LAUSIMAR MARIA LAUS
nasceu em Itajaí, em 1916. Estudou em Florianópolis e seguiu ao Rio de Janeiro,
onde iniciou a carreira de escritora, educadora e jornalista.
Na década de 1950, colaborou com
vários jornais e revistas literárias modernistas, inclusive com o grupo
literário de Florianópolis, o Grupo Sul.
Em 1970 publicou seu primeiro romance,
intitulado de “Tempo Permitido”. Em
1975 publicou sua obra de maior sucesso: “O
guarda-roupa alemão”.
Escreveu também livros infantis; poesias;
contos crônicas e ensaios; trabalhou no Ministério da Educação e Saúde; e, em
1952, ganhou o segundo lugar no concurso da Academia Brasileira de Letras na
categoria de teses.
Morreu aos 63 anos, vítima de infarto,
no Rio de Janeiro.
Em alguns documentos, Lausimar Maria Laus é citada pelos nomes Lausimar
Laus Gomes e Lausimar Laus Conti.
II – ESCOLA
LITERÁRIA:
LAUSIMAR integra-se ao grupo dos Modernistas do Sul e está inserida na literatura
contemporânea como regionalista alemã, embora localizada no Vale do Itajaí.
A autora de “O guarda-roupa alemão” preocupou-se em
registrar as influências culturais trazidas pelos alemães (Goethe, Heine,
Verlaine), assim como o folclore catarinense presente na região numa tentativa
de compreender e aceitar à “sua nova terra”.
III – CONTEXTO
HISTÓRICO, SOCIAL E CULTURAL:
A obra narra à
colonização alemã no sul do Brasil a partir de 1850, a expulsão dos índios
e a demarcação de terras e prolonga-se até o período de nacionalização imposto
por Getúlio Vargas, quando a comunidade alemã sofre perseguições e repressões.
A autora
contextualiza os fatos históricos, sociais, políticos e econômicos dos
primeiros cem anos da cidade de Blumenau; registra as enchentes ocorridas em
1880 e em 1911; a industrialização da região (as fábricas Hering e Kormann); a
Guerra do Paraguai; a Segunda Guerra Mundial; os choques entre as culturas, o
preconceito quanto à língua e a adaptação da raça, gênero e nação na
conciliação de culturas diferenciadas.
IV - LINGUAGEM:
Até meados do
século XX havia uma grande produção literária em língua alemã nas regiões colonizadas
do Brasil. Depois da grande onda de nacionalismo, a língua alemã foi perseguida
e descriminalizada pela obrigatoriedade de se falar português e todo conteúdo criado em praticamente um século de imigração
alemão no Brasil foi perdido.
LAUSIMAR
através de uma linguagem simples, híbrida, lírica e irônica mesclou canções dos
canoeiros; o modo de falar catarinense; o linguajar de origem açoriana, o tema
da imigração; a situação dos colonizadores numa região “brasileira” e as
dificuldades enfrentadas pela comunidade alemã que falava um português quase
ilegível, utilizando-se de códigos metafóricos, decido ao preconceito existente
em todas as culturas diferenciadas.
A relação ambígua entre os dois idiomas e seus falantes
apresenta a importância da literatura em língua alemã para se compreender o
contexto histórico do século passado, a influência das campanhas nacionalistas
na utilização do idioma alemão e revitalizar a questão da literatura em língua
alemã e de seus descendentes, produzida no sul do Brasil, antes da Era Getúlio.
Dessa forma, LAUSIMAR nos apresenta a relação entre a muttersprache (língua materna) e a
freumdsprache (língua estrangeira), ou seja, a relação do idioma alemão e
do português em tempos da colônia alemã de Blumenau.
HOMIG, personagem-narrador constrói toda a
história de sua família a partir de lembranças que se cruzam no tempo, no
espaço e na linguagem: a língua alemã (dentro de casa), a língua portuguesa (na
escola), a língua francesa (da avó indígena).
V – FOCO
NARRATIVO:
A narrativa não é linear e segue de
acordo com o fluxo descontínuo dos pensamentos da personagem, utilizando-se
vários pontos de vistas que se misturam em uma espécie de fusão de terceira e
primeira pessoas.
Partes são narradas em primeira pessoa pelo
próprio Homig e outras extraídas do diário de sua tia Hilda e de seu avô Klaus,
de onde partem os pontos de vista de sua avó Sacramento e da professora Lula.
O narrador onisciente em terceira
pessoa apresenta as sensações, os sentimentos e as reflexões de Homig sobre sua
história de vida.
