BOM-CRIOULO, ADOLFO
CAMINHA
I – AUTOR:
Adolfo
Ferreira Caminha nasceu em 1887, na cidade de Aracati, Ceará. Teve uma infância
conturbada pela morte da mãe, enfrentou várias doenças e a seca que assolou o
Nordeste, nesse mesmo ano. Fez os primeiros estudos em Fortaleza (CE) e depois
seguiu para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Escola Naval (1883).
Na Marinha, sentiu o choque da instituição conservadora e monarquista,
revelando-se republicano e abolicionista. Numa solenidade em 1884, com apenas
17 anos, fez um discurso na presença do imperador Pedro II, e declarou-se
"contra o anacronismo da escravidão e do Império". Apesar da
declaração, formou-se no ano seguinte como guarda-marinha.
Por volta de 1886 demonstrou vocação pela literatura, quando publicou os poemas
"Vôos Incertos" e os livros de contos "Judite” e “Lágrimas de um
Crente".
Viajou
pelas Antilhas e Estados Unidos, recolhendo informações e anotações que
resultaram mais tarde no livro "No País dos Ianques" (1894).
Em 1888 pediu transferência para Fortaleza. O Ceará já havia libertado seus
escravos quatro anos antes e a vida literária da Capital era ativa, com vários
grêmios culturais abolicionistas, republicanos e naturalistas, ideias que
agradavam ao jovem escritor.
Naquela cidade, o já tenente Caminha envolveu-se num caso amoroso que lhe
rendeu, inclusive, a saída da Marinha. Apaixonou-se por Isabel Jataí de Paula
Barros, que deixou seu marido e foi viver com o marinheiro, escandalizando a
sociedade cearense. Mas ele não se rendeu, foi trabalhar na Tesouraria da
Fazenda e continuou sua atividade literária. Fundou a "Revista
Moderna" (1891) e, em 1892,
a "Padaria Espiritual", movimento que
acreditava na educação do povo para mudar o país, e publicava o jornal, "O
Pão".
Voltou para o Rio de Janeiro em 1893, já com duas filhas. E para melhorar sua
renda, além do emprego no Tesouro Federal, escrevia para jornais. No mesmo ano
publicou o romance "A Normalista", crítica à vida na capital
cearense, segundo os moldes naturalistas, que não fez eco entre os críticos. Dois
anos depois, publicou "Bom-Crioulo", livro ousado, de temática
homossexual dentro da Marinha. Este é considerado seu melhor livro, visto que o
próximo, "Tentação" (1896), é fraco e revela o declínio do
Naturalismo. Morreu de tuberculose, no ano seguinte, antes dos 30 anos de
idade.
II – CARACTERÍSTICAS:
“Bom-Crioulo”
foi publicado em 1895. Típico romance de tese, interessado em analisar
personalidades fora da normalidade, é considerado por muitos a obra-prima de
Adolfo Caminha e, ao lado de “O cortiço”, de Aluísio Azevedo, um dos melhores
romances do Naturalismo brasileiro.
É
mais que sabido o quanto o Naturalismo brasileiro é devedor do Naturalismo
francês. Foi nas leituras de Zola, principalmente, que nossos escritores do
período se formaram e se embasaram das teorias e do estilo dessa escola. Teoricamente,
foi por meio do cientificismo reinante no período que se traçaram as principais
linhas ideológicas, temáticas e estilísticas a ser seguidas: no determinismo
taineano; no positivismo comteano e no evolucionismo darwiniano repousavam os
preceitos ideológicos principais da escola. Tratava-se de dar um escopo de
ciência exata às ciências humanas, à arte em geral e à literatura em
particular.
Estilisticamente,
o descritivismo deu o tom. Zola adotou e difundiu o registro direto e minucioso
da realidade como prática mais eficiente e adequada às necessidades artísticas
do seu tempo.
Georg
Lukács viu no descritivismo uma prática estilística que nivelava o que deveria
ser resultado de uma distinção e ordenação por parte do narrador (“A narração
distingue e ordena, a descrição nivela todas as coisas”).
O
romance naturalista, para ele, seria uma má alegoria da realidade, ao se ater à
pura observação desta.
Caminha
trabalhou na Marinha e pode conhecer por sua própria experiência os tipos que
se movimentam por esse seu romance. A história de paixão e tragédia que anima
essas páginas não é produto de uma fantasia romântica, mas baseada em fato
real, que escandalizou o Rio de Janeiro do século XIX. Estimulado pelos
pressupostos estéticos do Naturalismo e pelo desejo de chocar e se vingar da
sociedade hipócrita que o rodeava, o autor constrói a partir de um fato
verídico uma ficção forte, ousada, que ainda hoje é atual.
III – FOCO NARRATIVO:
Temos
um foco narrativo em terceira pessoa, com narrador onisciente. É bastante
utilizado o discurso indireto livre para desvendar os pensamentos e sentimentos
dos personagens, recurso que Caminha talvez tenha aprendido em Eça de Queirós,
uma de suas maiores influências literárias.
IV – TEMPO:
Pelas
descrições do ambiente do Rio de Janeiro, podemos afirmar que a história é
contemporânea de sua publicação, isto é, acontece no final do século XIX, pouco
tempo depois da proclamação da República no Brasil.
Predomina
o tempo cronológico, mas não é possível precisar o intervalo em que ocorre a
narrativa.
Quando
Amaro vai para o couraçado, ficamos sabendo que ele e Aleixo estão juntos há
cerca de um ano, mas a história prolonga-se por um tempo indefinido, até o
desfecho com o assassinato do grumete.
Em
alguns momentos, há o uso do flashback, para recuperar as origens dos
personagens principais ou quando Amaro, internado no hospital, se lembra dos
bons tempos com Aleixo.
V – ESPAÇO:
Podemos
analisar o espaço dessa obra, dividindo-a em externo e interno.
Os
cenários externos principais são contrastantes: a paisagem marítima descrita
com um certo Romantismo ou, quando se trata da vida de marinheiro, descrições
carregadas de Impressionismo, revelando um ambiente opresso e ofegante, como no
momento em que os marinheiros estão para ser castigados.
A
pobreza e a sujeira das ruas suburbanas do Rio de Janeiro acentuam o contraste
com as descrições românticas do mar.
Os
espaços internos são o interior da corveta, em alto-mar, onde Bom-Crioulo e
Amaro se conhecem, e o sobradinho da Rua da Misericórdia, no Rio de Janeiro,
onde vão viver em terra e, posteriormente, D. Carolina e Aleixo se amasiam.
Dentro
da corveta, o ambiente é desagradável, repugnante mesmo, quando serve de
cenário para os contatos mais íntimos entre Amaro e Aleixo.
É
notável a competência com que Adolfo Caminha descreve o espaço do navio, pudera
o autor cursou a Escola Naval e foi guarda-marinha e a passagem do Rio de
Janeiro, principalmente a que se vê da orla marítima, aparecendo aqui e ali, ao
longo da história.
O
mesmo acontece na descrição do quarto do sobradinho em que vão viver
Bom-Crioulo e Aleixo quando chegam ao Rio de Janeiro.
Essa
caracterização negativa do espaço que envolve a relação “proibida e imoral”
entre Bom-Crioulo e Aleixo tem um peso valorativo: funciona como uma crítica ao
relacionamento homossexual, um julgamento moral: o espaço é decadente porque o
que acontece entre os dois marinheiros também é decadente. Mas o mesmo não vale
quando se trata de descrever o cenário dos encontros entre Aleixo e D.
Carolina.
