I – INTRODUÇÃO:
“Nem amores, nem aventuras, nem paixões, nem caracteres violentos de nenhum gênero. Com uma ação que se passa entre pai, mãe e filha, um frade, um escudeiro velho e um peregrino que apenas entre em duas ou três cenas – tudo gente honesta e temente a Deus – sem um mais para contraste, sem um tirano que se mata ou mata alguém, pelo menos no último ato, como eram as tragédias dantes – sem uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfêmias e das maldições, como hoje se quer fazer o drama – eu quis ver se era possível excitar fortemente o terror e a piedade ao cadáver das nossas platéias, gastas e caquéticas pelo uso contínuo de estimulantes violentos, galvanizá-los com sós estes dois metais da lei.”
“Frei Luís de Sousa”, que continua a ser considerado um
clássico da literatura de língua portuguesa e uma das criações máximas do seu
teatro, foi inicialmente apenas lido a um grupo selecto de amigos do autor
(entre os quais Herculano). A primeira representação fez-se em privado, no
teatro da Quinta do Pinheiro, no mesmo ano de 1843, tendo o próprio Garrett
desempenhado o papel de Telmo. A peça só teve a sua estreia pública em 1847, em versão censurada
pelo regime cabralista. A versão integral só foi levada à cena no então Teatro
Nacional (actual Teatro Nacional de D. Maria II)
em 1850.
II – CARACTERÍSTICAS:
“É, pois, a tragédia imitação de uma ação de caráter
elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias
espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do [drama], [imitação
que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o
terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.
[...]
Como esta imitação é
executada por atores, em primeiro lugar o espetáculo cênico há de ser
necessariamente uma das partes da tragédia, e depois, a melopéia e a elocução,
pois estes sãos os meios pelos quais os atores efetuam a imitação. [...]
E como a tragédia é a
imitação de uma ação e se executa mediante personagens que agem e que
diversamente se apresentam, conforme o próprio caráter e pensamento (porque é
segundo estas diferenças de caráter e pensamento que nós qualificamos as
ações), daí vêm por consequência o serem duas causas naturais que determinam as
ações: pensamento e caráter; e, nas ações [assim determinadas], tem origem a
boa ou má fortuna dos homens. Ora o mito é imitação de ações; e, por
"mito", entendo a composição dos atos; por "caráter", o que
nos faz dizer das personagens que elas têm tal ou tal qualidade; e por
"pensamento", tudo quanto digam as personagens para demonstrar o que
quer que seja ou para manifestar sua decisão.
[...]
Porém, o elemento mais
importante é a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas
de ações e de vida, de felicidade [e infelicidade; mas, felicidade] ou
infelicidade reside na ação, e a própria finalidade da vida é uma ação, não uma
qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade, conformemente ao
caráter, mas são bem ou mal-aventurados pelas ações que praticam. Daqui se
segue que, na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas
assumem caracteres para efetuar certas ações; por isso, as ações e o mito
constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de tudo o que mais
importa.
[...]
Portanto, o mito é o
princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres. Algo
semelhante se verifica na pintura: se alguém aplicasse confusamente as mais
belas cores, a sua obra não nos comprazeria tanto, como se apenas houvesse
esboçado uma figura
Aristóteles, Poética,
49 b / 50 b
Demais, posto que eu não creia no verso como língua dramática possível
para assuntos tão modernos, também não sou tão desabusado, contudo que me
atreva a dar a uma composição em prosa o título solene que as musas gregas
deixaram consagrado à mais sublime e difícil de todas as composições poéticas.
O que escrevi em prosa pudera escrevê-lo em
verso; - e o nosso verso solto está provado que é dócil e ingênuo bastante para
dar todos os efeitos de arte sem quebrar na natureza. Mas sempre havia de
aparecer mais artifício do que a índole especial do assunto podia sofrer. E
di-lo-ei porque é verdade - repugnava-me também por na boca de Frei Luís de
Sousa outro ritmo que não fosse o da elegante prosa portuguesa que ele, mais do
que ninguém, deduziu com tanta harmonia e suavidade. Bem sei que assim ficará
mais clara a impossibilidade de imitar o grande modelo; mas antes isso, do que
fazer falar por versos meus o mais perfeito prosador da língua.
