domingo, 2 de novembro de 2025

FREI LUÍS DE SOUSA, ALMEIDA GARRETT

 I – INTRODUÇÃO:

“Nem amores, nem aventuras, nem paixões, nem caracteres violentos de nenhum gênero. Com uma ação que se passa entre pai, mãe e filha, um frade, um escudeiro velho e um peregrino que apenas entre em duas ou três cenas – tudo gente honesta e temente a Deus – sem um mais para contraste, sem um tirano que se mata ou mata alguém, pelo menos no último ato, como eram as tragédias dantes – sem uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfêmias e das maldições, como hoje se quer fazer o drama – eu quis ver se era possível excitar fortemente o terror e a piedade ao cadáver das nossas platéias, gastas e caquéticas pelo uso contínuo de estimulantes violentos, galvanizá-los com sós estes dois metais da lei.”

 Almeida Garrett, “Conferência ao conservatório real de Lisboa”, em 06 de maio de 1843.

“Frei Luís de Sousa”, que continua a ser considerado um clássico da literatura de língua portuguesa e uma das criações máximas do seu teatro, foi inicialmente apenas lido a um grupo selecto de amigos do autor (entre os quais Herculano). A primeira representação fez-se em privado, no teatro da Quinta do Pinheiro, no mesmo ano de 1843, tendo o próprio Garrett desempenhado o papel de Telmo. A peça só teve a sua estreia pública em 1847, em versão censurada pelo regime cabralista. A versão integral só foi levada à cena no então Teatro Nacional (actual Teatro Nacional de D. Maria II) em 1850.

II –  CARACTERÍSTICAS:

“É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.

[...]

Como esta imitação é executada por atores, em primeiro lugar o espetáculo cênico há de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopéia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os atores efetuam a imitação. [...]

E como a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações), daí vêm por consequência o serem duas causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter; e, nas ações [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de ações; e, por "mito", entendo a composição dos atos; por "caráter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.

[...]

Porém, o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao caráter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso, as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.

[...]

Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma ação e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.”

Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b

 “Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre fatos e pessoas comparativamente recentes. [...]

Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado, contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.

O que escrevi em prosa pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingênuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. Mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também por na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.

Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há de ficar pertencendo sempre ao antigo gênero trágico.

[...]

Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto á severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!”

 

Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de Maio de 1843 - nota de Garrett)

Garrett através da “Memória ao Conservatório” afirma que o conteúdo do “Frei Luís de Sousa” possui todas as características de uma tragédia. Entretanto, denomina-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não foi escrita em versos; não foi composta em cinco atos; não respeitou as unidades de tempo e de lugar e não relata assunto antigo.

No entanto, em “Frei Luís de Sousa” encontra-se número de personagens diminuto; desafio as prepotências divinas e humanas (a hibris, arrogância de poder); fatalidade; morte moral; pathos (catástrofe; passividade); heroísmo; crença em agouros, em dias aziagos, em superstições; semelhanças com o coro grego (Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto) etc.

Dessa forma, pode-se afirmar que “Frei Luís de Sousa” é um drama romântico, com temática de uma tragédia.

 III – ESTRUTURA:

A peça possui apenas três atos. Eles se sucedem numa velocidade de ritmo que torna implacável, aos olhos do espectador, a catástrofe final. Desde a primeira cena do primeiro ato, percebemos a insegurança em que vive D. Madalena de Vilhena, casada em segundas núpcias com Manuel de Sousa Coutinho, sete anos após a suposta morte de D. João de Portugal, seu primeiro marido. Percebemos também que Telmo Paes, um escudeiro, velho empregado da família, alimenta com insinuações constantes a insegurança de D. Madalena.  

 IV – PERSONAGENS:

As personagens são descritas ao longo da peça e através dos diálogos das personagens.

Não há referências aos atributos físicos das personagens, exceto em raríssimo caso como o de Maria que sabemos ser uma menina franzina.

Os criados não são descritos de forma alguma; somente seus nomes e suas ocupações são mencionados. A classe fidalga é privilegiada neste sentido.

As personagens Telmo Paes e Frei Jorge crescem no terceiro ato, tornando-se fundamentais para o desfecho trágico da peça.

Almeida Garrett trata D. Sebastião e Luís Vaz de Camões de forma tão atenciosa, que podemos considerá-los personagens secundárias.

- D. Manuel de Souza Coutinho (protagonista): herói romântico; filho de Lopo de Souza Coutinho; segundo esposo de D. Madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar (ideia inconfessada); fidalgo honrado, religioso, patriota (incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; abandona o nome de batismo ao ser convertido em frei e passa a chamar-se Frei Luís de Souza.

- D. Madalena de Vilhena: foi esposa de D. João de Portugal; mulher recatada, virtuosa, cristã, dada a presságios. Os seus temores a impediram de desfrutar plenamente a felicidade de estar casada em segundas núpcias com D. Manuel. Revela que se apaixonou pelo segundo marido antes de ficar viúva e sente-se culpada e pecadora. Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher para lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão. Converte-se também à vida religiosa, recebendo o título Sóror Madalena.

- D. João de Portugal: guerreiro honrado e generoso; casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente (quando pensa, por momentos, que Madalena o ama). Parece ser cruel e vingativo, mas perdoa a esposa; pede a Telmo que salve D. Madalena e D. Manuel do triste fim que os aguardava.

- Maria de Noronha: filha do segundo casamento de D. Madalena e D. Manoel. Aos treze anos apresenta-se como menina pura, inteligente, perspicaz, intuitiva, estudiosa e que gosta de ler. É carregada de virtudes que a diferenciam das outras meninas da sua idade.

É muito influenciada por D. Telmo. D. Madalena afirma que a menina não ouve, não crê, não sabe senão o que D. Telmo lhe diz. Ela "lia nos olhos e nas estrelas".

Sofre de tuberculose e morre no final da peça.

Segundo Vasco Graça Moura, uma análise psicológica da obra revelaria uma conexão entre Maria e a filha ilegítima de Almeida Garrett com Adelaide Pastor.

- Telmo Paes: escudeiro de família dos condes vimioso, antigo amigo da família que dizia amar Maria como se fosse sua filha. Sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua "menina".  Alimenta os temores de D. Madalena. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.

- Frei Jorge: irmão de D. Manuel; evita que Telmo apresente a solução proposta por D. João de Portugal para livrar a família de D. Manuel da degradação social. Portador do discurso católico que promete consolar os sofredores, caso se convertam à religião e aceitem os desígnios de Deus.

- Miranda e Dorotéia: criados de D. Manuel e D. Madalena. Dorotéia é a aia de Maria.

- D. Joana de Castro: tia de Maria que abandona o esposo para se tornar freira.

- Romeiro: D. João de Portugal que retorna do cativeiro na Terra Santa e não é reconhecido por D. Madalena.

V – TEMPO E ESPAÇO:

A trajetória das personagens limita-se entre: África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio, numa época de peste em processo de declínio.

- Influência das lutas pela liberdade religiosa no século XVI. Os ingleses já haviam traduzido as sagradas escrituras. Em Portugal, somente os religiosos dominavam os segredos do catolicismo, porquanto as missas eram rezadas em Latim.

- Influência do Iluminismo.

O tempo vai-se reduzindo, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.

1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece Manoel de Sousa Coutinho.

1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João

1585 e 1599 – Madalena casa com Manoel de Sousa Coutinho.

1598 a 1599 – D. João é libertado dirige-se para Portugal

28 de julho a 4 de agosto (8 dias) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.

Agosto (3 dias) – D. João apressa-se para chegar

4 de agosto – é um dia fatal para Madalena

 

VI – SÍNTESE DOS ATOS E DAS CENAS:

Os três atos desenvolvem-se em ambientes diferentes que acompanham o clima de tensão, e colaboram de forma graciosa para a sua intensificação. O declínio de luzes e cores dá o exato tom sombrio e triste, condizente com o destino das personagens.

A descrição dos cenários é feita de forma objetiva, sem rebuscamento de linguagem, assemelhando-se a uma lista de ingredientes.

 ATO I:

Cenas I-IV: Informações sobre o passado das personagens e localização das personagens no tempo.

Em 1578, o rei D. Sebastião desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir. Não tendo deixado herdeiros, houve uma longa disputa pela sucessão. Entre os pretendentes estava Filipe, rei da Espanha, que anexou Portugal ao seu império em 1580. O domínio espanhol duraria sessenta anos (1580 a 1640). Criou-se nesse período o mito popular do "Sebastianismo", segundo o qual D. Sebastião, retornaria para reerguer o império português. Entre os nobres desaparecidos em Alcácer-Quibir estava D. João de Portugal, marido de Madalena de Vilhena.  

Além dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º ato, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará.

 Cenas V-VIII: Decisão de incendiar o palácio.

Cenas IX-XII: Ação de incendiar o palácio.

 D. Manuel de Sousa, num ato exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João. O seu ato exemplar encaminha-o para a perdição.

 - Câmera antiga e luxuosa dos princípios do século dezessete.

- Apenas um retrato do cavaleiro São João de Jerusalém.

- Menciona a posição das portas que será invertida no ato seguinte.

