sábado, 13 de setembro de 2025

POEMA TIRADO DE UMA NOTÍCIA DE JORNAL, In: Libertinagem, de Manuel Bandeira

 


João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia num barraco sem [número

Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro

Bebeu

Cantou

Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

 

(In: Libertinagem, de Manuel Bandeira)


“Poema tirado de uma notícia de jornal” é um poema narrativo, onde o eu lírico se transforma em uma informação jornalística e rotineira de suicídio.

A narração em 3ª pessoa é neutra, imparcial e objetiva confrontando a linguagem poética (versos, ritmos poéticos e musicalidade) com o tom prosaico - uma paródia da linguagem jornalística, denunciando o destino violento de pessoas simples.

João Gostoso não possui características precisas: sem nome próprio (representa uma alegoria de muitos brasileiros que vivem na marginalidade das grandes cidades brasileiras. “Gostoso” é provavelmente, uma alcunha); sem moradia fixa (“morava no morro da Babilônia num barraco sem número”) e sem emprego definido (“carregador de feira livre”) cumpre seu destino para a morte e transforma-se num anonimato de ocorrência policial, virada do avesso pela indeterminação.

Aos versos longos iniciais e de ritmo aliterante (“eRa  caRRegadoR de feiRa livRe e moRava no moRRo da Babilônia num baRRaco sem númeRo”); segue a expressão “uma noite” fugindo da precisão objetiva da notícia midiática; para em seguida, apresentarem versos dissílabos, que culminam num único verso horizontal (a superfície da lagoa), representando visualmente a trajetória de João Gostoso do princípio (vida) para o fim (morte).

Essa sequência imita, na expressão, o movimento de descida inevitável para o fim da vida enfatizado até visualmente pela oposição entre a verticalidade rápida dos versos curtos e a horizontalidade espraiada dos versos longos.

A espacialização do poema inicialmente se dá com indeterminação: barraco sem número, no entanto, no morro da Babilônia que pode referir-se ao substantivo, “babilônia” (baderna, a falta de organização) ou ao alto espaço da miséria anônima e até, ironicamente ao famoso Jardim Suspenso.

A aproximação da personagem à rua (exterior) se dá, na tranquilidade, através da experiência do ser solitário que olha ou escuta de onde descortina o mundo lá fora, assim ressalta a importância de um espaço físico em detrimento de uma individualidade humana.

O bar, por sua vez, é identificado por “Vinte de Novembro”, assim, João Gostoso sai do espaço indiferenciado e entra num espaço público, denominado e oposto à sua vida – um lugar de prazer.

A dança de morte de João Gostoso se imprime nas angulosidades do ritmo do poema. Com um ritmo acelerado próprio para retratar a rápida alegria dionisíaca, a necessidade física e o caos da vaidade, antecipa o seu declínio de morro abaixo, após momentos de êxtase.

É importante ressaltar que o Morro da Babilônia (lugar alto e pobre) contrasta com a Lagoa Rodrigo de Freitas (lugar baixo e de riqueza no Rio de Janeiro).



 


terça-feira, 2 de setembro de 2025

O GUARDA-ROUPA ALEMÃO, LAUSIMAR LAUS (1916-1979)

  

                                       O Guarda-Roupa Alemão

    O guarda-roupa era um móvel que havia em casa de minha avó Maria Amélia Stuart, mãe de minha mãe, que se casara com um norueguês. Era, de fato, um móvel alemão, quase até o teto, que me fazia, quando criança, pensar muito nele. Tinha milhões de coisas antigas dentro dele e até figurinos do século XVIII. A minha imaginação maquinava sempre. Pra mim ele não era um móvel. Era gente, porque eu sempre falava muito sozinha, como se houvesse gente a minha volta, quando criança.”

                                                                                                           Lausimar Laus



LAUSIMAR MARIA LAUS nasceu em Itajaí, em 1916. Estudou em Florianópolis e seguiu ao Rio de Janeiro, onde iniciou a carreira de escritora, educadora e jornalista.
   Na década de 1950, colaborou com vários jornais e revistas literárias modernistas, inclusive com o grupo literário de Florianópolis, o Grupo Sul.
   Em 1970 publicou seu primeiro romance, intitulado de “Tempo Permitido”. Em 1975 publicou sua obra de maior sucesso: “O guarda-roupa alemão”.
   Escreveu também livros infantis; poesias; contos crônicas e ensaios; trabalhou no Ministério da Educação e Saúde; e, em 1952, ganhou o segundo lugar no concurso da Academia Brasileira de Letras na categoria de teses.
   Morreu aos 63 anos, vítima de infarto, no Rio de Janeiro.
   Em alguns documentos, Lausimar Maria Laus é citada pelos nomes Lausimar Laus Gomes e Lausimar Laus Conti.

II – ESCOLA LITERÁRIA:

   LAUSIMAR integra-se ao grupo dos Modernistas do Sul e está inserida na literatura contemporânea como regionalista alemã, embora localizada no Vale do Itajaí.

   A autora de “O guarda-roupa alemão” preocupou-se em registrar as influências culturais trazidas pelos alemães (Goethe, Heine, Verlaine), assim como o folclore catarinense presente na região numa tentativa de compreender e aceitar à “sua nova terra”.

III – CONTEXTO HISTÓRICO, SOCIAL E CULTURAL:

   A obra narra à colonização alemã no sul do Brasil a partir de 1850, a expulsão dos índios e a demarcação de terras e prolonga-se até o período de nacionalização imposto por Getúlio Vargas, quando a comunidade alemã sofre perseguições e repressões.

   A autora contextualiza os fatos históricos, sociais, políticos e econômicos dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau; registra as enchentes ocorridas em 1880 e em 1911; a industrialização da região (as fábricas Hering e Kormann); a Guerra do Paraguai; a Segunda Guerra Mundial; os choques entre as culturas, o preconceito quanto à língua e a adaptação da raça, gênero e nação na conciliação de culturas diferenciadas.

 IV - LINGUAGEM:

   Até meados do século XX havia uma grande produção literária em língua alemã nas regiões colonizadas do Brasil. Depois da grande onda de nacionalismo, a língua alemã foi perseguida e descriminalizada pela obrigatoriedade de se falar português e todo  conteúdo criado em praticamente um século de imigração alemão no Brasil foi perdido.

  LAUSIMAR através de uma linguagem simples, híbrida, lírica e irônica mesclou canções dos canoeiros; o modo de falar catarinense; o linguajar de origem açoriana, o tema da imigração; a situação dos colonizadores numa região “brasileira” e as dificuldades enfrentadas pela comunidade alemã que falava um português quase ilegível, utilizando-se de códigos metafóricos, decido ao preconceito existente em todas as culturas diferenciadas.