É
valorizada a ação exterior, com destaque para cenas verdadeiramente
cinematográficas, como os momentos de briga de rua, de luta para controlar a
embarcação em dia de tempestade ou a cena dos castigos corporais a que deviam
ser submetidos os marinheiros que infringiam o regulamento. Merecem o mesmo
tratamento as cenas de sexo, que são interrompidas ou não chegam a detalhes
explícitos em virtude da moral social que também atinge o escritor e sua preocupação
prévia com a reação do leitor.
VI – PERSONAGENS:
AMARO,
o Bom-Crioulo: personagem principal, ex-escravo, tem cerca de 30 anos. De
início, bom marinheiro, respeitado pela seriedade, força e valentia. Mas aos
poucos vai se tornando relaxado, principalmente depois de se apaixonar pelo
grumete Aleixo.
ALEIXO
– adolescente, tem cerca de 15 anos, veio de família pobre de pescadores. Pele
clara, olhos azuis, sua figura cativa a todos. Torna-se objeto das paixões de
Amaro e D. Carolina. Morre tragicamente ao final.
D.
CAROLINA – portuguesa, ex-prostituta, 38 anos. A princípio, grata a Amaro por
este ter lhe salvado a vida no passado, acaba roubando do Bom-Crioulo o grumete
Aleixo, que seduz com sua experiência e o resto de sensualidade que lhe sobrou.
HERCULANO
– marinheiro imberbe, mórbido, solitário, é castigado ao início da narrativa
por ter sido flagrado se masturbando.
SANT’ANA
– marinheiro castigado por ter se envolvido em briga com Herculano. Manhoso,
gago.
AGOSTINHO
– guardião do navio, especialista em aplicar chibatadas, é um sádico que se
aproveita do seu ofício: adora castigar.
O
reduzido número de personagens significativos na narrativa e a casualidade de
alguns acontecimentos soltos na trama parecem denunciar o pouco fôlego de
Adolfo Caminha como escritor. Exemplos desses acontecimentos são a
“coincidência” da visita de Herculano ao hospital, quando diz a Amaro do
destino de Aleixo, ou a presença fantasma do açougueiro amante de D. Carolina
em algumas passagens do livro.
O
crítico Georg Lukács chama a atenção para a necessidade de o escritor “superar
na representação a casualidade nua e crua, elevando-a no plano da necessidade”.
Ou
seja: não é que fatos casuais não possam ocorrer, mas eles precisam “ser
exigidos” pela narrativa.
Quanto
à questão da composição dos personagens, os três últimos anteriormente citados
são meros esboços de figuras naturalistas, caricaturas de homens dominados por
suas fraquezas. Mesmo D. Carolina e Aleixo caem no esquematismo descritivista
observado por Lukács:
“As
qualidades humanas passam a existir umas ao lado das outras e vêm descritas
nesta compartimentalidade, em vez de se realizarem nos acontecimentos e de
manifestarem assim a unidade viva da personalidade nas diversas posições por
elas assumidas, bem como nas suas ações contraditórias. À falsa vastidão dos
horizontes do mundo externo corresponde, no método descritivo, um estreitamento
esquemático nas caracterizações humanas. O homem aparece como um “produto”
acabado de componentes sociais e naturais de várias espécies. A profunda
verdade social do entrecruzamento no homem de determinantes sociais com
qualidades psicofísicas acaba sempre por se perder.
Não
é o caso de Amaro. Este vive integralmente suas contradições, até as últimas
consequências: reconhece em Aleixo a causa de sua decadência, mas vai até o fim
no seu amor; seus ciúmes no hospital estão em constante contraste com sua
saudade carregada de sensualismo; sabe o quanto o álcool lhe faz mal, mas
procura-o como último recurso quando já não suporta a realidade.
Sua
personalidade, ao longo de todo o romance, é mesmo aquela figura enlouquecida e
apaixonada que, no último capítulo, caminha com desejo e ódio ao encontro de
Aleixo e de seu destino. Como bem notou Alfredo Bosi, Amaro é “coerente na sua
passionalidade que o move, pelos meandros do sadomasoquismo, à perversão e ao
crime”.
VII – LINGUAGEM:
A
principal marca do estilo naturalista é o descritivismo detalhista, visando à
objetividade cientificista na narração, mas não se pode afirmar que Adolfo
Caminha abuse desse recurso nesta obra. Pelo contrário: a influência de Eça de
Queirós parece ter sido positivo no que toca ao uso parcimonioso das descrições
aliado a uma exploração do mundo interior dos personagens, o Bom-Crioulo, em
particular, por meio do discurso indireto livre.
Além
disso, há em Caminha aquilo que Massaud Moisés chama de “lastro romântico que
suportava a cosmovisão realista: veja-se a abundância de reticências que
destroem a ideia de apreensão total das circunstâncias e objetos, que
constituía apanágio do Realismo [Naturalismo], e chamam para o indefinido e a
fantasia desatada, como algumas vezes acontece”.
Tal
particularidade é perceptível nas descrições, por exemplo, no episódio da
borrasca que atinge a corveta pouco antes do atracamento no Rio de Janeiro ou
na cena de despedida para o primeiro embarque de Amaro.
É
interessante notar, também, como o autor trabalha a linguagem para tratar do
sexo. Tudo é dito objetiva e cruamente, mas nunca a própria consumação do ato
sexual, o narrador esconde-se por detrás das palavras: quando do episódio da
masturbação de Herculano (o Pinga) no navio (“cometendo, contra si próprio, o
mais vergonhoso dos atentados”); quando da posse de Aleixo por Amaro (“E
consumou-se o delito contra a natureza”); quando da polução de Amaro, no
capítulo IV (“passou a mão no lugar úmido, e verificou, cheio de indignação,
cheio de tédio, com um gesto de náusea, a irreparável perda que sofrera
inconscientemente durante o sono”); e assim por todo o livro. Essa atitude é comum também quando se trata de
expressões de baixo calão proferidas pelos personagens. Amaro nunca completa a
expressão “ - ...que os pariu”. São sempre as mesmas reticências...
O
crítico Antonio Candido explicou coerentemente esse aspecto nos naturalistas:
“Há,
portanto, uma espécie de desgraçado do enfoque “natural” de Zola, quem sabe por
causa de certo sentimento ateu do pecado, visível não apenas em Aluísio Azevedo,
mas em Eça de Queirós, Abel Botelho, Adolfo Caminha, Júlio Ribeiro, que também
receberam mais ou menos a sua influência. É como se nas sociedades mais
atrasadas e nos países coloniais o provincianismo tornasse difícil adotar o
Naturalismo com naturalidade, e as coisas do sexo acabassem por despertar
inconscientemente um certo escândalo nos que se julgavam capazes de
enfrentá-las com objetividade desassombrada.
VIII – RESUMO DO
ENREDO:
CAPÍTULO I
Um
narrador impessoal, valendo-se do foco narrativo em terceira pessoa, abre o
primeiro capítulo do romance descrevendo, minuciosamente, uma corveta. Essa
técnica é comum na estética realista-naturalista que visa criar meios para o
leitor visualizar o cenário em que vai transcorrer a ação. Informa que o navio,
um dia novo e bonito, agora está velho, com o casco negro e as velas
encardidas, parecendo mais um esquife agourento.
Após
montar o cenário, o narrador põe as personagens em movimento.
“A
velha corveta enfrenta a calmaria em alto-mar. Às onze horas, em plena
indolência, o tenente ordena toque de reunir no convés. Oficiais e marinheiros
preparam-se para a cerimônia de punição dos rebeldes. O guardião Agostinho,
companheiro respeitado e temido, mestre na chibata, aplicaria as penas, aquilo
lhe dava um prazer especial.”