Contento-me para a minha obra com o título
modesto de drama; só peço que a não julguem pelas leis que regem, ou devem
reger, essa composição de forma e índole nova; porque a minha, se na forma
desmerece da categoria, pela índole há de ficar pertencendo sempre ao antigo gênero
trágico.
[...]
Escuso dizer-vos, Senhores, que me não
julguei obrigado a ser escravo da cronologia nem a rejeitar por impróprio da
cena tudo quanto á severa crítica moderna indigitou como arriscado de se apurar
para a história. Eu sacrifico às musas de Homero, não às de Heródoto: e quem
sabe, por fim, em qual dos dois altares arde o fogo de melhor verdade!”
Almeida Garrett, Memória ao Conservatório Real de Lisboa (lida em
6 de Maio de 1843 - nota de Garrett)
Garrett
através da “Memória ao Conservatório”
afirma que o conteúdo do “Frei
Luís de Sousa” possui todas as características de uma tragédia. Entretanto, denomina-lhe
drama, por não obedecer à estrutura formal da tragédia: não foi escrita em versos; não foi composta em cinco atos; não respeitou as unidades de tempo e de lugar
e não relata assunto antigo.
No entanto, em
“Frei Luís de Sousa” encontra-se número
de personagens diminuto; desafio as
prepotências divinas e humanas (a hibris, arrogância de poder); fatalidade; morte
moral; pathos (catástrofe; passividade); heroísmo; crença em agouros, em dias
aziagos, em superstições; semelhanças com o coro grego (Telmo, dizendo verdades
duras à protagonista, e Frei Jorge, tendo sempre uma palavra de conforto) etc.
Dessa forma, pode-se afirmar que “Frei Luís
de Sousa” é um drama romântico, com temática de uma tragédia.
A peça possui apenas três atos.
Eles se sucedem numa velocidade de ritmo que torna implacável, aos olhos do
espectador, a catástrofe final. Desde a primeira cena do primeiro ato,
percebemos a insegurança em que vive D. Madalena de Vilhena, casada em segundas
núpcias com Manuel de Sousa Coutinho, sete anos após a suposta morte de D. João
de Portugal, seu primeiro marido. Percebemos também que Telmo Paes, um
escudeiro, velho empregado da família, alimenta com insinuações constantes a
insegurança de D. Madalena.
As personagens são descritas ao longo da peça e através dos diálogos das personagens.
Não há referências aos atributos físicos das personagens,
exceto em raríssimo caso como o de Maria que sabemos ser uma menina franzina.
Os criados não são descritos de forma alguma; somente seus
nomes e suas ocupações são mencionados. A classe fidalga é privilegiada neste
sentido.
As personagens Telmo Paes e Frei Jorge crescem no terceiro
ato, tornando-se fundamentais para o desfecho trágico da peça.
Almeida Garrett trata D. Sebastião e Luís Vaz de Camões de
forma tão atenciosa, que podemos considerá-los personagens secundárias.
- D. Manuel de Souza Coutinho (protagonista): herói romântico; filho de Lopo de Souza Coutinho; segundo esposo de D. Madalena; pai de Maria; teme que D. João possa regressar (ideia inconfessada); fidalgo honrado, religioso, patriota (incendeia o seu palácio porque este iria ser ocupado pelos governadores espanhóis; abandona o nome de batismo ao ser convertido em frei e passa a chamar-se Frei Luís de Souza.
- D. Madalena de Vilhena: foi esposa de D. João de Portugal; mulher recatada, virtuosa, cristã, dada a presságios. Os seus temores a impediram de desfrutar plenamente a felicidade de estar casada em segundas núpcias com D. Manuel. Revela que se apaixonou pelo segundo marido antes de ficar viúva e sente-se culpada e pecadora. Inquietação em relação a Manuel de Sousa e a Maria; insegurança e hesitação; profunda, feminina; mulher para lágrimas e para o amor, ela sofre e sofrerá sempre, porque a dúvida não a deixará ser feliz; perfil romântico; solidão. Converte-se também à vida religiosa, recebendo o título Sóror Madalena.
- D. João de Portugal: guerreiro honrado e generoso; casado com Madalena, mas desaparecido na batalha de Alcácer Quibir; sentimento amoroso por Madalena; sonhador; crente (quando pensa, por momentos, que Madalena o ama). Parece ser cruel e vingativo, mas perdoa a esposa; pede a Telmo que salve D. Madalena e D. Manuel do triste fim que os aguardava.