- Começa num início de tarde em Lisboa.

 ATO II:

Cenas I-III: Informações sobre o que se passou depois do incêndio.

Cenas IV-VIII: Preparação da ação: ida de Manuel de Sousa Coutinho a Lisboa.

Cenas IX-XV: Chegado do romeiro.

Madalena toma esta situação como um presságio, pressentindo que iria perder Manuel tal como perdeu a sua casa e o seu quadro. Enquanto que Manuel, um homem corajoso, patriota, provado historicamente que era possuidor de um grande amor por Madalena, não se importa com o passado da sua esposa, esta vive com muitos receios em relação ao fato do seu primeiro marido, D. João de Portugal, que, apesar de se pensar que tera sido morto na batalha de Alcácer Quibir, sua morte nunca foi comprovada.

Este regressa à sua antiga habitação, como romeiro, e frisa as apreensões de Madalena ao identificar o quadro de D. João.

 - Palácio, em Almada, que pertencera a D. João de Portugal.

- O salão antigo, de gosto melancólico e pesado, cria um contraste com o cenário do primeiro ato.

- Há vários retratos, entre eles os do Del-rei D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal.

- A posição das portas faz, como no primeiro ato, referência ao interior e exterior do ambiente. A inversão causa uma sensação de real mudança de domicílio.

- O aspecto religioso transparece através da Capela da Senhora da Piedade e da Igreja de São Paulo.

- Não é mencionado em que parte do dia este ato se desenvolverá.

 ATO III:

Cena I: Informações sobre solução apresentada. D. Manuel debate-se com o dilema da doença e a ilegitimidade de Maria.

Cenas II-IX: Preparação do desenlace.

Cenas X-XII: Desenlace com a morte de Maria em palco.

 

- Ocorre na parte baixa do Palácio, onde encontramos a Capela da Senhora da Piedade da Igreja de São Paulo dos Domenico d’Almada.

- Os móveis e a ornamentação intensificam a melancolia do ambiente. A simbologia da cruz de tábua negra com o letreiro INRI sugere sacrifícios de cunho religioso.

- As cores, além de mais escuras, são acrescidas do peso dos materiais de que são feitos os objetos: castiçal de chumbo.

- A iluminação noturna, composta de tochas e velas, não dispensa a declaração de que o ato começa na total ausência de luz solar: “é alta noite”.

 

O dramatismo desta obra é mais acentuado quando o autor concede ao casal uma filha, D. Maria de Noronha, uma jovem que sofre de tuberculose. Pura, ingênua, curiosa, corajosa, perfeitamente inocente dos atos dos seus pais, é a personificação da própria beleza e pureza que se consegue originar mesmo num casamento condenável.

Essa situação perdurou por vinte anos, no fim dos quais, D. João, que realmente estava vivo, retornou a Portugal. Revelada a sua identidade, no ponto culminante da peça, o desespero domina todas as personagens, pois irá destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte deste; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera.

Há, no entanto, uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem, portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Paes, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Paes vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena de ter reconstruída a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afetiva sobre a morte do amo.

O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efetivamente estava vivo em Telmo Paes era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Paes desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:

“- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo. ”

A fatalidade exterior, ao mesmo tempo em que, objetivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjetivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Paes.

No desenlace trágico, Manuel Coutinho e Madalena resolvem tomar o hábito religioso, como forma de expiação; adotando novos nomes: Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena.  Durante a cerimônia, Maria de Noronha, filha do casal, tomada pela vergonha e pelo desespero ao insurgir-se contra a lei do matrimônio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba, morre aos pés de seus pais.

A atitude de Manuel de Sousa Coutinho em relação ao domínio espanhol assim como o retorno de D. João de Portugal (associado, evidentemente, ao sebastianismo) insere-se na temática nacionalista, tão cara aos românticos da primeira geração.

VII – TEMÁTICA:

 - Nacionalismo: as personagens falam e agem, demonstrando um patriotismo ufanista:

"– O meu nobre pai! Oh, meu querido pai! Sim, sim, mostrai-lhe quem sois e o que vale um português dos verdadeiros!”

 - Pessimismo: é facilmente detectado no diálogo das personagens:

“– Meu adorado esposo, não te deites a perder, não te arrebates. Que farás tu contra esses poderosos?”

 “Crê-me que to juro na presença de Deus; a nossa união, o nosso amor é impossível.”

É importante ressaltar que esse pessimismo explícito abre portas ao metafísico, sob a forma de presságios e agouros, que disputam, em pé de igualdade com os dogmas do catolicismo, a fé popular. Algumas personagens acreditam em Deus, mas crêem igualmente que seus medos e suas sensações são avisos de que algum ruim realmente acontecerá:

“...não entremos com os teus agouros e profecias do costume: são sempre de aterrar... Deixemo-nos de futuros...”

“... agora não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai.”

 - Sentimentos e emoções conturbados: não há paz e tranquilidade no relacionamento das personagens principais. Amor e medo caminham juntos, gerando atitudes precipitadas e movidas pelo desespero:

“...peço-te vida, vida, vida... para ela, vida para a minha filha!”

“– Se Deus quisera que não acordasse!”

“– Vamos; eu ainda não me entendo bem claro com esta desgraça. Dize-me, fala-me a verdade: minha mulher...– minha mulher! Com que boca pronuncio eu ainda estas palavras! – D. Madalena o que sabe?”

 - A natureza também não se apresenta sempre tranquila:

“Mas neste tempo não há de fiar no Tejo: dum instante para o outro levanta-se um nortada... e então aqui o pontal de Cacilhas! Que ele é tão bom mareante...”

 - Escapismo: quando a situação adquire uma carga insuportável de sofrimento moral e emocional, os protagonistas não enfrentam o repúdio da sociedade e aceitam o refúgio na vida religiosa:

“– Madalena... senhora! Todas estas coisas são já indignas de nós. Até ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava na boa-fé e seguridade de nossas consciências. Essa acabou. Para nós já não há senão estas mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca) e a sepultura dum claustro.”

 - A crença do sebastianismo: o mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. “Mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!"

 VIII – BIOGRAFIA DE MANUEL DE SOUSA COUTINHO:

 Manuel de Sousa Coutinho, assim era o seu verdadeiro nome, nasceu em Santarém, cerca de 1555, e era filho do nobre Lopo de Sousa Coutinho e de uma senhora da casa dos condes dos Marialvas. Enquanto fidalgo dedicado às Letras e às Armas, seu pai influenciou profundamente a sua decisão de frequentar cursos regulares de Humanidades nos quais atingiu um elevado grau de cultura literária que lhe permitiu prosseguir o caminho das Letras.

Talvez como recompensa pelos serviços militares prestados por seu pai, foi, por alvará de 31 de março de 1572, considerado moço fidalgo, tendo manifestado, no seguimento da corrente da época no Ocidente, um grande fervor religioso que o animou a alistar-se como noviço na Ordem de Malta, então "a mais forte guarda avançada da Europa cristã contra a ameaça turca".

