quinta-feira, 7 de agosto de 2025

“INVENTÁRIO DE IMÓVEIS E JACENTES”, LUÍS BERNARDO HONWANA

- Típica família moçambicana e sua residência.

- Essa narrativa, ainda que simples, permite o levantamento de importantes questões, pois “faz com que o leitor entre no território do não dito, daquilo que o conto não relata, da verdadeira situação que não está a ser contada”.

- Em “Inventário de Imóveis e Jacentes”, através de uma descrição quase mórbida, Ginho apresenta o inventário da pobreza que acomete sua família – parte da população indígena. Num desenho, quase que minucioso, do seu contexto familiar, o garoto vai entregando-nos pistas, que nos ajuda a pensar as mentes dos colonizados, frente a essa realidade imposta pelo sistema colonial.

- Essas pistas nos permitem ver, também, que, tanto ele quanto o seu pai, mesmo inseridos na realidade familiar, que é de estágio letárgico, possuem um posicionamento diferente.

- Não obstante, descobrimos que o pai do narrador já foi presidiário e que está doente. Prisão de colonizado, em período colonial, só nos leva a pensar em envolvimento com as forças estruturantes da descolonização.

- Ginho expõe os cômodos da casa, os móveis, a alimentação, como são servidas as refeições, tudo de forma bastante simples.

Além do quarto em que estamos e do outro em que está a Mamã, a nossa casa tem mais duas divisões: a sala de visitas e a sala de jantar. Esta última tem as paredes enegrecidas pelo fumo, porque dantes Mamã tinha ali o fogão, a um canto. É ocupada por uma mesa já despolida e sem estilo, rodeada por 7 cadeiras, uma de cada espécie, um armário em que alguém escreveu “Elvis”, e vários sacos no canto, atrás da porta. Às refeições, como não cabemos todos à mesa, a Gita e a Nelita sentam-se no chão, viradas uma para a outra [...] Ao meio fica o prato de alumínio [...] Invariavelmente o prato contém arroz e caril de amendoim [...]. (HONWANA, 1980, p.36-37).

- Em uma de suas descrições do lar narra que existem livros que só interessam ao seu pai. As demais leituras eram de interesse, apenas, de sua mãe.

- A avaliar pelas pistas dos livros, ocupando um espaço de prestígio na casa, a julgar pela cortina que os esconde:

Entre a porta que dá para a casa de banho e a que dá para este quarto, encostada à parede do Corredor, há uma estante com 5 prateleiras todas cheias de livros. Tem a cobri-la uma cortina feita dum pano idêntico ao do das cortinas da sala de visitas. As cortinas do quarto da Mamã são também do mesmo pano. Só neste quarto é que as cortinas são diferentes. São dum pano grosso e amarelado. A Tina diz que o pano é feio, mas quando o Papá esteve preso tirou 2 cortinas e com elas fez uma saia que não era parecida com nenhuma saia que eu me lembrasse ter visto. Eu acho que era feia. (HONWANA, 1980, p.38).

Enquanto Ginho faz o inventário, descrevendo a realidade da família, é possível perceber alguns sintomas que corroboram para a leitura do estado de “zumbi”.

- O estado de zumbi justifica-se diante da violência do poder colonial, mesmo não aceitando a colonização, o indígena percebe-se, momentaneamente, impotente, “como membro de uma comunidade sem história, sem sentido de Estado, sem valores éticos, sem economia, isto é, sem civilização”.

- A metáfora do zumbi vem a calhar com a situação pois, o zumbi é um homem “morto-vivo”, aquele “ao qual se retirou o espírito e a razão, deixando-lhe apenas a força para trabalhar”.

- Além de inventariar a pobreza do lar, ele é o único que, como o pai, ler livros, além de não estar dormindo, embora não sinta vontade de se levantar da cama:

Debaixo desta cama está guardado o meu material de desenho e pintura, contido em dois caixotes de madeira. Há ainda mais três caixotes com livros. Debaixo da cama que está o Papá há mais caixotes com livros. As revistas estão distribuídas pelas 4 mesinhas de cabeceira dos dois quartos. As mais apresentáveis estão na sala de visitas, sobre a mesa de centro, sobre o aparador, sobre a máquina de costura e na mesinha do rádio. Se agora quisesse ler uma revista ia direitinho à mesa do centro, porque lá estão as “Lifes”, as “Times” e as “Cruzeiros” mais recentes. Na mesa do centro está também o “Reader’s”, mas talvez nem lhe tocasse porque parece que não é grande coisa. O Papá diz que é uma porcaria. Bem, mas para ele todas as revistas que a Mamã costuma pôr na sala de visitas são uma porcaria. É por isso que não tenho assim tanta vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum. (HONWANA, 1980, p.38-39).