O velho Guarda-roupa
alemão trazido da pátria distante, o Kleidrschrank ou o Kleid, como o chamavam para
economizar esforços nas sílabas ásperas, recebe um tratamento essencial e
humanizador na narrativa de Homig; afinal, acompanhou a trajetória da família
Ziegel e guarda os segredos mais íntimos da mesma durante várias décadas.
Dessa forma,
conclui-se que o narrador é heterodiegético, narra o tempo em que Homig fica à frente
do guarda-roupa, recordando de todo o passado nesses cem anos.
“Homig, um metro e oitenta de homem, continuava: - Tu vês,
Kleidrschrank? Aqui está o último dos Ziegel! E agora? Tu vais continuar. Eu
sei. A casa vai ser vendida, meu velho. Aonde te levar, se este é o teu lugar?
Eu? Sei lá para onde vou. Bem mais novo que tu a vida me entortou todo. Com
sessenta, não presto mais nem para guardar as coisas. O homem foi feito para sentir.
(...) A cidade mudou. Os jardins também. Blumenau “O campo de flores” do velho
Ziegel virou fumaça de fábricas. As casas da velha colônia foram destruídas.”
VI –
TEMPO:
Na obra encontramos
dois tempos: o tempo cronológico e o psicológico.
A família Ziegel é o
centro da narrativa, porém várias outras histórias familiares cruzam-se entre
si, tecendo, assim, um painel
cronológico dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau; fatos históricos
(a chegada dos alemães, por volta de 1850; o extermínio dos índios daquela
região até a Segunda Guerra e o período de nacionalização imposta por Getúlio
por volta de 1940); as viagens e o cotidiano dos imigrantes.
“Era tarde quando acordei, suando
por todos os poros. Tia Clara preparava-se para ir ao hospital visitar seu
Tibúrcio e levar Menininha para tomar a benção. Cedo já o empregado do Peitter
tinha trazido o recado de dona Titã: era para tia Maria Clara levar a Menininha
e um prato de comida para ela.”
E o tempo psicológico que narra às memórias; o saudosismo; as
reflexões; as angústias; os conflitos existenciais; os sentimentos de Homig; as
lembranças das enchentes que assombravam o Vale; as humilhações e os temores em
se viver em uma nova terra.
“Ela mesma tinha mágoa das amargas
palavras que dissera na hora das raivas. Mas, que fazer, quando um marido
pobre, com cinco filhos se mete na política? Só mesmo metendo a língua! Tinha
pesar sim. A casa tivera de ser hipotecada. A casa. Mas as terras, nem mais um
pedaço!”
“À
noitinha, todos os que podiam foram à capela para a benção. Chorava-se e
rezava-se, enquanto a chuva, lá fora, em cantochão, continuava em fúria. As vozes saíam
límpidas, num cristal penetrante até a alma. Eram rezas de dor, eram cânticos
de socorro, eram lamentações de desespero.”
VII – ESPAÇO:
“Blumenau parece um jardim, não é dona Maria
Clara? Não sei como tudo pode florir o ano inteiro. O calor do verão não mata a
verdura e o colorido. Sempre penso que os alemães de tanto estudar as flores,
sabem o que plantar em cada estação. O vale e o rio, entre as montanhas que se
alinham em volta, dão a impressão de outro país, outras terras, que a gente
aprende a ver no mapa e na história Universal. As casas são diferentes a maior
parte com tijolinhos vermelhos, com riscos pretos de madeira, em moldura
geométrica, formando ângulos perpendiculares. Lá em cima, a janela principal do
segundo andar tem sempre uma jardineira cheia de flores.”
O espaço geográfico de “O Guarda-roupa alemão” compreende as
cidades de Blumenau e Itajaí, retratando a imigração alemã em Santa Catarina,
tendo como referência a casa da família Ziegel. Os ambientes formados naquela
velha casa situam-se diante de um centenário guarda-roupa alemão.
VIII –
PERSONAGENS:
As personagens
são retratadas através do fluxo da consciência de Homig, centralizadas nas
personagens femininas e caracterizadas por suas personalidades fortes e
marcantes. Homig abre uma das gavetas do Guarda-roupa e revive toda a história
dos membros de sua família
HOMIG é a personagem principal da
história e o último descendente dos Ziegel. Ele é responsável por desvendar o
grande enigma da narrativa: abrir a gaveta do velho Guarda-roupa alemão, que
acompanha a família por muitas gerações, cuja chave a matriarca, fiel à sua
raça, levou para o caixão junto com o seu segredo e através de suas reminiscências
a história se desenrolará. Sua mãe morreu moça, numa epidemia da gripe
espanhola, e seu pai na Segunda Guerra Mundial.
