- Típica família moçambicana e sua residência.
- Essa narrativa, ainda que simples, permite o levantamento de
importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não
dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser
contada”.
- Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de uma
descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que acomete
sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que minucioso, do
seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que nos ajuda a
pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta pelo sistema
colonial.
- Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto ele quanto o
seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio letárgico,
possuem um posicionamento diferente.
- Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já foi
presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial, só
nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da
descolonização.
- Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como
são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.
Além do quarto
em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas
divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes
enegrecidas pelo fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É
ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de
cada espécie, um armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no
canto, atrás da porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a
Nelita sentam-se no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato
de alumínio [...] Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim
[...]. (HONWANA, 1980, p.36-37).
- Em uma de suas descrições do lar narra que existem livros que
só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse, apenas, de sua
mãe.
- A avaliar pelas pistas dos livros, ocupando um espaço de
prestígio na casa, a julgar pela cortina que os esconde:
Entre a porta
que dá para a casa de banho e a que dá para este quarto, encostada à parede do
Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas cheias de livros. Tem a
cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das cortinas da sala de
visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo pano. Só neste
quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e amarelado. A
Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2 cortinas e
com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu me lembrasse
ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).
Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a realidade da
família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a leitura do
estado de “zumbi”.
- O estado de zumbi justifica-se diante da violência do poder
colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se,
momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem
sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.
- A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação pois, o zumbi
é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e a razão,
deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.
- Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como
o pai, ler livros, além de não estar dormindo, embora não sinta vontade de se
levantar da cama:
Debaixo desta
cama está guardado o meu material de desenho e pintura, contido em dois
caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com livros. Debaixo da cama
que está o Papá há mais caixotes com livros. As revistas estão distribuídas
pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As mais apresentáveis estão na
sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a máquina de
costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse ler uma revista ia direitinho
à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as “Times” e as “Cruzeiros” mais
recentes. Na mesa do centro está também o “Reader’s”, mas talvez nem lhe
tocasse porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é uma porcaria.
Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã costuma pôr na sala de visitas
são uma porcaria. É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama,
embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980, p.38-39).
- Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de seu gosto,
tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que é de
preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas pelo
pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências
colonizadoras – Inglaterra, Portugal.
- Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a essa ideia de
morte em vida.
As portas e as
janelas estão fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e as janelas
abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu acho
que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os médicos,
quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que se
improvisou no nosso quarto, já que não convinha mexer na cama de casal, no
quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).
- A mãe do garoto aparece, também, como um dos “assimilados” da
província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas, o ronga e o
português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela fala em
português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e
trabalha, a mãe do garoto, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma
mulher empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo,
talvez por ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.
- Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois
supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos.
Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados,
mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação,
em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual
goza o “assimilado”.
- Pensando nas fases de tomada de consciência, por parte do
colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo sistema
colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que vive sua
família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa solução para
o problema e então não sente “vontade de
sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).
- A assimilação, nesse caso, é a única saída para o colonizado
tornar-se sujeito, indivíduo.
- Infere-se que esse estágio de zumbificação em que se encontra
a família do narrador, pode figurar como um interregno entre os dois momentos:
1) momento em que o indígena recorre ao embranquecimento, como
investimento para acessar a categoria de homem – o que envolvia autorrecusa,
aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que culmina em revolta e
reações repreendidas violentamente pelo sistema e;
2) o momento de recusa à assimilação e de retomada aos valores e
tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é um
investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a
colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo
próprio sistema europeu.
- Além de, como os demais componentes da família, dormir um
sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:
O Papá ressona.
A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu
braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a
porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro
quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Sim, acho que foi a Mamã,
embora não tenha certeza. Será que também ressonarei quando adormecer?
(HONWANA, 1980, p.36).
É importante salientar, contextualizando a obra e seu contexto
histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo referência não
era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de colonização, percebe-se
um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a Ditadura Nacional, o que
levou novos comandos de opressão para suas colônias. Como dito anteriormente, o
colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram asseguradas pelo Estatuto
do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década de 1960) e passou a viver,
sem distinção entre indígenas e assimilados, explorados pelo trabalho.
Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse estado de
“morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo entre o
primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o momento
de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa realidade, por
isso uma ação mais organizada e sistematizada.