- Nota-se que as revistas citadas pelo garoto, as de seu gosto, tratam-se de duas produções norte-americanas e uma brasileira. A que é de preferência de sua mãe é uma produção portuguesa. Ambas são rejeitadas pelo pai, o que pode figurar como uma recusa a tudo que se refere às potências colonizadoras – Inglaterra, Portugal.

- Seu pai mantém as janelas fechadas levando-nos a essa ideia de morte em vida.

As portas e as janelas estão fechadas. O Papá não gosta de dormir com as portas e as janelas abertas não sei por quê. Pode-se pensar que é por causa da doença mas eu acho que ele foi sempre assim. Ele agora dorme no nosso quarto porque os médicos, quando lhe deram alta, recomendaram-lhe que dormisse numa cama dura, o que se improvisou no nosso quarto, já que não convinha mexer na cama de casal, no quarto dele. (HONWANA, 1980, p.36).

- A mãe do garoto aparece, também, como um dos “assimilados” da província, uma vez que se comunica muito bem nas duas línguas, o ronga e o português – a de sua etnia e a do colonizador. Com os filhos, ela fala em português. Já com os subordinados, na machamba em que a família vive e trabalha, a mãe do garoto, comunica-se em ronga. Percebe-se que se trata de uma mulher empoderada entre os seus iguais, dentro dos moldes do colonialismo, talvez por ser uma assimilada, tal qual seu marido e seu filho.

- Entretanto, ao que parece, ela, diferente dos dois supracitados, pertence ao grupo dos “assimilados” aliados aos colonos. Possivelmente acredita numa vivência harmônica entre esses e os colonizados, mesmo tendo consciência da desigualdade e do racismo que permeia essa relação, em que o “indígena” é o lado mais fraco, em nome do relativo prestígio do qual goza o “assimilado”.

- Pensando nas fases de tomada de consciência, por parte do colonizado, como também na fase do agir desse sujeito massacrado pelo sistema colonial, percebe-se que o narrador nota a realidade de pobreza em que vive sua família, mas ainda – ao que nos parece – não consegue pensar numa solução para o problema e então não sente “vontade de sair da cama, embora não tenha sono nenhum” (HONWANA, 1980, p.39).

- A assimilação, nesse caso, é a única saída para o colonizado tornar-se sujeito, indivíduo.

- Infere-se que esse estágio de zumbificação em que se encontra a família do narrador, pode figurar como um interregno entre os dois momentos:

1) momento em que o indígena recorre ao embranquecimento, como investimento para acessar a categoria de homem – o que envolvia autorrecusa, aceitação da colonização e admiração pelo branco, o que culmina em revolta e reações repreendidas violentamente pelo sistema e;

2) o momento de recusa à assimilação e de retomada aos valores e tradições indígenas – quando o indígena entende que a autorrejeição é um investimento muito grande e, então, ele conclui que precisa romper com a colonização e lutar para transpor as barreiras sociais, implantadas pelo próprio sistema europeu.

- Além de, como os demais componentes da família, dormir um sono, aparentemente, perturbado, porque ressonam:

O Papá ressona. A Lolota e a Nelita na outra cama ressonam. A meu lado, aqui, debaixo do meu braço, o Nandito ressona também. Ontem, quando fui sorrateiramente abrir a porta, depois de deixar que os outros adormecessem bem, ouvi ressonar no outro quarto. Não sei se era a Mamã ou se era a Tina. Sim, acho que foi a Mamã, embora não tenha certeza. Será que também ressonarei quando adormecer? (HONWANA, 1980, p.36).

É importante salientar, contextualizando a obra e seu contexto histórico, que o momento a que a narrativa pode estar fazendo referência não era de conforto para o colonizado. Dentro do contexto de colonização, percebe-se um endurecimento do sistema, afinal Portugal vivia a Ditadura Nacional, o que levou novos comandos de opressão para suas colônias. Como dito anteriormente, o colonizado perdeu as vantagens sociais, que lhe eram asseguradas pelo Estatuto do Indigenato (abolido nos primeiros anos da década de 1960) e passou a viver, sem distinção entre indígenas e assimilados, explorados pelo trabalho.

Nesse caso, é válida uma leitura que situe esse estado de “morto-vivo”, esse ressonar da família do narrador, como um intervalo entre o primeiro momento de revolta, mas de pouca ação, devido a repressão; e o momento de entender a luta como uma saída possível para a mudança dessa realidade, por isso uma ação mais organizada e sistematizada.

 

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