Em 1577, na Sardenha, é feito prisioneiro e levado pelos mouros para Argel, com o seu irmão André de Sousa Coutinho, tendo aí conhecido Cervantes. Posto em liberdade, foi para Valença, onde permaneceu e onde, sob o magistério do humanista valenciano Jaime Falcão, completou a sua formação cultural. A influência deste humanista vai ser homenageada na sua obra Ópera Poética, considerando-o como um mestre a quem devia todo o seu saber, nomeadamente o conhecimento da arte poética de Horácio.
Regressando a Portugal, rapidamente ganhou a confiança dos governadores do reino, que o colocaram num posto dos quadros militares do Estado.
Dois meses antes da invasão do duque de Alba, em 6 de abril de 1580, Manuel de Sousa Coutinho é nomeado alcaide-mor do Castelo de Marialva e capitão das ordenanças da vila e, em 1582, o rei Filipe II faz-lhe uma mercê de 200 mil réis anuais. Em dezembro deste mesmo ano, é promovido a fidalgo escudeiro.
Casou, em dezembro de 1583, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, filho de D. Manuel de Portugal, a quem Luís de Camões endereçou a “Ode VII” como gratificação pelo patrocínio à publicação de “Os Lusíadas”. Do primeiro casamento de D. Madalena nasceram três filhos: D. Luís de Portugal (morto em Ceuta), D. Joana de Portugal e D. Maria de Vilhena, os quais foram educados pelo novo casal que, por herança da mãe de D. Madalena, era detentor de uma grande fortuna.
A partir de 1590, a família fixou-se em Almada, tendo Manuel de Sousa Coutinho desempenhado vários cargos na Misericórdia.
Aqui, e embora longe da cidade, nem sempre conseguiu afastar-se do bulício da capital e do desencanto da cena política e social do fim do século.
Em 1592, vai aproveitar uma quantia do dote do enteado para contratar e equipar uma expedição a Tânger e, em 1594, é promovido pelo rei a fidalgo cavaleiro com um aumento de moradia de 400 mil réis.
Em 1598, desempenha as funções de guarda-mor da saúde e de capitão-mor da gente de cavalo e de pé das milícias locais.
Assiste-se, então, a alguns conflitos com os governadores do Reino, que o notificaram da proibição de entrar no paço e na residência destes. Esta atitude foi enfrentada por Manuel de Sousa Coutinho com altivez.
Entretanto, assolada pela peste a cidade de Lisboa, a população começa a fugir e a Administração, procurando em Alcochete e Almada ares mais saudáveis, dá a Manuel de Sousa Coutinho ordens para despejar e abandonar a sua casa para que nela se pudessem alojar. Sentindo-se ofendido por esta atitude, este parte para Madrid e manda incendiar o palácio, defendendo, assim, o seu código de honra, recusando-se a cumprir imposições que considerava incompatíveis com a sua condição de fidalgo.
Regressa a Portugal em 1 de maio de 1600, publica a Ópera Poética de Jaime Falcão e recupera as suas funções de capitão-mor e guarda-mor da saúde pelas quais será compensado, em 1601, por Filipe III, com uma tença de 50 mil réis.
O gosto pela aventura "transporta-o" para lugares da América espanhola e apenas as saudades da pátria, da mulher e da filha o fazem regressar, conforme o próprio confessa no poema latino Navigatio Antartica.
Não se conhecem as verdadeiras razões que levaram Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena a procurarem o refúgio no claustro dominicano: ele em Benfica, com o nome religioso de Frei Luís de Sousa, e ela no Convento do Sacramento, em Lisboa, com o nome de Sóror Madalena das Chagas, assim como sobre a data e as razões da morte de sua filha. Este desconhecimento vai permitir os naturais comentários sobre a situação que com o tempo se transformariam numa lenda romanesca (chegada do forasteiro que conhecera nos lugares santos de Jerusalém alguém que dela ainda "muito se lembrava" e identificara na galeria dos retratos de família o de D. João de Portugal que todos pensavam morto em Alcácer Quibir. Perante esta situação D. Manuel de Sousa Coutinho propusera a profissão no convento). Esta lenda forneceu a matéria para Almeida Garrett escrever “Frei Luís de Sousa”. Lenda porque na verdade, e segundo Aníbal Pinto de Castro e Gladstone Chaves de Melo, in “Introdução e fixação do texto da obra A vida de Frei Bartolomeu dos Mártires de Frei Luís de Sousa”, edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, "à data do segundo casamento e depois deste, a morte de D. João de Portugal estava e fora documentalmente provada".

Por isso, e ainda de acordo com os autores citados, a decisão de professar parece estar ligada a um fervor religioso que assomou Portugal na época e que ambos os esposos aceitaram conscientemente e deliberadamente, desiludidos com o desconcerto do mundo, o que patenteia o espírito humanista de Manuel de Sousa Coutinho. Dividido ente o pecado e o dever, encontrará na religião e no casamento a sua via de realização pessoal.

 

quarta-feira, 15 de outubro de 2025

O COBRADOR, RUBEM FONSECA

 

I – OBRA:

“O Cobrador” é um livro constituído por dez contos bem distintos entre si, que tem em comum o fato de manterem sempre o seu foco no homem urbano absorvido pelo seu cotidiano esmagador.

Rubens Fonseca, em “O Cobrador” confirma sua excelência em escrever narrativas curtas. São histórias sobre amor, pedofilia, guerras, advogados, revoltas, enfim episódios que envolvem os mais extremados sentimentos humanos entre o trágico e o cômico.

Essa agonia do homem urbano vem desde os autores realistas e naturalistas do século XIX. Em obras de Machado de Assis e Aluísio Azevedo já era possível perceber a ação das cidades sobre os indivíduos, porém segundo Silverman:

“Nenhum, entretanto, compara-se, com Rubem Fonseca na aspereza contínua com que pinta o drama (tragédia) urbano ou na acidez satírica que lhe provoca o seu mundo torturado.”

O autor consegue ridicularizar os problemas dessa “urbe”, exagerando-os com palavrões. A violência está presente nas ações do conto, mas também na linguagem com que elas se expressam. Para Martinez:

“Fonseca instala o medo ou o mal no próprio interior da linguagem, cada uma de suas palavras é como uma nota musical arrancada da sinfonia do mal”.

Os livros de Rubem Fonseca estão repletos de assassinos, criminosos, prostitutas e outros seres excluídos da sociedade e imersos na violência do meio urbano.

Para Coutinho:

“Os seus contos [de Rubem Fonseca] (…) oferecem, sobretudo, um quadro da atual sociedade carioca, e acredito que se possa dizer brasileira, um estado de crise”.

Dessa forma, a matéria para os contos está na sociedade, nas ruas, na proximidade com as mudanças sociais e políticas da história brasileira.

Em 1976, Rubem Fonseca tem seu livro “Feliz Ano Novo” proibido por ser considerado pornográfico, o que o faz imaginar-se uma vítima do Regime Militar. Então usa todo seu arsenal literário para escrever outro livro de contos que, em 1979, chocaria a sociedade brasileira: “O Cobrador.” Observe-se, na leitura dos contos, que quem relata os acontecimentos é a personagem principal da história, excetuando-se o conto “O jogo do morto”.

 

II – LINGUAGEM E ESPAÇO:

A linguagem utilizada pelo personagem Cobrador, apesar dos palavrões e gíria, demonstra certa erudição que pode representar os ideais do próprio autor de mostrar a podridão moral da sociedade, misturando essas duas vozes, do narrador marginal e do autor intelectual.

De acordo com as palavras de Deonísio da Silva os seus narradores em primeira pessoa, ganham uma espécie de “poder” dentro das tramas, conduzindo o leitor. Ele faz uma espécie de “pacto” com o leitor, confidenciando a ele seus piores segredos e tentando persuadi-lo de sua causa.

Sua linguagem é bem próxima da popular, característica do Pós-modernismo, utilizando-se inclusive de palavrões e descrevendo cenas de sexo, numa estratégia de choque e de quebra da moral que rege a sociedade. Dessa forma, o protagonista relata seus feitos, escolhendo um vocabulário que oscila entre o macabro e o lírico, entre o irônico e o trágico e entre o popular e o erudito, desvelando no excesso de sua linguagem a falta de perspectivas.

Passagens de obras de Machado de Assis, Haroldo de Campos, Maiakovski, Velimir Khlébnikov e Isaak Babel percorrem o tecido narrativo dos contos, fazendo parte da urdidura do texto que as engloba para com e sobre elas dialogar, valorizando-as, parodiando-as ou distorcendo-as.

No livro Rubem Fonseca continua a dar preferência ao espaço conflitante da cidade grande, retratando aí o universo da clandestinidade social.

Nos contos o autor passa pela Guerra do Paraguai, pelo Amazonas, passando pelo Rio de Janeiro, sempre focando figuras banais.

 

III – TEMPO:

Focando o período em que a obra foi escrita, 1979, nota-se que o Brasil passava por uma grave crise social. Com o Golpe Militar de 1964 há a tomada da Presidência pelos militares, que governariam o país até 1985.

Entre os anos 60 e 70 vários fatores contribuem para a ascensão das classes média e alta, entre elas, o aumento considerável do PIB (Produto Interno Bruto), crédito facilitado e abertura externa da economia. Assim, constrói-se o chamado “milagre econômico” que beneficiaria a burguesia e achataria os pobres. Entretanto, em 1973, há a chamada “crise do petróleo”, os preços aumentam, gerando uma crise econômica mundial que vai se refletir na balança comercial. A renda ganha concentração na mão de poucos e a pobreza aumenta para muitos.

O escritor usa uma narrativa agressiva, com forte realismo, para retratar o submundo do crime e da violência urbana no Rio de Janeiro da década de 70.

Os anos 70 também vão se caracterizar pelas revoltas de operários, organizações sindicais e perseguições militares àqueles que não concordassem com o regime de governo. Esse é um período de grande tensão e desequilíbrio social.

IV – RESUMO DO ENREDO:

                                               1. “O COBRADOR”

                            “Come caviar / teu dia vai chegar”.


1.1. INTRODUÇÃO:

 Em “O Cobrador”, a personagem principal, o Cobrador, é um homem-peça da sociedade industrial, que tem consciência de que durante muito tempo, a sociedade capitalista roubou-lhe sua individualidade e suas posses. Ele que sempre foi cobrado, agora, sente-se no direito de cobrá-la.

O Cobrador, assim, torna-se um arquétipo extremado do artista pós-modernista, em defesa humanitária. Para isso, vê a necessidade de destruir a máquina. Esta funciona de modo harmônico, controlada pelas normas sociais e morais. Para destruir a máquina é necessário destruir essa harmonia e promover a ruptura da peça com a máquina.

O aspecto da manipulação das pessoas está sempre presente, contudo, o narrador não quer mais ser manipulado e pagar pelas coisas de que precisa. Opõe-se abertamente à sociedade capitalista e nesse sucessivo jogo de apoderação em que está envolvido, deixa transparecer a luta travada entre as classes sociais.

O rico domina pelo dinheiro, enquanto o Cobrador, representante dos excluídos sociais, domina pela violência.

O autor desnuda os pensamentos do personagem Cobrador transformando-o em uma espécie de herói/ anti-herói, que luta para exterminar as classes abastadas para vingar os pobres. Isso é o que move esse personagem: lidar com sua situação de marginal, não se conformando a ela, mas mostrando o quanto ela é injusta.

