terça-feira, 16 de dezembro de 2025

CONTOS NEGREIROS, MARCELINO FREIRE, 2005.

 

I – AUTOR: MARCELINO FREIRE

Marcelino Juvêncio Freire (Sertânia, Pernambuco, 1967). Escritor e editor. Entre 1969 e 1975, mora em Paulo Afonso, Bahia. Depois, reside em Recife, onde tem contato com grupos de teatro e leituras de poesias. Sua primeira peça, O Reino dos Palhaços, é encenada em 1981. Dez anos depois, muda-se para São Paulo. Em 1995, edita, de forma independente, seu primeiro livro de contos, AcRústico. Cinco anos depois, lança Angu de Sangue, com prefácio do crítico João Alexandre Barbosa (1937-2006). Em 2002, a Ateliê Editorial publica o livro de aforismos EraOdito, seguido de outros volumes de contos: BaléRalé (2003), Contos Negreiros (2005) e Rasif: Mar que Arrebenta (2008). Ainda em 2002, inaugura o selo EraOdito EditOra e lança a Coleção 5 Minutinhos, reunindo narrativas curtas inéditas dos escritores Glauco Mattoso (1951) e João Gilberto Noll (1946-2017). Em 2006, recebe o prêmio Jabuti por Contos Negreiros, com uma versão em audiolivro. Nesse ano, cria a Balada Literária, evento anual que reúne escritores e artistas, com debates sobre arte contemporânea. Entre 2002 a 2010, mantém o blog EraOdito e, a partir de 2011, escreve no Ossos do Ofídio. Os dois sites funcionam como diário do escritor e veículo de divulgação de seu trabalho e de eventos literários. Também participa da cena literária nacional: organiza Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (2004), antologia de contos de autores contemporâneos, e atua como um dos editores da revista PS:SP, sobre literatura paulistana. Em 2013, publica o primeiro romance, Nossos Ossos, pela editora Record. Em 2014, o livro ganha o prêmio Machado de Assis de Melhor Romance pela Biblioteca Nacional.

II - INTRODUÇÃO:

A sociedade brasileira, frequentemente marcada por desigualdade social, preconceito e violência contra tantas minorias, pouco concedeu ao longo da constituição de sua literatura espaço para a voz negra. A voz da enunciação sempre foi marcada pelas classes dominantes, desde os tempos de escravidão, e a voz branca e masculina sempre esteve preenchendo lugares que não eram seus e exercendo poder sobre o outro. No âmbito de nossa história, tais preconceitos étnicos resultaram em atos de extrema violência, como genocídios, a miséria humana e a marginalização forçada dos negros que viviam nos centros urbanos.

Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade de “dar voz”, de mostrar em pé de igualdade os indivíduos de todas as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor de sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. E é exatamente isso que Marcelino Freire nos mostra em Contos Negreiros. São as vozes de pessoas silenciadas ao longo da história e que nunca detiveram de privilégios, mesmo que ficcionalmente. O contista rompe com a estagnação literária que por muito tempo enxergou os negros ocupando postos inferiores e subalternos em suas obras. Ademais, o autor não expressa em seus contos apenas a vontade de dar voz a esses, mas constrói um novo vínculo entre a marginalização desses sujeitos e a linguagem.

 

III - GÊNERO LITERÁRIO: LITERATURA CONTEMPORÂNEA

Contos Negreiros circula entre as expressões culturais e literárias das periferias, quer sejam urbanas, quer sejam regionais. Há um forte apelo às questões que envolvem as relações entre escrita e oralidade, ficção e testemunho, construídas aqui como efeito de sentido do que não está em lugar algum, do que não consegue se inscrever em apenas um tipo de expressão. Do que não tem lugar na cultura (forma literária) dominante. Como as demais obras de Marcelino Freire, Contos Negreiros sugere diversos caminhos interpretativos e oferece ao leitor a oportunidade de refletir sobre algumas questões que andam polarizando as discussões sobre a narrativa contemporânea: a questão de gêneros literários, os tipos de ponto de vista e focalização narrativa, a enunciação como atitude responsiva, a ficcionalidade, o efeito de oralidade, a relação entre ficção e testemunho, a expressão da marginalidade.

1. Sobre a questão dos gêneros literários, embora o livro seja de contos, pode ser lido como um conjunto de poemas narrativos. À lembrança do poema de Castro Alves do título, os contos lembram poemas na extensão e no trato com a linguagem, não raro criando rimas contíguas e apresentando um ritmo muito próximo da poesia.

2. A quase ausência de descrições e de estratégias narrativas de introdução de personagens faz com que os contos lembrem, também, os diálogos dramáticos.

3. A hibridização proposta problematiza tanto os universais literários conhecidos como modos (lírica, narrativa e drama) quanto os gêneros, pensados como categorias historicamente situadas e apreendidas pela prática literária, como o romance, conto, tragédia, canção etc. O que podemos pensar, com a leitura sistemática da obra de Marcelino Freire, é que ela constrói uma espécie de subgênero narrativo, na medida em que apresenta opções temáticas específicas que criam reflexos nos tipos de estratégias narrativas adotadas. Há uma modalidade de narração recorrente na obra do autor, configurando um tipo de narrador que mimetiza uma espécie de diálogo imaginário, uma fala responsiva que cria um efeito de oralidade como uma mímica a dominar toda a diegese. Há um caráter performático nos contos, que cria uma persona narrativa que responde, com braveza, dor e ironia, a uma peleja imaginária, cujo emissor seria o mundo inclemente em que vivem os desvalidos.

IV – CARACTERÍSTICAS:

1. LINGUAGEM:

Marcelino Freire apresenta 16 narrativas (contos e crônicas) que procuram aproximar-se de uma linguagem coloquial, memorial e, às vezes, musical, baseada nas influências deixadas pela oralidade das ladainhas e canções nordestinas.

A oralidade pode ser considerada como um veio ancestral da narrativa, uma característica que marca, mais que a anterioridade histórica em relação à escrita, a memória que ficou de uma prática, presa à forma como uma determinação do gênero. Há algumas formas de pensar a oralidade. A primeira a que o termo costuma aludir remonta às formas ligadas à tradição oral, oriundas de emanações da linguagem, passadas de geração a geração sem a criação singular de um poeta.

Há o uso da oralidade como mimetização da linguagem falada inscrita na linguagem escrita, servindo a determinados fins: estratégia enunciativa, no caso dos diálogos no interior da narrativa; efeito do real, que o narrador busca atingir mimetizando as marcas pessoais dos personagens; efeito regional, quando os sotaques e as expressões singulares buscam ancorar a narrativa em determinado espaço e tempo; ou efeito coloquial, prosaico, programado para caracterizar as narrativas modernistas, por exemplo, entre outros. Há a concepção da oralidade como marca de leitura em voz alta, como uma partitura musical traz a determinação do andamento, da altura, da interpretação.

A obra toda de Marcelino Freire traduz uma opção pela oralidade em todas as acepções mencionadas acima. Como escolha e técnica enunciativa, a oralidade marca a cessão da voz narrativa, em discurso direto, aos personagens enfocados em cada conto, numa espécie de dramatização radical: a voz que narra é a mesma que sofre (em todos os sentidos) o narrado. Mesmo quando o narrador opta pela terceira pessoa, procurando um certo distanciamento do narrado, acaba por se render à focalização interna e misturar as vozes narrativas, numa clara adesão ao discurso do outro.