Homig recorda a história de amor entre o avô KLAUS e sua avó SACRAMENTO.
Seu avô era um
alemão bonito, inteligente, bondoso e defensor dos índios. Uma vez ao demarcar
terras na região de Tijucas foi atraído por uma cantoria de meninas num colégio
de freiras. Tocou o sino, pediu um copo d’água e foi servido por uma menina
chamava MARIA DO SACRAMENTO. No dia seguinte, voltou até o colégio e a pediu em casamento. Na época
SACRAMENTO tinha doze anos.
SACRAMENTO era pura,
ingênua e desconhecia o sentido de ser esposa e mulher. Índia, que devido à
invasão dos alemães, tornara-se órfã de pai e mãe e que foi recolhida a um
convento.
A família alemã
repugnou a união. A mãe extremamente preconceituosa não aceitava o casamento do
filho com uma “bugra”, só aceitava noras alemãs para o seio da família. SACRAMENTO
sofreu discriminação quanto à compreensão da língua, à adaptação aos novos
costumes, à vida de casada e, principalmente, quanto à rejeição por parte de
Ethel, mãe de Klaus.
Trabalhava dia e noite, dormia isolada
num quarto nos fundos, só recebia ordens e não conseguia se comunicar, pois a
família falava em alemão e ela desconhecia o idioma.
Klaus a respeitava
e mantinha-se distante dela. Um dia, explicou-lhe sobre ao ciclo menstrual, e
dias depois, SACRAMENTO comunica-lhe que “o rio vermelho” viera visitá-la. Só
depois disso, concretizaram a sua união.
“Ali, no imenso quarto de núpcias,
sem as paredes dos homens, cujo teto era um céu chumbado de nuvens... Klaus
deitou Sacramento em cima das margaridas. A seu lado ficou-lhe contando o que é
casamento, o que é ser um só em dois...”
Klaus
sempre foi carinhoso com sua esposa, seus filhos e netos e tornou-se referência
na criação e educação de Homig. Carinhosa, compreensiva e religiosa, sua
ingenuidade e a ternura marcaram todos os episódios em que esteve envolvida, e
estas são as qualidades que fixaram nas lembranças de Homig.
ETHEL, a GROSSMUTTER:
bisavó de Homig e matriarca da família Ziegel. Representa a seriedade
típica alemã, mulher trabalhadora, bonita, enérgica, disciplinada e protetora
dos seus. Era quem regia a casa com autoritarismo e competência. Fazia-se de
forte, mas na realidade era uma pessoa frágil, saudosista, nacionalista (amava
loucamente sua pátria e defendia a pureza da raça e da sua cultura), sonhadora,
triste, artista (Homig encontrou alguns desenhos de sua autoria escondidos numa
das gavetas do guarda-roupa) e preconceituosa (não aceitou sua filha Hilda ter
engravidado do negro Bube).
A personagem é
responsável pelo mistério da história, pois guardava o grande segredo familiar
dentro do Guarda-roupa e que só poderia ser revelado pelo último descendente
dos Ziegel.
“Mas como a
bisavó fora bonita! Puxa vida! Até que aquele cabelo complicado, com uma grande
igrette na cabeça, lhe dava uma graça estupenda. A legenda diz que ela nascera
em Paris, de pais alemães e era autora de composições, onde se harmonizavam
cores de extrema suavidade.”
GROSSMUTTER
“Tà certo. E a gente nunca soube da
genialidade da Grossmutter. Pelo menos vó Sacramento só contava sobre aquela
mulher forte como granito. Era lidando. Plantando flores, mas também plantando
aipim. O morango. Cavando a terra. O avental sempre muito branco, rodeado de
bordado inglês. Pesadona. Vermelha. Dando ordens. Organizando as festas da
colônia. Aconselhando o marido. Nunca em jeito macio.”
HILDA é a filha mais nova de Ethel, personagem
secundária e marginalizada perante a sociedade.
“Pegava o cavalo
bravo no mato, tirava a roupa toda, montava nua em pêlo e cavalgava a vontade.
O falatório da vizinhança.”
Amante da liberdade,
rebelde, favorável a prática do amor-livre e desprendida de qualquer
preconceito, regras e moralismo. Provocava comentários maldosos na população e
era conhecida por “vagabunda e endemoniada”.
Em seu diário relata seus questionamentos
sobre a vida e os códigos que a regem.
Hilda acredita na natureza das coisas e nos sentimentos como obras de
Deus e concluí que não podem ser pecados. Todos acreditam que voltou à
Alemanha, segundo ordens de sua mãe, mas seu verdadeiro destino só é revelado
no final do romance.