- Maria de Noronha: filha do segundo casamento de D. Madalena e D. Manoel. Aos treze anos apresenta-se como menina pura, inteligente, perspicaz, intuitiva, estudiosa e que gosta de ler. É carregada de virtudes que a diferenciam das outras meninas da sua idade.
É muito influenciada por D. Telmo. D. Madalena afirma que a
menina não ouve, não crê, não sabe senão o que D. Telmo lhe diz. Ela "lia
nos olhos e nas estrelas".
Sofre de tuberculose e morre no final da peça.
Segundo Vasco Graça Moura, uma análise psicológica da obra
revelaria uma conexão entre Maria e a filha ilegítima de Almeida Garrett com
Adelaide Pastor.
- Telmo Paes: escudeiro de família dos condes vimioso, antigo amigo da família que dizia amar Maria como se fosse sua filha. Sofre pela volta de D. João, pois esta tirará a tranquilidade da sua "menina". Alimenta os temores de D. Madalena. Por amor a Maria, dispõe-se a declarar o Romeiro como um impostor; confessor das personagens femininas; o coro da tragédia, sádico, fiel, confiante, desentendido, supersticioso, sebastianista, humilde, enorme sabedoria.
- Frei Jorge: irmão de D. Manuel; evita que Telmo apresente a solução proposta por D. João de Portugal para livrar a família de D. Manuel da degradação social. Portador do discurso católico que promete consolar os sofredores, caso se convertam à religião e aceitem os desígnios de Deus.
- Miranda e Dorotéia: criados de D. Manuel e D. Madalena. Dorotéia é a aia de Maria.
- D. Joana de Castro: tia de Maria que abandona o esposo para se tornar freira.
- Romeiro: D. João de Portugal que retorna do cativeiro na Terra Santa e não é reconhecido por D. Madalena.
V – TEMPO E ESPAÇO:
A trajetória das personagens limita-se entre:
África - Europa – Portugal - Lisboa - Alfeite - Almada - I palácio – II
palácio, numa época de peste em
processo de declínio.
- Influência das lutas pela liberdade religiosa no século
XVI. Os ingleses já haviam traduzido as sagradas escrituras. Em Portugal,
somente os religiosos dominavam os segredos do catolicismo, porquanto as missas
eram rezadas em Latim.
- Influência do Iluminismo.
O
tempo vai-se reduzindo, fechando-se dramaticamente em unidades cada vez mais
curtas.
1578 – Madalena casa com D. João. Madalena conhece Manoel de
Sousa Coutinho.
1578 e 1585 – Madalena procura assegurar-se da morte de D.
João
1585 e 1599 – Madalena casa com Manoel de Sousa Coutinho.
28 de julho a 4 de agosto (8 dias) – Madalena vive de novo
no palácio de D. João.
Agosto (3 dias) – D. João apressa-se para chegar
4 de agosto – é um dia fatal para Madalena
VI – SÍNTESE DOS ATOS E DAS CENAS:
Os três atos desenvolvem-se em ambientes diferentes que acompanham o clima de tensão, e colaboram de forma graciosa para a sua intensificação. O declínio de luzes e cores dá o exato tom sombrio e triste, condizente com o destino das personagens.
A descrição dos
cenários é feita de forma objetiva, sem rebuscamento de linguagem,
assemelhando-se a uma lista de ingredientes.
Cenas I-IV: Informações sobre o passado das personagens e localização das
personagens no tempo.
Em 1578, o rei D. Sebastião
desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir. Não tendo deixado herdeiros, houve
uma longa disputa pela sucessão. Entre os pretendentes estava Filipe, rei da
Espanha, que anexou Portugal ao seu império em 1580. O domínio espanhol duraria
sessenta anos (
Além dos terrores de Madalena, das
insinuações de Telmo Pais, dos sonhos de Maria, sentimos aproximar-se esta
fatalidade, mesmo sem acontecimentos. Quando estes começam a desencadear-se, no
2º ato, preparam, sem os protagonistas se darem conta disso, o desfecho que os
aniquilará.
Cenas IX-XII: Ação de incendiar
o palácio.