  A relação ambígua entre os dois idiomas e seus falantes apresenta a importância da literatura em língua alemã para se compreender o contexto histórico do século passado, a influência das campanhas nacionalistas na utilização do idioma alemão e revitalizar a questão da literatura em língua alemã e de seus descendentes, produzida no sul do Brasil, antes da Era Getúlio.

    Dessa forma, LAUSIMAR nos apresenta a relação entre a muttersprache (língua materna) e a freumdsprache (língua estrangeira), ou seja, a relação do idioma alemão e do português em tempos da colônia alemã de Blumenau.
  
 HOMIG, personagem-narrador constrói toda a história de sua família a partir de lembranças que se cruzam no tempo, no espaço e na linguagem: a língua alemã (dentro de casa), a língua portuguesa (na escola), a língua francesa (da avó indígena).

V – FOCO NARRATIVO:

   A narrativa não é linear e segue de acordo com o fluxo descontínuo dos pensamentos da personagem, utilizando-se vários pontos de vistas que se misturam em uma espécie de fusão de terceira e primeira pessoas.

   Partes são narradas em primeira pessoa pelo próprio Homig e outras extraídas do diário de sua tia Hilda e de seu avô Klaus, de onde partem os pontos de vista de sua avó Sacramento e da professora Lula.
   O narrador onisciente em terceira pessoa apresenta as sensações, os sentimentos e as reflexões de Homig sobre sua história de vida.

   O velho Guarda-roupa alemão trazido da pátria distante, o Kleidrschrank ou o Kleid, como o chamavam para economizar esforços nas sílabas ásperas, recebe um tratamento essencial e humanizador na narrativa de Homig; afinal, acompanhou a trajetória da família Ziegel e guarda os segredos mais íntimos da mesma durante várias décadas.

   Dessa forma, conclui-se que o narrador é heterodiegético, narra o tempo em que Homig fica à frente do guarda-roupa, recordando de todo o passado nesses cem anos.  

   Homig, um metro e oitenta de homem, continuava: - Tu vês, Kleidrschrank? Aqui está o último dos Ziegel! E agora? Tu vais continuar. Eu sei. A casa vai ser vendida, meu velho. Aonde te levar, se este é o teu lugar? Eu? Sei lá para onde vou. Bem mais novo que tu a vida me entortou todo. Com sessenta, não presto mais nem para guardar as coisas. O homem foi feito para sentir. (...) A cidade mudou. Os jardins também. Blumenau “O campo de flores” do velho Ziegel virou fumaça de fábricas. As casas da velha colônia foram destruídas.”

 

VI – TEMPO:

   Na obra encontramos dois tempos: o tempo cronológico e o psicológico.

  A família Ziegel é o centro da narrativa, porém várias outras histórias familiares cruzam-se entre si, tecendo, assim, um painel cronológico dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau; fatos históricos (a chegada dos alemães, por volta de 1850; o extermínio dos índios daquela região até a Segunda Guerra e o período de nacionalização imposta por Getúlio por volta de 1940); as viagens e o cotidiano dos imigrantes.

   Era tarde quando acordei, suando por todos os poros. Tia Clara preparava-se para ir ao hospital visitar seu Tibúrcio e levar Menininha para tomar a benção. Cedo já o empregado do Peitter tinha trazido o recado de dona Titã: era para tia Maria Clara levar a Menininha e um prato de comida para ela.”

   E o tempo psicológico que narra às memórias; o saudosismo; as reflexões; as angústias; os conflitos existenciais; os sentimentos de Homig; as lembranças das enchentes que assombravam o Vale; as humilhações e os temores em se viver em uma nova terra.

   “Ela mesma tinha mágoa das amargas palavras que dissera na hora das raivas. Mas, que fazer, quando um marido pobre, com cinco filhos se mete na política? Só mesmo metendo a língua! Tinha pesar sim. A casa tivera de ser hipotecada. A casa. Mas as terras, nem mais um pedaço!”

 À noitinha, todos os que podiam foram à capela para a benção. Chorava-se e rezava-se, enquanto a chuva, lá fora, em cantochão, continuava em fúria. As vozes saíam límpidas, num cristal penetrante até a alma. Eram rezas de dor, eram cânticos de socorro, eram lamentações de desespero.”

 

VII – ESPAÇO:

   Blumenau parece um jardim, não é dona Maria Clara? Não sei como tudo pode florir o ano inteiro. O calor do verão não mata a verdura e o colorido. Sempre penso que os alemães de tanto estudar as flores, sabem o que plantar em cada estação. O vale e o rio, entre as montanhas que se alinham em volta, dão a impressão de outro país, outras terras, que a gente aprende a ver no mapa e na história Universal. As casas são diferentes a maior parte com tijolinhos vermelhos, com riscos pretos de madeira, em moldura geométrica, formando ângulos perpendiculares. Lá em cima, a janela principal do segundo andar tem sempre uma jardineira cheia de flores.”

   O espaço geográfico de “O Guarda-roupa alemão” compreende as cidades de Blumenau e Itajaí, retratando a imigração alemã em Santa Catarina, tendo como referência a casa da família Ziegel. Os ambientes formados naquela velha casa situam-se diante de um centenário guarda-roupa alemão.

VIII – PERSONAGENS:

      As personagens são retratadas através do fluxo da consciência de Homig, centralizadas nas personagens femininas e caracterizadas por suas personalidades fortes e marcantes. Homig abre uma das gavetas do Guarda-roupa e revive toda a história dos membros de sua família    

    HOMIG é a personagem principal da história e o último descendente dos Ziegel. Ele é responsável por desvendar o grande enigma da narrativa: abrir a gaveta do velho Guarda-roupa alemão, que acompanha a família por muitas gerações, cuja chave a matriarca, fiel à sua raça, levou para o caixão junto com o seu segredo e através de suas reminiscências a história se desenrolará. Sua mãe morreu moça, numa epidemia da gripe espanhola, e seu pai na Segunda Guerra Mundial.

  Homig recorda a história de amor entre o avô KLAUS e sua avó SACRAMENTO.

  Seu avô era um alemão bonito, inteligente, bondoso e defensor dos índios. Uma vez ao demarcar terras na região de Tijucas foi atraído por uma cantoria de meninas num colégio de freiras. Tocou o sino, pediu um copo d’água e foi servido por uma menina chamava MARIA DO SACRAMENTO. No dia seguinte, voltou até o colégio e a pediu em casamento. Na época SACRAMENTO tinha doze anos.

   SACRAMENTO era pura, ingênua e desconhecia o sentido de ser esposa e mulher. Índia, que devido à invasão dos alemães, tornara-se órfã de pai e mãe e que foi recolhida a um convento.