LULA: professora
brasileira que ensinava a língua portuguesa na rede pública. Através dessa
personagem é narrada a história dos brasileiros, descendentes de açorianos e de
espanhóis.
Lula mudou-se de
Itajaí onde vivia com a sua avó e seus irmãos depois de passar por problemas
financeiros e veio residir na casa de sua tia Maria, junto com suas duas
primas, a Cidinha e a Dora. A personagem é citada no diário de Klaus e por meio
da mesma, são retratados: a enchente de 1911, as perdas, o abandono das casas,
o refúgio da população para o convento das irmãs e o “caso de Menininha”.
MENININHA: filha
adotiva de seu Tibúrcio e dona Tita, moradores de Itajaí e economicamente
estabilizado.
Foi criada com muito zelo e paternalismo. Seus pais sempre
super protetores, não a deixavam sair sozinha de casa, nem ter muitas amizades.
Em uma ocasião, devido a uma cirurgia de hérnia do seu Tibúrcio, MENININHA foi
deixada aos cuidados de D. Maria Clara, pessoa de confiança da família.
MENININHA vendo-se livre das amarras, da fiscalização de
seus pais e avessa aos moldes da sociedade aproveitou-se da oportunidade para
viver suas aventuras. Lula descobre seus encontros, às escondidas, com um homem
casado, seu Ataliba, foguista do “vaporzinho” Blumenau. MENININHA confessa a
Lula sua paixão pela vida e suas experiências homossexuais. No final, MENININHA
casa-se, mas nunca abandona suas atividades.
RALF: Primo e amigo de Homig. Assistiu Homig até os seus últimos
momentos.
Foi quem acabou descobrindo o
segredo destinado “ao último dos Ziegel”
HERNA: Tia de
Klaus. Viajara da Alemanha para batizar Hilda.
TIA CLARA, DORA E
CIDINHA: Tia e primas de Lula. Personagens generosas que acolheram e
apoiaram Lula, quando ela veio morar em Blumenau.
DR. BÜCHMANN: médico
alemão.
ZECA: Empregado do Vapor Blumenau. Personagem solidária e amiga.
Ajudou as pessoas afetadas pela enchente.
ATALIBA: Foguista do Vapor Blumenau. Homem adúltero; casado, mas,
mantém um relacionamento com Menininha.
IX – ENREDO:
"O armário. Tinha sido, toda
a vida, o seu grande problema. Naquela tarde, o canto escuro. O armário. Sua
forma geométrica. Seu espelho geométrico.
- Por quê? Por
que ainda o armário?
Não sabia.
Havia dias e horas de multidões e mutilações. Sabia que em cada segundo lhe ia
faltando uma partícula a mais, cá dentro. Mutilação perfeita. A alma se
esvaziando. Tudo se ia soltando a esmo.
Procurou, na
manhã imperfeita, o sinal. O acordar: era o morrer. O próprio sentido do fim. O
sinal se perdera ao acaso. E como viver sem o sinal?
Levantou a
cabeça para o reflexo tênue, meio azulado. A madrugada chamava para a angústia.
Que era, afinal, angústia? Aquilo denso. Compacto. Tinha lembranças de como
foram outros dias simples. Por que não voltar a ser aquele recipiente? Um vaso
de flores? Claro. A mesma aparência viva na massa vítrea. O gesto solto para os
outros.
Ele perdera o
sinal. Sabia que era para sempre. Sem remédio.
Os cabelos,
perpendicularmente. Os olhos oblíquos. Linhas, linhas, linhas. Até as rugas do
meio da testa: um freio mostrando o esforço. Não importa. O pensamento cria
outras veredas. Não é fácil perguntar, quando nada se responde.
Ethel: o rosto
ali no espelho. A forma octogonal da transparência furando escombros. O
tom escuro do jacarandá: o passaporte."
A narrativa de “O Guarda-roupa alemão” não enfoca
somente a história da FAMÍLIA ZIEGEL,
imigrantes alemães que vieram colonizar Santa Catarina; mas, várias outras histórias familiares que se
cruzam entre si, tecendo, assim, um painel do contexto histórico, social,
econômico e cultural dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau, marcado pela
feminilidade e suas relações ideológicas e de poder; fundindo
ficção com fatos históricos e retratando fielmente as questões de uma época de
dificuldades, de esperanças e de preconceitos.
A história é
narrada, inicialmente, por Homig, o último descendente dos Ziegel, homem de
sessenta anos, solteiro, de grande sensibilidade, fragilizado por uma doença no
coração e consciente que seu fim estava próximo, assim como a história dos
Ziegel.