Os contos/resposta lembram, pelo tom encolerizado, a expressão que resulta de uma dolorida provocação. São expressões que, compostas dentro do suporte corpo, espalham indignação pelos espaços até onde a voz consegue ecoar. São passadas de boca em boca, de ouvido em ouvido, de corpo em corpo. Lembram, por isso, as expressões artísticas mais populares do Brasil como as cantorias, os repentes, os aboios, os cocos, os cordéis.

 

2. A CAPA E TÍTULO:

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A capa de Silvana Zandomeni e Marcelino Freire antecipa aos leitores o que virá. A foto de um homem preto, estampada na capa, lembra as fotos policiais, pela posição ereta e pelo sombreado. A posição do homem, nu, de costas, na capa da frente, e nu, de frente, na capa de trás, dá a ver a opção inicial da obra pelo avesso, pelo outro lado.

No entanto, o autor não parte do preconceito ao negro ou de sua realidade de exclusão para compor sua obra. Ela é composta pela experiência de exclusão de todos os “mortos-vivos” que perambulam pelas ruas dos grandes centros do país, independentemente da cor da pele.

3. EPÍGRAFE:

A epígrafe inicial, paródia de Ary Barroso (“Brasil do meu amor/ terra de nosso sinhô”), bem como a dedicatória (“Para Chocottone”) também evocam a imagem do negro, que será co(a)ntada em extensão e andamento em prosas poéticas repletas de ritmo e rimas.

4. DRAMATIZAÇÃO:

Este parece ser o objetivo da maioria dos contos: uma fala dramatizada que supõe a presença de um leitor “coator e coautor” do conhecimento que se cria da/na linguagem. E uma fala que se oferece à performance, quase como uma fala dramatúrgica à espera da interpretação do ator.

O tom de pergunta e resposta, presente em quase toda a obra, lembra muito as pelejas populares, o desafio que caracteriza a maior parte das formas advindas da oralidade.

A obra de Marcelino Freire guarda a memória de um desafio como molde cultural de percepção e interpretação da realidade, e o faz respondendo pelo lado do outro, não mais dominado e fraco, mas como uma personagem que argumenta e se defende, expondo a sua voz e as suas razões. Sua criação literária passa pela valorização da memória, oriunda das heranças culturais – a cultura popular nordestina – e a percepção de um tempo presente. Assim, nos contos estão presentes traços marcantes da literatura contemporânea e características da oralidade, que talvez existam pela proximidade que Freire tem com o teatro, e uma cópia perfeita e bem estudada em sua escrita do meio social do qual retrata. Tais aspectos proporcionam ao leitor não somente as emoções esperadas ao ler qualquer outro livro de nossa literatura, mas surpreendem porque põem em pauta a pura e bruta realidade de nossa sociedade. Marcelino Freire veste, no seu fazer literário, vozes que não são suas, mas que mostram a revolta, pulsação e dureza de um povo. Por isso o leitor, ao ler seus contos, sente-se como se estivesse ouvindo vozes que gritam, que têm vidas e que sofrem.

5. O FOCO NARRATIVO:

Segundo Antônio Candido (1987), o escritor de contos “agride o leitor pela violência, não apenas dos temas, mas dos recursos técnicos — fundindo ser e ato na eficácia de uma fala magistral em primeira pessoa, propondo soluções alternativas na sequência da narração, avançando as fronteiras da literatura no rumo duma espécie de notícia crua da vida”. Freire, assim, capta para o seu discurso uma voz que não é sua, mas que consegue transmitir, com menos ou mais intensidade, a violência que é sentida pelo outro. As vozes de seus contos, oriundas de outros espaços sociais, normalmente são de negros que não acreditam na liberdade que muito foi discutida após a escravidão. Também, em boa parte de seus fragmentos, as personagens, na maioria deles, a voz em primeira pessoa, não aceitam os papéis e os destinos reservados a elas pela bruta realidade.

Nos contos de Marcelino Freire, podemos notar que as narrativas são construídas a partir de um foco realista e muitas vezes absurdo se visto pelo viés moralista, mas que não deixam de estar em correspondência ao absurdo diário que os jornais muitas vezes registram. A narração em primeira pessoa na maioria dos contos deixa transparecer um tom de denúncia social que mostra nitidamente (como é o caso dos escritores que se filiam ao Movimento Marginal atual) a preocupação em dar voz às personagens indesejadas da sociedade, respeitando a oralidade da fala das personagens reais dos quais buscam inspiração.

 

V - TEMÁTICA:

Não é necessário um olhar minucioso para encontrar na literatura brasileira contemporânea exemplos de obras que tenham como temas a violência e a marginalidade social. Histórias ficcionais permeadas pelas diferentes formas de violência – seja a violência ética, a moral, ou a física – são numerosas e, ainda que muitas destas histórias tangenciem o absurdo, elas não perdem o contato com o que sabemos ser real e possível em uma sociedade marcada sobretudo por grande desigualdade econômica. Estas narrativas refletem a desorientação e a insegurança de nosso tempo. Parte da produção literária contemporânea, tenta expurgar estes sentimentos, ainda que, paradoxalmente, tente fazer isso pela representação da violência e do testemunho de experiência dos marginalizados. A chamada Nova Literatura Marginal toma esta tarefa com especial atenção, buscando afastar-se da estetização gratuita da violência e do excluído social.

Na obra Contos Negreiros, Marcelino Freire aborda temas delicados e polêmicos como racismo, turismo sexual, tráfico de órgãos e homossexualismo. Através da apresentação das personagens afrodescendentes na obra de Freire notamos que o passado ainda vive nos dias atuais. O Brasil Colônia e sua escravidão ainda estão presentes em nossa sociedade e contribuem veementemente para a violência e marginalização.

Com o grande aparecimento de escritores contemporâneos que surgiram para dar voz a si mesmos e aos outros os discursos periféricos têm sido reescritos para uma nova literatura que busca a todo instante desconstruir preconceitos e sensibilizar o olhar do leitor para com o outro. Percorrendo esse caminho, Freire nos mostra que toda tipificação negra carrega em si outros subtipos que também sofrem violência.

O autor aborda, na grande maioria de seus contos, o tema do preconceito racial. A violência é demarcada pela perspectiva dos marginalizados em “Linha do Tiro”, “Esquece” e “Polícia e Ladrão”, sendo que o primeiro se opõe aos últimos por sua leveza e seu humor. A homossexualidade é tema de “Coração” e “Meus amigos coloridos”, sendo mais evidente no primeiro do que no segundo. Em “Totonha”, uma senhora discursa sobre os motivos de não querer aprender a escrever: não é mais moça, não tem importância alguma, não quer baixar a cabeça para imprimir seu nome em um pedaço de papel. Totonha argumenta: “O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba? ” (p.79).

 

VI - ESPAÇO:

A paisagem urbana é o cenário principal de seus cantos (contos). Algumas paisagens de importantes centros urbanos, como Recife e São Paulo, como as zonas de prostituição, morros, favelas e pontos turísticos, tornam-se palcos para a exposição de uma realidade complexa e miserável, vivida por prostitutas, “bichas”, negros, índios, além de abrigar traficantes de órgãos e de drogas, e turistas sexuais.

As metrópoles, desde o período moderno, surgem como centros para a formação cultural, intelectual e profissional do homem que, então, através do trabalho, gera o progresso. No entanto, elas tornaram-se também o cenário mais comum dos processos ilícitos construídos pela humanidade: tráfico, sequestro, violência, roubos. O autor abriga seus personagens dentro das zonas mais inóspitas da cidade, mas sem deixar de produzir um fascínio nos próprios personagens (e nele mesmo). O testemunho representa as experiências de um coletivo que as torna, sobretudo, comunicáveis. Algo que, embora possa virar notícia, não torna a experiência uma mensagem a ser legitimada.