Entre
eles, Herculano, com seu rosto imberbe de adolescente. “As unhas metiam
náuseas, muito quilotadas de alcatrão, desleixadas mesmo. Triste figura essa,
cujo aspecto deixava uma impressão desagradável e persistente.” (p.14)
A
razão do castigo é que o grumete fora flagrado por um mulatinho esperto, quando
se masturbava:
“Ora,
aconteceu que, na véspera desse dia, Herculano foi surpreendido, por outro
marinheiro, a praticar uma ação feia e deprimente do caráter humano. Tinham-no
encontrado sozinho, junto à amurada, em pé, a mexer com o braço numa posição
torpe, cometendo, contra si próprio, o mais vergonhoso dos atentados”. (p.16)
O
mulato chamou o Sant’ana que veio e deu o flagrante. Herculano e Sant’ana
brigaram. Por isso, ambos foram a castigo.
Herculano
sofreu o seu sem reclamar, mas o Sant’ana tentou justificar-se, desculpar-se,
mas de nada adiantou: vinte e cinco chibatadas para cada.
“-
Hei de corrigi-los, bradava o comandante, aceso em súbita cólera, mal-humorado
sob a luz ardentíssima do meio-dia tropical.
-
Hei de corrigi-los: corja!
Nenhum
frêmito de comoção na marinhagem, testemunha habitual daquelas cenas que já não
logravam produzir efeitos sentimentais, como se fora a reprodução banal de um
quadro muito visto.” (p.18)
O
terceiro preso a ser castigado é exatamente o protagonista, Amaro, mais
conhecido entre os marujos por Bom-Crioulo. Trata-se de um negro, muito robusto
e seguro. Calmo quando sóbrio torna-se agressivo quando embriagado.
“Quando
havia conflito no cais Pharoux, já toda a gente sabia que era o Bom-Crioulo ás
volta com a polícia. Reunia povo, toda a população do litoral corria enchendo a
praça, como se tivesse acontecido uma desgraça enorme, formavam-se partidos a
favor da polícia e da marinha...uma coisa indescritível!” (p. 19)
O
motivo de sua prisão agora, no alto-mar, a bordo da corveta, era outro:
“Bom-Crioulo
esmurrara desapiedadamente um segunda-classe, porque este ousara, sem o seu
consentimento, maltratar o grumete Aleixo, um belo marinheiro de olhos azuis,
muito querido por todos e de quem diziam-se coisas.” (p.19)
O
narrador traduz o sentimento interior de satisfação que toma conta de Amaro,
que, se por um lado reconhece que agira mal, por outro está contente porque
acredita que vai conquistar o grumete “como se conquista uma mulher formosa,
uma terra virgem, um país de ouro”.
O
guardião Agostinho desfere cento e cinquenta chicotadas sem que o hercúleo
Amaro solte um gemido de fraqueza.
Estava
terminado o castigo. A população voltava à faina.
CAPÍTULO II
O
narrador faz uma retrospectiva, um flashback, revelando a história de Amaro:
aparecera no Rio de Janeiro vindo não se sabe de onde. Negro fugido, fora
recrutado pela Marinha e apaixonara-se logo pela vida de bordo. Era uma
liberdade tão grande para quem passara toda a vida na fazenda, preso ao cabo da
enxada! Ganhou logo a afeição dos oficiais; nunca dava trabalho e aprendia
rápido. Isso lhe valeu o apelido de Bom-Crioulo.
“Ali
ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca, seu travesseiro, sua roupa limpa, e
comia bem, a fartar, como qualquer pessoa, hoje boa carne cozida, amanhã
suculenta feijoada, e, às sextas-feiras, um bacalhauzinho com pimenta e “sangue
de Cristo”...Para que vida melhor? Depois, a liberdade, minha gente, só a
liberdade valia por tudo! Ali não se olhava a cor ou a raça do marinheiro:
todos eram iguais, tinham as mesmas regalias – o mesmo serviço, a mesma folga.
– E quando a gente se faz estimar pelos superiores, quando não se tem inimigos,
então é um viver abençoado esse: ninguém pensa no dia de amanhã!” (p. 22)
Durante
o período de aprendizado, sonhava com poder embarcar definitivamente. Quando
isso aconteceu, rapidamente ganhou a amizade e o respeito dos companheiros do
cruzador de alto-mar, pela sua seriedade e força bruta.
Depois,
sonhou em embarcar no navio do Almirante Albuquerque, que diziam recompensar
bem seus bons marinheiros.
Quando
embarcara na corveta, já tinha trinta anos, era marinheiro de segunda classe.
Com
o passar do tempo seu comportamento começa a mudar. Descuidava-se da qualidade
de seus serviços. Torna-se lento no cumprimento das obrigações: lerdava no
mastro e mostrava-se aborrecido com as tarefas.
Diziam
uns que a cachaça estava a perder o negro; outro, porém, insinuavam que
Bom-Crioulo tornara-se assim, esquecido e indiferente, desde que Aleixo, o
menino que embarcara como grumete no Sul.
“O
certo é que o garoto de quinze anos abalara a alma de Amaro, dominando-a, como
a força de um imã. (...) Esse movimento indefinível que acomete ao mesmo tempo
duas naturezas de sexos contrários, determinando o desejo fisiológico da posse
mútua, essa atração animal que faz o homem escravo da mulher e que em todas as
espécies impulsiona o macho para a fêmea, sentiu-a Bom-Crioulo
irresistivelmente ao cruzar a vista pela primeira vez com o grumetezinho.” (p.
26)
“Bom-Crioulo
não se importava com os comentários, desde que não lhe viessem dizer na cara,
senão veriam!”
Nota-se
no fragmento transcrito uma das mais importantes características do
Naturalismo. O narrador, como um cientista, friamente, tecnicamente, procura
falar do assunto racionalmente, demonstrando uma visão de mundo materialista em
que predomina a preocupação com o aspecto fisiológico, próprio do
clínico-geral.
Aleixo
era filho de uma família pobre de pescadores. A princípio, Bom-Crioulo o
assustara, mas foi se acostumando aos carinhos e à solicitude de Amaro.
Amaro,
para mostrar ao grumete de olhos azuis o seu poder sobre os outros e também sua
afeição, esmurra o segunda-classe, que ousou maltratá-lo.
Ao
regressar do Sul, comenta o narrador, Amaro está mais forte, mais viçoso, mais
homem. Já não revela mais tanta obediência, tanto respeito no tocante à
disciplina.
Tornou-se
um tipo comum, como a maioria dos marinheiros, já fala mal dos oficiais na
ausência deles, trata-os com desdém. Após ser castigado por um comandante, de
nome Varela, por ter agredido outro marinheiro, Amaro torna-se preguiçoso,
insubmisso, ressentido e deixa de se importar com seus deveres, passava um mês
no hospital, outro a bordo, outro de licença em terra, resmungando:
“Tolo
era quem se matava. Havia de receber seu soldo quer trabalhasse quer não
trabalhasse. -...que os pariu!” (p. 28)
O
fato do texto estar entre aspas (além disso, no original, está depois do
travessão) caracteriza a fala da personagem em discurso direto. Então deveria
estar “Tolo é quem se mata...”, mas o escritor colocou os verbos no passado,
como se o narrador estivesse reproduzindo a fala da personagem em discurso
indireto. Temos então uma contaminação do discurso do narrador pelo da
personagem.