Deseja também, exibir ao leitor a hipocrisia da sociedade e enquanto executa suas vítimas, vai tecendo críticas terríveis. Detesta os ricos que ostentam o que conseguiram, muitas vezes, de forma desonesta.

“Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa”.

Sua revolta é imensa, mas mesmo sendo miserável, em todos os sentidos, o personagem Cobrador mata, mas não rouba. O ato de roubar, segundo ele, estaria igualando-o àqueles que enriquecem, explorando os menos favorecidos.

Com a leitura do conto é possível compreender a formação desse marginal diante do quadro sócio-econômico do Brasil dos anos 70 e dessa forma, a desigualdade social refletida em um ser que atinge o ponto máximo da violência no desejo de mudar a realidade.

O personagem-narrador de "O Cobrador" é marcado pelo anonimato, e ao mesmo tempo conhecido à medida que representa de certa maneira a classe dos excluídos, embora faça a narração toda na primeira pessoa e, pela ausência de biografia, não fica claro o seu passado, nem sua profissão, apesar do personagem se dizer poeta:

“Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade”.

Seus versos são fragmentados como seu próprio pensamento. Além disso, sua relação com o trabalho é ausente e não fica clara a maneira como se sustenta, já que não rouba suas vítimas.

“Cansei de pagar! Agora eu só cobro!”

O personagem Cobrador tenta transmitir ao leitor a mensagem de que pertence a uma classe social que provavelmente se encaixe entre pobre e miserável e que um dia já foi um cidadão comum, respeitador das leis e de quem tudo foi retirado. Dessa forma, sente-se inábil e busca justiça cobrando o que a sociedade lhe deve.

“Quando satisfaço meu ódio sou possuído por uma sensação de vitória, de euforia que me dá vontade de dançar – dou pequenos uivos, grunhidos, sons inarticulados, mais próximos da música do que da poesia, e meus pés deslizam pelo chão, meu corpo se move num ritmo feito de gingas e saltos, como um selvagem, ou um macaco”.

Ao citar “estão me devendo” manifesta seu desejo de recuperar o que lhe foi roubado, para com isso, quem sabe, adquirir a “normalidade” que tanto se espera na sociedade. Em uma de suas listas, ele inclui também a palavra respeito, ou seja, aquilo que não podem pedir que tenha já que um dia lhe tomaram. A revolta dele para com o mundo surge dessa abstinência de elementos às vezes até supérfluos à sobrevivência, mas tão fundamentais à vida. A opressão da cidade também contribuirá com que deseje fugir de tudo e todos e ao mesmo tempo atingi-los.

“A rua está cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo”.

A criminalidade se transforma em patologia e o personagem Cobrador em um psicopata, um misantropo em crise existencial, alguém completamente avesso à vida em sociedade e a religião. Entretanto, não se trata de uma revolução social e, sim, uma forma de fazer justiça individualmente.

"Tão me devendo colégio, namorada, aparelho de som, respeito, sanduíche de mortadela no botequim da rua Vieira Fazenda, sorvete, bola de futebol". (...) Eu não pago mais nada, cansei de pagar! gritei para ele, agora eu só cobro!"
Para Martinez: “Os personagens de Fonseca habitavam e continuam a habitar um mundo anterior a Deus, ou no qual Deus é indiferente, ou quem sabe um mundo em que Deus é desnecessário”.

O marginal parece viver em um mundo prestes a acabar e ele poderia ser uma das bestas do apocalipse.

No entanto, o Cobrador sente-se frágil e humilhado:

“A mão dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes”.

E, solitário:

“Sou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida”.

Nessa frase parece estar dialogando em contraponto com o “Poema em linha Reta” de um dos heterônimos de Fernando Pessoa: Álvaro de Campos, que em dois de seus versos diz: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”.

Em outros momentos mostra-se forte e poderoso:

“Onde eu passo o asfalto derrete”.

Assim, em ambos se percebe a sensação de derrota diante dos obstáculos impostos ao ser humano em sua existência em sociedade. Mas, é verdadeiramente no relacionamento homem versus mulher que o personagem Cobrador vai revelar seus sentimentos.

1.2. RESUMO DO ENREDO:

"Na porta da rua uma dentadura grande, embaixo escrito Dr. Carvalho, Dentista. Na sala de espera vazia uma placa, Espere o Doutor, ele está atendendo um cliente. Esperei meia hora, o dente doendo, a porta abriu e surgiu uma mulher acompanhada de um sujeito grande, uns quarenta anos, de jaleco branco.

Entrei no gabinete, sentei na cadeira, o dentista botou um guardanapo de papel no meu pescoço. Abri a boca e disse que o meu dente de trás estava doendo muita. Ele olhou com um espelhinho e perguntou como é que eu tinha deixado os meus dentes ficarem naquele estado.
Só rindo. Esses caras são engraçados.
Vou ter que arrancar, ele disse, o senhor já tem poucos dentes e se não fizer um tratamento rápido vai perder todos os outros, inclusive estes aqui — e deu uma pancada estridente nos meus dentes da frente.
Uma injeção de anestesia na gengiva. Mostrou o dente na ponta do boticão: A raiz está podre, vê?, disse com pouco caso.
São quatrocentos cruzeiros.
Só rindo. Não tem não, meu chapa, eu disse.
Não tem não o quê?
Não tem quatrocentos cruzeiros. Fui andando em direção à porta.
Ele bloqueou a porta com o corpo. É melhor pagar, disse. Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os dentes dos fodidos. E meu físico franzino encoraja as pessoas. Odeio dentistas, comerciantes, advogadas, industriais, funcionários, médicos, executivos, essa canalha inteira. Todos eles estão me devendo muito. Abri o blusão, tirei o 38, e perguntei com tanta raiva que uma gota de meu cuspe bateu na cara dele, que tal enfiar isso no teu cu? Ele ficou branco, recuou. Apontando o revólver para o peito dele comecei a aliviar o meu coração: tirei as gavetas dos armários, joguei tudo no chão, chutei os vidrinhos todos como se fossem balas, eles pipocavam e explodiam na parede. Ar­rebentar os cuspidores e motores foi mais difícil, cheguei a machucar as mãos e os pés. O dentista me olhava, várias vezes deve ter pensado em pular em cima de mim, eu queria muito que ele fizesse isso para dar um tiro naquela barriga grande cheia de merda.
Eu não pago mais nada, cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro!
Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta.”

O Cobrador após ser atendido por um Dentista recusa-se a pagá-lo e, ao contrário, começa a cobrá-lo por seus serviços.

O dentista possuía a força física, mas o Cobrador a arma. O tiro é seu grito de revolta.

Ele não mata o dentista, pois representa apenas uma peça intermediária.

Em seguida, o Cobrador ao atravessar uma rua, teve sua atenção despertada por um sujeito que dirigia uma Mercedes que buzinou para que ele saísse da frente.

“Me irritam esses sujeitos de Mercedes. A buzina do carro também me aporrinha. Ontem de noite eu fui ver o cara que tinha uma Magnum com silenciador para vender na Cruzada, e quando atravessava a rua um sujeito que tinha ido jogar tênis num daqueles clubes bacanas que tem por ali tocou a buzina. Eu vinha distraído pois estava pensando na Magnum, quando a buzina tocou. Vi que o carro vinha devagar e fiquei parado na frente.

Como é?, ele gritou.
Era de noite e não tinha ninguém perto. Ele estava vestido de branco. Saquei o 38 e atirei no pára-brisa, mais para estrunchar o vidro do que para pegar o sujeito. Ele arrancou com o carro, para me pegar ou fugir, ou as duas coisas. Pulei pro lado, o carro passou, os pneus sibilando no asfalto. Parou logo adiante. Fui até lá. O sujeito estava deitado com a cabeça para trás, a cara e o peito cobertos por milhares de pequeninos estilhaços de vidro. Sangrava muito de um ferimento feio no pescoço e a roupa branca dele já estava toda vermelha.
Girou a cabeça que estava encostada no banco, olhos muito arregalados, pretos, e o branco em volta era azulado leitoso, como uma jabuticaba por dentro. E porque o branco dos olhos dele era azulado eu disse — você vai morrer, ô cara, quer que eu te dê o tiro de misericórdia?
Não, não, ele disse com esforço, por favor.
Vi da janela de um edifício um sujeito me observando. Se escondeu quando olhei. Devia ter ligado para a polícia.
Saí andando calmamente, voltei para a Cruzada. Tinha sido muito bom estraçalhar o pára-brisa do
 Mercedes. Devia ter dado um tiro na capota e um tiro em cada porta, o lanterneiro ia ter que rebolar.”

Na frase "Me irritam esses sujeitos de Mercedes” refere-se ao comportamento das pessoas que possuem um veículo desse porte. Na narrativa, o homem que dirigia o carro buzina para que o narrador lhe dê passagem, este, porém, entende que está sendo menosprezado e reage. Fez, então, mais uma cobrança: sacou o 38 e atirou no pára-brisa. O sujeito acabou morrendo horas depois, no hospital.