 

VII - PERSONAGENS:

As experiências ocorridas no dia-a-dia das metrópoles brasileiras apresentam testemunhos de sujeitos que estão à margem da sociedade contemporânea. Sujeitos sem voz, sem espaços para o testemunho, vistos quase como objetos ou tratados como objetos pela mídia e por toda sociedade. A narração de uma experiência guarda algo da intensidade do vivido, seja por aqueles que narram sua própria experiência ou por aqueles narradores observadores que narram a experiência do outro.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

“21 GRAMAS” (2003), ALEJANDRO GONZÁLES

 


I – INTRODUÇÃO:

“O diretor do também famoso “Amores Brutos” dá continuidade, no filme “21 Gramas”, ao estilo Novo mas representativo de uma forma inusitada e esteticamente definida nessa ambiência plural do mundo do cinema. Sua inclusão nesta lista se justifica pela contemporaneidade dos temas trabalhados e pela forma extremamente singular de tratar esses temas. O filme parece um entrecruzar de estruturas de contos que se fragmentam, se esfacelam e ao mesmo tempo, como se fosse por bricolagem, se remontam e se organizam de forma harmônica no conjunto da obra. A morte, a questão do transplante, a questão do aborto, a questão da droga e sobretudo a questão da carência do homem contemporâneo formam o tricô dessa obra exemplar que paira o tempo todo numa pergunta não respondida – o peso e o sentido da vida.” (www.fgvsp.com.br)

II – TÉCNICAS DE MONTAGEM:


O mexicano Alejandro Gonzáles, diretor do longa-metragem indicado ao Oscar “Amores Brutos”, está de volta à cena com o drama “21 Gramas”, filme que tece reflexões sobre a vida, a morte e a relação que os vivos têm com a morte.

O filme é falado em inglês e conta com Sean Penn, Naomi Watts e Benicio Del Toro.
O estilo quebra-cabeças faz o espectador ficar em alerta desde a cena inicial, com um misto espantoso de hiper-realismo, complexidade visual e temática poderosa. Como é de seu feitio, Alejandro Gonzáles, amarra a história inserida como um caleidoscópio, o que reforça o tempo do espírito, cheio de idas e vindas, permanências (mais nas tragédias) e abandono (mais nas epifanias).
Realizado pela mesma dupla responsável pelo excepcional, “Amores Brutos” (mesmo roteirista Guillermo Arriaga e o diretor Alejandro González), “21 Gramas” segue um estilo parecido ao daquele filme ao narrar histórias paralelas que acabam se entrecruzando em um momento-chave da trama.
O ritmo do filme é determinado pela edição, Alejandro e o diretor de fotografia Rodrigo Prieto rodaram quase o filme inteiro com a câmera segurada na mão. As cores são insaturadas, às vezes se aproximando de um quase preto e branco. O realismo intransigente do filme, assim, intensifica-se e o espectador observa um mundo transfigurado.
O diretor mexicano utilizou-se de câmeras “ocultas”, apresentando as personagens numa estrutura fictícia esquemática, gerando no espectador um estado quase meditativo. Desse modo, surge indagações que, em qualquer outro filme, poderiam soar pomposas, mas que neste caso, soam inteiramente pertinentes, tornando a atuação dos atores mais real, criando um clima denso ao filme e conseguindo extrair nesta complexa trama, interpretações sólidas e desprovidas de qualquer tipo de afetação pretensiosa, como por exemplo: Naomi Watts que só vem comprovar seu talento; Benicio Del Toro que confere dignidade a Jack Jordan, o que é fundamental para o que o espectador se envolva com seu drama, já que, de outra maneira, a natureza ambígua do sujeito poderia torná-lo antipático aos olhos do público e a Sean Penn, onde o ator se envolve em um projeto que estuda difíceis relacionamentos familiares e a dor provocada pela perda de alguém querido.
O filme avança e recua no tempo. Mas a estratégia não consiste em confundir o espectador, e sim, em cativar seu processo mental de maneiras que uma narrativa linear possivelmente não conseguiria inspirar. Pelo fato de estar tanto à frente quanto atrás da narrativa, o espectador fica mais livre para especular e contemplar a maneira como o destino atua e as vidas se interligam.
Alejandro Gonzáles “brinca” com a cronologia de suas histórias, obrigando o espectador não apenas saltar de uma narrativa para outra, como também deparar-se em momentos diferentes de cada trama e não fornecendo nenhuma pista que nos ajude a decifrar sua estrutura, obrigando-nos a trabalhar às cegas. Com isso, fatos que julgamos ter acontecido no “passado” podem se revelar, mais tarde, como ocorrências futuras. É como se o filme nos convidasse a participar de sua montagem. Por outro lado, o roteiro de “21 Gramas” acaba exagerando ao revelar detalhes importantes com muita antecedência, o que elimina parte do impacto que deveria surpreender o espectador no terceiro ato.
Conclusão: “21 Gramas” é um filme interessantíssimo, tanto pela força das interpretações, já que o ótimo elenco se entrega sem reservas aos infelizes humanos que habitam o filme, como pela sua estrutura narrativa brilhante e pela temática penetrante tanto do ponto de vista emocional quanto intelectual.

III – CONTEXTO HISTÓRICO:

“21 Gramas” é um filme contemporâneo e traz uma série de temáticas polêmicas: transplante, destino trágico, dor da perda, inseminação artificial, religiosidade, maternidade, drogas, prisão, culpa etc

IV – SÍNTESE DO ENREDO:


Ao longo da projeção somos apresentados a três famílias: Paul Rivers (Sean Penn), um professor de matemática em fase terminal de uma doença cardíaca, e sua esposa, Mary (Charlotte Gainsbourg), que está determinada a engravidar dele por meio de inseminação artificial; Cristina Peck (Naomi Watts), que deixou uma vida de drogas e farras através do casamento estável com um arquiteto (Danny Huston) e do nascimento de suas duas filhas e, Jack Jordan (Benicio Del Toro), ex-presidiário e sua esposa, Marianne (Melissa Leo).