   A família alemã repugnou a união. A mãe extremamente preconceituosa não aceitava o casamento do filho com uma “bugra”, só aceitava noras alemãs para o seio da família.          SACRAMENTO sofreu discriminação quanto à compreensão da língua, à adaptação aos novos costumes, à vida de casada e, principalmente, quanto à rejeição por parte de Ethel, mãe de Klaus.
   Trabalhava dia e noite, dormia isolada num quarto nos fundos, só recebia ordens e não conseguia se comunicar, pois a família falava em alemão e ela desconhecia o idioma.

   Klaus a respeitava e mantinha-se distante dela. Um dia, explicou-lhe sobre ao ciclo menstrual, e dias depois, SACRAMENTO comunica-lhe que “o rio vermelho” viera visitá-la. Só depois disso, concretizaram a sua união.

    “Ali, no imenso quarto de núpcias, sem as paredes dos homens, cujo teto era um céu chumbado de nuvens... Klaus deitou Sacramento em cima das margaridas. A seu lado ficou-lhe contando o que é casamento, o que é ser um só em dois...”

   Klaus sempre foi carinhoso com sua esposa, seus filhos e netos e tornou-se referência na criação e educação de Homig. Carinhosa, compreensiva e religiosa, sua ingenuidade e a ternura marcaram todos os episódios em que esteve envolvida, e estas são as qualidades que fixaram nas lembranças de Homig.

 ETHEL, a GROSSMUTTER: bisavó de Homig e matriarca da família Ziegel. Representa a seriedade típica alemã, mulher trabalhadora, bonita, enérgica, disciplinada e protetora dos seus. Era quem regia a casa com autoritarismo e competência. Fazia-se de forte, mas na realidade era uma pessoa frágil, saudosista, nacionalista (amava loucamente sua pátria e defendia a pureza da raça e da sua cultura), sonhadora, triste, artista (Homig encontrou alguns desenhos de sua autoria escondidos numa das gavetas do guarda-roupa) e preconceituosa (não aceitou sua filha Hilda ter engravidado do negro Bube).

   A personagem é responsável pelo mistério da história, pois guardava o grande segredo familiar dentro do Guarda-roupa e que só poderia ser revelado pelo último descendente dos Ziegel.

 Mas como a bisavó fora bonita! Puxa vida! Até que aquele cabelo complicado, com uma grande igrette na cabeça, lhe dava uma graça estupenda. A legenda diz que ela nascera em Paris, de pais alemães e era autora de composições, onde se harmonizavam cores de extrema suavidade.”

GROSSMUTTER


   “Tà certo. E a gente nunca soube da genialidade da Grossmutter. Pelo menos vó Sacramento só contava sobre aquela mulher forte como granito. Era lidando. Plantando flores, mas também plantando aipim. O morango. Cavando a terra. O avental sempre muito branco, rodeado de bordado inglês. Pesadona. Vermelha. Dando ordens. Organizando as festas da colônia. Aconselhando o marido. Nunca em jeito macio.”

HILDA é a filha mais nova de Ethel, personagem secundária e marginalizada perante a sociedade.

 Pegava o cavalo bravo no mato, tirava a roupa toda, montava nua em pêlo e cavalgava a vontade. O falatório da vizinhança.”

   Amante da liberdade, rebelde, favorável a prática do amor-livre e desprendida de qualquer preconceito, regras e moralismo. Provocava comentários maldosos na população e era conhecida por “vagabunda e endemoniada”.

   Em seu diário relata seus questionamentos sobre a vida e os códigos que a regem.   Hilda acredita na natureza das coisas e nos sentimentos como obras de Deus e concluí que não podem ser pecados. Todos acreditam que voltou à Alemanha, segundo ordens de sua mãe, mas seu verdadeiro destino só é revelado no final do romance.

 LULA: professora brasileira que ensinava a língua portuguesa na rede pública. Através dessa personagem é narrada a história dos brasileiros, descendentes de açorianos e de espanhóis.

  Lula mudou-se de Itajaí onde vivia com a sua avó e seus irmãos depois de passar por problemas financeiros e veio residir na casa de sua tia Maria, junto com suas duas primas, a Cidinha e a Dora. A personagem é citada no diário de Klaus e por meio da mesma, são retratados: a enchente de 1911, as perdas, o abandono das casas, o refúgio da população para o convento das irmãs e o “caso de Menininha”.

MENININHA: filha adotiva de seu Tibúrcio e dona Tita, moradores de Itajaí e economicamente estabilizado.

Foi criada com muito zelo e paternalismo. Seus pais sempre super protetores, não a deixavam sair sozinha de casa, nem ter muitas amizades. Em uma ocasião, devido a uma cirurgia de hérnia do seu Tibúrcio, MENININHA foi deixada aos cuidados de D. Maria Clara, pessoa de confiança da família.

MENININHA vendo-se livre das amarras, da fiscalização de seus pais e avessa aos moldes da sociedade aproveitou-se da oportunidade para viver suas aventuras. Lula descobre seus encontros, às escondidas, com um homem casado, seu Ataliba, foguista do “vaporzinho” Blumenau. MENININHA confessa a Lula sua paixão pela vida e suas experiências homossexuais. No final, MENININHA casa-se, mas nunca abandona suas atividades.


RALF: Primo e amigo de Homig. Assistiu Homig até os seus últimos momentos.

Foi quem acabou descobrindo o segredo destinado “ao último dos Ziegel”

 HERNA: Tia de Klaus. Viajara da Alemanha para batizar Hilda.

 TIA CLARA, DORA E CIDINHA: Tia e primas de Lula. Personagens generosas que acolheram e apoiaram Lula, quando ela veio morar em Blumenau.

 DR. BÜCHMANN: médico alemão.

ZECA: Empregado do Vapor Blumenau. Personagem solidária e amiga. Ajudou as pessoas afetadas pela enchente.

ATALIBA: Foguista do Vapor Blumenau. Homem adúltero; casado, mas, mantém um relacionamento com Menininha.


IX – ENREDO:

   "O armário. Tinha sido, toda a vida, o seu grande problema. Naquela tarde, o canto escuro. O armário. Sua forma geométrica. Seu espelho geométrico.

   - Por quê? Por que ainda o armário?

   Não sabia. Havia dias e horas de multidões e mutilações. Sabia que em cada segundo lhe ia faltando uma partícula a mais, cá dentro. Mutilação perfeita. A alma se esvaziando. Tudo se ia soltando a esmo.

   Procurou, na manhã imperfeita, o sinal. O acordar: era o morrer. O próprio sentido do fim. O sinal se perdera ao acaso. E como viver sem o sinal?