CAPÍTULO III
A
narrativa retorna ao tempo presente, isto é, ao momento final do primeiro
capítulo, logo após o castigo dos três marinheiros. Todos na corveta
regozijam-se com a esperança de chegar em breve à baía da Guanabara. Todos não,
há um que preferia passar a vida toda no mar: Amaro. “Como haveria de ser a
vida em terra depois de ter conhecido o grumete?”
“Era
Bom-Crioulo, o negro Amaro, cujo espírito debatia-se, como um pássaro
agonizante, em torno desta única ideia – o grumete Aleixo, que o não deixava
mais pensar noutra coisa, que o torturava dolorosamente... – Maldita a hora em
que o pequeno pusera os pés a bordo! Até então sua vida ia correndo como Deus
queria, mais ou menos calma, sem preocupações incômodas, ora triste, ora
alegre, é verdade, porque não há nada firme no mundo, mas, enfim, ia-se
vivendo...E agora! Agora...hum, hum!...agora não havia remédio: era deixar o
pau correr...” (p. 29)
Neste
fragmento, a exclamação indica que houve mudança abrupta, marcada por um
travessão, mas no meio da frase, sem abrir outro parágrafo e sem qualquer verbo
de elocução. Quem está se expressando é Amaro.
No
trecho final, tanto as hesitações, os pensamentos incompletos, a interjeição
“hum, hum” que indica dúvida e impaciência do próprio protagonista.
Não
entendia o que estava acontecendo. Nas duas únicas vezes que se metera com
mulheres na vida, foram fracassadas.
Amaro
passa o dia todo torturado por um incontrolável “desejo de unir-se ao marujo
como se ele fora do outro sexo, de possuí-lo, de tê-lo junto a si, de amá-lo,
de gozá-lo”.
Aleixo,
por sua vez, ia satisfeito com a vida de grumete. Era o preferido dos oficiais,
sempre muito asseado e composto.
Bom-Crioulo
era o responsável por aquela transformação; ele ensinara o menino a se vestir,
a conquistar simpatias.
Dera
a ele um espelhinho, ensinara-o a dar laço na gravata, a usar o boné de lado, a
camisa um bocadinho aberta.
Um
belo domingo, o rapaz aparece tão lindo em seu uniforme branco que Amaro “ficou
deslumbrado e por um triz esteve fazendo uma asneira. Seu desejo era abraçar o
pequeno, ali na presença da guarnição, devorá-lo de beijos, esmagá-lo de
carícias debaixo do seu corpo”. (p. 31)
Nesse
mesmo dia, depois de terminada a leitura do Regulamento e feita á revista,
Bom-Crioulo chama Aleixo à proa e entram numa longa conversa em que o negro
propõe ao rapaz para morarem juntos, quando voltarem a terra.
Propôs
protegê-lo e ensiná-lo a viver no Rio de Janeiro. Aleixo deixava-se levar pelos
planos do amigo e fantasiava a vida na capital: morariam juntos em um quarto da
Rua da Misericórdia. Conversavam e assistiam à passagem de um transatlântico
carregado de imigrantes quando, de repente, o tempo mudou; uma montanha de
nuvens se aproximava, viria uma tempestade. O navio agitava-se, preparando-se
para a luta contra a natureza.
Durou
uma hora e meia o aguaceiro, até que o sol iluminou de novo o horizonte, só o
vento persistia.
Depois,
os marinheiros aproveitaram o luar e a noite para festejar. Menos o Bom-Crioulo,
que cansado do extenuante trabalho, desceu as escadas em busca de abrigo e
descanso. Ele e Aleixo, bem próximos, conversaram sobre a tempestade e trocaram
histórias até o anoitecer.
O
ambiente era frio, úmido. A coberta era nauseabunda, um cheiro acre de suor,
urina e alcatrão misturados empesteava o ambiente. Naquela noite, queria
resolver logo aquilo, não podia esperar mais. Esgueirava-se entre as macas,
procurando Aleixo.
Não
se viam, apenas adivinhavam-se por baixo dos cobertores.
“Depois
de um silêncio cauteloso e rápido, Bom-Crioulo, conchegando-se ao grumete,
disse-lhe qualquer coisa no ouvido. Aleixo conservou-se imóvel, sem respirar.
Encolhido, as pálpebras cerrando-se instintivamente de sono, ouvindo, com o
ouvido pegado ao convés, o marulhar das ondas na proa, não teve ânimo de
murmurar uma palavra. Viu passarem, como em sonho, as mil e uma promessas de
Bom-Crioulo; o quartinho da Rua da Misericórdia no Rio de Janeiro, os teatros,
os passeios...; lembrou-se do castigo que o negro sofrera por sua causa; mas
não disse nada. Uma sensação de ventura infinita espalhava-se-lhe em todo o
corpo.
Começava
a sentir no próprio sangue impulsos nunca experimentados, uma como vontade
ingênita de ceder aos caprichos do negro, de abandonar-se-lhe para o que ele
quisesse – uma vaga distensão dos nervos, um prurido de passividade...
-
Ande logo! Murmurou apressadamente, voltando-se.
E
consumou-se o delito contra a natureza.” (p. 37/8)
CAPÍTULO IV
O
dia seguinte amanhece luminoso. Chegam ao Rio de Janeiro e Amaro sentia um
misto de alegria e preocupação. Depois de mais de seis meses de escravidão no
mar, isso que chamavam “servir à pátria”, enfim chegava à terra firme. No
entanto, em vinte e quatro horas pode ver-se separado de seu grumete por ordens
superiores. Por outro lado, alegra-se com a prova de amor que recebera:
“Ao
pensar nisso Bom-Crioulo sentia uma febre extraordinária de erotismo, um
delírio invencível de gozo pederasta...Agora compreendia nitidamente que só no
homem, no próprio homem, ele podia encontrar aquilo que debalde procurava nas
mulheres”. (p. 40)
O
narrador reproduz seu monólogo interior, em que procura justificar seu desvio,
tomando como exemplo o comportamento de outros, como o de um oficial.
“Se
os brancos faziam, quanto mais os negros! É que nem todos têm força para
resistir: a natureza pode mais que a vontade humana...” (p. 40)
Vem
a tarde, mas recebem ordem para não desembarcar. Amaro dorme pesado, pois está
cansado. Ao acordar, irrita-se, pois, tivera um verdadeiro esgotamento de
líquido seminal. Irrita-o mais ainda o fato de não ter sentido gozo.
Levanta-se, arruma suas coisas e sai resmungando, ameaçando quem cruzasse com
ele. Só o encontro com Aleixo o animou.
“Os
outros pediam-lhe desculpa, humilhavam-se, adulavam-no, porque sabiam que o
negro era meio doido.” (p. 41)
Enfim
puderam descer. Passaram pelo decadente Largo do Paço, beberam alguma coisa e
foram andando para a Rua da Misericórdia. Pararam defronte de um sobradinho,
próximo ao Arsenal de Guerra. Em baixo, moravam uns pretos de Angola. Em cima,
a D. Carolina, uma senhora redonda e meio idosa, que abraçou com alegria o
Bom-Crioulo. Era uma portuguesa que alugava quartos. Não discriminava os
fregueses.
O
narrador faz uma retrospectiva, revelando que a portuguesa quando moça, já
tivera seu bom período de aparência, uma casa na Rua da Lampadosa, chamavam-na
Carola Bunda, tivera dinheiro ganho na prostituição, tivera homens, mas também
adoecera e conhecera infortúnios.