Vivendo em realidades completamente distintas, os três protagonistas (Paul, Cristina e Jack) têm suas vidas alteradas depois que uma tragédia une seus caminhos. Um acidente matando o marido de Cristina e suas duas filhas desviam a trajetória de todas essas vidas, deixando os sobreviventes arcados sob o peso de um sentimento de culpa avassalador. A vida continua, é o que lhes dizem. Será que continua mesmo? Se sim, onde está á esperança de sobrevivência para aqueles que sofrem, mas continuam a viver?
Alejandro Gonzáles rejeita as respostas fáceis e as caracterizações óbvias – parece estar dizendo ao espectador que é ele mesmo quem deve decifrar as respostas. E, não facilita as coisas, não julga suas personagens. Ele os mostra como indivíduos confusos e contraditórios que lutam para enfrentar forças que estão além de sua compreensão.
Será que Deus os traiu? Ou eles próprios se traíram? O que devemos aos mortos? Onde vamos buscar esperança e redenção? Como ter uma vida boa? Por meio de Deus? Ou, apesar de Deus? Vinte e um gramas seria o peso que a pessoa perde quando morre, será esse o peso e a medida da alma humana?
A mortalidade é o problema com que todas as personagens se defrontam. Alguns estão perto de morrer, outros estão próximos de pessoas que morreram há pouco.
Cristina é, sem dúvida, a personagem que percorre o maior arco dramático do roteiro, já que, de mulher feliz e serena, transforma-se em um símbolo de depressão e ódio até chegar ao estado emocional no qual se encontra ao fim da história, seu desejo por vingança.
A personagem em um diálogo com seu pai, afirma que: “(…) sua vida nunca será a mesma, sempre existirá uma lacuna, nunca suprida, e que ela não compreendia como seu pai conseguia sorrir novamente após a morte de sua esposa.”
Paul é ameaçado, todos os dias, por uma morte suspensa, esperando que surja um doador para o transplante de coração. Ele vive fragilizado perante a mortalidade e a cobrança de sua esposa em ter um filho seu, representando a continuidade do amor deles. Porém, esse amor por parte de Paul já não existe, seu relacionamento é uma farsa e mesmo o milagre do transplante o faz reviver, mas não revive o amor dos dois.
Apesar da dor de Paul parecer ter predominância física, o seu vácuo não é menor. Ele quer saber tudo sobre o doador do novo coração que ele agora, leva consigo, o que o leva a conhecer Cristina. Vem mais um paradoxo: Paul pode se regozijar por sobreviver, mesmo que essa sobrevida seja um resultado de uma tragédia sem volta?
Jack luta para reconstruir sua vida depois de passar um tempo indeterminado na prisão. Lá encontrou Jesus, converteu-se e passou a viver com dignidade e propósitos. No entanto, enfrenta o preconceito da sociedade. Jack enfrentará muitas dificuldades para conseguir restabelecer-se, no entanto, sua esposa, Marianne, às vezes sente saudades do Jack antigo.
Um acidente trágico colocará Jack à frente de novas provações de fé.
O diretor explorando a existência física e emocional dessas três personagens durante um período de vários meses entrelaçará os seus destinos numa história em que os levará aos limites do amor, às profundezas da vingança e à promessa de redenção. Entretanto, para que o equilíbrio espiritual de alguns deles seja recuperado, será necessário muito sacrifícios dos outros, intercalando-os com uma dor incessante em suas trajetórias. Enfim, trágico, diga-se de passagem, é um termo que se aplica aos três protagonistas de “21 Gramas”, já que, na realidade, nenhum deles pode ser “culpado” pelo que aconteceu, nem mesmo Jack.
Jack, Paul e Cristina são apenas pessoas comuns que procuram encontrar algum sentido para suas vidas, mas que, de alguma forma, parecem “marcadas” para sofrer.

V – TEMÁTICA: 


A morte:

Alejandro Gonzáles trabalha o enigma da morte de maneira humanizada e fotográfica.
A meditação sobre a morte é um ato universal e partilhado por todos os seres humanos.
A metáfora contida no título traduz muito bem o objetivado pelo diretor no decorrer da película: “diz-se que perdemos 21 gramas no momento exato da nossa morte. O peso de uma pilha de moedas, de uma barra de chocolate, de um colibri. Será ele o peso da vida ou o peso da alma?”
O contraste dessa medida ínfima é assustador comparando-se com a imensidão do fardo que deixamos para os que ficam.
O filme é uma reflexão penetrante que todos estamos destinados. A sua visão da morte é perturbadora e vai se tornando mais clara e nítida quando ela se aproxima para a coleta das almas. É desconcertante a condução que o cineasta nos leva: uma encruzilhada, onde vários caminhos se cruzam, mas não há uma saída única e positiva – a única certeza é que, o ser humano perderá um dia, 21 gramas, talvez, o peso de sua alma.

O destino trágico:

Três vidas, três destinos que se cruzam e contemplam a morte de frente.
Jack após sua regeneração e aceitação de Jesus, como seu salvador e sentindo-se protegido; é colocado á mais uma provação, levando-o a questionar a existência de um Deus bondoso, afirmando: “O inferno está aqui!”
Jack exibe em tintas mais sociais o sistema prisional massivo, igrejas frequentadas por perdedores de sonhos e uma imensa dor da alma.
Podemos constatar sua angústia espiritual, seu conflito íntimo e existencialista ao testemunharmos seu intenso remorso com relação ao acidente. Afinal, quem é esse Deus que nos mostra um caminho novo e depois, atira-nos de volta ao inferno?
Cristina após uma vida desregrada também, regenera-se, através do amor e da família, até o acidente colocar fim a todos os seus sonhos.
Paul é movido por uma culpa injustificada, já que sua participação no ocorrido (acidente e transplante) foi a de um elemento passivo. Mas, é precisamente seu esforço para corrigir algo que não pode ser reparado que o torna tão trágico.
O filme, enfim, retrata uma história de esperança e humanidade; de resistência e sobrevivência e de dor que lança suas personagens a um destino trágico.

Liberdade versus Destino:

No curso da existência é que o homem vai decidir acerca de seu próprio destino. O futuro está sempre em aberto, e ele será preenchido por um projeto, que é fruto de uma escolha e de uma decisão. O homem é livre na exata medida em que introduz o nada no mundo. E, como isso é inerente à condição humana, não há como não ser livre. Daí a célebre frase: “o homem está condenado a ser livre.”
A obrigação de ser livre gera a angústia, que deriva do sentimento de não estar predestinado, de ter de optar construindo ao mesmo tempo o fundamento da opção. É excesso de poder sobre o homem que gera o medo.
Paul, Jack e Cristina fizeram suas escolhas livremente, optaram pelo caminho da vida, da religião e da família; mas, seus destinos os surpreenderam, trazendo a dor e a experiência de que a existência “não vale á pena”. Sentindo-se fragilizados perante a força do destino e de Deus, as personagens tornam-se incapazes de seguirem sua trajetória de vida, tornando-se niilistas perante a existência humana.
O enredo do filme leva as personagens se colocarem frente a si e a seu destino desnudado do aparato lógico. Elas não se vêem diante de um sistema de ideias e ideologias, mas diante de fatos, mais precisamente de um fato fundamental que nenhuma lógica pode explicar: o destino e a finitude humana.

VI – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Por volta de 1400, o modo metafísico de pensar começa a ser seriamente questionado pela mesma consciência racional que até então se dedicara a ele! Uma série de razões de ordem econômica, política e cultural está à base desse questionamento. É que a explicação metafísica tornara-se insatisfatória para a consciência filosófica que vai emergindo no início da era moderna.
A realidade, a cultura ocidental, em decorrência de todo o desenvolvimento econômico e social da Europa, coloca à disposição dos homens outros instrumentos e recursos que lhes permitem ir além das conclusões metafísicas.
Tudo começa com a insatisfação de novos pensadores com as explicações trazidas pela metafísica, a essa altura ainda compromissada com a teologia cristã!
Começa a se questionar a tutela que a teologia exercia sobre a filosofia e a ideia de que a razão natural dos homens ficava na dependência da graça divina e devia ser orientada e corrigida pela fé.
Já na Idade Moderna, quando o homem passa a ocupar o centro do universo, achando-se então mais autônomo em relação a Deus, sentia-se menos temeroso em relação ao mundo que passava a considerar como uma realidade meramente natural. Essa “independência” em relação à figura de Deus tinha lá suas vantagens, mas também suas desvantagens: de um lado, o homem passava a se valorizar mais, a dominar a natureza e a enfrentar os seus problemas com mais objetividade e menos fantasias, por exemplo, o desenvolvimento da técnica e da medicina (transplante, aborto e inseminação artificial). Na cosmovisão cristã medieval nem o mundo material nem o corpo humano podiam ser manipulados porque eles eram considerados como receptáculos de Deus, merecendo assim absoluto respeito. As desvantagens vinham no plano da própria consciência (a culpa pela morte das duas meninas e do senhor). Iluminada pela fé, a razão medieval tinha muita segurança e tranquilidade, pois estava certa de que poderia sempre conhecer a verdade, uma vez que tinha sempre à sua disposição o auxílio esclarecedor da revelação divina, mediada pelos textos bíblicos e pelo magistério da Igreja.
Além disso, o homem moderno descobre sua subjetividade. Enquanto o pensamento antigo e medieval parte da realidade inquestionada do objeto e da capacidade do homem de conhecer, surge na Idade Moderna a preocupação com a “consciência da consciência”. O problema central é o problema do sujeito que conhece não mais do objeto conhecido. Antes se perguntava: “Existe alguma coisa?”, “Isto que existe, o que é?”. Agora o problema não é saber se as coisas são, mas se nós podemos eventualmente conhecer qualquer coisa.
Outros temas apresentados no filme são: a dor e a doença; amor e perda e o ato responsável.