D. Manuel de Sousa, num ato exemplarmente patriótico, decide incendiar o seu palácio e transferir-se para a antiga residência de D. João. O seu ato exemplar encaminha-o para a perdição.
- Apenas um retrato do cavaleiro São João de
Jerusalém.
- Menciona a posição das portas que será
invertida no ato seguinte.
- Começa num início de tarde em Lisboa.
Cenas I-III: Informações sobre
o que se passou depois do incêndio.
Cenas IV-VIII: Preparação da
ação: ida de Manuel de Sousa Coutinho a Lisboa.
Cenas IX-XV: Chegado do
romeiro.
Madalena toma esta situação como um presságio, pressentindo que iria perder Manuel tal como perdeu a sua casa e o seu quadro. Enquanto que Manuel, um homem corajoso, patriota, provado historicamente que era possuidor de um grande amor por Madalena, não se importa com o passado da sua esposa, esta vive com muitos receios em relação ao fato do seu primeiro marido, D. João de Portugal, que, apesar de se pensar que tera sido morto na batalha de Alcácer Quibir, sua morte nunca foi comprovada.
Este regressa à sua antiga habitação, como romeiro, e frisa as apreensões
de Madalena ao identificar o quadro de D. João.
- O salão antigo, de gosto melancólico e
pesado, cria um contraste com o cenário do primeiro ato.
- Há vários retratos, entre eles os do
Del-rei D. Sebastião, Camões e D. João de Portugal.
- A posição das portas faz, como no primeiro
ato, referência ao interior e exterior do ambiente. A inversão causa uma
sensação de real mudança de domicílio.
- O aspecto religioso transparece através da
Capela da Senhora da Piedade e da Igreja de São Paulo.
- Não é mencionado em que parte do dia este
ato se desenvolverá.
Cena I: Informações sobre solução
apresentada. D. Manuel debate-se com o dilema da doença e a
ilegitimidade de Maria.
Cenas II-IX: Preparação do
desenlace.
Cenas X-XII: Desenlace com a
morte de Maria em palco.
- Ocorre na parte baixa do Palácio, onde
encontramos a Capela da Senhora da Piedade da Igreja de São Paulo dos Domenico
d’Almada.
- Os móveis e a ornamentação intensificam a
melancolia do ambiente. A simbologia da cruz de tábua negra com o letreiro INRI
sugere sacrifícios de cunho religioso.
- As cores, além de mais escuras, são
acrescidas do peso dos materiais de que são feitos os objetos: castiçal de
chumbo.
- A iluminação noturna, composta de tochas e
velas, não dispensa a declaração de que o ato começa na total ausência de luz
solar: “é alta noite”.
O dramatismo
desta obra é mais acentuado quando o autor concede ao casal uma filha, D. Maria
de Noronha, uma jovem que sofre de tuberculose. Pura, ingênua, curiosa, corajosa,
perfeitamente inocente dos atos dos seus pais, é a personificação da própria
beleza e pureza que se consegue originar mesmo num casamento condenável.
Essa situação perdurou por vinte
anos, no fim dos quais, D. João, que realmente estava vivo, retornou a
Portugal. Revelada a sua identidade, no ponto culminante da peça, o desespero
domina todas as personagens, pois irá destruir toda a vida que se
erguera sobre o pressuposto da morte deste; anular o segundo casamento da sua
suposta viúva, e riscar do rol dos vivos a filha que desse casamento nascera.
Há, no entanto, uma personagem que
conta com a vida de D. João e para quem, portanto o aparecimento do Romeiro
devia ser a realização de uma esperança, mas nesta personagem, o escudeiro
Telmo Paes, desenrola-se um processo psicológico que é talvez o que há de mais
novo e vivo na peça. Telmo Paes vivia no culto do seu senhor, mantinha-se fiel
à crença de que ele vivia, e censurava a D. Madalena de ter reconstruída a sua
vida sobre o alicerce da morte dele. Mas quando aparece D. João, o seu velho
aio descobre repentinamente que também ele próprio mudara, e no fundo
reconstruíra a sua vida afetiva sobre a morte do amo.