Depois
tropeçara pela vida, foi para Portugal, retornou ao Brasil, e agora vivia da
renda dos aluguéis e da ajuda de uma amante, um açougueiro, senhor Brás, que
aparecia às vezes e contribuía com cento e cinquenta mil réis “para o aluguel
do sobradinho, fora a carne que mandava diariamente”. Contava, então, com o
dinheiro dos aluguéis para segurar sua velhice.
Estimava
o Bom-Crioulo desde o dia em que ele a salvara, na rua, de dois pilantras que a
assaltavam e podiam até matá-la. Tornaram-se íntimos e, desde então, Amaro só
se hospedava na Rua da Misericórdia.
Enquanto
Bom-Crioulo contava a D. Carolina seu caso com o grumete, Aleixo reparava na
decoração da sala de jantar. Tudo cheirando a sebo e cânfora, velho, poento e
incolor.
Os
marinheiros foram arranjados no comodozinho de cima, onde podiam ficar mais a
sós.
CAPÍTULO V
“O
quarto era independente, com janela para os fundos da casa, espécie de sótão
roído pelo cupim e tresandando a ácido fênico. Nele morrera de febre amarela um
portuguesinho recém-chegado. Mas Bom-Crioulo, conquanto receasse as febres de
mau caráter, não se importou com isso, tratando de esquecer o caso e
instalando-se definitivamente.” (p. 47)
O
leito era uma cama dobrável muito usada, sobre a qual Amaro de manhã cobria com
um grosso cobertor encarnado para esconder as nódoas.
Durante
meses viveram ali uma vida tranquila. Bom-Crioulo enfeitou o quartinho com
bugigangas. Cumpriam seus deveres a bordo e vinham á terra duas vezes por
semana.
O
grumete levava uma vida de felicidades. Era estimado por D. Carolina e como era
comportado e asseado, tornou-se protegido dos oficiais.
Uma
coisa apenas o incomodava: os caprichos libertinos de Amaro, pois este não se
contentava só em possuí-lo a qualquer hora do dia ou da noite, “queria muito
mais, obrigava-o a excessos, fazia dele um escravo, uma “mulher à-toa” propondo
quanta extravagância lhe vinha à imaginação”, como quando exigiu que o rapaz se
mostrasse para ele nuzinho em
pêlo. Apesar da vergonha, Aleixo cedeu, revelando um corpo
muito alvo, as formas “roliças de calipígio” (belas nádegas).
“Bom-Crioulo”
ficou extático! A brancura láctea e maciça daquela carne tenra punha-lhe
frêmitos no corpo, abalando-o nervosamente de um modo estranho, excitando-o
como uma bebida forte, atraindo-o, alvoroçando-lhe o coração. Nunca vira formas
de homem tão bem torneadas, braços assim, quadris rijos e carnudos como
aqueles...Faltavam-lhe os seios para que Aleixo fosse uma verdadeira
mulher!...Que beleza de pescoço, que delícia de ombros, que desespero!...”(p.
48/9)
Os
desejos de Bom-Crioulo eram de touro! D. Carolina chamava o rapazinho de olhos
azuis de “Bonitinho” e desdobrava-se em carinhos para ele.
Certo
dia a corveta entrou para os diques.
“Era
justamente em dezembro, mês de epidemias e de insuportável calor.” (p. 50)
Com
a embarcação parada para reparos, os marinheiros ficam à solta. Amaro torna-se
trabalhador de novo, obtendo concessões de imediato e, assim, multiplica os
passeios à terra. Já faz quase um ano que está nessa vida. Começa a sentir-se
magro e tem uma fraqueza e uma sonolência profunda, mas isso não chega a
preocupá-lo, pois vive em paz de espírito vendo crescer a seu lado o Aleixo.
“Sua
amizade ao grumete já não era lúbrica e ardente: mudara-se num sentimento
calmo, numa afeição comum, sem estos febris nem zelos de amante apaixonado.”
(p. 51)
D.
Carolina, vendo a permanência dessa ligação, brinca com eles:
“Vocês
acabam tendo filhos”.
Mas,
certo dia, a corveta saiu do dique e Amaro se viu surpreendido, nomeado para
outro navio, um grande navio de guerra. Ficou furioso por ter de se separar do
seu amigo. Ameaçou-se, caso se engraçasse com algum oficial. E foi-se, triste,
servir na sua nova casa no mar.
CAPÍTULO VI
No
dia seguinte, Aleixo não encontrou o Bom-Crioulo no quarto. Adormeceu,
esperando pelo negro. Quando acordou, ele não havia aparecido. Não importava,
afinal não era impossível viver sem Amaro. Na verdade, nos últimos tempos,
pensava mesmo em arranjar alguém melhor, de posição.
Seus
pensamentos são interrompidos pela presença da portuguesa. D. Carolina,
aproveitando-se da ausência do negro, inicia um processo de sedução do rapaz.
Conversaram
enquanto ele se arrumava para uma volta no Passeio Público. Ela queria lhe
falar quando voltasse.
Ele
saiu, ela se perdeu em seus pensamentos: há dias metera na cabeça conquistar
Aleixo. Tinha 38 anos, não estava tão acabada assim, e cansara dos marmanjos.
“Há dias metera-se-lhe na cabeça uma
extravagância: conquistar Aleixo, o bonitinho, tomá-lo para si, tê-lo como
amantezinho do seu coração avelhentado e gasto, amigar-se com ele secretamente,
dando-lhe tudo quanto fosse preciso: roupa, calçados, almoço e jantar nos dias
de folga – dando-lhe tudo enfim.” (p. 55)
A
portuguesa torna-se muito meiga com o rapaz, guarda-lhe doces; passa ela mesma
a ferro os lenços dele. Fingindo-se distraída, vai revelando-lhe pernas,
braços, seios.
Um
dia, Aleixo passa pelo corredor e dá com a porta aberta dos aposentos da
mulher, que, na cama dormia com as pernas de fora, metida numa camisa curta.
Ele excita-se, mas nem sonha que ela possa dar atenção a ele, ainda imberbe.
Quando
ele voltou do Passeio, a portuguesa levou-o para o seu quarto com uma larga
cama de casal. Elogiou-o, disse que estava apaixonada e passando das palavras à
ação.
“Então
ela, como se lhe houvessem aberto de repente uma caudal de gozo, cravou os
dentes na face do grumete, numa fúria brutal, e segurando-o pelas nádegas, o
olhar cintilante, o rosto congestionado, foi depô-lo na cama:
-
Pr’aí, meu jasmim de estufa, pr’aí! Vais conhecer uma portuguesa velha de
sangue quente. Deixa a inocência pro lado, vamos!...
Bateu
a porta e começou a se despir a toda pressa, diante de Aleixo, enquanto ele
deixava-se estar imóvel, muito admirado para essa mulher-homem que o queria
deflorar aí assim, torpemente, como um animal.
-
Anda, meu tolinho, despe-te também: aprende com tua velha...Anda, que eu estou
que nem uma brasa!...
Aleixo
não tinha tempo de coordenar as ideias. D. Carolina o absorvia,
transfigurando-se a seus olhos.
Ela
de ordinário tão meiga, tão comedida, tão escrupulosa mesmo, aparecia-lhe agora
como um animal formidável, cheio de sensualidade, como uma vaca do campo
extraordinariamente excitada, que se atira ao macho antes que ele prepare o
bote...
Era
incrível aquilo!
A
mulher só faltava urrar!
E
a sua admiração cresceu ainda mais quando ela, sacando fora a camisa ensopada
de suor, caiu nua no leito, arquejante, segurando os seios moles, com um
estranho fulgor no olhar de basilisco.