O livro, no
entanto, tem como personagem central Kleid, o velho Guarda-roupa que está
presente na família Ziegel, desde a sua vinda da Alemanha, trazido por Ervin
Ziegel e Ethel Moltke.
Kleid acompanhou
todas as gerações dos Ziegel, sempre no mesmo lugar, guardando documentos
importantes, enxovais e segredos.
Homig acompanha a
venda da casa onde viveu toda sua vida e sabendo que o Guarda-roupa ficaria
ali, porque lá era seu lugar; e, tendo a incumbência de abrir uma gaveta do
mesmo, a qual foi trancada por sua bisavó ao falecer, senta-se em frente ao
Kleid e decide realizar o desejo da sua bisavó. A atitude de abrir a gaveta é
hesitada várias vezes e durante o período de um dia para outro, nostalgicamente,
toda a história de sua família e de seu povo vem-lhe à lembrança, registrados
em diários e que, ao serem lidos, por serem tão bem descritos, poderiam ser
vivenciados.
O Guarda-roupa, o
Kleid, é personalizado, humanizado e simboliza metaforicamente a união
familiar, a incerteza, o deslocamento para o desconhecido, a preservação dos
costumes, os conflitos culturais alemão, o cotidiano de cada personagem, a
miscigenação entre índios, brasileiros e alemães e a adequação imposta pelo
novo meio, enfim, a trajetória da imigração alemã no Brasil.
Na verdade, havia
mais um primo que ainda estava vivo, Ralf. Dez anos mais velho que Homig, que
chegou da Alemanha, já adulto e formado e viveu apenas parte da história dos
Ziegel em Blumenau.
Homig conversa com
o Guarda-roupa com intimidade e emociona-se ao recordar de seus familiares e de
sua infância: a querida avó Sacramento e a chegada da tia Herna, que viera da
Alemanha para batizar Hilda, uma moça linda e cheia de vida, que já contava com
16 anos e aguardava a presença da tia para ser batizada e “tirar o demônio do
seu corpo”. Hilda era libertina e adepta a hábitos censurados e como sua cura
não se realizou, foi enviada à Alemanha para evitar mais comentários maldosos
da população.
Recordou-se da mãe
mandando comprar “zuckar na fenda”, a paixão pela vizinha Diva, que não ligava
pra ele, as aulas de alemão dadas pelo padre Melcher e sua a inseparável vara
de marmelo para dar-lhes nas pernas quando não soubessem pronunciar as
palavras:
“- Atenção,
bandoleiro. Tu não pareces filho do Klaus e neto dos Ziegel. Tu tens tudo de
índio. Até esses olhos puxados e esse pensamento aventureiro que se perde...”
... “Eu gozava a minha imaginação. A vara do padre era o garfo do diabo...
coitado do padre, eu era endiabrado.”
Seus pensamentos
voam quando ele próprio foi enviado à Alemanha para estudar.
“Voltei depois de dois anos. Fui outra vez
(universidade)... O que eu queria, era beber vinho e cerveja... Eu sempre fui
um grande boêmio. A figura de Diva era um tormento agradável. Quando ficava
bêbado, escrevia cartas e cartas...nunca levava ao correio... eu já estava um
galalau de 16 anos... a Alemanha passava pela maior crise da história, o
desemprego era geral, o povo em angústia, esperando o aparecimento de um
líder... Surgiu a figura de Hitler...Só se falava no homem de bigodinho
curto... Confesso que nunca gostei muito da cara dele, mas ia com os camaradas
mais velhos ouvir sua palavra em praça pública. Ri sozinho, quando tirei a
roupa de Hitler e o vesti de diabo, como fazia com o padre. Escrevi a Mama à vó
Sacramento: Se vocês não me mandarem uma passagem, vou embora a nado”.
Homig voltara da
Alemanha em 1933. Hitler já possuía prestígio. No Brasil, voltaram a funcionar
as 2500 escolas alemãs que haviam fechado durante a Primeira Guerra. Porém, somente
os professores treinados na ideologia nazista é que podiam lecionar. O material
didático era importado e fiel ao pensamento da “nova” Alemanha, para introduzir
tudo o que ditava o III Reich (lealdade à Alemanha nazista).
Nesta época Ethel
apresentava transtornos mentais e vivia perguntando sobre Hilda. O partido
nazista estava em plena ascensão e Homig não aguentava o radicalismo do
movimento.
Ethel foi
irredutível e insistia que Homig estudasse engenharia e casa-se com uma noiva
alemã. A avó Sacramento conseguiu o dinheiro para a sua passagem de volta,
deixando-o eternamente grato.