Nesse mesmo dia, o Cobrador adquiriu através de um muambeiro uma pistola Magnum. O Cobrador usando de astúcia pede ao vendedor de armas para ver outro equipamento e assim, teve condições favoráveis de pagar-lhe com três balas no peito.

“O cara da Magnum já tinha voltado. Cadê as trinta mi­lhas? Põe aqui nesta mãozinha que nunca viu palmatória, ele disse. A mão dele era branca, lisinha, mas a minha estava cheia de cicatrizes, meu corpo todo tem cicatrizes, até meu pau está cheio de cicatrizes.

Também quero comprar um rádio, eu disse pro muambeiro. Enquanto ele ia buscar o rádio eu examinei melhor a Magnum. Azeitadinha, e também carregada. Com o silenciador parecia um canhão.
O muambeiro voltou carregando um rádio de pilha.
É japonês, ele disse.
Liga para eu ouvir o som.
Ele ligou.
Mais alto, eu pedi.
Ele aumentou o volume.

Puf. Acho que ele morreu logo no primeiro tiro. Dei mais dois tiros só para ouvir puf, puf.”

Em outra ocasião, o Cobrador posiciona-se em frente a um apartamento onde ocorrerá uma grande festa. De lá, ele põe-se a observar a chegada dos convidados.

"Um deles me interessou muito, um carro vermelho e nele um homem e uma mulher, jovens e elegantes. Caminharam para o edifício sem trocar uma palavra, ele ajeitando a gravata borboleta e ela o vestido e o cabelo. Prepararam-se para uma entrada triunfal mas da calçada vejo que a chegada deles foi, como a dos outros, recebida com desinteresse. As pessoas se enfeitam no cabeleireiro, no costureiro, no massagista e só o espelho lhes dá, nas festas, a atenção que esperam. Vi a mulher no seu vestido azul esvoaçante e murmurei — vou te dar a atenção que você merece, não foi à toa que você vestiu a sua melhor calcinha e foi tantas vezes à costureira e passou tantos cremes na pele e botou perfume tão caro.”

Na saída da festa, o Cobrador aborda convidados milionários, ameaça-os com revólver e os conduze até uma praia deserta.

Segue-se um embate discursivo, em que as vítimas tentam convencer o Cobrador a roubá-los e deixá-los em paz. Entretanto, quando percebem que o Cobrador está irredutível apelam para o emocional, o executivo diz que tem mulher e três filhos e, o casal revela que a sua esposa está grávida do primeiro filho.

"Ela está grávida, ele disse apontando a mulher, vai ser o nosso primeiro filho. Olhei a barriga da mulher esguia e decidi ser misericordioso e disse, puf, em cima de onde achava que era o umbigo dela, desencarnei logo o feto. A mulher caiu emborcada. Encostei o revólver na têmpora dela e fiz ali um buraco de mina.

Vamos para sua casa, eu digo. Eu não moro aqui no Rio, moro em São Paulo, ele diz. Perdeu a coragem, mas não a esperteza. E o carro?, pergunto. Carro, que carro? Este carro, com a chapa do Rio? Tenho mulher e três filhos, ele desconversa. Que é isso? Uma desculpa, senha, habeas-corpus, salvo-conduto? Mando parar o carro. Puf, puf, puf, um tiro para cada filho, no peito. O da mulher na cabeça, puf.”

 Não obstante, o Cobrador está disposto a continuar sua cobrança, ainda mais que, para ele, as vítimas o achavam sem capacidade intelectual por ser um marginal:

Tirava o facão de dentro da perna quando ele disse, leva o dinheiro e o carro e deixa a gente aqui. Estávamos na frente do Hotel Nacional. Só rindo. Ele já estava sóbrio e queria tomar um último uisquinho enquanto dava a queixa à polícia pelo telefone. Ah, certas pessoas pensam que a vida é uma festa”.

Então, o Cobrador amarrou o “Marido” com as mãos para trás e colocou-o de joelhos, em seguida, decepou sua cabeça com golpes de facão, degolando-o como assistia nos filmes e que sempre desejou imitar.

 “A cabeça não caiu e ele tentou levantar-se, se debatendo como se fosse uma galinha tonta nas mãos de uma cozinheira incompetente. Dei-lhe outro golpe e mais outro e outro e a cabeça não rolava. Ele tinha desmaiado ou morrido com a porra da cabeça presa no pescoço. Botei o corpo sobre o pára ­lama do carro. O pescoço ficou numa boa posição. Concentrei-me como um atleta que vai dar um salto mortal. Dessa vez, enquanto o facão fazia seu curto percurso mutilante zunindo fendendo o ar, eu sabia que ia conseguir o que queria. Brock! a cabeça saiu rolando pela areia. Ergui alto o alfanje e recitei: Salve o Cobrador! Dei um grito alto que não era nenhuma palavra, era um uivo comprido e forte, para que todos os bichos tremessem e saíssem da frente. Onde eu passo o asfalto derrete.”

 Ao longo da narrativa, o Cobrador vai compondo uma lista de necessidades que a sociedade lhe “deve”:

“Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa”.

Em um dos seus envolvimentos amorosos, conhece uma “Coroa” que lhe dá abrigo e ouve suas poesias grotescas, porém sem compreendê-las. O Cobrador aborrece quando a “Coroa” interrompe a declamação de seus versos para perguntar se ele gosta de cinema. No entanto, conclui que a “Coroa” não lhe devia nada, era outra vítima, como ele, da exploração, inclusive dos meios de comunicação de massa, que faz com que as pessoas tornam-se alienadas culturalmente, ao ponto de não ter sensibilidade para ouvir e compreender uma poesia.

“Na casa de uma mulher que me apanhou na rua. Coroa, diz que estuda no colégio noturno. Já passei por isso, meu colégio foi o mais noturno de todos os colégios noturnos do mundo, tão ruim que já não existe mais, foi demolido. Até a rua onde ele ficava foi demolida. Ela pergunta o que eu faço e digo que sou poeta, o que é rigorosamente verdade. Ela me pede que recite um poema meu. Eis: Os ricos gostam de dormir tarde/ apenas porque sabem que a corja/ tem que dormir cedo para trabalhar de manhã/ Essa é mais uma chance que eles/ têm de ser diferentes:/ parasitar,/ desprezar os que suam para ganhar a comida,/ dormir até tarde,/ tarde/ um dia/ ainda bem,/ demais./

Ela corta perguntando se gosto de cinema. E o poema? Ela não entende. Continuo: Sabia sambar e cair na paixão/ e rolar pelo chão/ apenas por pouco tempo./ Do suor do seu rosto nada fora construído./ Queria morrer com ela,/ mas isso foi outro dia,/ ainda outro dia./ No cinema Íris, na rua da Carioca/ o Fantasma da Ópera/ Um sujeito de preto,/ pasta preta, o rosto escondido,/ na mão um lenço branco imaculado,/ tocava punheta nos espectadores;/ na mesma época, em Copacabana,/ um outro/ que nem apelido tinha,/ bebia o mijo dos mictórios dos cinemas/ e o rosto dele era verde e inesquecível./ A História é feita de gente morta/ e o futuro de gente que vai morrer./ Você pensa que ela vai sofrer?/ Ela é forte; resistirá./ Resistiria também; se­ fosse fraca./ Agora você, não sei./ Você fingiu tanto tempo, deu socos e gritos, embusteou/ Você está cansado,/ você. acabou,/ não sei o que te mantém vivo./
Ela não entendia de poesia. Estava comigo e que­ria fingir indiferença, dava bocejos exasperados. A farsanteza das mulheres.
Tenho medo de você, ela acabou confessando.
Essa fodida não me deve nada, pensei, mora com sacrifício num quarto e sala, os olhos dela já estão empapuçados de beber porcarias e ler a vida das grã-finas na revista Vogue.
Quer que te mate?, perguntei enquanto bebíamos uísque ordinário.
Quero que você me foda, ela riu ansiosa, na dúvida. Acabar com ela? Eu nunca havia esganado ninguém com as próprias mãos. Não tem muito estilo, nem drama, esga­nar-se alguém, parece briga de rua. Mesmo assim eu tinha vontade de esganar alguém, mas não uma infeliz daquelas. Para um zé-ninguém, só tiro na nuca?
Tenho pensado nisso, ultimamente. Ela tinha tirado a roupa: peitos murchos e chatos, os bicos passas gigantes que alguém tinha pisado; coxas flácidas com nódulos de celulite, gelatina estragada com pedaços de fruta podre.
Estou toda arrepiada, ela disse.
Deitei sobre ela. Me agarrou pelo pescoço, sua boca e língua na minha boca, uma vagina viscosa, quente e olorosa.
Fodemos.
Ela agora está dormindo.
Sou justo.”

 Seu ódio aumenta quando assiste a programas televisivos, cinema, rádio e lê jornais e revistas.

"Leio os jornais para saber o que eles estão comendo, bebendo e fazendo".

Os jornais além de informar o que a sociedade faz, exibe a classe média alta com os artigos de luxo que não podem ser adquiridos por todos, enfatizando a diferença social entre as classes e colocando em dúvida a credibilidade dos meios de comunicação.