Mas
Aleixo sabia, por Bom-Crioulo, até onde chega a animalidade humana, e, passado
o primeiro momento de surpresa, sentiu que também era feito de carne e osso,
como o negro e D. Carolina – valia a pena decerto uma noite como aquela!” (p.
58/9)
Combinaram
se encontrar quando Bom-Crioulo não viesse á terra.
No
outro dia, Aleixo sai de casa, pálido, com grandes olheiras, pensando:
“Se
fosse possível não me encontrar mais, nunca mais com aquele negro, ah! Que
felicidade!”
E
a figura da mulher dançava em sua imaginação como um sonho diabólico.
CAPÍTULO VII
O
narrador dirige o foco da narrativa para o Bom-Crioulo que sofre insatisfeito a
vida dura no couraçado para o qual foi transferido. Enchia-se de ódio contra os
superiores. Revoltava-se contra o quartel-general que o mandara da corveta para
o couraçado. Fantasia desertar e fugir com o pequeno:
“Estavam
enganadinhos! Bom-Crioulo tinha sangue nas guelras e era homem para viver só
num deserto...” (p. 60)
A
vigilância acontecia porque já no primeiro dia o crioulo fora recomendado ao
imediato em bilhete especial.
“Muita
cautela com o Amaro. É uma praça irrepreensível quando não bebe, mas chupando
seu copito, guarda debaixo! Faz um salseiro dos diabos”.
Por
isso os oficiais precaveram-se contra ele e não queriam deixá-lo desembarcar.
Ficou assentado que ele teria folga só uma vez por mês. Amaro suportou três
dias, mas no quarto, um sábado, pediu permissão para desembarcar. Como lhe
recusaram, no dia seguinte, pela manhã, ofereceu-se para remar no escaler que
ia às compras. Ao atracar, pediu permissão para “fazer uma necessidade” e fugiu
direto para o seu quartinho, mas não encontrou Aleixo.
“Abriu
as gavetinhas da mesa, revistou móveis, remexeu papéis, como quem procura um
objeto, examinou a cama, farejando, tateando...O vidro de óleo não estava na
cantoneira e tinha sofrido uma limpa; a garrafa de água Florida, que ele
deixara pelo gargalo, quando muito podia ter seis dedos...; a latinha de graxa
imobilizava-se no chão, de borco, ao pé do lavatório de ferro; o assoalho era
uma imundície de pontas de cigarro e cuspo.
-
Eu faço ideia!...murmurou Bom-Crioulo interpretando aquela desordem habitual!
Eu faço ideia...” (p. 61) Depois disso, acendeu um cigarro e deitou-se, só
acordando ao meio-dia, quando foi chamado por D. Carolina. Conversaram e Amaro
indaga sobre seu amante, mas a portuguesa mente, dizendo que o rapaz viera só
um dia, na quinta-feira.
Amaro
sai para comer alguma coisa e vai ruminado:
“Precisava
tomar uma resolução, abandonar Aleixo, acabar de uma vez, meter-se a bordo, ou
então amigar-se aí com uma rapariga de sua cor e viver tranquilo. Estava
emagrecendo à toa, não comia, não tinha descanso, em termos de adoecer, de
apanhar uma moléstia, por causa do “senhor Aleixo”. Se ao menos pudesse vê-lo
todos os dias, como na corveta...; mas assim, longe um do outro? Não valia a
pena, era cair no desfrute...” (p. 63)
Um
amontoado de gente atrai Amaro, que se espanta de ver dois guardas tentarem
inutilmente levantar um homem “acometido de gota, que se espojava no chão,
babando, o rosto ensanguentado, a barba suja de areia, em contorções
horrorosas”. (p. 64)
Amaro
salta no meio e levanta o homem com as duas mãos, transportando-o assim até a
Santa Casa de Misericórdia, como se pegasse uma criança, assombrando o povo com
sua força. Depois toma um gole de cachaça e só com isso fica alterado. Resolve
ir direto para bordo: “Vou porque quero, porque sou livre”.
Eram
duas horas da tarde dominical e quase todo o comércio já estava fechado.
Desceu
cambaleando para o Largo do Paço, com a mente turva, e os cachorros da rua
começaram a provocá-lo.
No
cais, grita para os marinheiros de um escaler, que se fingem de distraídos,
fazendo rir a um português que assistia à cena. Amaro descarrega no português a
sua raiva. Brigam durante longo tempo e atraem a atenção dos curiosos, que
formam um ajuntamento. O crioulo puxa uma navalha e o português foge.
Aproximam-se
policiais e Amaro, que já estava de navalha em punho, enfrenta-os.
Aparece
um primeiro-tenente da marinha, com mais seis marinheiros, prendendo Amaro como
se fosse um animal feroz.
“Que
luta para o embarcar! O negro escabujava, mordia, no auge de um desespero
hidrofóbico, insultando, rogando pragas.
Afinal,
lá conduziram à viva força, e a embarcação deslizou, toda branca, na baía
calma...”(p. 68)
CAPÍTULO VIII
“O
comandante do couraçado, bela estampa de militar fidalgo, irrepreensível e
caprichoso, era o mesmo, aquele mesmo de quem, na frase tosca de Bom-Crioulo,
falavam-se coisas...” (p. 68) Amaro sente por ele uma repugnância instintiva:
“Esse
homem nasceu para me fazer mal, pensava o negro supersticiosamente”.
Essa
noite dorme Amaro em uma jaula de ferro estreita e sem luz, onde mal cabe um
homem. Trancado ali, imóvel, com pés e mãos presos, só conseguiu adormecer de
manhã, quando os outros já acordavam. Durante o sono, teve pesadelo com o
português da briga. Iam se pegar de novo, mas Aleixo interferia impedindo o
confronto. Eram onze horas, quando Amaro, ainda em jejum, foi retirado para o
castigo.
“-
Não se iluda a guarnição deste navio! Perorou o comandante. Desobediência,
embriaguez e pederastia são crimes de primeira ordem. Não se iludam...” (p. 70)
Como
da outra vez, Amaro recebeu as chibatadas sem um grito de dor. Quando terminou,
o negro rodou e caiu sobre o convés, porejando sangue. Todo seu couro estava
cortado pela chibata. Caiu quando já não restava qualquer energia no organismo
e a dor sobrepujara a vontade. Vem o médico, aplica-lhe água com éter. Depois,
Amaro é levado em um escaler para o hospital em terra.
Aleixo,
naquele dia, estava de folga e aproveitou para visitar a portuguesa. Vai com
medo de encontrar Bom-Crioulo e de ter de enfrentar os seus caprichos. Após
descobrir o sexo heterossexual com a portuguesa, o rapaz “ficara abominando o
negro, odiando-o quase, cheio de repugnância, cheio de nojo por aquele animal
com formas de homem, que se dizia seu amigo unicamente para o gozar”. Sente que
nunca o estimara.
Por
sorte, encontrou D. Carolina a lavar roupa, conversam sobre o negro, rindo-se
dele. Em seguida, ficou admirando a beleza do corpo da portuguesa, sua pele
alva, enquanto ela terminava o serviço.
Sentiam
uma atração irresistível.
D.
Carolina ao ver o rapaz sente desejo de tomarem banho juntos, ali mesmo. Aquele
amante moço fazia D. Carolina remoçar, como se fosse um milagroso afrodisíaco.
“Quis
ela mesma despir o rapaz, tirar-lhe a camisa de meia, tirar-lhe as calças,
pô-lo nu a seus olhos, Bom-Crioulo já lhe havia dito que Aleixo tinha formas de
mulher.
Depois
começou a se despir também...