“Vó Sacramento era doce “Homig, mais feliz
ficarei contigo ao meu lado...”
Homig voltou ao
Brasil e a Grossmutter morreu. Seu
desejo era ser enterrada em Berlim, mas diante da impossibilidade de
embalsamá-la, acabou sendo enterrada em um jardim, ao lado de uma aroeira que
ela tanto amava.
A personagem tenta se desvincular dessas
memórias, mas, as lembranças trancadas no Guarda-roupa insistiam em se
libertar.
“Homig volta ao presente e começa a repensar
sua condição: por que não se esquecia de tudo? Lembra do bisavô; seu diário,
suas manias, seu amor à pátria distante, tudo isso contado pela avó Sacramento.
Olha para o Kleid, abre outra gaveta, tira a lembrança da avó e descobre-lhe
pintora. Observara algumas fotos e vira como ela era bonita. Mulher exigente,
prática, mas que sabia amar à sua maneira. No fim da vida, teve arteriosclerose
e Homig ria de suas loucuras.”
Então, tenta
fixar-se no presente e refletir sobre sua condição. Mas, os pensamentos
insistem levá-lo aos tempos sofríveis: a II Guerra Mundial; a repressão sofrida
pelos imigrantes alemães, devido à ascensão de Hitler; o decreto de Getúlio
Vargas, durante o Estado Novo, fechando as escolas estrangeiras e exigindo a
obrigatoriedade da língua portuguesa nas colônias alemãs; as violências
ocorridas nesta época, inclusive ao negro Bube por ser brasileiro e falar
somente alemão e a quase falência do hotel dos Weber por ter contratado
Isolina, a recepcionista que falava português. O medo tomava conta. Uns
concordavam com Getúlio, outros não.
Folheando o diário
do bisavô, Homig recorda-se de Lula, a professora que viera de Itajaí com a
missão de ensinar português aos alemães e chegava a entender o porquê de tanta
repressão: eles insistiam em dizer que eram alemães, falar a língua alemã...
mesmo tendo nascido aqui. Era necessário ter muita paciência.
Lula morava com a
tia Clara e com as primas Cidinha e Dora.
Certa vez, Zeca veio
bater-lhe à porta, pedindo um favor: ficar com a filha de criação Menininha,
enquanto a esposa ficava no hospital com seu Tibúrcio. D. Clara aceitou.
Menininha era criada com muitos cuidados, vivia praticamente presa. Descobriram
que Menininha estava de caso com Ataliba, homem casado. Cidinha ficou
indignada. Ataliba dava náuseas em Cidinha e Lula, que sabiam de tudo entre ele
e a garota.
Depois, lembrou-se da enchente do Itajaí-Açú,
em 1911, que arruinou a economia local e trouxe muitos sofrimentos à população,
como a falta de alimentos, isolamento de comunidades, que
se viam obrigadas a vender seus pertences para sobreviver e muitas vezes
precisavam abandonar suas casas e procurar abrigo no convento.
Lá havia muita
gente, vítimas da enchente. Menininha começou a ter um ataque de riso; o médico
a examinou e diagnosticou: ataque histérico.
As pessoas se
repartiam em cuidados.
Quem estava bem, ajudava os doentes. “Os Ziegel foram os que mais ajudaram...” Lula ficou cuidando de
Menininha.
A
mulher de Ataliba se suicidou. Menininha não se abalou e ainda contou que
sentia uma paixão ardente por Zoraide, uma amiga.
De volta ao presente, Homig olha para
o Kleid. Levanta-se, passa as mãos pelos cabelos, olha para a casa que, em
breve, não moraria mais e lembra-se que Kleid havia resistido à enchente de
1911. Ficara submerso, mas não deixou entrar uma gota sequer, conservando o que
carregava dentro de si intacto. Por isso, a Grossmutter havia deixado o seu
segredo dentro dele.
Pensa em Hilda, a
incompreendida e seu diário, que fora encontrado jogado no sótão, muito tempo
depois da morte das avós.
“Por onde andaria Hilda?... O tempo, que
fizera dela? Tantas rugas como as da vó Sacramento? Que mistério a envolvera
depois da última estada em Blumenau? Só se sabia, através da Grossmutter, que
ela voltara para sempre à Alemanha.”
Homig volta novamente à cadeira em
frente ao Kleid, relembrou-se dos vizinhos, a família de Diva, as superstições,
as rezas da avó Sacramento e os casos contados por ela da grande enchente de
1880 e de 1911.
“As
águas do rio Itajaí-Açu subiram até uma altura de 15 metros... arrastaram
tudo... Blumenau foi atingida por uma grande desgraça.”