“Leio os jornais. A morte do muambeiro da Cruzada nem foi noticiada. O bacana do Mercedes com roupa de tenista morreu no Miguel Couto e os jornais dizem que foi assassinado pelo bandido Boca Larga. Só rindo."

 A televisão e o cinema são veículos que o excitam à violência. Através deles, o Cobrador assiste a um mundo de fantasia muito distante de sua realidade, aguçando, ainda mais, sua ferocidade.   

“Fico na frente da televisão para aumentar o meu ódio. Quando minha cólera está diminuindo e eu perco a vontade de cobrar o que me devem eu sento na frente da televisão e em pouco tempo meu ódio volta. Quero muito pegar um camarada que faz anúncio de uísque. Ele está vestidinho, bonitinho, todo sanforizado, abraçado com uma loura reluzente, e joga pedrinhas de gelo num copo e sorri com todos os dentes, os dentes dele são certinhos e são verdadeiros, e eu quero pegar ele com a navalha e cortar os dois lados da bochecha até as orelhas, e aqueles dentes branquinhos vão todos ficar de fora num sorriso de caveira vermelha. Agora está ali, sorrindo, e logo beija a loura na boca. Não perde por esperar.

Meu arsenal está quase completo: tenho a Magnum com silenciador, um Colt Cobra 38, duas navalhas, uma carabina 12, um Taurus 38 capenga, um punhal e um facão. Com o facão vou cortar a cabeça de alguém num golpe só. Vi no cinema, num desses países asiáticos, ainda no tempo dos ingleses­ um ritual que consistia em cortar a cabeça de um animal, creio que um búfalo, num golpe único. Os oficiais ingleses presidiam a cerimônia com um ar de enfado, mas os decapitadores eram verdadeiros artistas. Um golpe seco e a cabeça do animal rolava, o sangue esguichando.”

O rádio e as revistas femininas, também funcionam de forma maniqueísta ao ditarem a moda vigente das altas sociedades.

“Faço um poema denominado Infância ou Novos Cheiros de Buceta com U: Eis-me de novo/ ouvindo os Beatles/ na Rádio Mundial/ às nove horas da noite/ num quarto/ que poderia ser/ e era/ de um santo mortificado/ Não havia pecado/ e não sei por que me lepravam/ por ser inocente/ ou burro/ De qualquer forma/ o chão estava sempre ali/ para fazer mergulhos./ Quando não se tem dinheiro/ é bom ter músculos/ e ódio./”

“Da rua vejo a festa na Vieira Souto, as mulheres de vestido longo, os homens de roupas negras. Ando lentamente, de um lado para o outro na calçada, não quero despertar suspeitas e o facão por dentro da calça, amarrado na perna, não me deixa andar direito. Pareço um aleijado, me sinto um aleijado. Um casal de meia-idade passa por mim e me olha com pena; eu também sinto pena de mim, manco e sinto dor na perna.

Da calçada vejo os garçons servindo champanha francesa. Essa gente gosta de champanha francesa, vestidos franceses, língua francesa.”

Em outro momento, o Cobrador com uma caixa preta debaixo do braço e disfarçando sua voz, passa-se por um bombeiro num prédio de classe médio-alta.

Ele toca a campainha em vários andares e não é recebido. Até que, finalmente, em um dos apartamentos, a empregada abre a porta e ele entra. 

O Cobrador amarra a empregada e estupra a moça.

Observe-se que o interesse do Cobrador é estuprar exclusivamente a dona da casa, símbolo de seu ódio, quanto á empregada que faz parte do mundo dos excluídos, foi poupada de violência sexual.

A princípio a moça reluta em se entregar, mas acaba demonstrando que sentiu prazer com o estupro.

“Surgiu uma moça de camisola, um vidro de esmalte de unhas na mão, bonita, uns vinte e cinco anos.

Deve haver um engano, ela disse, nós não precisamos de bombeiro.
Tirei o Cobra de dentro da caixa. Precisa sim, é bom ficarem quietas senão mato as duas. Tem mais alguém em casa? O marido estava trabalhando e o menino no colégio. Amarrei a empregada, fechei sua boca com esparadrapo. Levei a dona pro quarto.
Tira a roupa.
Não vou tirar a roupa, ela disse, a cabeça erguida. Estão me devendo xarope, meia, cinema, filé mignon e buceta, anda logo. Dei-lhe um murro na cabeça. Ela caiu na cama, uma marca vermelha na cara. Não tiro. Arranquei a camisola, a calcinha. Ela estava sem sutiã. Abri-lhe as pernas. Coloquei os meus joelhos sobre as suas coxas. Ela tinha uma pentelheira basta e negra. Ficou quieta, com olhos fechados. Entrar naquela floresta escura não foi fácil, a buceta era apertada e seca. Curvei-me, abri a vagina e cuspi lá dentro, grossas cusparadas. Mesmo assim não foi fácil, sentia o meu pau esfolando. Deu um gemido quando enfiei o cacete com toda força até o fim. Enquanto enfiava e tirava o pau eu lambia os peitos dela, a orelha, o pescoço, passava o dedo de leve no seu cu, alisava sua bunda. Meu pau começou a ficar lubrifi­cado pelos sucos da sua vagina, agora morna e viscosa.
Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu. Com o resto da porra que saía do meu pau fiz um círculo em volta do umbigo dela.
Vê se não abre mais a porta pro bombeiro, eu disse, antes de ir embora.”

Um dia na praia, local de igualdade social, segundo o Cobrador, conhece uma bela moça: Ana.

“Na praia somos todos iguais, nós os fodidos e eles. Até que somos melhores pois não temos aquela barriga grande e a bunda mole dos para­sitas.”

Havia duas mulheres conversando na areia “uma tem o corpo queimado de sol, um lenço na cabeça; a outra é clara, deve ir pouco à praia; as duas têm o corpo muito bonito; a bunda da clara é a bunda mais bonita entre todas que já vi.”

O Cobrador fica deslumbrado pela beleza da moça mais clara.

“Eu quero aquela mulher branca! Ela inclusive está interessada em mim, me lança olhares. Elas riem, riem, dentantes. Se despedem e a branca vai andando na direção de Ipanema, a água molhando os seus pés. Me aproximo e vou andando junto, sem saber o que dizer.
Sou uma pessoa tímida, tenho levado tanta porrada na vida, e o cabelo dela é fino e tratado, o seu tórax é esbelto, os seios pequenos, as coxas são sólidas e redondas e musculosas e a bunda é feita de dois hemisférios rijos. Corpo de bailarina.
Você estuda balé?
Estudei, ela diz. Sorri para mim. Como é que alguém pode ter boca tão bonita? Tenho vontade de lamber dente por dente da sua boca. Você mora por aqui?, ela pergunta. Moro, minto. Ela me mostra um prédio na praia, todo de mármore.”

A moça chamava-se Ana e apesar de pertencer á classe social a qual o Cobrador quer exterminar, ela terá grande influência na vida do protagonista. Eles marcam um próximo encontro.

É importante ressaltar que em momento algum da narrativa existe referência à cor da pele do Cobrador, contudo, nestas frases, fica a suposição de que ele não é branco. Mais um motivo para sentir-se inferiorizado.

“A moça era filha de um desses putos que enriquecem em Sergipe ou Piauí, roubando os paus-de-araras, e depois vêm para o Rio, e os filhos de cabeça chata já não têm mais sotaque, pintam o cabelo de louro e dizem que são descendentes de holandeses.”

O Cobrador mora num sobrado de propriedade de dona Clotilde, que há três anos não se levanta da cama, a não ser para fazer as necessidades. O Cobrador demonstra carinho pela senhora, muito provável por se tratar de alguém sem condições financeiras. Ele faz as compras, arruma a casa, aplica-lhe injeções e é tratado como um filho. Dona Clotilde era uma pessoa só no mundo, não tinha parentes.


“Quer que eu passe o escovão na sala? pergunto.
Não meu filho, só queria que você me desse a injeção de trinevral antes de sair.
Fervo a seringa, preparo a injeção. A bunda de Dona Clotilde é seca como uma folha velha e amassada de papel de arroz.
Você caiu do céu, meu filho, foi Deus que te mandou, ela diz.
Dona Clotilde não tem nada, podia levantar e ir comprar coisas no supermercado. A doença dela está na cabeça. E depois de três anos deitada, só se levanta para fazer pipi e cocô, ela não deve mesmo ter forças.
Qualquer dia dou-lhe um tiro na nuca.”

Em seu quarto, o Cobrador afia o seu facão e acompanha a noticia sobre a morte do casal executado na Barra da Tijuca, depois ri dos comentários sobre a falta de segurança nas ruas. Em seguida, ele joga uma cueca pro alto e tenta cortá-la com o facão, como o Saladino fazia com um lenço de seda no cinema.

Acontece o segundo encontro entre o Cobrador e Ana. O casal vai a um restaurante em Petrópolis e na volta, o Cobrador dirige de forma imprudente, levando Ana comentar que já pensou em suicídio.

O Cobrador tenta esquecer-se de Ana e busca distração no futebol.