   Levantou a cabeça para o reflexo tênue, meio azulado. A madrugada chamava para a angústia. Que era, afinal, angústia? Aquilo denso. Compacto. Tinha lembranças de como foram outros dias simples. Por que não voltar a ser aquele recipiente? Um vaso de flores? Claro. A mesma aparência viva na massa vítrea. O gesto solto para os outros.

   Ele perdera o sinal. Sabia que era para sempre. Sem remédio.

   Os cabelos, perpendicularmente. Os olhos oblíquos. Linhas, linhas, linhas. Até as rugas do meio da testa: um freio mostrando o esforço. Não importa. O pensamento cria outras veredas. Não é fácil perguntar, quando nada se responde.

   Ethel: o rosto ali no espelho. A forma octogonal da transparência furando escombros.         O tom escuro do jacarandá: o passaporte."

   A narrativa de “O Guarda-roupa alemão” não enfoca somente a história da FAMÍLIA ZIEGEL, imigrantes alemães que vieram colonizar Santa Catarina; mas,  várias outras histórias familiares que se cruzam entre si, tecendo, assim, um painel do contexto histórico, social, econômico e cultural dos primeiros cem anos da cidade de Blumenau, marcado pela feminilidade e suas relações ideológicas e de poder; fundindo ficção com fatos históricos e retratando fielmente as questões de uma época de dificuldades, de esperanças e de preconceitos.

   A história é narrada, inicialmente, por Homig, o último descendente dos Ziegel, homem de sessenta anos, solteiro, de grande sensibilidade, fragilizado por uma doença no coração e consciente que seu fim estava próximo, assim como a história dos Ziegel.

   O livro, no entanto, tem como personagem central Kleid, o velho Guarda-roupa que está presente na família Ziegel, desde a sua vinda da Alemanha, trazido por Ervin Ziegel e Ethel Moltke.

  Kleid acompanhou todas as gerações dos Ziegel, sempre no mesmo lugar, guardando documentos importantes, enxovais e segredos.

   Homig acompanha a venda da casa onde viveu toda sua vida e sabendo que o Guarda-roupa ficaria ali, porque lá era seu lugar; e, tendo a incumbência de abrir uma gaveta do mesmo, a qual foi trancada por sua bisavó ao falecer, senta-se em frente ao Kleid e decide realizar o desejo da sua bisavó. A atitude de abrir a gaveta é hesitada várias vezes e durante o período de um dia para outro, nostalgicamente, toda a história de sua família e de seu povo vem-lhe à lembrança, registrados em diários e que, ao serem lidos, por serem tão bem descritos, poderiam ser vivenciados.

   O Guarda-roupa, o Kleid, é personalizado, humanizado e simboliza metaforicamente a união familiar, a incerteza, o deslocamento para o desconhecido, a preservação dos costumes, os conflitos culturais alemão, o cotidiano de cada personagem, a miscigenação entre índios, brasileiros e alemães e a adequação imposta pelo novo meio, enfim, a trajetória da imigração alemã no Brasil.

   Na verdade, havia mais um primo que ainda estava vivo, Ralf. Dez anos mais velho que Homig, que chegou da Alemanha, já adulto e formado e viveu apenas parte da história dos Ziegel em Blumenau.

   Homig conversa com o Guarda-roupa com intimidade e emociona-se ao recordar de seus familiares e de sua infância: a querida avó Sacramento e a chegada da tia Herna, que viera da Alemanha para batizar Hilda, uma moça linda e cheia de vida, que já contava com 16 anos e aguardava a presença da tia para ser batizada e “tirar o demônio do seu corpo”. Hilda era libertina e adepta a hábitos censurados e como sua cura não se realizou, foi enviada à Alemanha para evitar mais comentários maldosos da população.

   Recordou-se da mãe mandando comprar “zuckar na fenda”, a paixão pela vizinha Diva, que não ligava pra ele, as aulas de alemão dadas pelo padre Melcher e sua a inseparável vara de marmelo para dar-lhes nas pernas quando não soubessem pronunciar as palavras:

“- Atenção, bandoleiro. Tu não pareces filho do Klaus e neto dos Ziegel. Tu tens tudo de índio. Até esses olhos puxados e esse pensamento aventureiro que se perde...” ... “Eu gozava a minha imaginação. A vara do padre era o garfo do diabo... coitado do padre, eu era endiabrado.” 

   Seus pensamentos voam quando ele próprio foi enviado à Alemanha para estudar. 

   “Voltei depois de dois anos. Fui outra vez (universidade)... O que eu queria, era beber vinho e cerveja... Eu sempre fui um grande boêmio. A figura de Diva era um tormento agradável. Quando ficava bêbado, escrevia cartas e cartas...nunca levava ao correio... eu já estava um galalau de 16 anos... a Alemanha passava pela maior crise da história, o desemprego era geral, o povo em angústia, esperando o aparecimento de um líder... Surgiu a figura de Hitler...Só se falava no homem de bigodinho curto... Confesso que nunca gostei muito da cara dele, mas ia com os camaradas mais velhos ouvir sua palavra em praça pública. Ri sozinho, quando tirei a roupa de Hitler e o vesti de diabo, como fazia com o padre. Escrevi a Mama à vó Sacramento: Se vocês não me mandarem uma passagem, vou embora a nado”.

   Homig voltara da Alemanha em 1933. Hitler já possuía prestígio. No Brasil, voltaram a funcionar as 2500 escolas alemãs que haviam fechado durante a Primeira Guerra. Porém, somente os professores treinados na ideologia nazista é que podiam lecionar. O material didático era importado e fiel ao pensamento da “nova” Alemanha, para introduzir tudo o que ditava o III Reich (lealdade à Alemanha nazista).

   Nesta época Ethel apresentava transtornos mentais e vivia perguntando sobre Hilda. O partido nazista estava em plena ascensão e Homig não aguentava o radicalismo do movimento.

    Ethel foi irredutível e insistia que Homig estudasse engenharia e casa-se com uma noiva alemã. A avó Sacramento conseguiu o dinheiro para a sua passagem de volta, deixando-o eternamente grato.

   “Vó Sacramento era doce “Homig, mais feliz ficarei contigo ao meu lado...”

   Homig voltou ao Brasil e a Grossmutter morreu. Seu desejo era ser enterrada em Berlim, mas diante da impossibilidade de embalsamá-la, acabou sendo enterrada em um jardim, ao lado de uma aroeira que ela tanto amava.

  A personagem tenta se desvincular dessas memórias, mas, as lembranças trancadas no Guarda-roupa insistiam em se libertar.

 Homig volta ao presente e começa a repensar sua condição: por que não se esquecia de tudo? Lembra do bisavô; seu diário, suas manias, seu amor à pátria distante, tudo isso contado pela avó Sacramento. Olha para o Kleid, abre outra gaveta, tira a lembrança da avó e descobre-lhe pintora. Observara algumas fotos e vira como ela era bonita. Mulher exigente, prática, mas que sabia amar à sua maneira. No fim da vida, teve arteriosclerose e Homig ria de suas loucuras.”