As pessoas tinham que reconstruir a cidade
após a catástrofe. O escândalo de Menininha vinha-lhe à cabeça. Acabara fugindo
para a “Fazenda”, lugar das mulheres da vida em Itajaí. Certo dia,
soube-se que um rapaz chamado Eurípedes, muito honesto, apaixonara-se por ela e
se casaram. Tiveram três filhos, tinham dinheiro. Mas, Menininha não renegou
suas origens: de vez em quando, fugia com o marido de alguém. Quando voltava, o
marido tratava dela, mandava-a ir ao dentista, pois voltava desdentada e quando
o filho do outro nascia, era criado junto com os seus; depois, ela fugia de
novo... O povo dizia que ele era um santo.
Homig misturava as imagens da enchente com
pessoas, coisas e a conversa de Hilda, ainda em cima do cavalo, tudo gravado no
“diário íntimo” de seu avô Klaus. Hilda era vista como vagabunda, por fazer as
coisas que lhe davam vontade.
“Homig verificava cada linha do Kleid: -
Claro, Kleid. Para mim tu és mais que uma pessoa. Tu é a única coisa que me
compreende. E começa a se lembrar de Hilda: Hilda era um enigma? Acho que tinha
razão. A vida é para ser vivida. Naquele dia, ela vinha correndo de cabelo
solto. Cabelo solto, para mutter, era sinal de mulher da vida. Ela falava
sozinha...” Hilda era uma mulher bonita, alta, loira... enlouquecia os homens.
Homig era “guri pequeno”, mas se encantou pela moça: “ela cavalgava nuinha da
silva”.
Homig relembra quando a tia Herna precisou
fazer uma transfusão de sangue e o único que tinha sangue igual ao dela era um
mulato, Praxedes. Ao saber disso, ela disse que preferia morrer a receber
sangue brasileiro e os médicos tiveram que aplicar uma injeção de calmante para
a conclusão da transfusão.
Em seguida, o primo Ralf contou as novidades a
Homig: Lula casara-se e estava cheia de filhos; Menininha continuava enganando
o marido. A guerra havia acabado... Por onde andaria Hilda? Ao lembrar o fim da
guerra, os dois primos falaram da barbaridade feita pelos soldados: pegaram seu
Werther, o hoteleiro adorador de Hitler, penduraram-lhe um saco de areia no
pescoço, fizeram-no andar por longa distância. De volta à praça, mais morto do
que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro e obrigado a beber óleo de
carro.
Então, Homig pede
ajuda ao primo para desvendar o mistério preservado por tantos anos, abrindo a
gaveta de Kleid.
Sentados, olham
para o Kleid. Era chegado o momento. Homig brinda com um copo de conhaque, e
outro, e mais outro... Ralf pega o pé-de-cabra e abre a gaveta.
Atentos percebem que
há uma caixinha de jacarandá com incrustações de prata nos cantos, em forma de
triângulos e, em cima da tampa, um retângulo pequeno, onde está gravado um
nome: Hilda.
Ralf a retirou e
colocou-a em cima do piano e verificou que havia uma carta lá dentro, com o
subscrito: “Ao último dos Ziegel.”
Homig pegou o
envelope, pôs no bolso, enquanto Ralf olhava o tesouro em moedas lá existentes.
Homig já bastante debilitado físico e emocionalmente, é levado para o hospital e
precisa ser internado com urgência sem antes entregar a chave da gaveta ao
primo.
Não podia abrir aquela
carta. Seu coração não aguenta, e ele cai desfalecido. O médico diz a Ralf que ele não podia beber,
mas era teimoso. Ralf vai embora com a certeza de nunca mais ver o primo vivo.
Vai para casa, abre a caixinha e toma
em suas mãos um pano de linho. Ao abri-lo, fica chocado com a descoberta
mórbida que fez.
Tratava-se de uma
ossada humana, quase desfeita, um pequeno crânio sorrindo patético com dentes
certos e finos. Um cacho loiro envelhecido, meio esbranquiçado, posto num dos
lados da caixa e acompanhada da seguinte carta.
Blumenau, 18 de janeiro de 1920.
Não me condenem. Hilda era como eu gostaria de
ter sido: fiel a si mesma e às suas convicções. Era um pássaro. Não era gente.
Há muito sabia de seus encontros com o negro Bube. Só quero dizer que ela
estava grávida dele e isso não deveria acontecer. Uma raça é uma raça! Fi-la
acreditar que ia pô-la num navio para a Alemanha, quando a levei no carro
naquele dia. Sem que ninguém soubesse, pus uma pá na mala do carro. No caminho
inventei um aquecimento no motor e pedi para que ela olhasse o que era. Enquanto
ela fazia isso, pus o carro em movimento, fazendo-a cair sob as rodas. Somente
cinco anos depois, desenterrei-a e tirei seus ossos. Aí estão.