“Sento suado ao lado do campo, junto de um crioulo lendo O Dia. A manchete me interessa, peço o jornal emprestado, o cara diz se tu quer ler o jornal por que não compra? Não me chateio, o crioulo tem poucos dentes, dois ou três, tortos e escuros. Digo, tá, não vamos brigar por isso. Compro dois cachorros-quentes e duas cocas e dou metade pra ele e ele me dá o jornal. A manchete diz: Polícia à procura do louco da Magnum. Devolvo o jornal pro crioulo. Ele não aceita, ri para mim enquanto mastiga com os dentes da frente, ou melhor com as gengivas da frente que de tanto uso estão afiadas como navalhas. Notícia do jornal: Um grupo de grã-finos da zona sul em grandes preparativos para o tradicional Baile de Natal — Primeiro Grito de Carnaval. O baile começa no dia vinte e quatro e termina no dia primeiro do Ano Novo; vêm fazendeiros da Argentina, herdeiros da Alemanha, artistas americanos, executivos japoneses, o parasitismo internacional. O Natal virou mesmo uma festa. Bebida, folia, orgia, vadiagem.
O Primeiro Grito de Carnaval. Só rindo. Esses caras são engraçados.
Um maluco pulou da ponte Rio-Niterói e boiou doze horas até que uma lancha do Salvamar o encontrou. Não pegou nem resfriado.
Um incêndio num asilo matou quarenta velhos, as famílias celebraram.”

Um dia Ana ou Ana Palindrômica como o Cobrador refere-se a ela, vai procurá-lo no sobrado.

 “Conversamos na rua. Você está fugindo de mim?, ela pergunta. Mais ou menos, digo. Vou com ela pro sobrado. Dona Clotilde, estou com uma moça aqui, posso levar pro quarto? Meu filho, a casa é sua, faça o que quiser, só quero ver a moça.
Ficamos em pé ao lado da cama. Dona Clotilde olha para Ana um tempo enorme. Seus olhos se enchem de lágrimas. Eu rezava todas as noites, ela soluça, todas as noites para você encontrar uma moça como essa. Ela ergue os braços magros cobertos de finas pelancas para o alto, junta as mãos e diz, oh meu Deus, como vos agradeço!
Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha com sobrancelha, como no poema, e tiro a roupa dela e ela a minha e o corpo dela é tão lindo que sinto um aperto na garganta, lágrimas no meu rosto, olhos ardendo, minhas mãos tremem e agora estamos deitados, um no outro, entrançados, gemendo, e mais, e mais, sem parar, ela grita; a boca aberta, os dentes brancos como de um elefante jovem, ai, ai, adoro a tua obsessão!, ela grita, água e sal e porra jorram de nossos corpos, sem parar.
Agora, muito tempo depois, deitados olhando um para o outro hipnotizados até que anoitece e nossos rostos brilham no escuro e o perfume do corpo dela traspassa as paredes do quarto.
Ana acordou primeiro do que eu e a luz está acesa. Você só tem livros de poesia? E estas armas todas, pra quê? Ela pega a Magnum no armário, carne branca e aço negro, aponta pra mim. Sento na cama.
Quer atirar? pode atirar, a velha não vai ouvir. Mais para cima um pouco. Com a ponta do dedo suspendo o cano até a altura da minha testa. Aqui não dói.
Você já matou alguém? Ana aponta a arma pra minha testa.
Já.

Foi bom?
Foi.
Como?
Um alívio.
Como nós dois na cama?
Não, não, outra coisa. O outro lado disso.
Eu não tenho medo de você, Ana diz.
Nem eu de você. Eu te amo.
Conversamos até amanhecer. Sinto uma espécie de febre. Faço café pra Dona Clotilde e levo pra ela na cama. Vou sair com Ana, digo. Deus ouviu minhas preces, diz a velha entre goles.”

Nesse fragmento encontram-se algumas alusões maiakovskianas. Numa passagem ele diz: "Estamos no meu quarto, em pé, sobrancelha, / com sobrancelha, como no poema". Tem-se aí uma referência direta à Carta de Maiakovski a Tatiana Iácovlevla: "Na estatura / só você me ombreia, / fique, pois, / sobrancelha a sobrancelha, ao meu lado."

Dessa forma, ao mesmo tempo em que o personagem Cobrador é capaz de cortar a cabeça de um homem e sentir um imenso prazer com isso, pode amar uma mulher e fazer desse, um momento de grande lirismo.

Em meio a tantos crimes, Ana transformará a vida do Cobrador.

Ela é descrita como sendo uma moça fascinante, dona de uma beleza singular e rica, ou seja, ela é exatamente o estereótipo daqueles que eram assassinados cruelmente pelo personagem. Mas, desde o momento que a conhece, pensa unicamente em amá-la, jamais a enxerga como um dos seres de quem deveria se vingar. Assim, o Cobrador torna-se contraditório, pois parece abrir uma exceção em seus planos, rendendo-se a Ana e dividindo com ela sua vingança.

Decidem morar juntos e Ana apóia seus crimes.

Antes de conhecê-la, o marginal tinha o desejo alucinado de matar pessoas e se vingar daquilo que lhe foi tomado, mas ao conhecê-la, com seus conselhos, passa a encarar sua vingança como uma missão e planejam, juntos uma destruição em massa.

“Hoje é dia vinte e quatro de dezembro, dia do Baile de Natal ou Primeiro Grito de Carnaval. Ana Palindrômica saiu de casa e está morando comigo. Meu ódio agora é diferente. Tenho uma missão. Sempre tive uma missão e não sabia. Agora sei. Ana me ajudou a ver. Sei que se todo fodido fizesse como eu o mundo seria melhor e mais justo. Ana me ensinou a usar explosivos e acho que já estou preparado para essa mudança de escala. Matar um por um é coisa mística e disso eu me libertei. No Baile de Natal mataremos convencionalmente os que pudermos. Será o meu último gesto romântico inconsequente. Escolhemos para iniciar a nova fase os compristas nojentos de um supermercado da zona sul. Serão mor­tos por uma bomba de alto poder explosivo. Adeus, meu facão, adeus meu punhal, meu rifle, meu Colt Cobra, adeus minha Magnum, hoje será o último dia em que vocês serão usados. Beijo o meu facão. Explodirei as pessoas, adquirirei prestigio; não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo olhando as árvores; os troncos, a raiz, as folhas, a sombra, escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter, num pedaço de chão de terra batida. Eu as vi crescer no parque e me alegrava quando chovia e a terra se empapava de água, as folhas lavadas de chuva, o vento balançando os galhos, enquanto os carros dos canalhas passavam velozmente sem que eles olhas­sem para os lados. Já não perco meu tempo com sonhos.

O mundo inteiro saberá quem é você, quem somos nós, diz Ana.
Notícia: O Governador vai se fantasiar de Papai Noel. Notícia: menos festejos e mais meditação, vamos purificar o coração. Notícia: Não faltará cerveja. Não faltarão perus. Notícia: Os festejos natalinos causarão este ano mais vítimas de trânsito e de agressões do que nos anos anteriores. Policia e hospitais preparam-se para as comemorações de Natal. O Cardeal na televisão: a festa de Natal está deturpada, o seu sentido não é este, essa história de Papai Noel é uma invenção infeliz. O Cardeal afirma que Papai Noel é um palhaço fictício.
Véspera de Natal é um bom dia para essa gente pagar o que deve, diz Ana. O Papai Noel do baile eu mesmo quero matar com o facão, digo.
Leio para Ana o que escrevi, nosso manifesto de Natal, para os jornais. Nada de sair matando a esmo, sem objetivo definido. Eu não sabia o que queria, não buscava um resultado prático, meu ódio estava sendo desperdiçado. Eu estava certo nos meus impulsos, meu erro era não saber quem era o inimigo e por que era inimigo. Agora eu sei, Ana me ensinou. E o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo. É a síntese do nosso manifesto.
Ponho as armas numa mala. Ana atira tão bem quanto eu, só não sabe manejar o facão, mas essa arma agora é obsoleta. Damos até logo à Dona Clotilde. Botamos a mala no carro. Vamos ao Baile de Natal. Não faltará cerveja, nem perus. Nem sangue. Fecha-se um ciclo da minha vida e abre-se outro.”

O Cobrador, nesse momento, faz uma crítica sobre o capitalismo, que transforma uma festa de Natal, símbolo de toda a virtude humana em uma festa profana como o Primeiro Grito de Carnaval. Acrescenta, ainda, que os capitalistas fabricaram a figura do Papai Noel a fim de estimular a compra de presentes. Por isso, o Cobrador quer matá-lo pessoalmente.

Ana é fútil, e encontra no projeto de vingança de seu amado um sentido para sua própria existência, comandando a missão conforme seus próprios ideais e subjugando-o.

O Cobrador alegoriza a classe dos excluídos e Ana anseia pela transcendência de sua rotina vazia. A união do Cobrador e de Ana é, também, a própria característica da desestruturação social, pois não é apenas uma união de amor entre homem e mulher, mas a união de classes sociais totalmente opostas. No entanto, a aproximação dos dois não resolve o problema das diferenças, apenas destaca ainda mais a luta entre as classes sociais distintas e até mesmo dentro da mesma estratificação. Ana volta-se contra seu próprio grupo social e ainda ensina ao narrador as novas técnicas de destruição, que matam mais pessoas em menos tempo.