O
tanque estava cheio a transbordar. Via-se-lhe o fundo claro através da água
límpida e fresca.
Ninguém
os via naquela nudez primitiva, frente a frente – o corpo largo e mole da
portuguesa em contraste com as formas ideais e rijas do efebo -,
escandalosamente nus, pecadoramente bíblicos no silêncio do quintalejo ao
abrigo do sol que vibrava em torno do pequeno alpendre a sua luz de ouro fulvo!
O
que eles fizeram, antes e depois do banho, ninguém saberá nunca. Os muros do
quintal abafaram toda essa misteriosa cena de erotismo consumada ali por trás
da Rua da Misericórdia num belíssimo dia de novembro.” (p. 73)
Aleixo
se comprazia naquele relacionamento com uma mulher mais experiente, sentia “um
forte desejo de possuí-la sempre, sempre, a toda hora, uma vontade irresistível
de mordê-la, de cheirá-la, de palpá-la num frenesi de gozo, num grande ímpeto
selvagem de novilho insaciável”. (p. 74)
Aleixo
mesmo naqueles momentos com a portuguesa, não podia esquecer de todo seu antigo
amante. A figura do negro acompanhava-o com uma insistência de remorso. Tinha
medo do gênio rancoroso e vingativo do outro. Isso fazia com que suas expansões
com a portuguesa fossem incompletas.
A
mulher, no entanto, não parecia preocupar-se muito com isso.
“Toda
a noite foi um delírio de gozo e sensualidade. D. Carolina cevou o seu
hermafroditismo agudo com beijos e abraços e sucções violentas...” (p. 75)
CAPÍTULO IX
Enquanto
isso, no hospital, Bom-Crioulo sofria longe de seu amado, ouvindo gemidos
aborrecedores e alimentando-se parcamente.
A
lembrança de Aleixo não lhe saía da cabeça. Sonhava com a liberdade e com o
amor do grumete.
O
negro evitava a todos com seu olhar ameaçador e seu jeito carrancudo.
À
noite, sozinho, sentia uma mistura de tristeza, desgosto e ódio: o companheiro
não o procuraria? Teria arrumado outro?
Não
conseguia apagar do espírito o mau pensamento de ver seu garoto nos braços de
outro homem. Torturava-o o terrível ciúme.
Na
enfermaria, nem a bela paisagem que se via da janela o animava.
Seu
consolo era um retrato do Aleixo, uma fotografia barata tirada na Rua do
Hospício, quando ele e o rapaz moravam juntos na corveta. Ao deitar-se beijava
com carinho aquele retrato.
Angustiado,
Amaro lembra-se de pedir a um empregado do hospital para escrever um bilhete ao
Aleixo. Dita suas queixas e faz um pedido ao rapaz para que venha fazer-lhe uma
visita no dia seguinte, que era um domingo.
Enviou
o bilhete ao amigo e ficou esperando, sôfrego e apreensivo, uma resposta que
não veio.
Aquele
desprezo o encheu de cólera.
“Passou
á hora do almoço, chegou a hora do jantar, entraram e saíram marinheiros, a
sineta badalou novas baixas, tocou meio-dia, e nada! Nem sinal de Aleixo, nem
sombra dele! – Era mesmo para uma pessoa danar! Se não quisesse ir, dissesse!”
Veio
á noite e a madrugada, mas nada do Bom-Crioulo dormir ou afastar do espírito a
imagem importuna do ingrato namorado. Essa imagem o torturava, borboleta
importuna a voejar em torno do desprezado.” (p. 79)
Nos
dias seguintes, tentou esquecer, em vão, aquele vício, aquela paixão, aquela
loucura que ele, tão forte, não conseguia dominar. Começou a pensar numa
maneira de fugir do hospital.
Os
dias passavam e a existência tornava-se cada vez mais insuportável. Uma noite
foi preso quanto tentava escalar o muro do hospital...
CAPÍTULO X
D.
Carolina e Aleixo viviam felizes, agora que a figura do negro desaparecera de
suas vidas.
Aleixo
encorpara, estava virando homem. O sotãozinho estava abandonado; viviam juntos
no quarto dela. Aleixo, com ciúmes, quis que ela abandonasse o Manoel, que lhe
ajudava a sustentar a casa. Ela disse que sim, mas às escondidas, encontrava-se
com o amante para poder equilibrar o orçamento.
A
vida era uma embarcação em mar de rosas. Até que chegou às mãos da portuguesa o
bilhete do Bom-Crioulo.
D.
Carolina rasgou-o em pedacinhos, mas depois ficou pensando, inquieta: tinha
medo do que poderia acontecer se Amaro descobrisse tudo, cenas de sangue
vinham-lhe à cabeça. Naquela noite, quase não conseguiu dormir.
No
dia seguinte, Aleixo estranhou encontrar a porta da rua fechada, assim como os
carinhos tantos que ela lhe dispensava naquela tarde. Entregava-se a ele quase
maternalmente, para dissipar os temores do bilhete.
Como
não dissesse nada, o rapaz amuou. O jantar foi de cara amarrada. Enfim, ele
resolveu contar-lhe tudo. Aleixo surpreendeu-se: então Bom-Crioulo ainda
pensava nele! Discutiram o assunto e resolveram esquecê-lo. Decidiram sair ao
Passeio Público, para aproveitar a noite e espairecer.
CAPÍTULO XI
Ódio,
amor e ciúme confundiam-se nos sentimentos de Bom-Crioulo. No hospital, durante
o dia, ainda tentava se esquecer de Aleixo, mas à noite era tomado por um
desespero incrível, agravado por feridas que haviam brotado por todo o seu
corpo e não o deixavam dormir, tal a coceira provocada pela sarna.
Era
um sábado, feriado, quando Bom-Crioulo reconheceu entre os marinheiros
visitantes do hospital o Herculano, o Pinga da corveta! Foi ele quem lhe disse
que Aleixo reinava na embarcação, muito íntimo dos oficiais, e que parecia
amigado de uma rapariga em terra.
Bom-Crioulo
ouviu aquilo engolindo uma onda de cólera. À noite, fugiu. Queria vingar-se;
queria agora gozar o grumete maltratando-o, fazendo-o sofrer!
Planejou
a fuga com cuidado; foi para as praias da ilha e ficou esperando o amanhecer, o
descortinar-se dos Órgãos, de Niterói, da Barra, do Pão de Açúcar.
Conseguiu
que um velho galego o levasse ao continente em um bote. Estava um dia lindo, um
dia de galas e de liberdades!
CAPÍTULO XII
Bom-Crioulo
chegou cedo à Rua da Misericórdia.
“É
bem cedo e há pouco movimento na Rua da Misericórdia. Homens mal vestidos,
operários e ganhadores, descem a rua numa lentidão arrastada. A vaca de leite,
com as grandes tetas pesadas, passa no seu giro cotidiano, dócil, a baba a
escorrer-lhe do focinho em fios de espuma. A carroça do lixo anda na sua faina
matinal, parando aqui e ali. Pairava um cheiro forte de urina, assim como uma
emanação agressiva de mictório público, envenenando a atmosfera, intoxicando a
respiração.” (p. 97)
Aqui
temos algumas marcas típicas do gosto naturalista. Ao contrário do escritor
romântico que dirigia o foco de suas lentes para aspectos bonitos e agradáveis
da realidade, como que fazendo um cartão postal da cidade do Rio de Janeiro, o
naturalista registra o feio, o desagradável com objetividade.