Que Deus me perdoe. Enterre-os debaixo da
aroeira brava, onde os pássaros cantam e o sol não castiga.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS:
. Homig
representa o processo de construção da cultura híbrida na busca da identidade
cultural e seus confrontos identitários desenvolvidos ao longo da obra.
. A narrativa
apresenta contraditórias sensações: tristezas; melancolias; mortes; desavenças;
angústias; preocupações e repressões políticas. Mas, também, festas, alegrias,
casamentos e nascimentos.
“Quando cheguei na Velha, tia
Maria Clara chorava. Cidinha ainda não tinha aparecido, e ela me apertou tanto,
que seu vestido ficou molhado também. Na sala, Dora, Menininha, o Zeca de
Blumenau, seu João Born, o coletor estadual, que era grande amigo nosso e tinha
vindo de Florianópolis ao mesmo tempo em que nós viemos de Itajaí.”
“Naquela noite era festa na
colônia. A caça fora farta. A grande fogueira trazia o clarão até a fresta,
onde a cortina fina e fluida se abria levemente. De repente, de cansaço
dormira. Um hálito de licor de framboesa lhe recheava a face, um leve perpassar
em seu rosto, como a suave brisa de abril.”
. A obra dá destaque às tensões do
Estado Novo com a perseguição aos alemães, o medo daí decorrente, as
humilhações impostas a um dos protagonistas, o velho Werther no final da
guerra: Uma avalanche de gente reunida na praça. Banda de música e tudo
(...), vinha o velho Werther com um saco pendurado no pescoço, com a cara de
Hitler desenhada em cima. Na
praça, (...), mais morto do que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro
(...) e obrigado a beber óleo de carro.
. As ideias nazistas e neonazistas;
as perseguições políticas; o amor realizado; o homossexualismo; o adultério e o
racismo.
. O clímax com o desfecho final
da obra.
. O romance aborda várias temáticas
sobre a colonização alemã na região de Blumenau. A demarcação de terras e o
confronto com os índios são acontecimentos narrados pelo avô Klaus, o qual
mostra respeito pela cultura nativa e acaba apaixonando-se por uma indiazinha
de doze anos criada por freiras francesas.
. A dedicação das mulheres à
organização familiar, à educação dos filhos e à manutenção da cultura
germânica, pela qual têm tanto orgulho. As descrições das casas, dos jardins,
das vestimentas, da própria cidade, de seus costumes e tradições.
. Choque entre as culturas
distintas; o saudosismo e a nostalgia dos imigrantes pela pátria distante e assimilação
de diferentes culturas pelas novas gerações.
. Caricatura do imigrante alemão,
atingindo o cômico.
Herna necessitando uma transfusão de sangue,
tem como único doador compatível o mulato Praxedes, tripulante do “vaporzinho”
Blumenau. Herna, alemã nacionalista, entusiasta da “Nova ordem” proposta por
Hitler, não aceitava misturar seu sangue com o de um mulato brasileiro:
“Brasileiro tem sífilis...”. O doutor Büchmann, ginecologista conceituado e
conhecido por sua personalidade autoritária, acaba usando da força física para
realizar tal transfusão, inclusive com as enfermeiras, as quais recebiam
caneladas, quando não faziam como foi mandado. Para complicar a situação, o
voluntário a salvar a vida da alemã, em meio a tantos xingamentos, acaba
desistindo da ação por achar um desrespeito à sua raça:
“Sabe o que mais, seu dotô? Eu vou
mais é m’imbora. Deixa esse diabo morrê de uma vez...fico dês das 6 da manhã im
jejum pra sarvá uma merda dessas e ela ainda me chama de sifílico?... O Dr.
Büchmann, vermelho como um pimentão, os dentes cerrados, a boca aberta, agarrou
o mulato, deu um safanão, jogou-o na cama e disse com todas as suas forças e
todos os seus erres: “Fai a merrrdaaa!”. O Praxedes, de mulato que era, passou
a meio desbotado...”
. Omissão da
participação da cultura indígena na construção do painel cultural brasileiro No
caso das regiões de colonização européia do Sul do Brasil, e mais
especificamente ainda, no Estado de Santa Catarina, esta memória chega mesmo a
ser “esquecida” pela historiografia e pelas construções identitárias de caráter
étnico correntes na atualidade do Estado.