O
culto do passado era no fundo uma construção voluntária: o que efetivamente
estava vivo
“- Senhor, Senhor, não tenteis a fidelidade do
vosso servo. ”
A
fatalidade exterior, ao mesmo tempo em que, objetivamente esmaga uma situação
estabelecida entre os protagonistas, serve para despertar subjetivamente um
processo psicológico de auto-revelação e de desarticulação da personalidade
dentro de Telmo Paes.
No desenlace
trágico, Manuel Coutinho e Madalena resolvem tomar o hábito religioso, como
forma de expiação; adotando novos nomes: Frei Luís de Sousa e Sóror Madalena. Durante a cerimônia, Maria de Noronha, filha
do casal, tomada pela vergonha e pelo desespero ao insurgir-se contra a lei do matrimônio uno e indissolúvel, que força
os pais à separação e lhos rouba, morre aos pés de seus
pais.
A atitude de
Manuel de Sousa Coutinho em relação ao domínio espanhol assim como o retorno de
D. João de Portugal (associado, evidentemente, ao sebastianismo) insere-se na
temática nacionalista, tão cara aos românticos da primeira geração.
VII
– TEMÁTICA:
"– O meu nobre pai! Oh, meu querido pai! Sim, sim, mostrai-lhe quem sois e o que vale um português dos verdadeiros!”
- Pessimismo: é facilmente detectado no diálogo das personagens:
“– Meu adorado esposo, não te deites a perder, não te arrebates. Que
farás tu contra esses poderosos?”
“Crê-me que to juro na presença de Deus; a nossa união, o nosso
amor é impossível.”
É importante
ressaltar que esse pessimismo explícito abre portas ao metafísico, sob a forma
de presságios e agouros, que disputam, em pé de igualdade com os dogmas do
catolicismo, a fé popular. Algumas personagens acreditam em Deus, mas crêem
igualmente que seus medos e suas sensações são avisos de que algum ruim
realmente acontecerá:
“...não entremos
com os teus agouros e profecias do costume: são sempre de aterrar...
Deixemo-nos de futuros...”
“... agora não
lhe sai da cabeça que a perda do retrato é prognóstico fatal de outra perda
maior, que está perto, de alguma desgraça inesperada, mas certa, que a tem de
separar de meu pai.”
- Sentimentos e emoções conturbados: não há paz e tranquilidade no relacionamento das personagens principais. Amor e medo caminham juntos, gerando atitudes precipitadas e movidas pelo desespero:
“...peço-te vida, vida, vida... para ela, vida para a minha filha!”
“– Se Deus quisera que não acordasse!”
“– Vamos; eu ainda não me entendo bem claro com esta desgraça. Dize-me,
fala-me a verdade: minha mulher...– minha mulher! Com que boca pronuncio eu
ainda estas palavras! – D. Madalena o que sabe?”
- A natureza também não se apresenta sempre tranquila:
“Mas neste tempo não há de fiar no Tejo: dum instante para o outro
levanta-se um nortada... e então aqui o pontal de Cacilhas! Que ele é tão bom
mareante...”
- Escapismo: quando a situação adquire uma carga insuportável de sofrimento moral e emocional, os protagonistas não enfrentam o repúdio da sociedade e aceitam o refúgio na vida religiosa:
“– Madalena... senhora! Todas estas coisas são já indignas de nós. Até
ontem, a nossa desculpa, para com Deus e para com os homens, estava na boa-fé e
seguridade de nossas consciências. Essa acabou. Para nós já não há senão estas
mortalhas (tomando os hábitos de cima da banca) e a sepultura dum claustro.”
- A crença do sebastianismo: o mito do sebastianismo está espalhado por toda a obra. “Mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei de D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda quis acreditasse que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!"
VIII – BIOGRAFIA DE MANUEL DE SOUSA COUTINHO:
Talvez como recompensa pelos serviços militares prestados por seu pai, foi, por alvará de 31 de março de 1572, considerado moço fidalgo, tendo manifestado, no seguimento da corrente da época no Ocidente, um grande fervor religioso que o animou a alistar-se como noviço na Ordem de Malta, então "a mais forte guarda avançada da Europa cristã contra a ameaça turca".
