela simboliza a Anunciação, radicalmente reinterpretada, na qual um anjo com asas amarelas parece apresentar dois nativos do Taiti para a Virgem e o Menino.

“Ia Orana Maria”, 1891-1892.


As figuras de Maria e Jesus estão posicionadas à direita do quadro e apenas são identificáveis pela coroa santa que portam sobre suas cabeças. A particularidade da tela reside no fato de que as personagens divinas também se passam por nativos: o Menino está nu; e a Virgem apresenta-se com vestido de tecido vermelho, confeccionado com motivos florais.
A cena se desenvolve em um ambiente tropical, distante do rebuscamento da pintura religiosa ocidental.
As duas mulheres taitianas têm as mãos juntas, em atitude de respeito, mas sem exageros; as figuras sacras estão desprovidas de traços de grandiosidade e seis rostos, simplesmente refletem serenidade.
A própria natureza contribui para transmitir a sensação de equilíbrio: os cachos de bananas localizados na porção inferior da tela retratam a refeição.
A cena contém apenas um discreto traço ocidental, um flerte de cumplicidade com a tradição cultural européia: o anjo. Este, também com características nativas, exibe formas que parecem extraídas da iconografia típica do Renascimento e, mais precisamente, da pintura religiosa de Botticelli.
Aqui, a cor e as formas se sujeitam à ideia do quadro ou, então, se misturam ao motivo do argumento com uma ponderação extraordinária.

No entanto, o sonho de Gauguin, logo se dissiparia pela falta de dinheiro e por problemas de saúde.
Em 1892 escreveu a Mette, sua esposa oficial, informando que havia pintado 38 quadros e que buscava subsídio para regressar.

“Passatempo”, 1892.


Em junho de 1893, Gauguin conseguiu embarcar graças ao Ministério do Interior francês, que pagou sua passagem na terceira classe e abandonou Teha’amana.
Voltou à França e, a respeito do seu retorno, escreveu em “Noa Noa”:

Parti dois anos mais velho e vinte anos mais jovem, mais bárbaro também do que quando vim, e, no entanto, mais escolado. Sim, os selvagens deram muitas lições ao velho civilizado, muitas lições deste povo ignorante sobre a ciência da vida e a arte de ser feliz.”

Durante esse período, restabeleceu contatos com a cultura parisiense e foi contemplado com metade da herança de seu tio Isidore Gauguin, morto no início de 1893.
Com o dinheiro, organizou uma exposição de seus quadros taitianos, prontamente bombardeados pelos críticos, que recriminaram as "cores exageradas" e "irreais".
Em 1894, Gauguin montou seu ateliê na Rue Vercingétorix. A partir de então, passou a conviver com Annah, uma javanesa de treze anos originária da Malásia que chegou a posar como modelo.

“Annah, a Javanesa”, 1893-94.


Entretanto, para o artista, o ano de 1894 foi marcado por uma série de eventos infelizes: a morte de Charles Laval; a viagem que fez à Bretanha não produziu resultados; a amante javanesa que o abandonou e levou consigo tudo o que havia de valor no ateliê e a briga com marinheiros que, em consequência, quebrou o tornozelo e teve de recorrer á morfina e álcool para amenizar sua dor.
Gauguin, então, decidiu cruzar os mares pela última vez.

Tomei uma decisão definitiva: mudar para sempre para a Oceania. Voltarei a Paris em dezembro para me ocupar exclusivamente da venda de todos os meus trabalhos pelo preço que for. Se conseguir, partirei imediatamente.”