 



sexta-feira, 21 de novembro de 2025

ANTÔNIO CARLOS FERREIRA DE BRITO, O CACASO

 Poesia rápida como a vida. Antônio Carlos Ferreira de Brito, o Cacaso, nasceu em Uberaba – MG, no dia 13 de março de 1944, e faleceu em 1987, no dia 27 de dezembro, no Rio de Janeiro. Antes dos 20 anos veio a poesia, através de letras de sambas que colocava em músicas de amigos como Elton Medeiros e Maurício Tapajós. Sua obra não só revelou uma das mais combativas e criativas vozes dos anos de chumbo, como deu visibilidade e respeitabilidade ao fenômeno da Poesia Marginal, em que militavam, direta ou indiretamente, amigos como Francisco Alvim, Torquato Neto, Wally Salomão, Ana Cristina Cezar, Charles, Chacal.

Atuou como crítico literário em jornais e revistas. Compôs letras de MPB em parcerias bem-sucedidas e tornou-se um pilar da chamada poesia marginal brasileira. Suas principais obras poéticas são A Palavra cerzida (1967), Grupo escolar (1974), Beijo na boca (1975), Segunda classe (1975), Na corda bamba (1978) e Mar de mineiro (1982). 

CARACTERÍSTICAS:

Por maiores que se mostrassem as diferenças entre os poetas marginais e grupos emergentes, Cacaso estava com a razão: o poema era único” (Hollanda 1980). É explícita a intenção estética à maneira de Oswald de Andrade, usuário do humor como atitude poética, cultivador emérito do poema-piada, construída por meio de um exercício poético que incorpora as tensões políticas e estéticas à sua própria linguagem ao invés de apenas referi-las. Optando por uma linguagem de essencialidades, Cacaso tende, sobretudo nos poemas curtos, à fusão bem balanceada de imagem, tom e emoção para iluminar instantaneamente os impasses de sua geração.

 

HÁ UMA GOTA DE SANGUE NO CARTÃO POSTAL

 

eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando
[na beira de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido de medo e de amor

 

O FAZENDEIRO DO MAR

Mar de mineiro é garoa
Mar de mineiro é baião
Mar de mineiro é lagoa
Mar de mineiro é balão
Mar de mineiro é não

Mar de mineiro é viagem
Mar de mineiro é arte
Mar de mineiro é margem
Mar de mineiro é parte
Mar de mineiro é Marte

Mineiro tem mar de menos
Mineiro tem mar demais
Mineiro tem mar de Vénus
Mineiro tem cais
Mineiro tem mar de paz

Mar de mineiro é tudo
Mar de mineiro é fase
Mar de mineiro é mudo
Mar de mineiro é quase
Mar de mineiro é frase

Mineiro tem mar de cio
Mineiro tem mar de fonte
Mineiro tem mar de rio
Mineiro tem mar de monte
Mar de mineiro é horizonte

Mar de mineiro é Gerais
Mar de mineiro é Campinas
Mar de mineiro é Goiás
Mar de mineiro é Colinas
Mar de mineiro é Minas

LAR DOCE LAR

p/ Maurício Maestro

Minha pátria é minha infância:
Por isso vivo no exílio.

Há oposição sucinta entre um passado protegido, figurado em terna e crédula infância, e um presente desvalido, simultaneamente construído e descontruído pela ambivalência do último verso.

CINEMA MUDO

Neste retrato de noivado divulgamos
os nossos corpos solteiros.
Na hierarquia dos sexos, transparente,
escorrego para o passado.
Na falta de quem nos olhe
vamos ficando perfeitos e belos
tão belos e tão perfeitos
como a tarde quando pressente
as glândulas aéreas da noite.

Na contramão do experimentalismo erudito das vanguardas imediatamente anteriores, Cacaso investe alto no recurso da aproximação confessional e no desejo de junção entre vida e arte.

LOGIAS E ANALOGIAS

No Brasil a medicina vai bem
mas o doente ainda vai mal.
Qual o segredo profundo
desta ciência original?
É banal: certamente
não é o paciente
que acumula capital.

As aparências revelam
Reflexo condicionado

Imantado por uma irreverência bastante próxima da fala cotidiana, tece versos em que estética e ética se fundem contra ditaduras de todos os matizes, inclusive artísticos

JOGOS FLORAIS I

Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.

Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.

JOGOS FLORAIS II

Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.

Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.

(será mesmo com 2 esses
que se escreve paçarinho?)

Embora tenha alguma validade a ressalva de que a reaparição contínua gasta a graça da piada, o deleite estético e ironia pulsante das releituras de Cacaso se impõem em “Jogos Florais” (Grupo escolar):

Amalgamando a romântica “Canção do exílio” de Gonçalves Dias com o chorinho “Tico-tico no fubá”, de Zequinha de Abreu, o eu-lírico abre alas para o ceticismo irônico quanto ao progresso alardeado pelo regime militar e seu milagre econômico acrimonioso, porque intensificador da concentração de renda e, ato contínuo, da pobreza brasileira. “Jogos Florais” deixa ver seu criador como produto da comunhão de diversas forças – o nacionalismo romântico de Gonçalves Dias e Casimiro de Abreu, a herança iconoclasta de Oswald de Andrade, Carlos Drummond e Murilo Mendes. Na segunda parte do poema, ressoa a frustração dos idealismos decorrente do bloqueio da participação política e dos interditos do passado e do presente.  Ao cabo, o jogo paródico abriga simultaneamente a sátira político-social (milagre malogrado, histórico de escravidão e repressão) e a confraternização literária e musical (poesia do exílio e chorinho). A linguagem do poema aproxima-se da fonte nacional-popular, sobretudo no irreverente dilema ortográfico em versos parentéticos, compatível apenas com uma poesia que dispensa solenemente a gravata. O mosaico intertextual de “Jogos Florais” intensifica os valores semânticos, afetivos e fonético-musicais, criando um vibrante consórcio entre as palavras dos versos, que, todavia, enunciam um eu-lírico exilado em sua própria terra.

 

 

domingo, 2 de novembro de 2025

FREI LUÍS DE SOUSA, ALMEIDA GARRETT

 I – INTRODUÇÃO:

“Nem amores, nem aventuras, nem paixões, nem caracteres violentos de nenhum gênero. Com uma ação que se passa entre pai, mãe e filha, um frade, um escudeiro velho e um peregrino que apenas entre em duas ou três cenas – tudo gente honesta e temente a Deus – sem um mais para contraste, sem um tirano que se mata ou mata alguém, pelo menos no último ato, como eram as tragédias dantes – sem uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfêmias e das maldições, como hoje se quer fazer o drama – eu quis ver se era possível excitar fortemente o terror e a piedade ao cadáver das nossas platéias, gastas e caquéticas pelo uso contínuo de estimulantes violentos, galvanizá-los com sós estes dois metais da lei.”