Em 1577, na Sardenha, é feito prisioneiro e levado pelos mouros para Argel, com
o seu irmão André de Sousa Coutinho, tendo aí conhecido Cervantes. Posto em
liberdade, foi para Valença, onde permaneceu e onde, sob o magistério do
humanista valenciano Jaime Falcão, completou a sua formação cultural. A
influência deste humanista vai ser homenageada na sua obra Ópera Poética, considerando-o como um
mestre a quem devia todo o seu saber, nomeadamente o conhecimento da arte
poética de Horácio.
Regressando a Portugal, rapidamente ganhou a confiança dos governadores do
reino, que o colocaram num posto dos quadros militares do Estado.
Dois meses antes da invasão do duque de Alba, em 6 de abril de 1580, Manuel de
Sousa Coutinho é nomeado alcaide-mor do Castelo de Marialva e capitão das
ordenanças da vila e, em 1582, o rei Filipe II faz-lhe uma mercê de 200 mil
réis anuais. Em dezembro deste mesmo ano, é promovido a fidalgo escudeiro.
Casou, em dezembro de 1583, com D. Madalena de Vilhena, viúva de D. João de
Portugal, filho de D. Manuel de Portugal, a quem Luís de Camões endereçou a “Ode VII” como gratificação pelo
patrocínio à publicação de “Os
Lusíadas”. Do primeiro casamento de D. Madalena nasceram três filhos: D.
Luís de Portugal (morto em Ceuta), D. Joana de Portugal e D. Maria de Vilhena,
os quais foram educados pelo novo casal que, por herança da mãe de D. Madalena,
era detentor de uma grande fortuna.
A partir de
Aqui, e embora longe da cidade, nem sempre conseguiu afastar-se do bulício da
capital e do desencanto da cena política e social do fim do século.
Em 1592, vai aproveitar uma quantia do dote do enteado para contratar e equipar
uma expedição a Tânger e, em 1594, é promovido pelo rei a fidalgo cavaleiro com
um aumento de moradia de 400 mil réis.
Em 1598, desempenha as funções de guarda-mor da saúde e de capitão-mor da gente
de cavalo e de pé das milícias locais.
Assiste-se, então, a alguns conflitos com os governadores do Reino, que o
notificaram da proibição de entrar no paço e na residência destes. Esta atitude
foi enfrentada por Manuel de Sousa Coutinho com altivez.
Entretanto, assolada pela peste a cidade de Lisboa, a população começa a fugir
e a Administração, procurando em Alcochete e Almada ares mais saudáveis, dá a
Manuel de Sousa Coutinho ordens para despejar e abandonar a sua casa para que
nela se pudessem alojar. Sentindo-se ofendido por esta atitude, este parte para
Madrid e manda incendiar o palácio, defendendo, assim, o seu código de honra,
recusando-se a cumprir imposições que considerava incompatíveis com a sua
condição de fidalgo.
Regressa a Portugal em 1 de maio de 1600, publica a Ópera Poética de Jaime Falcão e recupera as suas funções de
capitão-mor e guarda-mor da saúde pelas quais será compensado, em 1601, por
Filipe III, com uma tença de 50 mil réis.
O gosto pela aventura "transporta-o" para lugares da América
espanhola e apenas as saudades da pátria, da mulher e da filha o fazem
regressar, conforme o próprio confessa no poema latino Navigatio Antartica.
Não se conhecem as verdadeiras razões que levaram Manuel de Sousa Coutinho e D.
Madalena de Vilhena a procurarem o refúgio no claustro dominicano: ele em
Benfica, com o nome religioso de Frei Luís de Sousa, e ela no Convento do
Sacramento, em Lisboa, com o nome de Sóror Madalena das Chagas, assim como
sobre a data e as razões da morte de sua filha. Este desconhecimento vai
permitir os naturais comentários sobre a situação que com o tempo se
transformariam numa lenda romanesca (chegada do forasteiro que conhecera nos
lugares santos de Jerusalém alguém que dela ainda "muito se lembrava"
e identificara na galeria dos retratos de família o de D. João de Portugal que
todos pensavam morto
Por isso, e ainda de acordo com os autores citados, a decisão de professar parece estar ligada a um fervor religioso que assomou Portugal na época e que ambos os esposos aceitaram conscientemente e deliberadamente, desiludidos com o desconcerto do mundo, o que patenteia o espírito humanista de Manuel de Sousa Coutinho. Dividido ente o pecado e o dever, encontrará na religião e no casamento a sua via de realização pessoal.