Em 1895, Gauguin deixou Paris.
À primeira vista, ficou decepcionado com o progresso de ocidentalização do Taiti e encontrou sua antiga companheira, Teha’amana, casada.
O artista instalou-se em Punaauia, construiu um “fari”, cabana tradicional estruturada com bambu e coberta com folhas de palmeira e transformou a jovem Pahura, nativa de 14 anos, em nova modelo e amante.
O artista continuou a enfrentar problemas financeiros, sobrevivendo com as vendas de seus quadros na Europa e a sofrer os efeitos de outra doença: a sífilis. Para piorar, Pahura deu à luz uma menina que morreu precocemente.
Em 1897, foi hospitalizado apresentando um quadro clínico grave: dores nas pernas, infecção ocular – sequela da antiga sífilis, problemas cardíacos e erupções na pele que os nativos atribuíam, com temor, à lepra.
Pobre e enfermo, Gauguin teve atritos com as autoridades locais em virtude das críticas que fazia à administração colonial e à catequização dos nativos.
Deprimido, chegou a tentar o suicídio com arsênico, logo depois de receber uma carta de Mette, comunicando-lhe o falecimento de sua filha Aline, vítima de pneumonia, e de pintar sua obra mais monumental, a tela "De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?", medindo 1,39m por 3,75m e pintada em apenas um mês.

“De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?”1897.


"Eu queria morrer. E pintei este quadro de um golpe só".

Esse quadro é uma alegoria que, apesar do tamanho, representa com grande simplicidade o drama da existência humana. A pergunta titular, que sublinha o conteúdo psicológico do quadro, revela a necessidade do artista comunicar seus mais profundos pensamentos através da forma evocativa da arte e da cor.
O artista decidiu nesse quadro ser extremamente primitivista, o que pode ser comprovado até pela escolha do material o qual pinta sua obra:

É uma tela cheia de nós e rugosidades”, cujo resultado, segundo suas palavras, “é terrivelmente grosseiro. Dir-se-ia que está sem terminar”.

A tela é uma espécie de afresco no qual Gauguin compôs um fundo com predomínio dos verdes. Sobre ele, posicionou uma série de figuras humanas, algumas nuas ou seminuas e com tonalidade alaranjada e outras vestidas.
O artista propôs deixar seu testamento pictórico e dessa forma, compôs um friso narrativo no qual aparecem em sequência diferentes imagens da evolução do ser humano.
Ao lado do recém-nascido, algumas jovens estão em repouso. Essas três figuras poderiam representar a felicidade do Éden, da vida simples. No centro, um rapaz colhe uma fruta: o corpo esbelto seria o apogeu na vida insular e, ao mesmo tempo, o início do declínio, já que a fruta poderia ser interpretada como a árvore da ciência; ao ser introduzido no conhecimento, começa sua decadência.
À esquerda, em segundo plano, Gauguin fez questão de colocar um elemento misterioso: uma estátua com braços levantados que parece anunciar o além e que representa as mais profundas crenças tribais.
Segundo diversas fontes, o ídolo representado nesta obra corresponderia à deusa polinésia Hina, que representaria a Mãe Terra e também, conforme essa mitologia, a morte e a ressurreição. De acordo com a lenda, quando seu companheiro morreu pelas mãos dos homens, Hina plantou sua cabeça, da qual brotou uma árvore. A inclusão da deusa na tela poderia ser interpretada como o conforto que o homem religioso encontra após a morte.
Por fim, nota-se uma jovem recostada, representação do dilema entre a vontade do saber e a felicidade da inconsciência. A seu lado, a anciã fecha o ciclo de vida. Junto a ela, no extremo inferior esquerdo, está um estranho pássaro, cuja inclusão Gaugin justificou como: “o ser inferior diante do ser inteligente”.
O recém-nascido e a anciã se posicionam nos dois extremos do ciclo da vida. Curiosamente, Gauguin inverteu a leitura visual habitual da esquerda para a direita e ordenou o ciclo a partir da direita. Gauguin pode ter utilizado as múmias peruanas que conhecera na infância como modelo para pintar a anciã.
As anunciadoras, duas figuras que simbolizam a sabedoria, Gauguin as relaciona com a “árvore da ciência”. Seriam duas figuras equivalentes àquelas que anunciam a Boa-Nova em representações religiosas. A escolha da cor, muito escura neste caso, estaria relacionada à visão negativa que Gauguin tinha do conhecimento. Para ele, os nativos seriam mais felizes em sua ignorância.

Entre 1897 e 1899, pintou “Vairumati”, “O cavalo branco”, “O ídolo”, “Nevermore” ou “Nu da Pahura deitada” e outras peças que exprimiam a ideia da arte de Gauguin na época.

“Vairumati”, 1897.