 Então, tenta fixar-se no presente e refletir sobre sua condição. Mas, os pensamentos insistem levá-lo aos tempos sofríveis: a II Guerra Mundial; a repressão sofrida pelos imigrantes alemães, devido à ascensão de Hitler; o decreto de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo, fechando as escolas estrangeiras e exigindo a obrigatoriedade da língua portuguesa nas colônias alemãs; as violências ocorridas nesta época, inclusive ao negro Bube por ser brasileiro e falar somente alemão e a quase falência do hotel dos Weber por ter contratado Isolina, a recepcionista que falava português. O medo tomava conta. Uns concordavam com Getúlio, outros não.

   Folheando o diário do bisavô, Homig recorda-se de Lula, a professora que viera de Itajaí com a missão de ensinar português aos alemães e chegava a entender o porquê de tanta repressão: eles insistiam em dizer que eram alemães, falar a língua alemã... mesmo tendo nascido aqui. Era necessário ter muita paciência.

  Lula morava com a tia Clara e com as primas Cidinha e Dora.

 Certa vez, Zeca veio bater-lhe à porta, pedindo um favor: ficar com a filha de criação Menininha, enquanto a esposa ficava no hospital com seu Tibúrcio. D. Clara aceitou. Menininha era criada com muitos cuidados, vivia praticamente presa. Descobriram que Menininha estava de caso com Ataliba, homem casado. Cidinha ficou indignada. Ataliba dava náuseas em Cidinha e Lula, que sabiam de tudo entre ele e a garota.

  Depois, lembrou-se da enchente do Itajaí-Açú, em 1911, que arruinou a economia local e trouxe muitos sofrimentos à população, como a falta de alimentos, isolamento de comunidades, que se viam obrigadas a vender seus pertences para sobreviver e muitas vezes precisavam abandonar suas casas e procurar abrigo no convento.

  Lá havia muita gente, vítimas da enchente. Menininha começou a ter um ataque de riso; o médico a examinou e diagnosticou: ataque histérico.

   As pessoas se repartiam em cuidados. Quem estava bem, ajudava os doentes. “Os Ziegel foram os que mais ajudaram...” Lula ficou cuidando de Menininha.
   A mulher de Ataliba se suicidou. Menininha não se abalou e ainda contou que sentia uma paixão ardente por Zoraide, uma amiga.
   De volta ao presente, Homig olha para o Kleid. Levanta-se, passa as mãos pelos cabelos, olha para a casa que, em breve, não moraria mais e lembra-se que Kleid havia resistido à enchente de 1911. Ficara submerso, mas não deixou entrar uma gota sequer, conservando o que carregava dentro de si intacto. Por isso, a Grossmutter havia deixado o seu segredo dentro dele.

   Pensa em Hilda, a incompreendida e seu diário, que fora encontrado jogado no sótão, muito tempo depois da morte das avós.

 Por onde andaria Hilda?... O tempo, que fizera dela? Tantas rugas como as da vó Sacramento? Que mistério a envolvera depois da última estada em Blumenau? Só se sabia, através da Grossmutter, que ela voltara para sempre à Alemanha.”

   Homig volta novamente à cadeira em frente ao Kleid, relembrou-se dos vizinhos, a família de Diva, as superstições, as rezas da avó Sacramento e os casos contados por ela da grande enchente de 1880 e de 1911.

    “As águas do rio Itajaí-Açu subiram até uma altura de 15 metros... arrastaram tudo... Blumenau foi atingida por uma grande desgraça.”

As pessoas tinham que reconstruir a cidade após a catástrofe. O escândalo de Menininha vinha-lhe à cabeça. Acabara fugindo para a “Fazenda”, lugar das mulheres da vida em Itajaí. Certo dia, soube-se que um rapaz chamado Eurípedes, muito honesto, apaixonara-se por ela e se casaram. Tiveram três filhos, tinham dinheiro. Mas, Menininha não renegou suas origens: de vez em quando, fugia com o marido de alguém. Quando voltava, o marido tratava dela, mandava-a ir ao dentista, pois voltava desdentada e quando o filho do outro nascia, era criado junto com os seus; depois, ela fugia de novo... O povo dizia que ele era um santo.

  Homig misturava as imagens da enchente com pessoas, coisas e a conversa de Hilda, ainda em cima do cavalo, tudo gravado no “diário íntimo” de seu avô Klaus. Hilda era vista como vagabunda, por fazer as coisas que lhe davam vontade.

 Homig verificava cada linha do Kleid: - Claro, Kleid. Para mim tu és mais que uma pessoa. Tu é a única coisa que me compreende. E começa a se lembrar de Hilda: Hilda era um enigma? Acho que tinha razão. A vida é para ser vivida. Naquele dia, ela vinha correndo de cabelo solto. Cabelo solto, para mutter, era sinal de mulher da vida. Ela falava sozinha...” Hilda era uma mulher bonita, alta, loira... enlouquecia os homens. Homig era “guri pequeno”, mas se encantou pela moça: “ela cavalgava nuinha da silva”.

  Homig relembra quando a tia Herna precisou fazer uma transfusão de sangue e o único que tinha sangue igual ao dela era um mulato, Praxedes. Ao saber disso, ela disse que preferia morrer a receber sangue brasileiro e os médicos tiveram que aplicar uma injeção de calmante para a conclusão da transfusão.

  Em seguida, o primo Ralf contou as novidades a Homig: Lula casara-se e estava cheia de filhos; Menininha continuava enganando o marido. A guerra havia acabado... Por onde andaria Hilda? Ao lembrar o fim da guerra, os dois primos falaram da barbaridade feita pelos soldados: pegaram seu Werther, o hoteleiro adorador de Hitler, penduraram-lhe um saco de areia no pescoço, fizeram-no andar por longa distância. De volta à praça, mais morto do que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro e obrigado a beber óleo de carro.

   Então, Homig pede ajuda ao primo para desvendar o mistério preservado por tantos anos, abrindo a gaveta de Kleid.

   Sentados, olham para o Kleid. Era chegado o momento. Homig brinda com um copo de conhaque, e outro, e mais outro... Ralf pega o pé-de-cabra e abre a gaveta.

  Atentos percebem que há uma caixinha de jacarandá com incrustações de prata nos cantos, em forma de triângulos e, em cima da tampa, um retângulo pequeno, onde está gravado um nome: Hilda.

   Ralf a retirou e colocou-a em cima do piano e verificou que havia uma carta lá dentro, com o subscrito: “Ao último dos Ziegel.”