 Almeida Garrett, “Conferência ao conservatório real de Lisboa”, em 06 de maio de 1843.

“Frei Luís de Sousa”, que continua a ser considerado um clássico da literatura de língua portuguesa e uma das criações máximas do seu teatro, foi inicialmente apenas lido a um grupo selecto de amigos do autor (entre os quais Herculano). A primeira representação fez-se em privado, no teatro da Quinta do Pinheiro, no mesmo ano de 1843, tendo o próprio Garrett desempenhado o papel de Telmo. A peça só teve a sua estreia pública em 1847, em versão censurada pelo regime cabralista. A versão integral só foi levada à cena no então Teatro Nacional (actual Teatro Nacional de D. Maria II) em 1850.

II –  CARACTERÍSTICAS:

“É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.

[...]

Como esta imitação é executada por atores, em primeiro lugar o espetáculo cênico há de ser necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopéia e a elocução, pois estes sãos os meios pelos quais os atores efetuam a imitação. [...]

E como a tragédia é a imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as ações), daí vêm por consequência o serem duas causas naturais que determinam as ações: pensamento e caráter; e, nas ações [assim determinadas], tem origem a boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de ações; e, por "mito", entendo a composição dos atos; por "caráter", o que nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por "pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que quer que seja ou para manifestar sua decisão.

[...]

Porém, o elemento mais importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao caráter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Daqui se segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso, as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais importa.

[...]

Portanto, o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse esboçado uma figura em branco. A tragédia é, por conseguinte, imitação de uma ação e, através dela, principalmente, [imitação] de agentes.”

Aristóteles, Poética, 49 b / 50 b

 “Esta é uma verdadeira tragédia - se as pode haver, e como só imagino que as possa haver sobre fatos e pessoas comparativamente recentes. [...]

Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado, contudo que me atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.

O que escrevi em prosa pudera escrevê-lo em verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingênuo bastante para dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. Mas sempre havia de aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também por na boca de Frei Luís de Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.

Contento-me para a minha obra com o título modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma desmerece da categoria, pela índole há de ficar pertencendo sempre ao antigo gênero trágico.

[...]

Escuso dizer-vos, Senhores, que me não julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da cena tudo quanto á severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!”

 

Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em 6 de Maio de 1843 - nota de Garrett)

Garrett através da “Memória ao Conservatório” afirma que o conteúdo do “Frei Luís de Sousa” possui todas as características de uma tragédia. Entretanto, denomina-lhe drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não foi escrita em versos; não foi composta em cinco atos; não respeitou as unidades de tempo e de lugar e não relata assunto antigo.

No entanto, em “Frei Luís de Sousa” encontra-se número de personagens diminuto; desafio as prepotências divinas e humanas (a hibris, arrogância de poder); fatalidade; morte moral; pathos (catástrofe; passividade); heroísmo; crença em agouros, em dias aziagos, em superstições; semelhanças com o coro grego (Telmo, dizendo verdades duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto) etc.

Dessa forma, pode-se afirmar que “Frei Luís de Sousa” é um drama romântico, com temática de uma tragédia.

 III – ESTRUTURA:

A peça possui apenas três atos. Eles se sucedem numa velocidade de ritmo que torna implacável, aos olhos do espectador, a catástrofe final. Desde a primeira cena do primeiro ato, percebemos a insegurança em que vive D. Madalena de Vilhena, casada em segundas núpcias com Manuel de Sousa Coutinho, sete anos após a suposta morte de D. João de Portugal, seu primeiro marido. Percebemos também que Telmo Paes, um escudeiro, velho empregado da família, alimenta com insinuações constantes a insegurança de D. Madalena.  

 IV – PERSONAGENS:

As personagens são descritas ao longo da peça e através dos diálogos das personagens.

Não há referências aos atributos físicos das personagens, exceto em raríssimo caso como o de Maria que sabemos ser uma menina franzina.

Os criados não são descritos de forma alguma; somente seus nomes e suas ocupações são mencionados. A classe fidalga é privilegiada neste sentido.

As personagens Telmo Paes e Frei Jorge crescem no terceiro ato, tornando-se fundamentais para o desfecho trágico da peça.

Almeida Garrett trata D. Sebastião e Luís Vaz de Camões de forma tão atenciosa, que podemos considerá-los personagens secundárias.

- D. Manuel de Souza Coutinho (protagonista): herói romântico; filho de Lopo de Souza Coutinho; segundo esposo de D. Madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar (ideia inconfessada); fidalgo honrado, religioso, patriota (incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; abandona o nome de batismo ao ser convertido em frei e passa a chamar-se Frei Luís de Souza.

- D. Madalena de Vilhena: foi esposa de D. João de Portugal; mulher recatada, virtuosa, cristã, dada a presságios. Os seus temores a impediram de desfrutar plenamente a felicidade de estar casada em segundas núpcias com D. Manuel. Revela que se apaixonou pelo segundo marido antes de ficar viúva e sente-se culpada e pecadora. Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher para lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão. Converte-se também à vida religiosa, recebendo o título Sóror Madalena.

- D. João de Portugal: guerreiro honrado e generoso; casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente (quando pensa, por momentos, que Madalena o ama). Parece ser cruel e vingativo, mas perdoa a esposa; pede a Telmo que salve D. Madalena e D. Manuel do triste fim que os aguardava.

- Maria de Noronha: filha do segundo casamento de D. Madalena e D. Manoel. Aos treze anos apresenta-se como menina pura, inteligente, perspicaz, intuitiva, estudiosa e que gosta de ler. É carregada de virtudes que a diferenciam das outras meninas da sua idade.

É muito influenciada por D. Telmo. D. Madalena afirma que a menina não ouve, não crê, não sabe senão o que D. Telmo lhe diz. Ela "lia nos olhos e nas estrelas".

Sofre de tuberculose e morre no final da peça.

Segundo Vasco Graça Moura, uma análise psicológica da obra revelaria uma conexão entre Maria e a filha ilegítima de Almeida Garrett com Adelaide Pastor.

- Telmo Paes: escudeiro de família dos condes vimioso, antigo amigo da família que dizia amar Maria como se fosse sua filha. Sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua "menina".  Alimenta os temores de D. Madalena. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.

- Frei Jorge: irmão de D. Manuel; evita que Telmo apresente a solução proposta por D. João de Portugal para livrar a família de D. Manuel da degradação social. Portador do discurso católico que promete consolar os sofredores, caso se convertam à religião e aceitem os desígnios de Deus.

- Miranda e Dorotéia: criados de D. Manuel e D. Madalena. Dorotéia é a aia de Maria.

- D. Joana de Castro: tia de Maria que abandona o esposo para se tornar freira.

- Romeiro: D. João de Portugal que retorna do cativeiro na Terra Santa e não é reconhecido por D. Madalena.

V – TEMPO E ESPAÇO:

A trajetória das personagens limita-se entre: África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II palácio, numa época de peste em processo de declínio.

- Influência das lutas pela liberdade religiosa no século XVI. Os ingleses já haviam traduzido as sagradas escrituras. Em Portugal, somente os religiosos dominavam os segredos do catolicismo, porquanto as missas eram rezadas em Latim.