Abrem-se
botequins preguiçosos, lojas de negócio, e, assim como a luz, o movimento de
transeuntes vai aumentando. Daqui e dali, surgem caras estranhas e amarrotadas
pelo sono, como abelhas de um cortiço. A vida recomeça. E é nesse quadro que se
recorta a figura de Amaro, seguindo em direção ao sobrado. Quando o vê, diminui
o passo. Vem-lhe uma saudade! Foi ali que ele viveu o melhor de sua vida. Ali
tinha aprendido a amar, a querer bem. Recorda toda sua aventura com o medido
bonito. Mas quanto mais lembrava o passado, mais o ódio tomava conta dele. Não
conseguia fixar seu olhar em nada.
“Começou,
de repente, a sentir uma zoada no ouvido, um rumor vago de insetos, uma coisa
desagradável, incômoda e amofinadora; tremiam-lhe as pernas; ia-lhe faltando a
respiração. Era um mal-estar, um nervoso, uma aflição, um delírio, um vago
desejo de matar, de assassinar, de ver sangue...” (p. 99)
Ao
chegar, Amaro depara com a porta do sobrado fechada. Dá meia-volta e vai
andando rua acima, meio sem rumo. De repente, dá com a padaria que fica quase
defronte da portuguesa. Entra e puxa conversa com o funcionário, perguntando
sobre a portuguesa e Aleixo. O que ouve deixa-o estarrecido:
“Acordam
tarde. Ultimamente a porte vive fechada. Costumam sair juntos à noite...” (p.
99)
Amaro
não quer acreditar e pede mais informações e o outro não se faz de rogado>
“Foram
ao teatro, ontem, à “Tomada da Bastilha”. Conheço muito a D. Carolina. Dizem
até que está amigada com o pequeno...” (p. 100)
No
exato momento em que estão conversando, o funcionário mostra a Amaro que o
rapaz está saindo do sobrado. Bom-Crioulo salta até Aleixo e inicia-se uma
discussão de amante desprezado e enciumado, atraindo muita gente.
Forma-se
um grande círculo em volta dos dois marinheiros, invisíveis agora. Começou um
tumulto, um alvoroço, guardas aparecem.
De
repente o povo recuou abrindo caminho, a portuguesa apareceu na janela e
gritou: “Jesus!” Viu, no meio de duas fileiras de curiosos, o corpo
ensanguentado do grumete.
“Aleixo
passava nos braços de dois marinheiros, levado como um fardo, o corpo mole, a
cabeça pendida para trás, os olhos imóveis, a boca entreaberta. O azul-escuro
da camisa e a calça branca tinham grandes nódoas vermelhas. O pescoço estava
envolvido num chumaço de panos. Os braços caíam-lhe, sem vida, inertes, bambos,
numa frouxidão de membros mutilados.” (p. 101)
“Ninguém
se importava com o outro, com o negro, que lá ia, rua abaixo, triste e
desolado, entre baionetas, à luz quente da manhã: todos porém, todos queriam
ver o cadáver, analisar o ferimento, meter o nariz na chaga...
Mas,
um carro rodou, todo lúgubre, todo fechado, e a onda dos curiosos foi se
espalhando, se espalhando, até caiu tudo na monotonia habitual, no eterno
vaivém.” (p. 102)
IX - CONSIDERAÇÕES
FINAIS:
Massaud
Moisés vê no “Bom-Crioulo” um romance que “focaliza o problema da escravidão,
segundo um prisma abolicionista e republicano”. No entanto, a história do
“negro fugido” Amaro não nos parece ter como eixo central o problema da
escravidão.
Sem
dúvida que esse problema aparece no romance e que a posição do autor é
abolicionista e republicano.
“A
disciplina militar, como todos os seus excessos, não se comparava ao penoso
trabalho penoso trabalho da fazenda, ao regime terrível do tronco e do chicote.
Havia muita diferença. (...) Ali ao menos, na fortaleza, ele tinha sua maca,
seu travesseiro, sua roupa limpa, e comia bem, a fartar, como qualquer pessoa.
(...) Depois, a liberdade, minha gente, só a liberdade valia por tudo! Ali não
se olhava a cor ou a raça do marinheiro: todos eram iguais, tinham as mesmas
regalias – o mesmo serviço, a mesma folga.”
É
importante observar que o retrato do imperador D. Pedro II, no quarto de Amaro,
tão bem visto por este no capítulo VII do livro, poderia ir contra esta ideia e
dar a entender que o livro é anti-republicano. Pelo contrário, o retrato do
imperador reinando em um ambiente tão promíscuo e decadente como o quarto do
sobradinho, não seria mais que alegórico de Sua Majestade a reinar em um país
decadente, enfeitado por “móveis e objetos de fantasia rococó, “figuras”,
enfeites, cousas sem valor muita vez trazidas de bordo...”
Outra
temática importante a analisar é a negritude de Amaro. Se a posição do autor é
francamente favorável a ele nesse aspecto em alguns momentos do romance (“...o
drama do cativo parece avultar na medida de suas qualidades pessoais...”, bem
notou Massaud Moisés), se algumas vezes surge sua figura como heróica (o mais
forte marinheiro, o episódio de socorro a D. Carolina ou ao transeunte com
gota), nem por isso o autor deixa de descrever o Bom-Crioulo com todos os
preconceitos de sua época e das teorias deterministas de Taine. Como exemplo
disso, vejam-se algumas expressões retiradas de certas passagens do livro,
referentes a Amaro: “não tinha forças para resistir aos impulsos do sangue”,
“desejo de posse animal”, “se os brancos faziam, quanto mais os negros!”,
“momentos há em que os próprios animais caem extenuados”, “cousas do caráter
africano”, “ignorante e grosseiro”, “desespero hidrofóbico”, “orgulho selvagem
de animal ferido”, etc.
Segundo
Antonio Candido:
“A
orientação científica se apresenta como interpretação objetiva do comportamento
das personagens, mas adquire logo matizes valorativos, na medida em que naquele
tempo esta modalidade de interpretação tinha uma função desmistificadora, sendo
ruptura com o idealismo e esforço para enxergar a vida na sua totalidade (...)”
A
questão da negritude, porém, é secundária. “Bom-Crioulo” filia-se, sem dúvida
nenhuma, à corrente naturalista que se preocupava com “temas singulares,
extraordinários, frequentemente patológicos” (Erich Auerbach).
O
tema central do romance é o homossexualismo, a pederastia.
Caminha
tenta ser o mais imparcial possível, atendo-se à observação pura e simples,
como bom naturalista. Afinal, “ninguém está livre de um vício”. Mas esta mesma
palavra – “vício” – já denota uma postura negativa em relação ao assunto. E o
que se lê sempre, nas linhas e entrelinhas, é não só o homossexualismo, mas o
sexo em geral, tratado como desvio, forma animalesca de estar no mundo.
Nessa
obra a linguagem, a construção dos personagens e do espaço são perpassados pela
ideia de que o homossexualismo leva a uma degeneração do ser humano. Apenas
para corroborar essa ideia, veja-se o comentário a seguir, em que se analisa a
decadência do Bom-Crioulo a partir do momento em que passa a ter uma relação
estável com Aleixo no sobradinho de Carolina; decadência que só irá se
prolongar, física e mentalmente, até o final do romance:
“Ultimamente
[Amaro] começou a achar-se magro, sentindo mesmo uns longes de fraqueza no
peito. Quando trabalhava muito ou fazia qualquer esforço, vinha-lhe uma
sonolência profunda, uma vontade de estirar o corpo na cama fresca e macia, um
relaxamento dos nervos...Os próprios companheiros notavam certa mudança em sua
fisionomia (...)”