   Homig pegou o envelope, pôs no bolso, enquanto Ralf olhava o tesouro em moedas lá existentes. Homig já bastante debilitado físico e emocionalmente, é levado para o hospital e precisa ser internado com urgência sem antes entregar a chave da gaveta ao primo.

  Não podia abrir aquela carta. Seu coração não aguenta, e ele cai desfalecido.  O médico diz a Ralf que ele não podia beber, mas era teimoso. Ralf vai embora com a certeza de nunca mais ver o primo vivo.
  Vai para casa, abre a caixinha e toma em suas mãos um pano de linho. Ao abri-lo, fica chocado com a descoberta mórbida que fez.

   Tratava-se de uma ossada humana, quase desfeita, um pequeno crânio sorrindo patético com dentes certos e finos. Um cacho loiro envelhecido, meio esbranquiçado, posto num dos lados da caixa e acompanhada da seguinte carta.

Blumenau, 18 de janeiro de 1920.

  Não me condenem. Hilda era como eu gostaria de ter sido: fiel a si mesma e às suas convicções. Era um pássaro. Não era gente. Há muito sabia de seus encontros com o negro Bube. Só quero dizer que ela estava grávida dele e isso não deveria acontecer. Uma raça é uma raça! Fi-la acreditar que ia pô-la num navio para a Alemanha, quando a levei no carro naquele dia. Sem que ninguém soubesse, pus uma pá na mala do carro. No caminho inventei um aquecimento no motor e pedi para que ela olhasse o que era. Enquanto ela fazia isso, pus o carro em movimento, fazendo-a cair sob as rodas. Somente cinco anos depois, desenterrei-a e tirei seus ossos. Aí estão.

 Que Deus me perdoe. Enterre-os debaixo da aroeira brava, onde os pássaros cantam e o sol não castiga.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

. Homig representa o processo de construção da cultura híbrida na busca da identidade cultural e seus confrontos identitários desenvolvidos ao longo da obra.

 . A narrativa apresenta contraditórias sensações: tristezas; melancolias; mortes; desavenças; angústias; preocupações e repressões políticas. Mas, também, festas, alegrias, casamentos e nascimentos.

   “Quando cheguei na Velha, tia Maria Clara chorava. Cidinha ainda não tinha aparecido, e ela me apertou tanto, que seu vestido ficou molhado também. Na sala, Dora, Menininha, o Zeca de Blumenau, seu João Born, o coletor estadual, que era grande amigo nosso e tinha vindo de Florianópolis ao mesmo tempo em que nós viemos de Itajaí.”

   “Naquela noite era festa na colônia. A caça fora farta. A grande fogueira trazia o clarão até a fresta, onde a cortina fina e fluida se abria levemente. De repente, de cansaço dormira. Um hálito de licor de framboesa lhe recheava a face, um leve perpassar em seu rosto, como a suave brisa de abril.”

. A obra dá destaque às tensões do Estado Novo com a perseguição aos alemães, o medo daí decorrente, as humilhações impostas a um dos protagonistas, o velho Werther no final da guerra: Uma avalanche de gente reunida na praça. Banda de música e tudo (...), vinha o velho Werther com um saco pendurado no pescoço, com a cara de Hitler desenhada em cima. Na praça, (...), mais morto do que vivo, foi sentado numa cadeira de barbeiro (...) e obrigado a beber óleo de carro.

. As ideias nazistas e neonazistas; as perseguições políticas; o amor realizado; o homossexualismo; o adultério e o racismo.

. O clímax com o desfecho final da obra.

. O romance aborda várias temáticas sobre a colonização alemã na região de Blumenau. A demarcação de terras e o confronto com os índios são acontecimentos narrados pelo avô Klaus, o qual mostra respeito pela cultura nativa e acaba apaixonando-se por uma indiazinha de doze anos criada por freiras francesas.

. A dedicação das mulheres à organização familiar, à educação dos filhos e à manutenção da cultura germânica, pela qual têm tanto orgulho. As descrições das casas, dos jardins, das vestimentas, da própria cidade, de seus costumes e tradições.

. Choque entre as culturas distintas; o saudosismo e a nostalgia dos imigrantes pela pátria distante e assimilação de diferentes culturas pelas novas gerações.

 . Caricatura do imigrante alemão, atingindo o cômico.

   Herna necessitando uma transfusão de sangue, tem como único doador compatível o mulato Praxedes, tripulante do “vaporzinho” Blumenau. Herna, alemã nacionalista, entusiasta da “Nova ordem” proposta por Hitler, não aceitava misturar seu sangue com o de um mulato brasileiro: “Brasileiro tem sífilis...”. O doutor Büchmann, ginecologista conceituado e conhecido por sua personalidade autoritária, acaba usando da força física para realizar tal transfusão, inclusive com as enfermeiras, as quais recebiam caneladas, quando não faziam como foi mandado. Para complicar a situação, o voluntário a salvar a vida da alemã, em meio a tantos xingamentos, acaba desistindo da ação por achar um desrespeito à sua raça:

  “Sabe o que mais, seu dotô? Eu vou mais é m’imbora. Deixa esse diabo morrê de uma vez...fico dês das 6 da manhã im jejum pra sarvá uma merda dessas e ela ainda me chama de sifílico?... O Dr. Büchmann, vermelho como um pimentão, os dentes cerrados, a boca aberta, agarrou o mulato, deu um safanão, jogou-o na cama e disse com todas as suas forças e todos os seus erres: “Fai a merrrdaaa!”. O Praxedes, de mulato que era, passou a meio desbotado...”

. Omissão da participação da cultura indígena na construção do painel cultural brasileiro No caso das regiões de colonização européia do Sul do Brasil, e mais especificamente ainda, no Estado de Santa Catarina, esta memória chega mesmo a ser “esquecida” pela historiografia e pelas construções identitárias de caráter étnico correntes na atualidade do Estado.





 

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”, LUÍS BERNARDO HONWANA

- Típica família moçambicana e sua residência.

- Essa narrativa, ainda que simples, permite o levantamento de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser contada”.

- Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de uma descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que acomete sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que minucioso, do seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que nos ajuda a pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta pelo sistema colonial.

- Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto ele quanto o seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio letárgico, possuem um posicionamento diferente.

- Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial, só nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da descolonização.

- Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.

Além do quarto em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no canto, atrás da porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato de alumínio [...] Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim [...]. (HONWANA, 1980, p.36-37).

- Em uma de suas descrições do lar narra que existem livros que só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse, apenas, de sua mãe.

- A avaliar pelas pistas dos livros, ocupando um espaço de prestígio na casa, a julgar pela cortina que os esconde:

Entre a porta que dá para a casa de banho e a que dá para este quarto, encostada à parede do Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas cheias de livros. Tem a cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das cortinas da sala de visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo pano. Só neste quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e amarelado. A Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2 cortinas e com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu me lembrasse ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).

Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a realidade da família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a leitura do estado de “zumbi”.

- O estado de zumbi justifica-se diante da violência do poder colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se, momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.

- A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação pois, o zumbi é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e a razão, deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.

- Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como o pai, ler livros, além de não estar dormindo, embora não sinta vontade de se levantar da cama:

Debaixo desta cama está guardado o meu material de desenho e pintura, contido em dois caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com livros. Debaixo da cama que está o Papá há mais caixotes com livros. As revistas estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse ler uma revista ia direitinho à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as “Times” e as “Cruzeiros” mais recentes. Na mesa do centro está também o “Reader’s”, mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980, p.38-39).

- Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de seu gosto, tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que é de preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas pelo pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências colonizadoras – Inglaterra, Portugal.

- Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a essa ideia de morte em vida.

As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e as janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que se improvisou no nosso quarto, já que não convinha mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).

- A mãe do garoto aparece, também, como um dos “assimilados” da província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas, o ronga e o português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela fala em português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e trabalha, a mãe do garoto, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma mulher empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo, talvez por ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.

- Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos. Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados, mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação, em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual goza o “assimilado”.

- Pensando nas fases de tomada de consciência, por parte do colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo sistema colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que vive sua família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa solução para o problema e então não sente “vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).

- A assimilação, nesse caso, é a única saída para o colonizado tornar-se sujeito, indivíduo.

- Infere-se que esse estágio de zumbificação em que se encontra a família do narrador, pode figurar como um interregno entre os dois momentos:

1) momento em que o indígena recorre ao embranquecimento, como investimento para acessar a categoria de homem – o que envolvia autorrecusa, aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que culmina em revolta e reações repreendidas violentamente pelo sistema e;

2) o momento de recusa à assimilação e de retomada aos valores e tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é um investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo próprio sistema europeu.

- Além de, como os demais componentes da família, dormir um sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:

O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que também ressonarei quando adormecer? (HONWANA, 1980, p.36).

É importante salientar, contextualizando a obra e seu contexto histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo referência não era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de colonização, percebe-se um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a Ditadura Nacional, o que levou novos comandos de opressão para suas colônias. Como dito anteriormente, o colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram asseguradas pelo Estatuto do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década de 1960) e passou a viver, sem distinção entre indígenas e assimilados, explorados pelo trabalho.

Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse estado de “morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo entre o primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o momento de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa realidade, por isso uma ação mais organizada e sistematizada.

 

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Conto: "O caso da vara", Machado de Assis

 

“Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos, parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente, parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:

– Trago-lhe o grande homem que há de ser, disse ele ao reitor.
– Venha, acudiu este, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço…
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
– Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário… Talvez assim…
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas idéias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar, Onde morava? Estafa tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no Largo do Capim.
– Santo nome de Jesus! Que é isto? bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estafa reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar a casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar, espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
– Mas que é isto, Sr. Damião? bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. Que vem fazer aqui?
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
– Descanse, e explique-se.
– Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
– Como assim? Não posso nada.
– Pode, querendo.
– Não, replicou ela abanando a cabeça; não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
– Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia…”Não, nada, nunca!” redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte.
Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
– Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém…
– Não atende? interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. Ora, eu lhe mostro se atende ou não…
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do Sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
– Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o Sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
– Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar…
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e vinte e sete nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como o diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
– Lucrécia, olha a vara!


A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão… Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.
Nisto, chegou o João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar “pessoas estranhas”, e em seguida afirmou que o castigaria.
– Qual castigar, qual nada! Interrompeu Sinhá Rita. Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
– Não afianço nada, não creio que seja possível…
– Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser, continuou ela com certo tom insinuativo, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, senhor João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta…
– Mas, minha senhora…
– Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz a abasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitavam a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho… Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! Se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução, — cruel é certo, mas definitiva.
– Então? insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! Um decreto do Papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz… Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava, cosido à parede, olhos baixos, esperando, sem solução apoplética.
– Vá, vá, disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
– Ande jantar, deixe-se de melancolias.
– A senhora crê que ele alcance alguma cousa?
– Há de alcançar tudo, redargüiu Sinhá Rita cheia de si. Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira arte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
– Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à Teologia e ao Latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
– Ande, senhor Damião, não se faça de rogado, que as mocas querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o feito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dois negros, foi à polícia pedir um pedestre e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a Rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha… Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
– Tenho um rodaque do meu defunto, disse ela, rindo; mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluiu dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. “Não tenho outra tábua de salvação”, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos”. Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capaz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.
– Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
—Ah! malandra!
– Nhanhã, nhanhã! Pelo amor de Deus! Por Nossa Senhora que está no céu.
– Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a
– Ande cá!
– Minha senhora, me perdoe! tossia a negrinha.
– Não perdôo, não. Onde está a vara?
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
– Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala; Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:
– Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio… Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele, atrasara o trabalho…
– Dê-me a vara, Sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse de mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor…
– Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou a Sinhá Rita. “

Vocabulário:
Três-setes: espécie de jogo de vazas;
pedestre: soldado de polícia munido de chibata, no Rio antigo;
aljube: cárcere escuro, para padres;
presiganga, navio-prisão, ou que recolhia presos;
rodaque, antigo casaco masculino.

II – FOCO NARRATIVO:

Trata-se de um narrador em terceira pessoa onisciente e onipresente, haja vista que conhece tudo sobre a história, e que, além disso, está presente em todos os lugares da mesma.

III – TEMPO:

A narrativa se passa no século XIX, no período imperial brasileiro, Segundo Reinado, em 1850. Os fatos que permeiam o enredo são narrados cronologicamente.
Machado de Assis captou seu tempo e projetou nos textos que escreveu sua percepção sobre a sociedade brasileira da época e seus múltiplos aspectos – economia, política, cultura, dentre outros. Nas tensões vividas em seus contos e romances, Machado retrata a realidade da sociedade brasileira e as mudanças por que o Brasil vinha passando misturando elementos ficcionais e historiografia.
Entretanto, a personagem Damião ao recordar-se de seu ingressou no seminário, realiza uma digressão de caráter memorialista, mesclando o tempo psicológico.