- Influência do Iluminismo.

O tempo vai-se reduzindo, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais curtas.

1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece Manoel de Sousa Coutinho.

1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D. João

1585 e 1599 – Madalena casa com Manoel de Sousa Coutinho.

1598 a 1599 – D. João é libertado dirige-se para Portugal

28 de julho a 4 de agosto (8 dias) – Madalena vive de novo no palácio de D. João.

Agosto (3 dias) – D. João apressa-se para chegar

4 de agosto – é um dia fatal para Madalena

 

VI – SÍNTESE DOS ATOS E DAS CENAS:

Os três atos desenvolvem-se em ambientes diferentes que acompanham o clima de tensão, e colaboram de forma graciosa para a sua intensificação. O declínio de luzes e cores dá o exato tom sombrio e triste, condizente com o destino das personagens.

A descrição dos cenários é feita de forma objetiva, sem rebuscamento de linguagem, assemelhando-se a uma lista de ingredientes.

 ATO I:

Cenas I-IV: Informações sobre o passado das personagens e localização das personagens no tempo.

Em 1578, o rei D. Sebastião desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir. Não tendo deixado herdeiros, houve uma longa disputa pela sucessão. Entre os pretendentes estava Filipe, rei da Espanha, que anexou Portugal ao seu império em 1580. O domínio espanhol duraria sessenta anos (1580 a 1640). Criou-se nesse período o mito popular do "Sebastianismo", segundo o qual D. Sebastião, retornaria para reerguer o império português. Entre os nobres desaparecidos em Alcácer-Quibir estava D. João de Portugal, marido de Madalena de Vilhena.  

Além dos terrores de Madalena, das insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no 2º ato, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os aniquilará.

 Cenas V-VIII: Decisão de incendiar o palácio.

Cenas IX-XII: Ação de incendiar o palácio.

 D. Manuel de Sousa, num ato exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João. O seu ato exemplar encaminha-o para a perdição.

 - Câmera antiga e luxuosa dos princípios do século dezessete.

- Apenas um retrato do cavaleiro São João de Jerusalém.

- Menciona a posição das portas que será invertida no ato seguinte.

- Começa num início de tarde em Lisboa.

 ATO II:

Cenas I-III: Informações sobre o que se passou depois do incêndio.

Cenas IV-VIII: Preparação da ação: ida de Manuel de Sousa Coutinho a Lisboa.

Cenas IX-XV: Chegado do romeiro.

Madalena toma esta situação como um presságio, pressentindo que iria perder Manuel tal como perdeu a sua casa e o seu quadro. Enquanto que Manuel, um homem corajoso, patriota, provado historicamente que era possuidor de um grande amor por Madalena, não se importa com o passado da sua esposa, esta vive com muitos receios em relação ao fato do seu primeiro marido, D. João de Portugal, que, apesar de se pensar que tera sido morto na batalha de Alcácer Quibir, sua morte nunca foi comprovada.

Este regressa à sua antiga habitação, como romeiro, e frisa as apreensões de Madalena ao identificar o quadro de D. João.

 - Palácio, em Almada, que pertencera a D. João de Portugal.

- O salão antigo, de gosto melancólico e pesado, cria um contraste com o cenário do primeiro ato.

- Há vários retratos, entre eles os do Del-rei D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal.

- A posição das portas faz, como no primeiro ato, referência ao interior e exterior do ambiente. A inversão causa uma sensação de real mudança de domicílio.

- O aspecto religioso transparece através da Capela da Senhora da Piedade e da Igreja de São Paulo.

- Não é mencionado em que parte do dia este ato se desenvolverá.

 ATO III:

Cena I: Informações sobre solução apresentada. D. Manuel debate-se com o dilema da doença e a ilegitimidade de Maria.

Cenas II-IX: Preparação do desenlace.

Cenas X-XII: Desenlace com a morte de Maria em palco.

 

- Ocorre na parte baixa do Palácio, onde encontramos a Capela da Senhora da Piedade da Igreja de São Paulo dos Domenico d’Almada.

- Os móveis e a ornamentação intensificam a melancolia do ambiente. A simbologia da cruz de tábua negra com o letreiro INRI sugere sacrifícios de cunho religioso.

- As cores, além de mais escuras, são acrescidas do peso dos materiais de que são feitos os objetos: castiçal de chumbo.

- A iluminação noturna, composta de tochas e velas, não dispensa a declaração de que o ato começa na total ausência de luz solar: “é alta noite”.

 

O dramatismo desta obra é mais acentuado quando o autor concede ao casal uma filha, D. Maria de Noronha, uma jovem que sofre de tuberculose. Pura, ingênua, curiosa, corajosa, perfeitamente inocente dos atos dos seus pais, é a personificação da própria beleza e pureza que se consegue originar mesmo num casamento condenável.

Essa situação perdurou por vinte anos, no fim dos quais, D. João, que realmente estava vivo, retornou a Portugal. Revelada a sua identidade, no ponto culminante da peça, o desespero domina todas as personagens, pois irá destruir toda a vida que se erguera sobre o pressuposto da morte deste; anular o segundo casamento da sua suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera.

Há, no entanto, uma personagem que conta com a vida de D. João e para quem, portanto o aparecimento do Romeiro devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro Telmo Paes, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais novo e vivo na peça. Telmo Paes vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena de ter reconstruída a sua vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo reconstruíra a sua vida afetiva sobre a morte do amo.

O culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efetivamente estava vivo em Telmo Paes era a afeição pela criança nascida do segundo casamento de D. Madalena. Telmo Paes desconhece-se a si próprio e vê ruir a construção sentimental em que julgava assentar a sua vida. Quando o Romeiro lhe ordena que vá anunciar que ele era um impostor, Telmo sente-se tentado a fazê-lo, isto é, a relegar definitivamente para o mundo dos mortos D. João de Portugal. Por isso diz:

“- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do vosso servo. ”

A fatalidade exterior, ao mesmo tempo em que, objetivamente esmaga uma situação estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjetivamente um processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade dentro de Telmo Paes.

No desenlace trágico, Manuel Coutinho e Madalena resolvem tomar o hábito religioso, como forma de expiação; adotando novos nomes: Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena.  Durante a cerimônia, Maria de Noronha, filha do casal, tomada pela vergonha e pelo desespero ao insurgir-se contra a lei do matrimônio uno e indissolúvel, que força os pais à separação e lhos rouba, morre aos pés de seus pais.

A atitude de Manuel de Sousa Coutinho em relação ao domínio espanhol assim como o retorno de D. João de Portugal (associado, evidentemente, ao sebastianismo) insere-se na temática nacionalista, tão cara aos românticos da primeira geração.

VII – TEMÁTICA:

 - Nacionalismo: as personagens falam e agem, demonstrando um patriotismo ufanista:

"– O meu nobre pai! Oh, meu querido pai! Sim, sim, mostrai-lhe quem sois e o que vale um português dos verdadeiros!”

 - Pessimismo: é facilmente detectado no diálogo das personagens:

“– Meu adorado esposo, não te deites a perder, não te arrebates. Que farás tu contra esses poderosos?”

 “Crê-me que to juro na presença de Deus; a nossa união, o nosso amor é impossível.”