Nessa tela, o pintor se inspirou em uma lenda indígena. Para simbolizá-la, as formas foram simplificadas apesar de forte presença dos contornos, nos quais as cores quentes dialogam com grande tensão e, ao mesmo tempo, apresentam-se em harmonia.
A ave que agarra um lagarto e o trono amarelo que tem incrustado o relevo de uma divindade local confirma a leitura da mitologia nativa empreendida pelo pintor.


“O cavalo branco”, 1898.


Nesse quadro, Gauguin procurou captar, com impressionante riqueza pictórica, o misticismo das culturas polinésias, mais especificamente das crenças tribais que veneravam os cavalos brancos como entidades sagradas.
Os três cavalos da cena estão descritos com três cores diferentes. Dois deles merecem especial menção: o cavalo vermelho e o branco.
O cavalo branco que se abaixa para beber água no riacho revela a maestria do artista no tratamento da luz. Os efeitos de luz são perceptíveis na cor do cavalo, ele não é totalmente branco, já que seu corpo sintetiza as cores do entorno, da vegetação e dos reflexos da água.
Aqui, os ginetes montam o cavalo sem que apareça nenhum elemento típico da doma, ou seja, sem subjugar os animais a sua vontade; apenas contando com sua cumplicidade para poder montar.
Na faixa inferior, o pintor colocou uma flor exótica e algumas folhas não menos agrestes. A flor branca, junto ao cavalo também branco, reforça a ideia da importância que adquire a natureza dentro de suas pinturas.

”Cavaleiros na praia”, 1902.


Em “Duas taitianas com flores de manga”, 1899, a representação de duas mulheres que oferecem frutas e flores deu ao pintor oportunidade de produzir uma composição harmoniosa, no sentido musical, por meio do uso incomum da cor.

“Duas taitianas com flores de manga”, 1899.


Em 1901, Gauguin colaborou com o jornal de onde garantiu rendimentos regulares. Ao mesmo tempo, fundou o próprio jornal, “Le Sourire”, em que ele mesmo escrevia, ilustrava e imprimia. Gauguin desencadeou uma ofensiva contra o Partido Protestante e o governador Gustava-Pierre Gallet, além de realizar uma campanha contra os imigrantes chineses.
Em setembro de 1901, mudou-se para um local ainda mais isolado, Hiva Ao, nas ilhas Marquesas, também na Polinésia Francesa, para onde os amigos de Paris enviavam-lhe apoio financeiro.
Logo se uniu a Marie-Rose Vaeoho, nova modelo e amante, que assim que engravidou de Gauguin, foi abandonada pelo mesmo.
Faltava dinheiro, a saúde se deteriorava, e a morte de Clovis aos 21 anos, seu filho mais próximo, intensificou seu sofrimento.
Gauguin estava só. Repudiado pelos colonos franceses, que o viam como um renegado, acusado de difamação, julgado e condenado a três meses de prisão e multa.
A condenação, no entanto, não chegou a ser efetiva porque Gauguin morreu em 08 de maio de 1903, em sua residência. Ele tinha dado a seu lar o nome de “Casa de Contentamento” e mandara entalhar acima da porta frases: “Seja misterioso” e “Ame e será feliz”.
Era o seu adeus ao mundo.

"Quando a tua mão direita estiver hábil, pinta com a esquerda; quando a esquerda ficar hábil, pinta com os pés."

TEMA: Nativos do Taiti, camponeses na Bretanha.
ASSINATURA: Primitivismo exótico
TIPO: Simbólico, misterioso
PREOCUPAÇÃO: Cor viva para expressar emoção



MARCAS: Formas simplificadas em cores não-naturais; contornos fortes em padrões rítmicos.

7 comentários:

Nádia disse...

Gostei muito!!! Parabéns.

Nádia disse...

Gostei Muito, parabéns!

Meire Soares disse...

Maravilhoso, extremamente esclarecedor e generoso!"

Meire Soares disse...

Maravilhoso, esclarecedor, importante e generoso compartilhar da vida e obra do artista!!Obrigada

Meire Soares disse...

Maravilhoso, extremamente esclarecedor e generoso!"

Anônimo disse...

eu nao gostei, eu adorei

Anônimo disse...

eu nao gostei, eu adorei