III – ANÁLISE CRÍTICA LITERÁRIA:

O conto machadiano “O caso da vara” ultrapassa a temática da escravidão, pois revela grande preocupação pela análise de caracteres e pela dissecação da alma humana.
Machado de Assis não se limita a um contexto histórico social brasileiro, apesar de denunciar a exploração desumana e injustiça, presentes na escravidão que permeava a sociedade da época. O autor analisa psicologicamente o indivíduo e, de maneira universal, explana a falta de ética, moral e de princípios da classe social vigente perante os interesses próprios.
Machado desnuda as mazelas da existência humana e expõe a escassez, a crueldade, a ganância, o autoritarismo e a opressão do indivíduo, apresentando-o com um ser incompleto que se utiliza de outro para se favorecer.
Neste conto, Machado enfoca o drama particular de Damião, que deseja abandonar o seminário. Para conseguir seu objetivo, Damião utiliza-se da sua influência. A partir daí, o conto apresenta um vasto painel de interesses, poderes e favores.
Damião consciente do seu limite mediante a enérgica decisão de seu padrinho João Carneiro e, conhecendo o prestígio que Sinhá Rita exerce sobre o mesmo, pede que ela interceda por ele junto ao padrinho e, por este, ao pai.
É importante ressaltar que Sinhá Rita só atendeu ao seu pedido para demonstrar sua força e porque, sentiu-se “lisonjeada com as súplicas” de Damião.
No entanto, esse jogo de interesses acaba por envolver Lucrécia, uma negrinha magricela de onze anos aparentes, que servia Sinhá Rita e que por curiosidade havia deixado seus afazeres domésticos para ouvir as anedotas de Damião.
Sinhá Rita percebendo a distração da menina, ameaça-a com a vara caso não cumprisse suas obrigações.
O fato desperta compaixão em Damião que decide, caso necessário, proteger a criada.
Sinhá Rita, por sua vez, envia um bilhete impositor favorável a Damião.
À noite, Sinhá Rita certifica-se que Lucrécia não havia terminado seus trabalhos. De maneira rígida pede que Damião lhe alcance a vara, o símbolo de autoritarismo e punição. O protagonista dividido entre a sua solidariedade com a menina e a sua liberdade do seminário, revê seus conceitos e decide proteger a si mesmo e, apesar de presenciar as súplicas de Lucrécia, entrega a vara a Sinhá Rita.
“O caso da vara” denuncia a mesquinhez do ser humano e os interesses pessoais e, revela como esses vícios habitam o cotidiano das relações humanas desestruturando a personalidade daqueles que buscam autoconservação.

 


segunda-feira, 30 de junho de 2025

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”, EM “NÓS MATAMOS O CÃO TINHOSO”, 1964, LUÍS BERNARDO HONWANA


“Nós Matamos o Cão Tinhoso” é a única prosa publicada em Moçambique, no período colonial, referenciada como marco histórico e testemunhal, como também um manifesto, pois representa a luta do colonizado moçambicano e a coletividade da qual ele participa e pela qual ele fala.

A partir da edição de 1980, é composto por sete contos: “Nós Matamos o Cão Tinhoso”, “Inventário de Imóveis e Jacentes”, “Dina”, “A Velhota”, “Papá, Cobra e Eu”, “As Mãos dos Pretos” e “Nhinguitimo”.

Na publicação brasileira realizada pela Editora Kapulana em 2017, há também um conto do autor nunca antes publicado em livro, “Rosita, até morrer”.

De acordo com Honwana, alguns dos contos presentes no “Nós Matamos o Cão Tinhoso” foram divulgados, antes de 1964, em periódicos:

“Os contos que compõem o “Nós Matámos o Cão Tinhoso” foram escritos entre 1961 e 1963 e o livro foi publicado antes da minha prisão (que ocorreu em dezembro de 1964).

O conto "Inventário de Imóveis e Jacentes" foi o primeiro a ser publicado na imprensa moçambicana (Suplemento literário de A Tribuna).

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”: típica família moçambicana e sua residência.

Narrativa, ainda que simples, permite o levantamento de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser contada”.

Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de uma descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que acomete sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que minucioso, do seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que nos ajuda a pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta pelo sistema colonial.

Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto ele quanto o seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio letárgico, possuem um posicionamento diferente.

Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial, só nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da descolonização.

Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.

   Além do quarto em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no canto, atrás da porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato de alumínio [...] Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim [...]. (HONWANA, 1980, p.36-37).

Em uma de suas descrições do lar narra que existem livros que só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse, apenas, de sua mãe.

Nota-se que os livros ocupam um espaço de prestígio na casa a julgar pela cortina que os esconde:

Entre a porta que dá para a casa de banho e a que dá para este quarto, encostada à parede do Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas cheias de livros. Tem a cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das cortinas da sala de visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo pano. Só neste quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e amarelado. A Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2 cortinas e com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu me lembrasse ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).

Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a realidade da família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a leitura do estado de “zumbi”.

A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação pois, o zumbi é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e a razão, deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.

O estado de zumbi justifica-se diante da violência do poder colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se, momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.

Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como o pai, lê livros:

Debaixo desta cama está guardado o meu material de desenho e pintura, contido em dois caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com livros. Debaixo da cama que está o Papá há mais caixotes com livros. As revistas estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse ler uma revista ia direitinho à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as “Times” e as “Cruzeiros” mais recentes. Na mesa do centro está também o “Reader’s”, mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980, p.38-39).

Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de seu gosto, tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que é de preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas pelo pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências colonizadoras – Inglaterra, Portugal.

Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a ideia de morte em vida:

As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e as janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que se improvisou no nosso quarto, já que não convinha mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).

A mãe do garoto aparece, também, como um dos “assimilados” da província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas, o ronga e o português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela fala em português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e trabalha, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma mulher empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo, talvez por ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.

Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos. Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados, mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação, em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual goza o “assimilado”.

Com relação as fases de tomada de consciência, por parte do colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo sistema colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que vive sua família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa solução para o problema e então não sente:

“Vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).

A assimilação, nesse caso, é a única saída para o colonizado tornar-se sujeito, indivíduo. Infere-se que esse estágio de zumbificação em que se encontra a família do narrador, pode figurar como um interregno entre os dois momentos:

1. Momento em que o indígena recorre ao embranquecimento, como investimento para acessar a categoria de homem, o que envolvia autorrecusa, aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que culmina em revolta e reações repreendidas violentamente pelo sistema;

2. Momento de recusa à assimilação e de retomada aos valores e tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é um investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo próprio sistema europeu.

- Além de, como os demais componentes da família, dormir um sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:

O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que também ressonarei quando adormecer? (HONWANA, 1980, p.36).

É importante salientar, contextualizando a obra e seu contexto histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo referência não era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de colonização, percebe-se um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a Ditadura Nacional, o que levou novos comandos de opressão para suas colônias. Como dito anteriormente, o colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram asseguradas pelo Estatuto do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década de 1960) e passou a viver, sem distinção entre indígenas e assimilados, explorados pelo trabalho.

Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse estado de “morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo entre o primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o momento de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa realidade, por isso uma ação mais organizada e sistematizada.