É importante ressaltar que esse pessimismo explícito abre portas ao metafísico, sob a forma de presságios e agouros, que disputam, em pé de igualdade com os dogmas do catolicismo, a fé popular. Algumas personagens acreditam em Deus, mas crêem igualmente que seus medos e suas sensações são avisos de que algum ruim realmente acontecerá:

“...não entremos com os teus agouros e profecias do costume: são sempre de aterrar... Deixemo-nos de futuros...”

“... agora não lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de separar de meu pai.”

 - Sentimentos e emoções conturbados: não há paz e tranquilidade no relacionamento das personagens principais. Amor e medo caminham juntos, gerando atitudes precipitadas e movidas pelo desespero:

“...peço-te vida, vida, vida... para ela, vida para a minha filha!”

“– Se Deus quisera que não acordasse!”

“– Vamos; eu ainda não me entendo bem claro com esta desgraça. Dize-me, fala-me a verdade: minha mulher...– minha mulher! Com que boca pronuncio eu ainda estas palavras! – D. Madalena o que sabe?”

 - A natureza também não se apresenta sempre tranquila:

“Mas neste tempo não há de fiar no Tejo: dum instante para o outro levanta-se um nortada... e então aqui o pontal de Cacilhas! Que ele é tão bom mareante...”

 - Escapismo: quando a situação adquire uma carga insuportável de sofrimento moral e emocional, os protagonistas não enfrentam o repúdio da sociedade e aceitam o refúgio na vida religiosa:

“– Madalena... senhora! Todas estas coisas são já indignas de nós. Até ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava na boa-fé e seguridade de nossas consciências. Essa acabou. Para nós já não há senão estas mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca) e a sepultura dum claustro.”

 - A crença do sebastianismo: o mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. “Mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!"

 VIII – BIOGRAFIA DE MANUEL DE SOUSA COUTINHO:

 Manuel de Sousa Coutinho, assim era o seu verdadeiro nome, nasceu em Santarém, cerca de 1555, e era filho do nobre Lopo de Sousa Coutinho e de uma senhora da casa dos condes dos Marialvas. Enquanto fidalgo dedicado às Letras e às Armas, seu pai influenciou profundamente a sua decisão de frequentar cursos regulares de Humanidades nos quais atingiu um elevado grau de cultura literária que lhe permitiu prosseguir o caminho das Letras.

Talvez como recompensa pelos serviços militares prestados por seu pai, foi, por alvará de 31 de março de 1572, considerado moço fidalgo, tendo manifestado, no seguimento da corrente da época no Ocidente, um grande fervor religioso que o animou a alistar-se como noviço na Ordem de Malta, então "a mais forte guarda avançada da Europa cristã contra a ameaça turca".

Em 1577, na Sardenha, é feito prisioneiro e levado pelos mouros para Argel, com o seu irmão André de Sousa Coutinho, tendo aí conhecido Cervantes. Posto em liberdade, foi para Valença, onde permaneceu e onde, sob o magistério do humanista valenciano Jaime Falcão, completou a sua formação cultural. A influência deste humanista vai ser homenageada na sua obra Ópera Poética, considerando-o como um mestre a quem devia todo o seu saber, nomeadamente o conhecimento da arte poética de Horácio.
Regressando a Portugal, rapidamente ganhou a confiança dos governadores do reino, que o colocaram num posto dos quadros militares do Estado.
Dois meses antes da invasão do duque de Alba, em 6 de abril de 1580, Manuel de Sousa Coutinho é nomeado alcaide-mor do Castelo de Marialva e capitão das ordenanças da vila e, em 1582, o rei Filipe II faz-lhe uma mercê de 200 mil réis anuais. Em dezembro deste mesmo ano, é promovido a fidalgo escudeiro.
Casou, em dezembro de 1583, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de Portugal, filho de D. Manuel de Portugal, a quem Luís de Camões endereçou a “Ode VII” como gratificação pelo patrocínio à publicação de “Os Lusíadas”. Do primeiro casamento de D. Madalena nasceram três filhos: D. Luís de Portugal (morto em Ceuta), D. Joana de Portugal e D. Maria de Vilhena, os quais foram educados pelo novo casal que, por herança da mãe de D. Madalena, era detentor de uma grande fortuna.
A partir de 1590, a família fixou-se em Almada, tendo Manuel de Sousa Coutinho desempenhado vários cargos na Misericórdia.
Aqui, e embora longe da cidade, nem sempre conseguiu afastar-se do bulício da capital e do desencanto da cena política e social do fim do século.
Em 1592, vai aproveitar uma quantia do dote do enteado para contratar e equipar uma expedição a Tânger e, em 1594, é promovido pelo rei a fidalgo cavaleiro com um aumento de moradia de 400 mil réis.
Em 1598, desempenha as funções de guarda-mor da saúde e de capitão-mor da gente de cavalo e de pé das milícias locais.
Assiste-se, então, a alguns conflitos com os governadores do Reino, que o notificaram da proibição de entrar no paço e na residência destes. Esta atitude foi enfrentada por Manuel de Sousa Coutinho com altivez.
Entretanto, assolada pela peste a cidade de Lisboa, a população começa a fugir e a Administração, procurando em Alcochete e Almada ares mais saudáveis, dá a Manuel de Sousa Coutinho ordens para despejar e abandonar a sua casa para que nela se pudessem alojar. Sentindo-se ofendido por esta atitude, este parte para Madrid e manda incendiar o palácio, defendendo, assim, o seu código de honra, recusando-se a cumprir imposições que considerava incompatíveis com a sua condição de fidalgo.
Regressa a Portugal em 1 de maio de 1600, publica a Ópera Poética de Jaime Falcão e recupera as suas funções de capitão-mor e guarda-mor da saúde pelas quais será compensado, em 1601, por Filipe III, com uma tença de 50 mil réis.
O gosto pela aventura "transporta-o" para lugares da América espanhola e apenas as saudades da pátria, da mulher e da filha o fazem regressar, conforme o próprio confessa no poema latino Navigatio Antartica.
Não se conhecem as verdadeiras razões que levaram Manuel de Sousa Coutinho e D. Madalena de Vilhena a procurarem o refúgio no claustro dominicano: ele em Benfica, com o nome religioso de Frei Luís de Sousa, e ela no Convento do Sacramento, em Lisboa, com o nome de Sóror Madalena das Chagas, assim como sobre a data e as razões da morte de sua filha. Este desconhecimento vai permitir os naturais comentários sobre a situação que com o tempo se transformariam numa lenda romanesca (chegada do forasteiro que conhecera nos lugares santos de Jerusalém alguém que dela ainda "muito se lembrava" e identificara na galeria dos retratos de família o de D. João de Portugal que todos pensavam morto em Alcácer Quibir. Perante esta situação D. Manuel de Sousa Coutinho propusera a profissão no convento). Esta lenda forneceu a matéria para Almeida Garrett escrever “Frei Luís de Sousa”. Lenda porque na verdade, e segundo Aníbal Pinto de Castro e Gladstone Chaves de Melo, in “Introdução e fixação do texto da obra A vida de Frei Bartolomeu dos Mártires de Frei Luís de Sousa”, edição Imprensa Nacional-Casa da Moeda, "à data do segundo casamento e depois deste, a morte de D. João de Portugal estava e fora documentalmente provada".

Por isso, e ainda de acordo com os autores citados, a decisão de professar parece estar ligada a um fervor religioso que assomou Portugal na época e que ambos os esposos aceitaram conscientemente e deliberadamente, desiludidos com o desconcerto do mundo, o que patenteia o espírito humanista de Manuel de Sousa Coutinho. Dividido ente o pecado e o dever, encontrará na religião e no casamento a sua via de realização pessoal.