As ações individuais violentas do “cobrador”, no final, transformam-se em algo de maior amplitude, ele parte em companhia de Ana para executar morticínios; todavia, por mais que afirme: "Agora sei. Ana me ajudou a ver", em nenhum momento se vislumbra um revolucionário.

Ana será imprescindível para seu parceiro já que representa para o Cobrador a conquista de um direito readquirido, amar e ser amado. É o elo com a outra realidade. Quando os dois se unem em busca de um único objetivo: exterminar aqueles que roubaram o direito de viver de outras pessoas menos favorecidas. Eles ganham muita força e o que antes era só um sonho, agora vira um destino, apesar de completamente inverossímil. Ana será a companheira perfeita para essa revolução que antes era individual e utópica, a versão feminina do cobrador: a “cobradora”.

Seu amor por Ana não irá redimi-lo ou levá-lo para o caminho do “bem”, mas fará com que descubra em Ana alguém que compartilha de sua ideologia e que será uma parceira perfeita para sua saga justiceira. O que mais encanta o Cobrador ao seu respeito é o fato dela não sentir medo dele, sentimento que despertava nas outras mulheres. Porém, de certa forma, nota-se que o marginal tem vestígios de uma espécie de “cavalheirismo”, já que demonstra ter respeito, principalmente por essas duas mulheres: Dona Clotilde, a quem ajuda em sua pensão e Ana, por quem se apaixona: as únicas personagens do conto que têm nome. Ele vê nas duas suas proteções frente ao mundo que o perturba, um apoio feminino e maternal que diminui sua sensação de fragilidade. 

CONCLUSÃO:

No desfecho da história, o Cobrador encontra um sentido político para sua "missão". Ele percebe que seu ódio estava sendo desperdiçado e vaticina: "o meu exemplo deve ser seguido por outros, muitos outros, só assim mudaremos o mundo".

O Cobrador é um homem que, ao mesmo tempo em que critica o sistema social e os meios de comunicação de massa, quer fazer parte deles. Não como membro da elite, mas reconhecido como defensor da minoria marginalizada, eliminando essa elite e pondo seus atos nas primeiras páginas dos jornais. Tornando-se, assim, não apenas um mero representante da marginalidade, mas o vingador dos marginalizados:

"Explodirei as pessoas, adquirirei prestígio, não serei apenas o louco da Magnum. Também não sairei mais pelo parque do Flamengo [...] escolhendo a árvore que eu queria ter, que eu sempre quis ter num pedaço de chão de terra batida".
Para o personagem Cobrador, o mal do ser humano está centrado na questão econômica, e ele seria o justiceiro dos oprimidos. Porém não há organização, nem estratégia em suas ações; trata-se de uma revolução precária de alguém que deseja algo impossível. Em seu egocentrismo, o Cobrador enxerga a si próprio como uma espécie de “Messias” que veio para salvar o mundo e transformar a sociedade em uma organização justa.

 


 


segunda-feira, 29 de setembro de 2025

A PALAVRA ALGO, LUCI COLLIN, 2016

 

“Para mim não haveria sentido em escrever se a escrita fosse apenas uma expressão autocentrada. Escreve-se para comunicar, dividir, compartilhar experiências e emoções e assim, a tônica desse processo é sempre o outro. Ao escritor cabe a tarefa de observar o mundo e então, transpor a experiência da observação por meio das palavras. Logicamente é uma expressão subjetiva, mas que diz do mundo para tentar iluminar – filosoficamente, psicologicamente, socialmente – a experiência humana com suas fragilidades e forças, com suas convicções e incertezas. A literatura é um veículo potente para a ampliação da percepção das essencialidades da Vida – não só humana. ”


I – AUTORA:



- Literatura contemporânea paranaense

- Segundo lugar na categoria Poesia no 59º Prêmio Jabuti (2017), o mais tradicional prêmio literário brasileiro

- Autora curitibana

- Mais de 20 obras publicadas

- Transita por vários gêneros literários, mas escreve principalmente poesia e contos

- Escritora e professora aposentada do Departamento de Letras e Literatura da UFPR (Universidade Federal do Paraná)

- Também com formação em música (percussão e piano)

 

II – TÍTULO:

- Algo é um pronome indefinido e diz sobre alguma coisa indeterminada, que não se pode definir com precisão

“A Palavra Algo já nos dá uma pista imensa do que vai ser apresentado para gente. ‘Algo’ é um pronome indefinido, diz sobre uma coisa indeterminada, o título nos dá uma pista que ali no livro ela vai tratar de coisas que nos escapam, mas que é perseguido via palavra, via linguagem”, menciona.

- O título já nos dá pistas de que ali, no livro, será tratado de alguma coisa que escapa, mas que é perseguida pela poeta nos poemas, via palavra. Algo de indeterminado, indefinido, que foge das mãos, cujo entendimento total se esquiva

- O próprio título também é uma brincadeira com a ambiguidade: o livro não é sobre a palavra “algo” em si, mas sobre a dimensão da palavra, do escrever, da criação literária, principalmente da poesia, que toca muitas vezes em coisas não definíveis objetivamente

 

existem coisas que eu digo / no meio das coisas que escondo

vigoram silêncios imensos / no meio de certos estrondos

resistem horas inteiras / em meio a meio minuto

e dias e noites valendo / aquele real absurdo

e até o porto seguro é de um remanso relativo

que um lance de dados insiste / no seio do absoluto [...]

 

Algo aqui neste livro se faz, tanto quanto se diz. De que espécie será essa alguma coisa – essa coisa alguma? O que será o mistério “que reaparece / nesse aqui / sem nem sê-lo”? Como pode haver tais haveres que nem sequer são, como um pássaro que inadvertidamente transita por um “curso intransitivo”?


III – CARACTERÍSTICAS:

- Composto por 47 poemas de formas diversas

- Collin usa referências de outros autores e brinca com a intertextualidade para conduzir para uma mensagem única.

-  Trabalho poético com a linguagem, poemas que afirmam justamente a partir de uma tenaz negação. O próprio título exprime a ambivalência de um afirmar negando, que parece orientar – ou pelo menos sugerir.

- Influências do romantismo, simbolismo, modernismo e neoconcretismo.

- Metalinguagem: as palavras não têm importância, são apenas instrumentos para nos referirmos a algo.

- Cotidiano: a poesia vê a beleza imaginária do mundo com outros olhos, libertadora

- Linguagem culta e elaborada (palavras raras); quebra sintática das frases; as vezes linguagem coloquial (homenagem ao modernismo e a poesia marginal)

- Imagens surrealistas; enumeração caótica (mostrar variedade e complexidade); figuras de linguagem; musicalidade; poemas herméticos (difíceis de interpretar)

- Subjetividade: dificuldade de comunicação com a pessoa amada (diálogo difícil com o outro)

- Tom sarcástico, irônico e negativo (crítica a frieza do mundo atual)

-  Desacerto: as ações humanas e o mundo estão descompassados de seus propósitos e não funcionam mais

DEVERAS

o poeta finge

e enquanto isso

cigarras estouram

pontes caem

azaleias claudicam

édipos ressonam

vacinas vencem

a bolsa quebra e

o poeta finge

e enquanto isso

vagalhões explodem

o pão adoce

astros desviam-se

manadas inteiras se perdem

a noite range

o vento derruba ninhos e

o poeta finge

e enquanto isso

vozes racham

veias entopem

galeões afundam

medeias abatem crias

turvam-se as corredeiras

o sapato aperta e

o poeta finge

que as mãos cheias de súbitos

não são as suas

(Luci Collinem A palavra algo, p. 11)

 

 “AUTOPSICOGRAFIA”, FERNANDO PESSOA

O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

 

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.

(Fernando Pessoa em “Poesias”)

- Poema que abre o livro e anuncia um pouco de tudo o que está por vir: bagagem literária, referências mais clássicas (medeias, édipos) misturadas a assuntos do cotidiano (o sapato aperta).

- “DEVERAS” (advérbio) = A palavra deveras deriva da junção da preposição “de”, e “veras”, feminino plural de veros, com o sentido de verdadeiro.

- Utilizado para dar ênfase, destacar ou realçar o teor verdadeiro daquilo que se fala; de fato, enquanto o poeta finge, liberta o poeta da obrigação de reproduzir a realidade, abre espaço para a imaginação.

- “O poeta é um fingidor” = a poesia não necessariamente se envolve diretamente com o autor (subjetividade, vivência do poeta) e com os acontecimentos (objetividade, cotidiano).

- Repetição: dá a ideia de que, apesar de tudo, das coisas todas, das dores todas, o poeta continua fingindo, continua escrevendo, continua fazendo poesia...

“MEUS OITO ANOS”

AURORA DA MINHA VIDA

ORA                             IDA

OS ANOS TRAZEM AIS

(Luci Collinem A palavra algo, p. 67)

 

 “MEUS OITO ANOS”, DE CASIMIRO DE ABREU

Oh! que saudades que tenho

Da aurora da minha vida,

Da minha infância querida

Que os anos não trazem mais!

[...]